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Os efeitos clínicos e institucionais do dispositivo “Construção do Caso Clínico“ em um Serviço Residencial Terapêutico*1 *1 O trabalho foi realizado no Laboratório de Estudo Psicanálise Cultura de Subjetividade - LAEpCUS do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Realizado com bolsa de estudos da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). É oriundo da dissertação: Psicanálise e psicose: os efeitos clínicos institucional do dispositivo construção do caso clínico em um Serviço Residencial Terapêutico, defendido em 9 de dezembro de 2021 no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza - Unifor.

Clinical and institutional effects of the “Case-building method“ in a Terapeutic Residential Service

Les effects cliniques et institucionnels de la méthode “Construction de Cas Cliniques” dans un Service Thérapeutique Résidentiel

Los efectos clínicos e institucionales del dispositivo “Consctrucción de Caso Clínico” en Servicio Residencial Terapéutico

Resumos

Este artigo apresenta os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) como equipamentos destinados à moradia de pessoas egressas de longos períodos de internação em hospital psiquiátrico, analisando, a partir da teoria psicanalítica, o trabalho desenvolvido por uma equipe de SRT orientada pelo método da Construção do Caso Clínico. Objetiva discutir os efeitos clínicos e institucionais da Construção do Caso Clínico para a estabilização da psicose de um morador do SRT. O campo de estudo é localizado no Bairro Bom Jardim, na cidade de Fortaleza-CE. A pesquisa foi realizada de dezembro de 2020 a agosto de 2021. Conclui-se que a Construção do Caso Clínico é uma contribuição rica da psicanálise para a noção de Projeto Terapêutico Singular (PTS), possibilitando redimensionar a direção do cuidado. Convoca-se, assim, a equipe a partir do caso; e não sobre o saber prévio acerca dele.

Palavras-chave
Psicanálise; Construção do Caso Clínico; psicose; Serviço Residencial Terapêutico


This article presents the Therapeutic Residential Services (TRS) as facilities for housing people discharged from long hospitalization periods at a psychiatric hospital by analyzing, based on psychoanalytic theory, the work developed by a SRT team guided by the case-building method. It discusses the clinical and institutional effects of case-building for stabilizing the psychosis of a SRT resident. The SRT surveyed is located at Bom Jardim, a neighborhood in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil. Research was conducted from December 2020 to August 2021. In conclusion, case-building is a rich contribution from psychoanalysis to the notion of the Singular Therapeutic Project (STP), allowing to restructure the scope of care offered. Thus, the team is convened based on the case itself and not on the previous knowledge about it.

Keywords
Psychoanalysis; Case-building; psychosis; Therapeutic Residential Service


Cet article présente les Services Thérapeutiques Résidentiels (SRT) comme des équipements d’accueil pour les personnes sortant d’une longue hospitalisation en hôpital psychiatrique en analysant, à partir de la théorie psychanalytique, le travail développé par une équipe SRT guidée par la méthode de construction de cas clinique. On discute les effets cliniques et institutionnels de la construction de cas clinique pour stabiliser la psychose d’un résident du SRT. Le SRT enquêté est situé dans le quartier Bom Jardim, dans la ville de Fortaleza, Ceará, Brésil. La recherche a été menée de décembre 2020 à août 2021. En conclusion, la construction de cas clinique est un apport riche de la psychanalyse à la notion de Projet Thérapeutique Singulier (PTS), permettant de restructurer l’orientation du soin. Ainsi, l’équipe est convoquée en fonction du cas lui-même et non en fonction des connaissances préalables à celui-ci.

Mots-clés
Psychanalyse; Construction de cas clinique; psychos; Service Thérapeutique Résidentiel


Este artículo presenta los Servicios Residenciales Terapéuticos (SRT) como mecanismos destinados al alojamiento de personas egresadas de largos períodos de hospitalización en un hospital psiquiátrico, además analiza, desde la teoría psicoanalítica, el trabajo desarrollado por un equipo SRT guiado por el método de construcción de casos. Su objetivo es discutir los efectos clínicos e institucionales de la construcción del caso clínico para estabilizar la psicosis de un residente de SRT. El campo de estudio está ubicado en el barrio Bom Jardim, en la ciudad de Fortaleza, en Ceará (Brasil), y la encuesta se realizó entre diciembre de 2020 y agosto de 2021. Se concluye que la construcción del caso clínico es un gran aporte del psicoanálisis a la noción de Proyecto Terapéutico Singular (PTS) por permitir redimensionar la orientación del cuidado. Así, no se convoca el equipo desde el conocimiento previo del caso, sino desde su función.

Palabras clave
Psicoanálisis; construcción del caso clínico; psicosis; Servicio Residencial Terapéutico


Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira, ao longo dos seus 30 anos de construção cotidiana de tratamento da loucura, criou diversos dispositivos e estratégias inovadoras para o enfrentamento das questões que atravessam as políticas de assistência em saúde mental. A promulgação da Lei nº 10.216, em 2001, é um marco dessa aposta, pois consolida dispositivos engenhosos que afirmam o cuidado em liberdade. São eles: Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades; Centros de Convivências; Unidades de Acolhimentos; leitos psiquiátricos em hospitais gerais; e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).

Palombini, Barboza e Fick (2014)Palombini, A. L., Barboza, R. T., & Fick, T. K. (Orgs.). (2014). O cuidado do morar: escritas em trabalhadores de serviços residenciais terapêuticos. Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. enunciam que os SRT, em conjunto com os CAPS, constituíram pontos estratégicos da rede de assistência - uma rede que vem contribuindo para o êxito da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Os SRT são compostos por casas ou moradias, conforme as portarias nº 106 e nº 3.090, preferencialmente para pessoas que durante muito tempo estiveram excluídas da sociedade nos manicômios do país, sem direito a habitar a cidade (Brasil, 2000Brasil (2000). Portaria n. 106, de 24 de fevereiro de 2000. Criar os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde, para o atendimento ao portador de transtornos mentais. Brasília, DF, n. 39, 23-24., 2004Brasil (2004). Portaria n. 2.068, de 24 de setembro de 2004. Destina incentivo financeiro para os Serviços Residenciais Terapêuticos e dá outras providências. Brasília, DF, n. 24, 13-14., 2011Brasil (2011). Portaria n. 3.090, de 23 de dezembro de 2011. Estabelece que os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), sejam definidos em tipo I e II, destina recurso financeiro para incentivo e custeio dos SRTs, e dá outras providências. Brasília, DF, n. 56, 34-35.).

Nesse sentido, além das pessoas institucionalizadas em hospitais psiquiátricos, os SRT destinam-se a pessoas egressas de hospitais de custódia; pessoas que, devido a sua condição, necessitam de auxílio para conseguir sustentar uma moradia e pessoas em situação de rua e/ou apresentar transtornos mentais severos. Além desses, compõem o público-alvo dos SRT pessoas com perda dos vínculos familiares e/ou atendidas no CAPS. Nesses casos, a equipe de referência pode julgar que essas pessoas necessitam do benefício da moradia no SRT (Brasil, 2004Brasil (2004). Portaria n. 2.068, de 24 de setembro de 2004. Destina incentivo financeiro para os Serviços Residenciais Terapêuticos e dá outras providências. Brasília, DF, n. 24, 13-14.).

