Resumos
Harold Frederick Searles desenvolveu as suas contribuições para a psicanálise com base em sua experiência clínica com as psicoses, sobretudo em sua modalidade esquizofrênica. Ele também produziu importantes teorizações sobre o adoecimento psíquico característico dos casos-limite. O nosso objetivo é apresentar e discutir a presença da intersubjetividade no pensamento clínico de Searles. Para tanto, analisamos o artigo “A vulnerabilidade do esquizofrênico aos processos inconscientes do terapeuta” (1958/1965a). Apresentamos alguns dados da biografia do autor e o seu estilo como escritor e analista; em seguida, focamo-nos na análise do supracitado artigo. Concluímos apontando possíveis aproximações entre o pensamento clínico de Searles e algumas proposições analíticas contemporâneas.
Palavras-chave: Harold Searles; intersubjetividade; esquizofrenia; psicoses
Harold Frederick Searles developed his contributions to psychoanalysis based on his clinical experience with psychosis, especially schizophrenia. He also elaborated important theories on the typical psychic illness of borderline cases. This article presents and discusses the role of intersubjectivity in Searles’ clinical thinking. To do so, the text analyzed the paper “The Schizophrenic’s Vulnerability to the Therapist’s Unconscious Processes” (1958/1965a). After presenting some biographical data about the author and his style as a writer and analyst, the article focuses on the analysis of the aforementioned paper. The discussion concludes by pointing out the relations between Searles’ clinical thinking and some contemporary analytical proposals.
Key words: Harold Searles; intersubjectivity; schizophrenia; psychoses
Harold Frederick Searles a développé ses contributions à la psychanalyse sur la base de son expérience clinique avec des psychoses, en particulier la schizophrénie, toute en produisant des théories importantes sur la maladie psychique caractéristique des cas limites. Cet article présente et discute la présence de l’intersubjectivité dans la pensée clinique de Searles. Dans ce but, nous analysons l’article “La vulnérabilité du schizophrène face aux processus inconscients du thérapeute” (1958/1965a), après avoir présenté quelques données biographique de l’auteur ainsi que son style en tant qu’écrivain et analyste. Nous concluons en signalant les rapprochements possibles entre la pensée clinique de Searles et certaines propositions analytiques contemporaines.
Mots-clés: Harold Searles; intersubjectivité; schizophrénie; psychose
Harold Frederick Searles planteó contribuciones al psicoanálisis basándose en su experiencia clínica con la psicosis, especialmente en la modalidad esquizofrénica. También elaboró importantes teorías sobre la enfermedad psíquica característica de los casos límite. Este texto tiene como objetivo presentar y discutir la presencia de intersubjetividad en el pensamiento clínico de Searles. Para eso, se analiza el artículo “La vulnerabilidad del esquizofrénico a los procesos inconscientes del terapeuta” (1958/1965a). Se presentan algunos datos de la biografía del autor y su estilo como escritor y analista; luego se enfoca en el análisis del artículo mencionado. Se concluye con posibles aproximaciones entre el pensamiento clínico de Searles y algunas proposiciones analíticas contemporáneas.
Palabras clave: Harold Searles; intersubjetividad; esquizofrenia; psicosis
Introdução
Na história da psicanálise, alguns autores originais, por diversos motivos, não encontraram o merecido reconhecimento em alguns meios analíticos; somente na posteridade as suas ideias alcançaram solo fértil. Harold Searles é um exemplo disso: apesar de ser conhecido no Brasil, raramente ele é citado nas publicações nacionais e as suas contribuições não circulam muito entre nós. Clínico perspicaz e inventivo, analista minucioso da comunicação não verbal, da contratransferência e dos estados primitivos de indiferenciação, Searles desenvolveu importantes ideias sobre os fenômenos intersubjetivos em uma análise. Qual é a sua contribuição para o estudo da intersubjetividade? Quais são as possíveis articulações entre as suas ideias e as formulações de analistas contemporâneos? Influenciados por artigos sobre Searles1 (Aron & Lieberman, 2017; Balbuena, 2016, 2018; Liberman, 2016), o nosso objetivo é apresentar e discutir a presença da intersubjetividade no pensamento clínico desse autor, assim como destacar algumas ressonâncias contemporâneas encontradas em suas postulações. Com isso, sublinhamos a atualidade de seu pensamento e a profícua fonte de interlocução que encontramos em seus trabalhos. Para tanto, analisamos o seu artigo “A vulnerabilidade do esquizofrênico aos processos inconscientes do terapeuta” (1958/1965a) (“The schizophrenic’s vulnerability to the therapist’s unconscious processes”). Optamos por discutir esse texto por encontrarmos nele os fundamentos clínicos da presença e dos efeitos da intersubjetividade em uma análise.
Em nosso trajeto, antes de nos focarmos na análise do citado artigo de Searles, apresentamos algumas informações sobre a biografia do autor e seu estilo como escritor e clínico.
O homem e a sua formação
Harold Frederick Searles nasceu em 1918 em Hancock, pequena cidade do Estado de Nova York. Faleceu em 2015. Médico psiquiatra, Searles formou-se analista pelo Washington Psychoanalytic Institute. Foi analisado por Ernest Hadley, profissional de orientação analítica clássica (Langs & Searles, 1980).
