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TDAH: transtorno ou sintoma?

ADHD: disorder or symptom?

Em seu novo livro Todos hiperativos? A inacreditável epidemia dos transtornos de atenção, que acaba de ser traduzido para o português, o psiquiatra e psicanalista francês Patrick Landman, coordenador na Europa do STOP DSM!, importante movimento de crítica ao livro de referência da psiquiatria norte-americana, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou simplesmente DSM, volta a sua atenção para um dos maiores motivos de consultas em neuropediatria e psiquiatria infantil: o transtorno do déficit de atenção (TDA) sem ou com hiperatividade (TDAH).

O tema vem sendo abordado por muitos especialistas, que consideram surpreendente a verdadeira epidemia de TDAH produzida nas últimas décadas, sobretudo nos Estados Unidos, e que se propagou enormemente no Brasil e em outros países por todo o mundo. Nos Estados Unidos, como relata Allen Frances em seu prefácio ao livro, em três décadas a recorrência a esse diagnóstico aumentou de forma exponencial, alcançando hoje 11% das crianças entre 4 e 17 anos, das quais mais da metade é tratada com medicamentos. A que atribuir isso? Como entender esse fenômeno de expansão súbita de um quadro clínico?

Landman percorre as várias facetas do problema, a começar pelos engodos que podem ocorrer no próprio estabelecimento do diagnóstico, uma vez que a quinta e mais recente versão do DSM define esse transtorno por meio de dois fatores bastante díspares: déficit de atenção e comportamento perturbador. Assim, diz Landman, “o que parece ser prioritário para o DSM não é a atenção, e sim as perturbações do comportamento a que ela é assimilada” (p. 47). Nos anos 1980, o DSM-III produziu equívoco semelhante com a disseminação do diagnóstico de bipolaridade, ao inventar um pseudociclo do humor sem base científica devidamente estabelecida, fazendo com que o raríssimo quadro de psicose maníaco-depressiva, pertencente à psiquiatria clássica, se banalizasse, a ponto de, virtualmente, todas as pessoas, sem exceção, poderem ser consideradas bipolares! Não por acaso, o autodiagnóstico buscado hoje com frequência cada vez maior no dr. Google tem sido renovada fonte de novos problemas ligados à saúde.

Patrick Landman chama igualmente a atenção para os erros inerentes à crença na etiologia biológica do TDAH. Já foram propostas várias hipóteses para explicar o que causa esse transtorno, mas até o momento nenhuma delas obteve comprovação científica. Por exemplo, a ideia de que ele é causado por uma anomalia cerebral não dispõe de embasamento teórico. Assim, tais conjecturas tendem a reduzir um fato mental a um acontecimento neuronal. Como sublinha Landman, “o TDAH participa dessa tendência reducionista, já que, desde o início e sem nenhuma evidência, seus defensores consideraram que as crianças hiperativas apresentavam uma lesão cerebral qualificada de mínima. Desde então, essa tese se tornou um credo e se sustenta em correlações” (p. 23).

Sem deixar de reconhecer as dificuldades de tratamento que muitos casos apresentam na clínica com crianças, Landman lastima que os “defensores” do TDAH não considerem os fatores psíquicos e sociais - ou seja, singulares -, para a avaliação do quadro de seus pacientes. Desconhecer os fatores subjetivos tem sido a marca da medicina “baseada em evidências”, mas é fundamental insistir junto aos médicos e psiquiatras que as desordens mentais e comportamentais, na grande maioria dos casos, não se devem exclusivamente a distúrbios orgânicos.

Após fazer um levantamento minucioso e detalhado das diversas pesquisas que têm sido feitas sobre esse problema, Landman conclui que, para a psicanálise, o TDAH é um sintoma e não uma doença, pois o contexto familiar e social em que uma criança ou um adolescente apresenta sintomas de hiperatividade e déficit de atenção pode ser bastante significativo e revelar um quadro essencialmente reativo a fatores externos, e não a configuração de uma patologia individual.

Como o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, tem enfatizado em seus trabalhos, o sujeito é o cerne de toda psicopatologia (Pereira, Maurano e Leite, 2018Pereira, M. E. C., Maurano, D., & Leite, S. (2018, mar.). Clinique Psychiatrique et Ethique du Sujet. Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, 21(1), 81-91. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n1p81.6
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). As manifestações sintomáticas de uma criança não podem ser abordadas de modo isolado, como se ela fosse um organismo sem subjetividade. Em vez disso, a vitalidade da criança e do adolescente, refletida na sua maneira de estar no mundo, tem vínculos profundos e altamente instáveis com as pessoas e o meio à sua volta. Levar em conta os elementos que circundam a criança em cada momento de seu desenvolvimento é algo de que a psiquiatria não deve continuar a abrir mão.

O livro de Patrick Landman, portanto, traz em seu cerne uma denúncia do uso sistemático e muitas vezes continuado - leia-se, ininterrupto - que vem sendo feito da substância metilfenidato, presente em medicamentos como Ritalina, no tratamento de crianças, adolescentes e, agora também, de adultos diagnosticados com TDAH. Não por acaso, a ênfase na estrita causalidade orgânica favorece a crença no tratamento psicofarmacológico e no uso abusivo do metilfenidato, sabendo-se hoje que o papel desempenhado pelos laboratórios farmacêuticos na disseminação dessa crença não é pequeno. Eles financiam estudos que acabam propagando avaliações tendenciosas, ou seja, favorecem a seleção dos resultados obtidos e dificultam a publicação daqueles considerados negativos.

A disseminação dos poderes mágicos atribuídos aos medicamentos junto à população é grande e os efeitos do contágio e da sugestão desses poderes, bastante conhecidos pela psicanálise, têm se mostrado cada vez mais hegemônicos, sobretudo nos Estados Unidos, único país do mundo em que os remédios têm espaço para propaganda na televisão. Nesses termos, não é exagero concluir, como faz Landman, que na psiquiatria orientada pelo DSM inventam-se doenças para, em seguida, aparecerem fórmulas medicamentosas supostamente aptas a curá-las.

  • Citação/Citation: Jorge, M. A.C. (2020, mar.). TDAH: transtorno ou sintoma?. Resenha do livro Todos hiperativos? A inacreditável epidemia dos transtornos de atenção. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(1), 157-160. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p157.10.
  • Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

Referências

  • Pereira, M. E. C., Maurano, D., & Leite, S. (2018, mar.). Clinique Psychiatrique et Ethique du Sujet. Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, 21(1), 81-91. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n1p81.6
    » https://doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n1p81.6
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2019
  • Aceito
    20 Dez 2019
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