Para receber usuários tão heterogêneos, estabeleceu-se que a casa deve ser organizada segundo o gosto dos moradores, o que implica a existência de vários tipos de SRT. De todo modo, em termos gerais, existem dois tipos de SRT: tipo I, destinado a pessoas com menor grau de dependência; e tipo II, para pessoas com maior grau de dependência (Brasil, 2000Brasil (2000). Portaria n. 106, de 24 de fevereiro de 2000. Criar os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde, para o atendimento ao portador de transtornos mentais. Brasília, DF, n. 39, 23-24., 2004Brasil (2004). Portaria n. 2.068, de 24 de setembro de 2004. Destina incentivo financeiro para os Serviços Residenciais Terapêuticos e dá outras providências. Brasília, DF, n. 24, 13-14., 2011Brasil (2011). Portaria n. 3.090, de 23 de dezembro de 2011. Estabelece que os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), sejam definidos em tipo I e II, destina recurso financeiro para incentivo e custeio dos SRTs, e dá outras providências. Brasília, DF, n. 56, 34-35.). Atualmente, de acordo com documentos do Ministério da Saúde, existem mais de 700 SRT cadastrados no país.

Ferreira e Carneiro (2016)Ferreira, C. B., & Carneiro, H. F. (2016). A experiência de inclusão de uma residência terapêutica na comunidade de Garanhuns-PE. CESUMAR, 18(2), 185-198. doi: http://dx.doi.org/10.17765/1518-1243.2016v18n2p185-198
http://dx.doi.org/10.17765/1518-1243.201...
ressaltam a importância do trabalho de inserção comunitária feito no SRT; mas, para que o SRT não reproduza o isolamento social dos manicômios, faz-se necessário que os profissionais que atuam no lugar tenham clareza de sua função social e do tipo de terapêutica a que esse equipamento se destina. As autoras também pontuam que, além desse trabalho inserido na rede socioassistencial, urge oferecer na própria sociedade outro lugar (social) para a loucura.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi tecida a partir das contribuições de vários campos do saber, e a psicanálise esteve presente com iniciativas pioneiras que se apresentaram como alternativas ao hospital psiquiátrico, como o primeiro Centro de Atenção Psicossocial Luiz Cerqueira, na cidade de São Paulo, cujo tripé de funcionamento se alicerçava na psicanálise, no uso racional da medicação e na inclusão social, revelando-se um projeto exitoso (Pitta, 2011Pitta, A. (2011). Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira: instituições, atores e políticas. Ciência & Saúde Coletiva, 16(12), 4579-4589.).

Dentre as inúmeras contribuições do campo psicanalítico, destaca-se a Construção do Caso Clínico como método que surge no contexto da saúde mental pós-Reforma Psiquiátrica, inaugurado pelo italiano Carlo Viganó (Viganó, 2010Viganó, C. (2010). A construção do caso clínico. Opção Lacaniana, 1(1), 1-9.). Esse método se configura como um trabalho em equipe, e foi criado na tentativa de trazer a dimensão da clínica para o serviço de saúde mental, tendo em vista que o discurso dos sujeitos atendidos nesses serviços ficavam encobertos pelo diagnóstico psiquiátrico, por meio de sistemas de classificação (como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM). A Reforma Psiquiátrica possibilita aos sujeitos com intenso sofrimento mental a garantia da cidadania, a clínica psicanalítica, no entanto, contribui para o olhar singular ao que é garantido a todos. Dessa forma, a Construção do Caso Clínico configura-se como potencial contribuição da psicanálise para a equipe de saúde mental, pois pretende propor um solo comum de trabalho na heterogeneidade de saberes que compõem esse campo (Pedrosa & Teixeira, 2015Pedrosa, L., & Teixeira, C. (2015). Psicanálise e construção do caso clínico: considerações sobre um dispositivo terapêutico. Subjetividades, 15(1), 76-83.).

Traçado esse panorama, tomamos o trabalho desenvolvido por uma equipe de SRT orientada pelo método da Construção do Caso Clínico, com o objetivo de discutir, no presente artigo, os efeitos clínicos e institucionais da construção do caso clínico para a estabilização da psicose de um morador do SRT. As reflexões aqui desenvolvidas são um recorte da dissertação de mestrado intitulada Psicanálise e Psicose: os efeitos clínicos institucionais do dispositivo Construção do Caso Clínico em um Serviço Residencial Terapêutico, de autoria de uma das autoras deste artigo. A pesquisa que lhe deu origem foi realizada em um SRT da cidade de Fortaleza-CE, no Bairro Bom Jardim - um dos bairros de maior vulnerabilidade da cidade.

O SRT do Bom Jardim

De acordo com Godoy (2012)Godoy, M. G. (2012). O compartilhamento do cuidado em Saúde Mental: uma experiência de cogestão de um centro de atenção psicossocial em Fortaleza-CE apoiada em abordagens psicossociais. Saúde e Sociedade, 21(1), 152-163., o Grande Bom Jardim é uma área que engloba cerca de 130.000 habitantes distribuídos em cinco bairros: Granja Lisboa, Granja Portugal, Bom Jardim, Canindezinho e Siqueira. Historicamente, a população é proveniente do êxodo rural provocado pela seca no interior do Estado, pois o bairro se localiza justamente no acesso do interior à capital. A Regional também apresenta menores indicadores sociais e sanitários, além da menor capacidade de instalação de equipamentos de saúde (Godoy, 2012Godoy, M. G. (2012). O compartilhamento do cuidado em Saúde Mental: uma experiência de cogestão de um centro de atenção psicossocial em Fortaleza-CE apoiada em abordagens psicossociais. Saúde e Sociedade, 21(1), 152-163.; Neponuceno, 2013Neponuceno, B. N. (2013). Pobreza e saúde mental: uma análise psicossocial a partir da perspectiva dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil.).

O SRT que acolhe o usuário em questão encontra-se sob responsabilidade técnica do CAPS Bom Jardim, que tem a particularidade de ser o único da cidade de Fortaleza que funciona em cogestão com a ONG Movimento de Saúde Mental do Bom Jardim.1 1 Movimento de Saúde Mental do Bom Jardim, organização não governamental que trabalha a saúde mental comunitária em diferentes frentes. Em 1996, o padre Rino Bonvini, missionário comboniano (congregação da Igreja Católica), na esteira da Teologia da Libertação, chegou ao território do Grande Bom Jardim, e junto com lideranças locais iniciou o Movimento Saúde Mental Comunitário do Bom Jardim, hoje Movimento Bom Jardim (MBJ). Para Godoy (2012)Godoy, M. G. (2012). O compartilhamento do cuidado em Saúde Mental: uma experiência de cogestão de um centro de atenção psicossocial em Fortaleza-CE apoiada em abordagens psicossociais. Saúde e Sociedade, 21(1), 152-163., a criação do Centro de Atenção Psicossocial Comunitário de Bom Jardim, em 2005, é uma conquista muito importante para moradores e integrantes da ONG, e é considerada um reconhecimento da rede psicossocial existente no bairro. Neponuceno (2013)Neponuceno, B. N. (2013). Pobreza e saúde mental: uma análise psicossocial a partir da perspectiva dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil. ressalta a superlotação do CAPS em 2013, pois era responsável por uma população de mais de 500.000 mil habitantes, enquanto a tipificação II previa uma população de 200.000 habitantes.