Dedicou-se por 15 anos ao tratamento de pacientes esquizofrênicos internados no Hospital Chestnut Lodge.2 Trabalhou em processos analíticos por muitos anos e com uma intensa frequência de sessões (Langs & Searles, 1980). Sem dúvida, as experiências de Searles no Chestnut Lodge e as suas publicações contribuíram para o desenvolvimento da prática analítica com as psicoses e com os casos-limite (Aron & Lieberman, 2017; Balbuena, 2016; 2018; Liberman, 2016; Souffir, 2005).
Reconhecido como um grande clínico, Searles realizava diversas entrevistas abertas com os seus pacientes. Nessas apresentações públicas, se por um lado muitos se impressionavam com sua capacidade clínica e intuitiva; outros, por outro lado, consideravam-no exibicionista e sádico. Com efeito, Searles foi um analista controverso, por vezes rejeitado, por vezes idealizado (Aron & Lieberman, 2017).
Autor de inúmeros artigos e escritor profícuo, Searles publicou quatro livros: 1) The Non-human Environment in Normal Development and Schizophrenia (1960); 2) Collectd Papers on Schizopherenia and Related Subjetcs (1965b); 3) Countertransference and Related Subjects: Selected Papers (1979a); e 4) My Work with Borderline Patients (1986). Com o título “Intrapsychic and interpersonal dimensions of treatment”, uma série de entrevistas que Robert Langs realizou com Searles (1980) é outro importante documento para entendermos as contribuições analíticas desse último autor. Além disso, a letra de Searles também esteve presente em diversos outros artigos publicados em importantes periódicos de psicanálise.
Interessado pelos temas da contratransferência, da comunicação não verbal, da percepção, da pessoa real do analista, das experiências primitivas de indiferenciação Eu/Outro e do papel do ambiente na psicogênese dos adoecimentos psíquicos, Searles pode ser considerado um autor inserido na matriz ferencziana, tanto em relação à sua forma de compreensão dos adoecimentos psíquicos quanto às suas estratégias terapêuticas3 (Figueiredo & Coelho Junior, 2018). Alguns chegaram a considerá-lo uma espécie de Ferenczi dos Estados Unidos (Aron, 1992).
Independentemente de haver algum exagero na afirmação de que Searles foi um Ferenczi em terras americanas, é fato que o analista húngaro teve uma influência indireta na construção do pensamento de Searles (Balbuena, 2018; Silver, 1996; Figueiredo, 2002; Figueiredo & Coelho Junior, 2018). Duas figuras são centrais aqui: Harry Stack Sullivan (1892-1949) e Frieda Fromm--Reichmann (1889-1957).
Entusiasmado por seu contato pessoal com Ferenczi, ocorrido nas conferências que o analista húngaro fez nos Estados Unidos em 1926 e 1927, Sullivan estimulou que uma amiga sua fosse para Budapeste se analisar. Isso aconteceu: a amiga de Sullivan, Clara Thompson, tornou-se uma das pacientes de Ferenczi (Silver, 1996). No Diário Clínico (Ferenczi, 1990), ela aparece como D.M, uma de suas analisandas de análise mútua.4 A análise de Clara Thompson com Ferenczi ocorreu nos verões de 1928 e 1929, e por dois anos inteiros entre 1931 e 1933. De volta aos Estados Unidos, Thompson tornou-se analista de Sullivan, mas a análise aconteceu por um curto período (Silver, 1996).
Encontramos, portanto, duas vias de influência de Ferenczi no pensamento de Sullivan: 1) a presença do analista húngaro nos Estados Unidos e 2) a curta análise de Sullivan com Clara Thompson. A despeito disto, Ferenczi pouco é citado nos trabalhos desse autor (Silver, 1996).
Sullivan construiu a chamada psiquiatria interpessoal. Trata-se de uma teoria fundamentada em uma compreensão do processo terapêutico como experiência entre duas pessoas (1953/2011). O seu foco é a experiência na relação entre a dupla analítica, colocando, assim, em segundo plano os processos pulsionais intrapsíquicos (economia pulsional, angústias e defesas) (Navarro, 2013).
Em seus anos de formação, Searles assistiu aulas de Sullivan e ficou muito impressionado com o seu pensamento (Langs & Searles, 1980). A forma como Searles trabalha a transferência-contratransferência possui a influência da psiquiatria interpessoal de Sullivan, sobretudo no que tange à dimensão interacional da relação analítica.
Frieda Fromm-Reichmann, psiquiatra e analista alemã, pioneira no tratamento analítico das psicoses, foi outro elo entre Ferenczi e Searles. Tendo como base o seu trabalho com pacientes esquizofrênicos, ela destacou a central importância da interação entre analista e analisando (1950/1965). Já em 1939, Fromm-Reichmann (1939/1978) considerava que a transferência com os analisandos esquizofrênicos era mais intensa e sensível do que a estabelecida com neuróticos, fato que demandava uma mudança em relação à técnica analítica considerada clássica.