Fundado em 2011, o SRT do Bom Jardim é caracterizado como “tipo II”, e pode abrigar de quatro a dez participantes com maior grau de dependência. Segundo a portaria nº 3.090, de 2011, a instituição é destinada a pessoas que precisam de cuidadores permanentes, com apoio técnico diário. Para essa modalidade de SRT, é prevista uma equipe de cuidadores e técnicos de enfermagem que devem estar em articulação com a equipe do serviço de referência (Brasil, 2011Brasil (2011). Portaria n. 3.090, de 23 de dezembro de 2011. Estabelece que os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), sejam definidos em tipo I e II, destina recurso financeiro para incentivo e custeio dos SRTs, e dá outras providências. Brasília, DF, n. 56, 34-35.).

O SRT do Bom Jardim abriga atualmente dez pessoas, sendo sete do sexo feminino e três do sexo masculino. A maioria é oriunda dos hospitais psiquiátricos da cidade, com exceção de duas pessoas: a primeira ainda tem vínculos familiares, mas mora no SRT; a segunda, apesar de ter histórico de longa permanência em hospital psiquiátrico, foi transferida de outro SRT da cidade, no ano de 2019. Dentre as pessoas atendidas no SRT em questão, toma-se como mote para o desenvolvimento deste artigo a construção do caso clínico de Fausto, que mora no SRT desde 2013.

Método: Construção do Caso Clínico

A Construção do Caso Clínico é um método avançado, com vasta produção acadêmica e contribuições ricas da psicanálise às equipes de saúde. Viganó (2010)Viganó, C. (2010). A construção do caso clínico. Opção Lacaniana, 1(1), 1-9. define que a Construção do Caso Clínico é um método democrático e dialético. Democrático, pois cada um dos protagonistas do caso (sujeitos, familiares e instituições) pode contribuir. Consiste em juntar as narrativas desses atores no tecido social e se debruçar nos pontos cegos, tanto pelo saber como pelo medo da ignorância. Isto é, aciona os ditos e os não ditos da equipe que acompanha o caso, sem a pretensão de acessar um saber “acadêmico sobre o caso”, mas, ao contrário, enfrentando aquilo que também resiste na elaboração desse saber “não total” sobre o caso. E é dialético porque a rede social se inverte: os profissionais se colocam no lugar de discentes, enquanto o paciente se coloca em posição de docente. Esse saber não passa, obviamente, por uma produção formal, mas por seus atos, vivências, recaídas e ausências.

Val e Lima (2014)Val, A.C., & Lima, M. A. C. (2014). A construção do caso clínico como forma de pesquisa em psicanálise. Ágora, 17(1), 99-115., na esteira do pensamento do italiano, estabelecem a Construção do Caso Clínico como operação em direção ao real, ou seja, daquilo que não se pode dizer, e que, portanto, somente pode ser circunscrito por uma operação metafórica. Tal ideia parte da etimologia da palavra caso, que por sua vez, vem do latim “cadere”, que significa “cair” ou “ir para fora” de uma regulação simbólica.

Na construção do caso, pode-se pensar na elaboração de um saber que passa pela experiência singular dos envolvidos e se dá a cada vez, em cada contexto. Como se pode operar com essa lógica na instituição? Vejamos o que diz Freud (1919/1996b)Freud, S. (1996b). Sobre o ensino da psicanálise na Universidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 217-220). Imago. (Trabalho original publicado em 1919). no texto “Sobre o ensino da psicanálise na Universidades. Ele afirma que a inclusão da psicanálise nas universidades seria vista com satisfação pelos psicanalistas, embora a sua formação prescinda da universidade, fazendo-se nas sociedades psicanalíticas (“Escolas”) que sustentam o tripé análise pessoal, atendimento e supervisão com analistas mais experientes. Freud (1919/1996b)Freud, S. (1996b). Sobre o ensino da psicanálise na Universidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 217-220). Imago. (Trabalho original publicado em 1919). ressalta, entretanto, que a psicanálise teria muito a contribuir com a formação dos médicos, embora sua presença na universidade não fizesse do estudante de medicina um psicanalista. “Para o objetivo que temos em vista será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise” (p. 189).

Aprender algo a partir da psicanálise remete ao trabalho do analista em uma equipe interdisciplinar no serviço de saúde mental. Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86. propõe a construção de uma referência mínima comum entre a equipe, caso a caso, a partir dos conteúdos que advêm da clínica, trazendo a seguinte questão: “Como construir um solo comum de trabalho, para diferentes profissionais, que não teria nenhum compromisso com uma formação em psicanálise, mas poderia se valer de sua contribuição?” (p. 77). Uma das possibilidades de responder a essa questão é a construção do caso clínico na equipe de saúde mental, articulando com Freud (1919/1996b)Freud, S. (1996b). Sobre o ensino da psicanálise na Universidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 217-220). Imago. (Trabalho original publicado em 1919). aquilo que se refere a aprender algo a partir da psicanálise, ou seja, um saber fazer que se transmite.

Vorcaro, Vilela e Rezende (2018)Vorcaro, A. M. R., Vilela, A. A., & Rezende, A. O. (2018). Tecendo a rede: a construção do caso clínico no atendimento institucional de jovens. Revista de Psicologia, 9(1), 64-69., a partir da Construção do Caso Clínico, sistematizam o que se passou a chamar de “efeito equipe”, ou seja, a conclusão de que a equipe não preexiste ao caso, mas o caso é que enoda a equipe, ou cria o efeito de equipe. Ou seja, a equipe, nesta perspectiva, não é formada por categorias burocraticamente estabelecidas, mas se estabelece a cada caso. As autoras ressaltam a tentativa de fugir à idealização de uma equipe coesa ao redor do caso, pois cada profissional pode ser tocado a seu modo, colocando-se no lugar de aprendiz do caso (Machado, Moreira, & Fidelis, 2018Machado, M., Moreira, G., & Fidelis, K. (2018). Desdobramentos de uma metodologia: o real nos bastidores da construção do caso clínico. Affctio Sociatatis, 15(28), 121-123.; Mendes, 2014Mendes, A. A. (2014). O efeito-equipe e a Construção do Caso Clínico (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte-MG, Brasil.).

Para a construção do caso clínico deste artigo, inspiramo-nos nas formulações de Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86., que criou os seguintes binômios: passagens da história ao caso; da supervisão à construção; dos conceitos às distinções. O primeiro binômio, “história-caso”, consiste em entender a diferença entre a história contada sobre o sujeito e o caso. A história é o relato clínico, em detalhes, dos fatos da vida do sujeito. O caso expõe os conteúdos recolhidos do discurso do sujeito na equipe que, por vezes, pode estar fragmentado entre os vários profissionais que o atendem, mas podem ser recolhidos pelo analista-pesquisador. O binômio “história-caso” não está interessado em narrar um fato, mas sim em traçar a rede de significantes do sujeito em questão, ou seja, é preciso que a história se faça caso.

O segundo binômio, “supervisão-construção”, refere-se à passagem da supervisão à construção. A construção vai além da supervisão, tendo em vista que é feita de forma coletiva no grupo de pesquisa, em que nenhum membro dessa coletividade tem a última palavra (Figueiredo, 2004Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86.). O Laboratório de Estudos em Psicanálise, Cultura e Subjetividade (PPGP/UNIFOR, Núcleo Psicanálise na Interdisciplinaridade) foi o grupo de pesquisa que deu suporte para este estudo, e os efeitos da discussão nele desenvolvidos foram levados para a equipe de referência do caso, como recomenda Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86..

O último binômio proposto por Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86., “conceitos-distinções”, refere-se à ideia de que a psicanálise não é um saber acabado, pois é sempre efeito das ferramentas conceituais do analista sobre o que é escutado do sujeito. Dessa forma, há a produção de novos saberes no decorrer da construção do caso clínico.

A construção do caso Fausto seguiu os seguintes tempos: 1º) observação da dinâmica institucional, durante um mês, quatro horas por dia e duas vezes por semana; 2º) escutas individuais semanais, uma hora por dia durante dois meses, de um sujeito escolhido em diálogo com a equipe de referência do SRT; 3º) supervisão, em paralelo à escuta individual; 4º) trabalho em parceria com a equipe de referência do serviço sobre os conteúdos elaborados na supervisão (dois encontros de, em média, duas horas).

Discursos da Equipe

Com a permanência da pesquisadora no SRT, surgiu na fala de algumas cuidadoras a demanda de que Fausto pudesse ser acompanhado individualmente por algum psicólogo. Como previsto no projeto de pesquisa, a pesquisadora assumiu essa demanda, por entender que Fausto poderia ser um dos casos aprofundados em escuta individual; ele se destacava em aspectos clínicos e institucionais que possibilitavam a construção do caso clínico. A demanda era dirigida à pesquisadora com as seguintes frases dos cuidadores do SRT e dos profissionais do CAPS: “Ele quer mandar em tudo e em todos”; “Eu consigo dar limites e não levar as ofensas dele para o lado pessoal, mas algumas cuidadoras não conseguem fazer essa separação”; “Eu acredito que Fausto esteja chateado porque, com a pandemia, tivemos que diminuir a circulação deles, como a ida de pessoas para o SRT. Ele, por ser um dos que mais tem essa necessidade de interação, encontra-se, assim, irritado”.

Apontamentos sobre Fausto

Fausto, 39 anos, diferentemente dos outros moradores, chegou à residência de forma peculiar. Ele estava internado no CAPS Geral 24 horas da Secretaria Especial Regional II, após ter sido internado por complicações clínicas em um hospital geral da cidade. Segundo informações contidas no prontuário, ele havia sido encaminhado para o hospital devido a um quadro de convulsão; antes desse encaminhamento, Fausto estava internado em um hospital psiquiátrico por causa de uma crise psicótica.

Uma das cuidadoras relatou que ele ficaria no SRT durante nove dias, e depois voltaria para a família. Entretanto, como a família não quis recebê-lo, ele passou a morar na instituição. É necessário, então, trazer algumas informações da história clínica e institucional de Fausto, a fim de avançar na construção do caso clínico. Durante a infância, Fausto vivia com a avó e a mãe, ambas diagnosticadas com transtorno mental, na casa do avô materno. Após a morte do avô, quando Fausto tinha 10 anos, eles passaram a morar com o tio. Ainda aos dez anos, em 1994, o tio de Fausto o enviou para um abrigo destinado a acolher crianças e adolescentes com deficiência mental. O pai biológico está vivo, mas não tem nenhum contato com Fausto, que possui duas irmãs que não são filhas do mesmo pai: Catarina e Sônia.

Informações contidas no prontuário apontam que a irmã Catarina, que passou a morar com o pai aos cinco anos, tinha alguma convivência com Fausto, devido à proximidade do pai dela com seu avô materno. O padrasto de Fausto, pai de sua irmã, ao saber que ele tinha sido enviado para um abrigo, passou a visitá-lo, convidando-o, em seguida, para ir aos finais de semana para sua casa. Catarina afirma que nesse momento intensificou sua convivência com Fausto, mas, após constituir família, foi morar em sua própria casa. Em 2009, convidou Fausto para morar com ela, com o marido e os dois filhos, quando se iniciou o processo de desligamento institucional do abrigo onde Fausto morou por 15 anos. A convivência inicial foi boa, entretanto, Fausto começou a ter muitos atritos com o sobrinho mais novo, de 13 anos. O quadro culminou na internação de Fausto em um hospital psiquiátrico da cidade. Após retornar para casa, o quadro de extrema sedação piorou e ocasionou convulsões. Nesse estado, Fausto foi levado para um hospital geral de Maracanaú e, em seguida, transferido para um hospital geral da cidade de Fortaleza.

Fausto ficou internado durante setenta dias no hospital; a irmã, que durante esse período o visitou apenas três vezes, foi chamada pela equipe para responsabilizar-se por ele. Ela se encontrava muito assustada com o quadro do irmão e alegava não ter condições de cuidar dele. Dessa forma, Fausto foi encaminhado para o CAPS Geral 24 horas da Secretaria Especial Regional II.

A equipe do CAPS 24 horas continuou tentando reatar o vínculo de Fausto com a irmã. Durante esse tempo, de 2013 até 2021, percebeu-se o movimento da equipe - agora do CAPS do Bom Jardim e também da Promotoria de Saúde - para que esses vínculos fossem retomados. Mas não houve sucesso. A irmã fez algumas visitas a Fausto, que também foi visitá-la em alguns momentos, mas ele disse que não deseja mais morar com ela.

Em escuta clínica individual, que é o dispositivo que o psicanalista dispõe para dirigir o tratamento apoiado na teoria e atento aos significantes do sujeito, Fausto, de forma confusa, afirma que todos os membros da sua família morreram: mãe, pai e irmão, e sobrou somente uma irmã. “Ela me batia muito e me internava nos hospitais”; “Eu não quero voltar a morar com ela, gosto de ir lá só para visitar”. Ele diz que estudou até a primeira série; quando se pergunta a sua idade, ele responde: “Eu tenho uns cinco anos”. Sobre o pai, ele fala de forma confusa: “Eu tenho três pais”. Tenta-se escutar o que ele quer dizer com isso, mas permanece enigmático.

A escuta da psicanalista

Fausto participa de todas as oficinas com muito entusiasmo, sempre recebe a pesquisadora muito bem na residência. Nos últimos tempos, as cuidadoras perceberam Fausto irritado com os demais moradores e com elas. Ressalta-se aqui a relação dele com Joana, outra moradora, da qual Fausto sempre está próximo, mas da qual reclama, por sua “forma de ser”. Parece um pai severo e castrador - é do lugar infantil que ele trata Joana. Em alguns momentos, na oficina, foi necessário que se pontuasse que Fausto deixasse Joana se expressar da forma que fosse possível para ela.

Fausto recebe bem todos que por algum motivo visitam a instituição. É uma característica da sua forma de ser; parece que as amizades e as trocas sociais são vitais para ele. Não é por acaso que sua festa preferida e mais esperada é o carnaval. Todos os anos, ele sai na bateria do “Bloco Doido é Tu”.2 2 O “Bloco Doido é Tu” é um bloco carnavalesco da cidade de Fortaleza, fundado em 2007 e gerido pela Fundação Silvestre Gomes. Sua construção é formada pela rede de atenção psicossocial da cidade de Fortaleza, além da participação de familiares e amigos do bloco. Tem importância fundamental para a rede de atenção psicossocial, no que se refere à inserção social pela cultura. É tetracampeão do desfile carnavalesco da avenida Domingos Olímpio. Os usuários, profissionais e familiares participam todos os anos de todo o processo de construção do bloco. Atualmente, o bloco desfila com mais de 400 pessoas em uma apoteose de alegria, liberdade e direito à cidade. Desfilar no “Bloco Doido é Tu” é uma experiência emocionante para usuários, profissionais e amigos do bloco. Na avenida, não há distinção de quem é são e quem é louco, quem é profissional, quem é usuário ou mesmo quem está ali somente por gostar do bloco. É a constatação, em quarenta minutos de desfile, de que outro lugar para a loucura é possível. Esse ano não pôde sair no bloco, devido à pandemia de Covid-19, questão que se tornou recorrente durante a pesquisa. Ele trazia frequentemente em sua fala que, quando a pandemia terminar, desfilará no bloco. Mesmo quando estávamos em dezembro de 2020, próximo ao Natal, Fausto pedia que fossem tocadas músicas de carnaval.