Fugindo da Alemanha nazista, Fromm-Reichmann refugiou-se nos Estados Unidos; assim o fez em companhia de Erich Fromm, seu marido e ex-analisando. Inserida no crescente meio analítico americano, Fromm-Reichmann, em 1935, tornou-se analista no Chestnut Lodge — o hospital que acolherá Searles em suas fileiras de profissionais no final dos anos 1940. Na Europa, ela trabalhou em colaboração com Groddeck, amigo de Ferenczi. Nas publicações de Fromm-Reichmann,5 e em sua forma de pensar o trabalho clínico, os “espíritos” de Groddeck e Ferenczi6 estão presentes, mesmo que de maneira implícita e permeados pelo pensamento interpessoal de Sullivan (Silver, 1996).
Se Sullivan e Fromm-Reichmann constituem uma aproximação indireta entre Searles e Ferenczi, é interessante notar, contudo, que o analista húngaro é pouco mencionado nos trabalhos de Searles.7 De fato, Searles afirmou que não estava familiarizado com os textos de Ferenczi (Aron & Lieberman, 2017). Independentemente disso, a influência ferencziana no pensamento de Searles é evidente (Aron, 1992; Aron & Lieberman, 2017; Balbuena, 2016, 2018; Figueiredo, 2002; Coelho Junior, 2018; Liberman, 2016; Silver, 1996).
O estilo
Ler Searles nos causa espanto e alegria. O espanto se origina da surpresa que o seu texto provoca: linha após linha, de caso em caso, algo de inesperado emerge e inquieta o leitor. Já a alegria surge da vivacidade clínica que os seus textos transmitem.
Impressiona a sua capacidade de nos transportar e nos colocar no lugar do analista Searles. Não se trata apenas de uma tentativa de escrever sobre o mais íntimo da transferência-contratransferência — como se isso fosse pouco. Searles faz muito mais: ele tenta nos transportar para dentro dele. O seu estilo de escrita, sobretudo em suas vinhetas clínicas, aproxima-nos de um de seus temas mais caros: a indiferenciação entre o Eu e o Outro. Ao lermos os casos de Searles nos transformamos um pouco nele, pensando e sentindo algo parecido com o que ele pensava e sentia — com toda a estranheza e bizarrice que isso comporta.
Em seus artigos, quase sempre longos e com muitas vinhetas clínicas, Searles dialoga com diferentes autores e autoras, sem se preocupar com as suas filiações escolásticas. Focado mais na discussão clínica do que em conceituações metapsicológicas mais abstratas (Ogden, 2007/2014), ele, comumente, cita Freud, Winnicott, Bion, Balint, Hartmann, Klein, Khan, Little, Mahler, Spitz, Sullivan e Rosenfeld, por exemplo.
Mesmo citando autores e autoras tão diferentes teórica e clinicamente, Searles não pode ser identificado como um analista ingenuamente eclético. Ele procurava, sobretudo, estabelecer um permanente diálogo com os autores que davam sustentação para as suas próprias ideias clínicas. Pouco importava os fundamentos teóricos, antropológicos e epistemológicos de seus interlocutores, pois Searles lia a literatura analítica com o foco na operacionalidade dos conceitos clínicos, e essa forma de usar os textos faz parte de seu estilo. Fundamentalmente, como afirma Ogden (2007/2014), Searles é um analista preocupado com uma teoria clínica.
Quando falo de teoria clínica, refiro-me a compreensões propostas muito próximas das experiências (formuladas em termos de pensamento, sentimentos e comportamento) de fenômenos que ocorrem no setting clínico. A transferência, por exemplo, é a teoria clínica que formula a hipótese de que certos sentimentos dos pacientes em relação ao analista, sem o conhecimento dele (paciente), se originam em sentimentos que o paciente viveu em relações de objeto anteriores e imaginadas, em geral relações da infância. Em contraposição, as teorias psicanalíticas envolvendo níveis superiores de abstração (por exemplo, o modelo topográfico de Freud, conceito de mundo interno de objeto de Klein e a teoria da função alfa de Bion) propõem metáforas espaciais, e de outros tipos, como maneira de pensar o funcionamento da mente. (p. 220; grifos do autor)
Balbuena (2018) e Ogden (2007/2014) destacam o que pode ser considerada a principal característica da obra de Searles: a sua capacidade de usar o seu próprio psiquismo para compreender e interpretar a dinâmica da transferência-contratransferência em uma análise. Dito de outro modo: de maneira impressionante, Searles capta derivados do seu inconsciente (pensamentos e sensações) e os utiliza para compreender algo do psiquismo do analisando. Sobre isso, Coelho Junior (2018) afirma:
[...] sem abandonar as ideias principais da teoria psicanalítica, pôde ampliar as possibilidades técnicas e a apreensão teórica necessária para a elaboração dos elementos que emergem de seu trabalho clínico. Ao lado de uma utilização particularmente intensa dos elementos inter-relacionais, Searles apresenta uma forma bastante inovadora de apreensão dos elementos perceptivos no contexto clínico. (p. 179)
Nas entrevistas dadas para Langs conseguimos perceber o estilo expansivo e pouco sistemático de Searles (Langs & Searles, 1980). Ele pensa e conversa com Langs de uma maneira assistemática e fluída, quase em uma espécie de associação livre. Já Langs procura, obsessivamente, inserir as respostas de Searles em um contexto histórico, articulando-as com as contribuições de outros autores.