Ao se acompanhar Fausto ao grupo no CAPS, percebe-se que ele frequentemente sai do grupo para conversar com outras pessoas, principalmente com os profissionais do Movimento Saúde Mental. A demanda por essas trocas sociais pode, às vezes, parecer excessiva e incômoda, pois Fausto, em alguns momentos, trata de forma íntima (tocando) pessoas que ele não conhece, comportamento que pode causar desconfiança, estranhamento e sensação de invasão.

O presente

Um elemento no discurso de Fausto merece atenção: ele estava na expectativa de receber um presente do motorista do Movimento Saúde Mental, mas essa expectativa era carregada com um tom de exigência: “Ele me prometeu, então ele tem que me dar”; “Que amigo é esse que promete as coisas e não cumpre?”; “Eu tenho que ganhar minha calça e meu tênis”. Nas idas ao Movimento Saúde Mental, Fausto acionava os profissionais pedindo para ligarem para o motorista cobrando o presente, e ficava na expectativa de ver o amigo para cobrar-lhe. Supunha que o motorista estava se escondendo para não ser cobrado. Um dia, a dívida foi cumprida e Fausto chegou à oficina comunicando: “Eu ganhei o presente do ‘fulano’. Você quer ver?”. Respondeu-se que sim, mas apenas quando terminasse o grupo.

Nesse mesmo dia, chamou muitíssimo a atenção o fato de que, ao final do grupo, Fausto tenha feito uma nova queixa em forma de exigência: “A Luísa quebrou todos os nossos guarda-roupas, nós temos que ganhar outros e o meu tem que ser maior, daqueles bem grandões”.

Que pedido é esse que Fausto demanda, que se desloca como fenômeno que nunca cessa? Fausto estaria mesmo situado na estrutura psicótica? A aposta é que sim, baseando-se no lugar em que Fausto se coloca na relação de transferência. Esse é um dado relevante para a psicanálise, subvertendo o raciocínio diagnóstico: se por um lado não podemos nos orientar somente pela contratransferência, por outro, o modo como o sujeito se enlaça ao analista, pode balizar o diagnóstico diferencial. Sabemos por exemplo que a transferência no campo das neuroses é diferente do campo das psicoses; e desta feita podemos recolher os efeitos desse fenômeno como um recurso a mais para pensar no diagnóstico. Além disso, o lugar que ele ocupa como sujeito na tríade “Sujeito, Outro e objeto” são índices que nos ajudam a localizar o diagnóstico chamado comumente de “estrutural”, ou seja, o diagnostico que busca demarcar em qual estrutura e em que tipo clínico estamos tratando. Em outras palavras, saber se é uma neurose obsessiva ou uma neurose histérica é grande valor clínico. Porém, para além dessa bússola, é necessário compreender o que radicalmente é singular naquele modo de funcionamento psíquico. Há, portanto, um diagnóstico que se remete ao que pode ser generalizado, que se liga às nomenclaturas e descrições prévias, mas também há o diagnóstico que singulariza essa experiência, que busca compreender os modos de gozo, endereçamentos e construções sintomáticas que são únicas daquele sujeito. Um não é sem o outro, e ambas apreciações vão orientar a direção do tratamento.

Fausto não apresentava um delírio ainda estruturado, mas frequentemente colocava as cuidadoras no lugar do Outro persecutório. Ele dizia “Essa rapariga está falando mal de mim” referindo-se às cuidadoras que, na maioria das vezes, estavam apenas seguindo a rotina da casa. Frequentemente, quando contrariado, Fausto se sente perseguido. Nesse lugar de objeto do Outro, podemos extrair signos sutis que sugerem uma psicose, já que, na sujeição à linguagem, não se extraiu de forma radical o objeto. É uma delicadeza que se apresenta em momentos algo persecutórios, mas que indica, assim como numa fantasia neurótica, uma forma de compreender o mundo e as relações.

Conforme Lacan (1956-57/2009)Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 4: A relação de objeto I. Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-57), deve-se aceitar o testemunho do alienado a partir de sua posição na linguagem. O autor ressalta que o sujeito dá testemunho de sua maneira de se inserir na linguagem com qualquer outro sujeito falante.

Dessa forma, na transferência, o psicanalista (ou outra pessoa que esteja em uma relação transferencial com o psicótico) corre o risco de cair em erotomania mortífera ou em uma relação persecutória (Maciel, 2008Maciel, V. de S. (2008). A transferência no tratamento da psicose. Saúde Mental, 6(10), 31-40.). Em um momento da pesquisa, a autora fez uma proposta que não era exatamente a que Fausto queria, e ele passou dois encontros sem falar com ela.

Posteriormente, percebeu-se que não foi exatamente o que foi dito a Fausto, mas o modo como foi falado que talvez tenha colocado a autora no lugar do Outro persecutório. A autora retoma o contato com Fausto e diz a ele: “Quando eu planejo as oficinas é pensando que vocês gostarão, mas nem sempre eu acerto”.

Ao comunicar a Fausto o “eu nem sempre acerto”, a autora apostou em se colocar como submetida à castração, tentando se desviar da onipotência do Outro de tudo saber. A exigência de Fausto com o Outro, que o coloca em uma posição autorreferente, seria uma forma de expressar a posição de alienação ao Outro materno própria da estrutura psicótica?

Retorno às psicoses

Freud (1924/1996d)Freud, S. (1996d). Perda da realidade na Neurose e na Psicose. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19, pp. 205-209). Imago. (Trabalho original publicado em 1924)., nos textos “Neurose e Psicose” e “A perda da realidade na Neurose e na Psicose”, expõe elementos importantes para distinguir os mecanismos da neurose e da psicose. Para o autor, a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é um conflito entro o ego e o mundo externo. O delírio é uma tentativa de cura e reconstrução a partir de uma fenda entre o ego e o mundo externo. O mecanismo de recalque produz o sintoma, ou seja, o retorno do recalcado. Freud se questiona qual seria o mecanismo análogo ao recalque na psicose, o que ele chamará de Verwerfung. Na psicose, a realidade é modificada a partir de traços de memória e imagens psíquicas anteriores. “Assim a psicose também se depara com a tarefa de conseguir para si a própria a percepção de um tipo que corresponda à nova realidade, e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação” (p. 207).

Lacan (1957-58/1999)Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)., ao mapear a psicose, estabelece que esse é um distúrbio que faz referência a alguma falha na relação dual entre a mãe e a criança. A falha está para além de uma tensão, frustração ou coisa parecida: é algo que se articula ao nível significante. O autor aponta que na psicose não existe uma palavra que se funda como ato. Entre as palavras, é preciso haver uma que funde a fala como ato do sujeito. Avança pontuando que na psicose falta alguma coisa que possa fundar a própria significação: seria o significante Nome-do-Pai. O autor retorna a Freud para dizer que, no complexo de Édipo, o que possibilita a fundação da lei é o pai morto, ou seja, o símbolo do pai: a falta do significante do Nome-do-Pai equivale, no complexo de Édipo, ao significante que barra o desejo da mãe em relação à criança, ou seja, a intervenção do incesto. A ausência desse significante desorganiza toda a cadeia significante na psicose.

É uma metáfora, na medida em que é um significante que surge no lugar de outro significante. A função “pai” é o que substitui o significante “ausência da mãe”. Ou seja, a criança faz a seguinte questão: “O que quer essa mulher? Eu bem queria que ela só me quisesse, mas parece que o desejo dela também está em outro lugar”. Lacan estabelece os significantes das idas e vindas da mãe como sendo o falo (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58)., p. 178).

A novidade que Lacan estabelece em relação a Freud é que o pai, no complexo de Édipo, não vai castrar exatamente o sujeito, mas sim a mãe. O objeto de desejo da mãe é o falo e a criança vai se situar em relação a ele.

A hipótese deste estudo é que, no caso de Fausto, esse Outro apareça em sua onipotência, pela via de poder ser presenteado na hora que bem entender. Diferente de como frequentemente é visto na clínica das psicoses, através dos fenômenos de alucinações e delírios. Ele necessita ser presenteado em um deslocamento que nunca cessa, justamente por faltar na psicose o ponto de “basta”, sustentado pelo Nome-do-Pai - que permite que a simbolização do significante em significado aconteça.

A bateria do “Bloco Doido é Tu”: uma possibilidade de suplência pela arte?

A partir do trabalho de supervisão, foi possível pensar o lugar ocupado por Fausto (de músico do “Bloco Doido é Tu”) como uma possibilidade de ele fazer suplência pela arte. A suplência não é uma operação exclusiva da psicose. Lacan (1956-57/2009)Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 4: A relação de objeto I. Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-57) discorreu pela primeira vez sobre suplência no Seminário 4: A relação de Objeto, referindo-se a um caso de fobia, o Pequeno Hanz. Nesse seminário, o autor aborda a relação de compensação e carência paterna. Segundo Almeida (2017)Almeida, R. (2017). As estabilizações na psicose: metáfora delirante e sinthoma. Affectio Societatis, 14(26), 13-32., o termo lacaniano “suplência” retorna décadas depois, no Seminário RSI, quando trata de um quarto termo que enodaria Real, Simbólico e Imaginário. No caso da psicose, a suplência é outro significante de que o sujeito lança mão; que, sem ser o Nome-do-Pai, tem a função de bastear o Real e o Simbólico.

Na neurose, a criação do objeto se fundamenta na metáfora paterna. Na psicose, a criação se baseia justamente na sua ausência, de modo que a função da arte ou do delírio na psicose é barrar o gozo invasor. Tendo em vista que a relação de objeto na psicose não se trata, como na neurose, do objeto perdido - cuja criação artística pela via da falta faz o sujeito trabalhar em direção à ilusão de um dia recuperar o objeto - o objeto está presente e é aterrador para o sujeito; a arte comparece como possibilidade de barrar esse objeto do próprio corpo do sujeito (Almeida, 2017Almeida, R. (2017). As estabilizações na psicose: metáfora delirante e sinthoma. Affectio Societatis, 14(26), 13-32.).

A possibilidade de suplência pela arte é testemunhada na clínica psicanalítica com psicóticos desde os primórdios, haja vista o caso Schreber, trabalhado por Freud (1913/1996a)Freud, S (1996a). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia Paranoides). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 13-86). Imago. (Trabalho original publicado em 1913): Schreber dá notícias de seu delírio através da publicação de suas memórias (“Memória de um doente dos nervos”). O empreendimento de Schreber é circunscrever o gozo invasor pela escrita, além de fazer circulação do ocorrido pela obra, possibilitando algum laço social.

No Brasil, o artista Arthur Bispo do Rosário constrói seu delírio pelo bordado, no trabalho incansável de catalogar todas as coisas existentes no mundo; assim ele constrói a obra “Manto do reconhecimento”, fazendo alusão a um manto que seria usado por ele em seu encontro com Deus (Quinet, 1997Quinet, A. (1997). Teoria e clínica da psicose. Forense Universitária.). Almeida (2017)Almeida, R. (2017). As estabilizações na psicose: metáfora delirante e sinthoma. Affectio Societatis, 14(26), 13-32. ressalta que é possível, na psicose, ver outro aspecto da suplência além do significante: a possibilidade de ser um modo de restrição e localização de gozo.

Hainz e Costa-Rosa (2009)Hainz, C., & Costa-Rosa, A. (2009). A oficina terapêutica como intercessão em problemáticas de sujeitos constituídos por foraclusão. Psicologia em Estudo, 14(2), 405-412. apontam que no trabalho com música e percussão, o ritmo pode ter estatuto de letra

(…) que cava no Real a separação do sujeito de seu gozo Outro, isto é, do gozo transbordante portador da angústia impossível; daí talvez a necessidade da presença de um semelhante que com sua palavra possa exercer o papel de testemunha, concretização da posição terceira, que o som ritmado, por si só, não consegue fazer existir. (p. 411)

Ou seja, além do próprio som, faz-se necessário alguém na posição de terceiro da relação - seja o maestro da bateria ou mesmo o próprio coletivo de músicos que compõem a bateria de um bloco carnavalesco. Assim, partindo do pressuposto de que o lugar de músico do “Bloco Doido é Tu” é um lugar de suplência para Fausto, como a equipe pode se servir dessa compreensão? O que é possível fazer quando esse lugar de estabilização do seu quadro clínico se encontra ausente pelas restrições da pandemia?

A reunião com a equipe: contribuições para o PTS

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) e a clínica ampliada foram mudanças de paradigma na clínica no âmbito do SUS, marcada pela visão estritamente biomédica, centrada na queixa-conduta. Na esfera da saúde mental centralizada na nosografia psiquiátrica e nos sistemas de classificação, a clínica ampliada vem incluir outros saberes e aspectos da vida do sujeito, extrapolando o âmbito da saúde e incluindo outras políticas mais centradas no sujeito (Brasil, 2013Brasil (2013). Política Nacional de Humanização (PNH). Brasília: Ministério da Saúde.; Campos, Figueiredo, P. Júnior, & Castro, 2014Campos, G. W., Figueiredo, M. D., P. Júnior, N., & Castro, C. P. (2014). A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface: Comunicação Saúde e Educação, 7(18), 983-995.).

Nessa direção, valemo-nos dessa compreensão para pensar a Construção do Caso Clínico como possibilidade de contribuir para o PTS do sujeito pesquisado. Ao seguir as formulações de Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86., Campos (2013)Campos, R. O. (2013). Psicanálise & Saúde Coletiva. Hucitec. e Rinaldi (2015)Rinaldi, D. L. (2015). Micropolítica do desejo: a clínica do sujeito na instituição de saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 20(2), 315-323., a psicanálise contribui com a dimensão do inconsciente, sustentando a posição de que o sujeito é radicalmente responsável pela estrutura da linguagem, o que, em alguns momentos, causa entraves ao desejo da clínica ampliada, que empreende uma tarefa para que o sujeito faça laço social em nome de um bem comum.