Outra característica do estilo de Searles é a honestidade em transmitir os seus pensamentos e afetos decorrentes de suas experiências clínicas (Balbuena, 2018). Sem rodeios, por exemplo, ele compartilha com os leitores os seus desejos sexuais e pensamentos hostis surgidos em sessões de análise (1958/1965a). Ademais, também na entrevista com Langs (1980), Searles, sem nenhum sinal aparente de constrangimento, expõe aspectos pessoais íntimos. Exemplo disto é a maneira como ele fala de sua mãe, uma mulher de caráter esquizoide, e de seu pai, um homem antissemita e paranoico.
A intersubjetividade nos primórdios do pensamento de Searles
Em 1948 e 1949, Searles, ainda um jovem analista em formação, escreveu um artigo intitulado “Concerning transference and counter-transference”. Nele, o foco na comunicação consciente e inconsciente da dupla em análise já pode ser identificado.
Nesse texto clínico, Searles (1948-1949/1979b) destaca o que era uma inovação em alguns meios analíticos daquela época: a participação da figura real do analista na configuração da transferência-contratransferência. O analista deixava de ser apenas uma tela em branco à espera das tintas coloridas da projeção; ele oferecia algumas cores para o analisando usar na pintura do quadro transferencial-contratransferencial. Sendo assim, a transferência “[...] tem alguma base real no comportamento do analista, e, portanto, representa distorções apenas em algum grau” (p. 187; grifo do autor; tradução nossa). Da pessoa real do analista podemos destacar a sua presença, o seu corpo, a sua voz e o seu modo de existir. Mais importante: a pessoa real diz respeito ao psiquismo do analista e aos efeitos de sua presença na análise. Esse se tornará o fio condutor de todo o trabalho de Searles — isso ficará mais claro no decorrer deste artigo.
As reflexões de Searles estavam em consonância com os principais textos produzidos sobre a contratransferência em meados dos anos quarenta e início dos cinquenta do século passado, tais como os trabalhos de Heimann (1950/1989), Racker (1953/1982) e Winnicott (1947/2000). Entretanto, apesar da qualidade desse trabalho de Searles, o seu artigo foi recusado por dois periódicos. Ele apenas foi publicado em 1979 no International Journal of Psychoanalytic Psychotherapy, revista dirigida por Langs.
Reconhecidamente, “Concerning transference and countertransference” é um importante documento sobre o desenvolvimento histórico da contratransferência. Nele, também encontramos algumas sementes do pensamento clínico que Searles desenvolverá nas décadas posteriores (Aron & Lieberman, 2017; Balbuena, 2016, 2018).
A intersubjetividade em “A vulnerabilidade do esquizofrênico aos processos inconscientes do analista”
Desde Schreber (Freud, 1911/2010), sabemos que a projeção é um mecanismo de defesa central nas psicoses. Reconhecendo a importância dos aspectos projetivos no adoecimento esquizofrênico, Searles também nos chama a atenção para outro processo psíquico presente nessa forma de adoecimento: a introjeção. Por ser mais sutil do que a projeção, a introjeção, muitas vezes, passa despercebida pelo clínico. É este o jogo de projeção e introjeção (dentro/fora e fora/dentro) que o analista se vê jogando com o esquizofrênico. Por não ter um Eu8 consistentemente diferenciado dos outros e do mundo, o esquizofrênico está mais “aberto” à ação incessante da introjeção e da projeção. Assim como costumeiramente faz em seus textos, Searles ressalta: apesar de esse processo de introjeção dos elementos do psiquismo do analista ser intenso na esquizofrenia, ele está presente em todas as análises, considerando que em alguma medida a fronteira egoica nunca é fechada e estanque, mesmo nos casos de neuroses.
A tese de Searles é a seguinte: por meio do mecanismo de introjeção, o esquizofrênico reage aos processos inconscientes do analista. Ele capta aspectos do psiquismo do analista e se identifica com eles: o que antes era do analista se torna parte do analisando. Trata-se de uma espécie de comunicação não verbal de elementos pré-conscientes e inconscientes. Não é sem razão que muitos dos fenômenos esquizofrênicos se relacionam com o tema da captação de mensagens do outro, tais como a telepatia, ou antena captadora de raios e sinais de comunicação, por exemplo (1958/1965a).
O que fundamenta essa ideia é a compreensão de que o ser humano, inicialmente, está indiferenciado do outros e de seu ambiente. Em seu original livro de 1960 Searles argumenta que há uma tarefa psíquica fundamental dos humanos: diferenciar-se dos outros humanos. Se essas considerações de Searles nos aproximam do pensamento de Winnicott (1963/2005), o analista americano vai ainda mais longe: não se trata apenas de uma diferenciação entre um humano e outro, pois há também a necessidade de nos diferenciarmos do ambiente não humano, ou seja, dos objetos inanimados, dos animais e da natureza. No atendimento analítico de pacientes esquizofrênicos, Searles percebeu como algumas pessoas ainda estavam demasiadamente misturadas ao mundo não humano, visto estavam identificadas com móveis ou plantas.