Na primeira reunião com a equipe, com vistas à construção do caso clínico de Fausto, estiveram presentes: a enfermeira profissional de referência do SRT; a técnica de enfermagem que se encontrava todos os dias na instituição, pois era a única que não trabalhava em regime de plantão; uma das três cozinheiras que compunham a equipe da cozinha; a auxiliar de coordenação responsável pelas questões administrativas da casa; a psicóloga que recentemente tinha chegado ao CAPS; o psicólogo do Movimento Saúde Mental - MSM que realizava as atividades de cinema no SRT; e a coordenadora da Casa Ame do MSM.

O convite para a participação desse momento teve particularidades e efeitos; foi pensando em conjunto com a coordenação do CAPS e a profissional de referência. Sugiram alguns dilemas para essa escolha: convidar pessoas que sabiam mais da história do sujeito, mas não se encontravam trabalhando diretamente com o paciente em questão? Ou escolher aquelas pessoas que estão diretamente conduzindo o cuidado e que, porventura, pudessem até ter alguma resistência nessa condução?

Seguiu-se na direção das construções de Vorcaro et al. (2018)Vorcaro, A. M. R., Vilela, A. A., & Rezende, A. O. (2018). Tecendo a rede: a construção do caso clínico no atendimento institucional de jovens. Revista de Psicologia, 9(1), 64-69., Mendes (2014)Mendes, A. A. (2014). O efeito-equipe e a Construção do Caso Clínico (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte-MG, Brasil. e Machado et al. (2018)Machado, M., Moreira, G., & Fidelis, K. (2018). Desdobramentos de uma metodologia: o real nos bastidores da construção do caso clínico. Affctio Sociatatis, 15(28), 121-123. sobre o que já se discorreu como “efeito equipe” - ou seja, a equipe não preexiste ao caso, a não ser como uma função designada burocraticamente. O caso é que enoda a equipe, desde que esses profissionais se coloquem em posição de aprendizes da clínica e se disponham a ser tocados pelo caso.

Logo, considerou-se que seria mais vantajoso para o caso priorizar aquelas pessoas que se encontravam na assistência ao sujeito em questão; ponderou-se que essa também seria uma possibilidade de construir outro lugar para o sujeito na fantasia dos profissionais e trabalhar as questões transferenciais que fazem parte da clínica.

Os presentes foram fundamentais para a Construção do Caso Clínico. Destaca-se a particularidade da posição de duas participantes: a psicóloga recém-chegada, que não conhecia nada do caso e a coordenadora da Casa AME (Arte, Música e Espetáculo Dom Franco Masserdotti),3 3 É um dos equipamentos do Movimento Saúde Mental que acolhe e estimula manifestações artísticas e culturais, fortalecendo o direito à cultura e pensando a arte em sua dimensão terapêutica e transformadora. que conhecia o paciente, mas não estava no trabalho diário ou semanal, como os demais profissionais. Acredita-se que as duas ocuparam a função devidamente; por mais que fossem da equipe, tinham certa exterioridade em relação ao caso, permitindo fugir de ideias totalizantes sobre o sujeito (Val & Lima, 2014Val, A.C., & Lima, M. A. C. (2014). A construção do caso clínico como forma de pesquisa em psicanálise. Ágora, 17(1), 99-115.).

A discussão ocorreu mediada por um texto escrito pela pesquisadora, sobre o que era possível escutar de Fausto até então e sobre as hipóteses construídas em supervisão. Destaca-se que nessa etapa do trabalho priorizou-se escutar a equipe e possibilitar outros arranjos institucionais para Fausto, ou melhor, reconhecer os caminhos que Fausto apontou. Foi um esforço de seguir a trilha de Freud (1919/1996b)Freud, S. (1996b). Sobre o ensino da psicanálise na Universidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 217-220). Imago. (Trabalho original publicado em 1919)., “de que se aprenda algo a partir da psicanálise” (p. 189), e de Figueiredo (2004)Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1), 75-86., de “construir um solo comum de trabalho para diferentes profissionais que não teria nenhum compromisso com uma formação em psicanálise, mas poderiam se valer de sua contribuição” (p. 1).

Ou seja, esse esforço se materializa nesse momento da pesquisa, pois não se trata de ensinar conceitos da psicanálise, mas de colocar que algo da psicanálise possa ser transmitido para a equipe. A partir da discussão do caso, algumas questões e pontuações emergiram:

  1. “Eu escuto a instabilidade de Fausto pela irritabilidade, é para mim como ela se manifesta”. A enfermeira pontua como ela escuta o processo de estabilização e de desestabilização de Fausto.

  2. “Com um jeitinho, ele acaba comendo, mas é o que mais reclama… e tem dificuldade de comer coisas novas”. É a fala da cozinheira sobre Fausto. A partir dessa fala, o psicólogo do MSM pontuou que Fausto talvez esteja se comportando de um lugar infantil. Ele lembra o trecho trazido no relato do caso, em que Fausto diz ter cinco anos de idade.

  3. “Agora eu sou a figura das reivindicações de Fausto; ele sempre cobra por armários novos, mudanças para a casa nova, e eu digo para ele que cada coisa tem o seu momento”. Nessa fala, a auxiliar de coordenação se identifica com o relato do caso, que traz as reivindicações incessantes dirigidas ao motorista do Movimento Saúde Mental e que, como se viu, vai se deslocando do discurso de Fausto. A pesquisadora destaca a possibilidade de informar para Fausto de alguma forma as suas limitações, como estratégia para tentar sair do lugar do Outro onipotente da psicose, dando notícias da castração do profissional.

  4. A coordenadora da Casa Ame trouxe algumas possibilidades a serem contempladas no PTS de Fausto, fazendo referência à possibilidade de suplência pelo lugar de músico. A coordenadora da Casa Ame lembra que no território do Bom Jardim existe um Maracatu e que seria uma possibilidade de ele se engajar.

Realizou-se um segundo momento com a equipe, a fim de analisar os pontos levantados no primeiro momento. Convidou-se os participantes da primeira reunião, incluindo a coordenadora, uma cuidadora que trabalha no SRT desde a fundação da casa, e a terapeuta ocupacional do CAPS de referência. A segunda reunião teve de ser remarcada devido à ausência de alguns convidados; entretanto, os presentes falaram livremente sobre o SRT.

Na fala livre sobre o SRT a presença da terapeuta ocupacional trouxe algumas possibilidades para o PTS de Fausto. A profissional sugere incluí-lo nos atendimentos: “Eu acho que seria interessante para Fausto atendimentos em dupla; tem uma paciente que é da idade dele… acho que seria produtivo atendê-lo em conjunto”. A enfermeira destaca que Fausto precisa sair de casa e propõe que a cuidadora o traga para “dar uma volta no CAPS”.

Na reunião seguinte, dessa vez oficial, a pesquisadora trouxe as falas na forma de um texto sistematizado da primeira reunião com a equipe. As profissionais disseram para a pesquisadora que, embora a última reunião não tenha sido oficial, ela obteve efeitos. Fausto tem ido ao CAPS frequentemente “dar uma volta” com a cuidadora, ainda que a equipe não tenha conseguido estabelecer na rotina o dia específico do atendimento dele com a terapeuta ocupacional.