No artigo “Dados sobre certas manifestações de incorporação” (1951/ 1965c), Searles considera que a incorporação9 é um modo de relacionamento interpessoal no qual a dupla analítica se mistura de uma maneira indiferenciada. A incorporação, diz Searles, é uma forma de “[...] relacionamento interpessoal em que uma pessoa sente estar em unidade com a pessoa com a qual está em interação, e desconhece qualquer senso de separação entre a sua personalidade e a personalidade do outro” (p. 39; tradução nossa). Há um modo primitivo de relação e comunicação que faz parte da experiência inicial do bebê humano com o ambiente. Para Searles, existe algum nível de experiência humana infantil que se dá em uma indiferenciação entre Eu/Outro. No adoecimento esquizofrênico as relações primitivas patogênicas impediram que essa indiferenciação fosse sendo diminuída e o estabelecimento de um Eu separado fosse consistentemente alcançado. Por esse motivo, em um processo de transferência psicótica, o esquizofrênico estabelece uma forma de relação de indiferenciação com o analista.
Não nos deteremos nos amplos argumentos de Searles no livro sobre o ambiente não humano (1960) e no artigo sobre a incorporação (1951/1965c); para o nosso objetivo cabe termos em mente esta hipótese: o ser humano nasce indiferenciado dos outros humanos e do ambiente não humano. Voltemos ao texto de 1958.
Na análise de esquizofrênicos, Searles (1958/1965a) encontrou três modos de o analisando responder aos processos inconscientes do analista: 1) transformar e experimentar o que foi introjetado como algo pessoal; 2) expressar o que foi introjetado por meio de alucinações ou 3) atuações. Afinal, o que é introjetado pelo analisando? Os elementos reprimidos e dissociados do psiquismo do analista. Para entendermos como isso ocorre, recorremos aos exemplos clínicos apresentados por Searles. Lembremos: todas são vinhetas clínicas de pacientes esquizofrênicos a céu aberto.
Na primeira modalidade de resposta introjetiva, o analisando introjeta elementos não integrados do psiquismo do analista e os vive como se eles fossem seus. Para exemplificar isso, Searles (1958/1965a) relata um caso de uma mulher esquizofrênica de 26 anos, sempre muito atenta aos movimentos corporais e à aparência do analista. Em um dia muito quente, Searles, em uma sessão com essa mulher, tirou o paletó e afrouxou a gravata. Logo em seguida, a sua analisanda disse, em um tom de autocrítica, que ela era muito desleixada. Oriunda de uma família rígida e muito organizada, essa mulher sempre estava muito arrumada; sem dúvida, ela não podia ser acusada de ser “desleixada”.
Nesse exemplo, Searles considera que poderíamos interpretar o que houve (ele tirar a gravata e a analisando falar que é desleixada) como uma forma de expressão da intensa autocrítica dessa mulher. Se este fosse o caso, estaríamos diante de um fenômeno estritamente intrapsíquico. Todavia, segundo Searles, isto não impede a construção da seguinte hipótese: a fala de sua analisanda foi a expressão verbal da introjeção de conteúdos do psiquismo do analista. Ela introjetou a opinião crítica pré-consciente de seu analista sobre o seu próprio comportamento (ser um homem desleixado). O principal: isso pode ser considerado um exemplo “[...] dos mecanismos pelos quais o paciente esquizofrênico expressa o seu esforço inconsciente para aliviar a ansiedade de seus pais — especificamente, por meio da introjeção dos conflitos intrapsíquicos deles” (1958/1965a, p. 199; tradução nossa). No momento oportuno, voltaremos a esse ponto. Antes disso, vejamos as outras duas formas de manifestação da resposta do analisando ao inconsciente do analista.
Na segunda forma de resposta aos processos inconscientes do analista, encontramos as alucinações. É fundamental aqui percebemos como as alucinações ganham uma dimensão intersubjetiva, visto que a matéria psíquica presente no fenômeno alucinatório diz respeito ao funcionamento da dupla analítica. Para exemplificar isso, Searles cita o caso de um homem de 32 anos que, durante dois anos e meio de análise, restringiu-se a jogar cinzas de cigarro no tapete, tirar a sujeira do nariz e limpar em suas calças, arrotar e soltar flatulências durante as sessões. Além disso, ele tinha frequentes explosões furiosas em relação ao seu analista. Em momentos de tensão, ele ameaçava Searles: “Cale a boca ou arranco os seus dentes” (1958/1965a, p. 201; tradução nossa).
Alucinando auditivamente, esse homem respondia de forma agressiva às vozes que o atormentavam. Ele sempre dava indícios de ouvir palavras hostis e acusadoras. Searles (1958/1965a) levanta a hipótese de que as alucinações de seu analisando eram respostas às tendências assassinas de seu analista, ou seja, as vozes eram respostas à intensa hostilidade que o próprio Searles nutria por esse homem. Para Searles, as alucinações de seu analisando, além de desvelarem a própria tendência assassina, também revelavam a sua luta contra a introjeção dos impulsos assassinos de seu analista. Não tendo ainda integrado em seu psiquismo a hostilidade contra o seu analisando, Searles surpreendia--se quando alguma expressão agressiva emergia em sua consciência. Certa vez, com um intenso desprezo, ao ver o seu analisando passando no corredor, pensou: “Lá vai aquele filho da puta louco!” (p. 202; tradução nossa).
Em outra situação, o analisando folheia uma revista no consultório de Searles. Ao ir embora, ele a joga de uma forma grosseira no divã, fazendo-a cair no chão. Sem se preocupar com a revista, o analisando deixa o consultório de Searles. Enfurecido, o analista recolhe a revista no chão e a joga, repentinamente, contra uma mesa. Nesse momento, Searles levanta a hipótese: o analisando estava respondendo, alucinatoriamente, à raiva presente no psiquismo de seu analista. Suportando cada vez mais a sua hostilidade em relação a esse homem, quando em outra sessão a cena da revista se repete, Searles consegue adverti-lo: “Vai com calma com as revistas. Você não está em um chiqueiro” (1958/1965a, p. 203; tradução nossa).
Um fato curioso. Durante o período do processo analítico com esse analisando, Searles começa a se sentar em um canto de seu consultório longe da porta. Conscientemente, Searles considera que essa sua mudança de posição nas sessões tinha o objetivo de facilitar que o analisando pudesse facilmente sair da sala, caso tivesse um ataque de fúria. No entanto, Searles encontra em si um objetivo inconsciente mais importante: caso o analisando ficasse furioso e iniciasse uma briga, o analista teria uma justificativa legítima para entrar nessa luta, considerando que não conseguiria fugir pela porta do consultório. Searles confessa que ansiava muito por essa batalha física. Certa vez, ao ser perguntado por um colega de equipe o estado de seu analisando, Searles deu a seguinte resposta: “Bem, ele está vivo, e isso não está indo nada mal, considerando como me sinto em relação a ele” (1958/1965a, p. 203; tradução nossa).
Como estamos vendo, Searles (1958/1965a), paulatinamente, pôde ir percebendo a sua hostilidade, e com isso conseguiu usá-la em favor da análise. Foi em um sonho elaborativo que o analista se deparou frontalmente com a dinâmica da transferência-contratransferência em ação. No sonho, Searles luta violentamente com o seu analisando. Algo estranho acontece: no meio do que podemos chamar de “luta analítica”, o analisando coloca a mão em um instrumento, algo parecido com um abridor de cartas, e prende Searles, levando-o para as autoridades, como se fosse uma espécie de delegado. No sonho-luta, o criminoso fora preso! “Ao acordar, percebi que o meu medo crônico de seu ataque estava baseado, em parte, em meu próprio medo de minha raiva largamente dissociada, e, portanto, pouco controlável” (p. 203; tradução nossa).
Fundamentalmente, o sonho mostra a Searles a sua profunda hostilidade, bem como o seu medo de perder o controle e agredir esse homem. O analisando, por sua vez, capta e introjeta essa hostilidade de Searles e alucina a partir dela. Em suma, o analisando introjetou esses elementos do psiquismo de Searles e os usou na construção de sua alucinação auditiva.
É interessante o modo como Searles (1958/1965a) integra a alucinação à dinâmica da transferência-contratransferência. Em outra sessão, por exemplo, depois de novamente ouvir os conhecidos flatos de seu analisando, Searles pensa: “Seu filho da puta, se você cagar em minha cadeira, massacro você” (p. 204; tradução nossa). Após Searles reconhecer e trabalhar com a mútua hostilidade entre a dupla analítica, as alucinações auditivas foram diminuindo progressivamente. Para que isso ocorresse, trouxe as alucinações para o campo intersubjetivo e trabalhou analiticamente com elas.
A terceira forma de resposta aos processos inconscientes do analista ocorre por meio das atuações. Em outra vinheta clínica, Searles (1958/1965a) descreveu três situações em que a sua analisanda atuou aspectos dissociados e introjetados do psiquismo do analista. Vejamos quais são elas: 1) essa mulher tinha muito medo de ser estuprada. Movida por esse medo, ela mobilizava a equipe do hospital para que a assegurasse que o estupro não aconteceria. A princípio, Searles não percebeu nenhuma relação disso com a análise. Não obstante, no decorrer do processo analítico, ele reconheceu em si desejos sexuais e a incômoda ideia de estuprar a sua analisanda; 2) a paciente começou a se exibir sexualmente para alguns homens do hospital, e isso ocorreu na mesma época em que a análise de Searles o levava a ter contato com os seus desejos homossexuais; e 3) ela ateou fogo na enfermaria do hospital. Quando a equipe de enfermagem informou Searles sobre isso, ele se sentiu acuado, como se fora ele o responsável pelo ataque incendiário. Posteriormente, Searles entrou em contato com a ideia de que já tivera essa vontade de atear fogo no prédio da instituição.
Searles interpretou que as atuações de sua analisanda estavam relacionadas aos aspectos inconscientes dele. Há uma correspondência que pode ser assim descrita:
atuação da analisanda: o medo de ser estuprada e a mobilização da equipe do hospital. Elemento psíquico inconsciente em Searles: desejo sexual por ela e a ideia de estuprá-la;
atuação da analisanda: exibir-se sexualmente para os homens. Elemento psíquico inconsciente em Searles: desejo homossexual;
atuação da analisanda: atear fogo na enfermaria. Elemento psíquico inconsciente em Searles: ideia de colocar fogo no hospital.
Trata-se, como podemos ver, de uma visão intersubjetiva da atuação. Nesses casos de esquizofrenia, a atuação passa a não ser apenas a expressão do que não pode ser colocado em palavra pelo analisando; ela também se torna uma forma de apresentação do que não pode ser colocado em palavra e integrado no psiquismo do analista.