A estratégia de ir “apenas passear” aponta para a importância de o sujeito ter momentos “vazios”. Conforme Generoso (2008)Generoso, M. (2008). A orientação da psicanálise em um serviço residencial terapêutico: a casa de aposentados - uma pequena construção. Estudos e Pesquisa em Psicologia, 8(1), 67-73. sustenta em relação ao cotidiano, é necessário que a equipe suporte esses momentos de vazio, para que o sujeito possa criar a seu modo. Acrescenta-se que se ainda não é possível fazer isso na cidade, pela limitação, insegurança e cautela da instituição, que o CAPS possa ser esse lugar, que não se considera o ideal, mas é o início de uma abertura.

A fala da enfermeira aponta os efeitos clínicos e institucionais da Construção do Caso Clínico quando afirma: “A sua presença na casa me fez pensar em dois pontos: o primeiro é que as atividades não precisam ser disponibilizadas para todos os moradores; é preciso considerar o olhar mais individual, não são todas atividades que beneficiarão todos os moradores. O outro ponto é a necessidade de as atividades serem fora da residência, às vezes… é mais fácil levar a atividade para lá, mas não é o melhor para eles”.

Mannoni (1973), como citado em Geoffroy (2004)Geoffroy, M. A. (2004). A “Instituição Estourada” como “Jogo Do Fort-Da”: de Jacques Lacan ao conceito de “Instituição Estourada” da Escola Experimental de Bonneuil-Surmarn. Estilos da Clínica, 9(26), 17-26., ajuda a pensar a função da Construção do Caso Clínico, quando afirma que as instituições podem reproduzir a relação especular dual mortífera sobre os pacientes. É necessário que uma terceira instância intervenha. A proposta da Construção do Caso Clínico, colocada em curso por um pesquisador externo à instituição, pode vir funcionando como essa terceira instância, que abre novos sentidos e possibilidades para o trabalho, como apontado na fala da enfermeira. Ressalta-se que nessa última reunião, apesar de ter levado o caso de Fausto para discussão, as questões extrapolaram a singularidade do caso para o SRT.

Os efeitos clínicos da construção do Caso Clínico em Fausto (Conclusão)

O PTS de Fausto não está finalizado, mas aposta-se que algo da escuta dos caminhos que ele aponta possa ter sido transmitido para equipe, na direção de que a equipe “aprenda algo a partir da psicanálise” (Freud, 1919/1996bFreud, S. (1996b). Sobre o ensino da psicanálise na Universidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 217-220). Imago. (Trabalho original publicado em 1919)., p. 189).

A Construção do Caso Clínico contribui para retomar a noção de clínica ampliada, proposta da Política de Humanização do SUS no campo da saúde mental. O caso instigou a equipe a pensar cogestão do cuidado em saúde, uma proposta da mesma política. Também ajudou a construir uma direção de cuidado e de tratamento, suportando a singularidade das demandas de Fausto sem tentar moralizá-las ou abafá-las. A demanda incessante, que muitas vezes parece vazia de sentido para a equipe - e justo por isso -, é recoberta de saberes prévios e pode ser esvaziada novamente a partir da Construção do Caso Clínico. Assim, convoca-se a equipe a partir do caso, e não sobre o saber do caso.

Enquanto a pesquisadora ocupar o lugar de terceiro na relação instituição-pacientes, este será um lugar delicado. É tênue a dobra entre construir o caso e dirigir o caso. Pois os caldeirões das identificações e dos narcisismos, como aponta Figueiredo (2010)Figueiredo, A. C. (2010). Três tempos da clínica orientada pela psicanálise no campo da Saúde Mental. In A. M. Guerra, & J. O. Moreira (Orgs.), A psicanálise nas instituições públicas (pp. 11-18). CRV., atravessam a dinâmica das instituições de saúde. Acrescenta-se que podem capturar também a analista pesquisadora, e é preciso estarmos advertidos desse risco.

A construção do caso clínico de Fausto não pretende esgotar as possibilidades clínicas para o sujeito em questão; apresenta-se como recorte de “até onde foi possível avançar” na teoria freudiana e lacaniana, na direção do que Val e Lima (2014)Val, A.C., & Lima, M. A. C. (2014). A construção do caso clínico como forma de pesquisa em psicanálise. Ágora, 17(1), 99-115. expressam: a eleição do caso já modifica o olhar sobre ele.

Em um evento ocorrido no dia 18 de maio - Dia da Luta Antimanicomial -, a coordenadora do CAPS se referiu à presença de Fausto dizendo: “Está aqui também Fausto, representante dos moradores da Residência Terapêutica”. Ele complementou da plateia: “E tocador da bateria do ‘Bloco Doido é Tu’”. O lugar em que Fausto se nomina caminha na direção da hipótese levantada para o caso, de que o sujeito construa a suplência possível do lugar de tocador da bateria do “Bloco Doido é Tu”. A suplência é um significante que traz sustentação para sujeito, visto que o Nome-do-Pai se encontra ausente. No caso de Fausto, é também o significante que o singulariza frente ao coletivo de moradores do SRT. “Toca-a-dor” dos anos de institucionalização, mas encontra um lugar singular a partir da estrutura que lhe possibilita não sucumbir ao sofrimento.

Agradecimentos

À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) por conceder auxílio financeiro para a realização deste estudo. À psicanalista Adriana Osterno Aguiar, membro da Escola Letra Freudiana e ao psicanalista Marcus Eugênio Lima, pelas contribuições na supervisão do caso clínico estudado.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoi da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). / This work received funding by Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)
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    O trabalho foi realizado no Laboratório de Estudo Psicanálise Cultura de Subjetividade - LAEpCUS do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Realizado com bolsa de estudos da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). É oriundo da dissertação: Psicanálise e psicose: os efeitos clínicos institucional do dispositivo construção do caso clínico em um Serviço Residencial Terapêutico, defendido em 9 de dezembro de 2021 no Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza - Unifor.
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    Movimento de Saúde Mental do Bom Jardim, organização não governamental que trabalha a saúde mental comunitária em diferentes frentes. Em 1996, o padre Rino Bonvini, missionário comboniano (congregação da Igreja Católica), na esteira da Teologia da Libertação, chegou ao território do Grande Bom Jardim, e junto com lideranças locais iniciou o Movimento Saúde Mental Comunitário do Bom Jardim, hoje Movimento Bom Jardim (MBJ).
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    O “Bloco Doido é Tu” é um bloco carnavalesco da cidade de Fortaleza, fundado em 2007 e gerido pela Fundação Silvestre Gomes. Sua construção é formada pela rede de atenção psicossocial da cidade de Fortaleza, além da participação de familiares e amigos do bloco. Tem importância fundamental para a rede de atenção psicossocial, no que se refere à inserção social pela cultura. É tetracampeão do desfile carnavalesco da avenida Domingos Olímpio. Os usuários, profissionais e familiares participam todos os anos de todo o processo de construção do bloco. Atualmente, o bloco desfila com mais de 400 pessoas em uma apoteose de alegria, liberdade e direito à cidade. Desfilar no “Bloco Doido é Tu” é uma experiência emocionante para usuários, profissionais e amigos do bloco. Na avenida, não há distinção de quem é são e quem é louco, quem é profissional, quem é usuário ou mesmo quem está ali somente por gostar do bloco. É a constatação, em quarenta minutos de desfile, de que outro lugar para a loucura é possível.
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    É um dos equipamentos do Movimento Saúde Mental que acolhe e estimula manifestações artísticas e culturais, fortalecendo o direito à cultura e pensando a arte em sua dimensão terapêutica e transformadora.

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Editora/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    30 Set 2022
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