Segundo Searles (1958/1965a), é muito difícil perceber que as atuações podem ser respostas aos processos inconscientes do analista, e isso ocorre por dois motivos: 1) pelo fato de o analisando introjetar um aspecto indesejado e inconsciente do psiquismo do analista; e 2) pelo fato de o analisando fazer uma caricatura, atuar ou alucinar de uma forma exagerada, os elementos psíquicos introjetados. Por esse motivo, a interpretação da contratransferência, ocorrida na mente do analista, passa a ser o principal instrumento para se compreender o que se passa na matéria viva da transferência-contratransferência.
O clínico precisa reconhecer que a percepção do esquizofrênico pode ser real e mostrar os processos inconscientes presentes no psiquismo do analista. É como se o analisando estivesse tentando comunicar ao analista: “[...] veja, este é o modo como você me olha”, ou, “veja, é isto que está acontecendo entre nós abaixo da superfície” (Searles, 1958/1965a, p. 214; tradução nossa). Essas considerações sobre a parte de percepção realística presente nas alucinações e atuações de esquizofrênicos nos lembram algo que Freud postulou em “Construções em análise” (1937/2018)
[...] talvez seja uma característica geral da alucinação, até agora não devidamente apreciada, que nela retorne algo vivido na infância e depois esquecido, algo que a criança viu ou escutou num tempo em que mal podia falar, e que agora abre caminho até a consciência, provavelmente deformado e deslocado por efeito das forças que se opõem a tal retorno. (p. 341)
Se Freud já nos indicava uma possível parte realista da alucinação e dos delírios dos psicóticos, vemos como Searles levou essa ideia ao extremo: o esquizofrênico, por ter uma percepção aguçada, capta elementos reais do inconsciente do analista.
Ressonâncias contemporâneas
Após expormos o cerne do artigo de Searles e destacarmos a presença da intersubjetividade em seu trabalho com pacientes esquizofrênicos, apresentamos algumas ressonâncias de seu pensamento clínico na psicanálise contemporânea.
Retomamos um ponto que deixamos suspenso: a ideia de que o esquizofrênico se esforça para aliviar a ansiedade de seus pais, e assim o faz introjetando os conflitos inconscientes deles. Na tentativa de salvar os pais de seus conflitos, o analisando, em transferência psicótica, introjeta os aspectos dissociados do psiquismo do analista. Isso será desenvolvido detalhadamente no artigo “The patient as therapist to his analyst” (1975/1979c), texto no qual Searles levanta a hipótese da uma tendência psicoterapêutica nos seres humanos. Ora, que ideia mais estranha essa, podemos pensar; mas, se considerarmos que Searles escreve com base em sua experiência clínica com esquizofrênicos, ela se torna mais palatável. Muitas vezes servindo de depósito para os entulhos psíquicos parentais, o psicótico se torna portador da loucura da família. Inconscientemente, ele se transforma no responsável por curar a doença de seus pais. Cesar (2009) resume bem este ponto do pensamento de Searles:
Nossa condição (desde que nascemos) de ser suporte, destinatário e depositário dos afetos alheios se estende nestes casos, cheios de trágicas complicações. O pensamento de Searles é especial: não há possibilidade de separação/individuação se o filho se compromete (inconscientemente) e fracassa na missão de curar os pais doentes ou de auxiliá-los a serem pessoas totais. Como abandonar, fechar a porta da casa de origem onde pais infelizes permanecem? Como deixar para trás a loucura dos que nos geraram? (pp. 131-132)
Avançamos ao texto “The patient as therapist to his analyst” (1975/ 1979c) porque ele dá uma maior clareza à ideia de que o analisando introjeta os conflitos inconscientes do analista. Trata-se de uma tentativa louca de se livrar da loucura dos pais. Ora, mas o analista poderia introjetar os conflitos do analisando? Sim, afirma Searles (1958/1965a), e há um esforço psicoterapêutico nisso. Lemos no texto sobre a vulnerabilidade do esquizofrênico aos processos inconscientes do analista:
Refiro-me aqui à circunstância aparente em que o terapeuta, nos níveis mais profundos de interação terapêutica, introjeta temporariamente os conflitos patogênicos do paciente e lida com eles intrapsiquicamente, tanto no nível inconsciente quanto no consciente, tendo como suporte as capacidades de seu próprio ego relativamente forte, e então, de forma semelhante, introjetando, o paciente se beneficia do trabalho intrapsíquico que vem sendo realizado no terapeuta. Aliás, acredito que o paciente, não em raras ocasiões, dá ao terapeuta o mesmo tipo de ajuda terapêutica com os conflitos intrapsíquicos deste. (p. 214; tradução nossa)
Em um psiquismo poroso, um psiquismo no qual há uma incessante ida e vinda comunicacional entre sujeito e objeto, o intrapsíquico e o intersubjetivo se entrelaçam. Ao afirmar que o analista “[...] introjeta temporariamente os conflitos patogênicos do paciente e lida com eles intrapsiquicamente [...]” (p. 214; tradução nossa), e que o analisando, por meio de uma nova introjeção, recapta esses conflitos tratados, Searles se aproxima da teoria do continente-contido de Bion (1962/1966). Em ambos, encontramos a noção de um constante fluxo comunicacional, verbal e não verbal, consciente e inconsciente, entre o sujeito e objeto.
Partindo de sua apreensão criativa da identificação projetiva, Bion (1962/1966) formula a sua teoria das funções. Diante da incapacidade de digerir os elementos beta, o sujeito os coloca dentro do objeto, com a esperança de que o objeto, por meio de sua função alfa, possa digeri-los e devolvê-los como matéria psíquica palatável. Searles, a seu modo, e sem usar o pensamento de Klein, encontra no trabalho com os esquizofrênicos algo parecido: um psiquismo aberto, movido por mecanismos projetivos e introjetivos constantes.
Essa aproximação entre Searles e Bion não passou despercebida por Ogden (2014). Para ele, há uma complementaridade entre os pensamentos de ambos os autores. Segundo Ogden, Searles, “[...] por temperamento, não tinha disposição (nem talvez condições) de formular suas ideias em um nível de abstração além da teoria da clínica” (p. 241). Bion, por sua vez, “[...] mostra pouco, ao leitor, o tipo de uso das suas ideias no setting analítico” (p. 241). Dito de outro modo, o que Searles não desenvolve em termos de pensamento metapsicológico pode ser encontrado em Bion; enquanto o que Bion não desenvolve quanto à presença de suas ideias na prática clínica pode ser encontrado em Searles. Assim: “[...] o trabalho de Searles se enriquece conceitualmente pelo conhecimento da obra de Bion e a obra de Bion é trazida mais plena e vivamente à vida pela familiaridade com a obra de Searles” (p. 244). Sabendo que os pensamentos não são propriedades individuais, compartilhamos com Ribeiro (2020) a ideia de que os conceitos são criações coletivas, realizadas por diferentes analistas em determinado período histórico. Por essa razão, Bion e Searles, cada um a seu modo, e com todas as profundas diferenças entre eles, possuem certa proximidade e grande importância no desenvolvimento de uma compreensão intersubjetiva dos fenômenos clínicos.
Searles trabalha com a articulação entre os processos intrapsíquicos e intersubjetivos em uma análise, mas dá ênfase à dimensão intersubjetiva presente na transferência-contratransferência. Na leitura de seus textos, são nítidas as possíveis aproximações com a noção de campo analítico do casal Baranger (1961-1962/2010) e com o terceiro analítico desenvolvido por Ogden10(1994/1996). Claro que esses não são conceitos equivalentes, visto que cada um deles possui diferentes especificidades em sua construção e operacionalidade clínica, mas eles buscam descrever o mesmo fenômeno: o constante processo psíquico de diferenciação e indiferenciação Eu/Outro no setting analítico. São tentativas de teorizar a articulação entre as dimensões intrapsíquicas e intersubjetiva em uma análise.11
Em nosso meio, Coelho Junior e Figueiredo (2012) trabalham na pesquisa dessa articulação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo. Buscando organizar as diferentes modalidades de intersubjetividade, eles propõem quatro matrizes intersubjetivas. Trata-se de uma importante discriminação entre certos modos de alteridade. Assim, temos:
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1) a intersubjetividade transubjetiva: entende-se que há um solo primeiro de experiência em que alteridade se constitui a partir de uma indiferenciação inicial entre sujeito-objeto;
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2) a intersubjetividade traumática: trata-se de uma concepção na qual a presença do outro será, ao mesmo tempo, constituinte e traumática, visto que produzirá excesso de estímulos que exigem um enorme trabalho psíquico. Haveria uma passividade inicial e radical do bebê diante do outro;
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3) a intersubjetividade interpessoal: entende-se que há uma separação inicial entre sujeito e objeto, mas que a interação entre eles será determinante, pois não é possível gestos e atos que não estejam e dependam, de alguma forma, da resposta do outro;
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4) por último, temos a intersubjetividade intrapsíquica: a intersubjetividade é concebida em termos das fantasias e relações de objetos internos. Nesta modalidade de intersubjetividade, centra-se na dinâmica intrapsíquica: os objetos internos fazem parte de um mundo psíquico com funcionamento próprio.
Essas matrizes devem ser “[...] concebidas como elementos simultâneos nos diferentes processos de constituição subjetiva” (Coelho Junior & Figueiredo, 2012, p. 33; grifos nossos). Os autores propõem e sustentam que se trabalhe com essas matrizes com base na ideia de simultaneidade.
Seguindo a linha de pensamento de Coelho Junior e Figueiredo (2012), em determinados pensamentos encontramos a preponderância de uma ou outra matriz intersubjetiva. Neste sentido, no texto de Searles (1958/1965a) sobre a vulnerabilidade do esquizofrênico aos processos inconscientes do analista, percebemos uma preponderância da intersubjetividade interpessoal (há duas pessoas em relação de interdependência, ainda que no esquizofrênico o Eu seja precário e fragmentado). Todavia, também encontramos a ideia da intersubjetividade transubjetiva (há uma indiferenciação inicial entre o sujeito e o outro/ambiente, como pode ser vista na ideia da mistura inicial entre o ser humano e o ambiente não humano (Searles, 1960); da intersubjetividade intrapsíquica (objetos internos fantasiosos se inter-relacionando) e da intersubjetividade traumática (ao depositar os seus conflitos inconscientes no bebê, o objeto primário promove traumáticos).
Considerações finais
Como esperamos ter demonstrado, a intersubjetividade é um tema de destaque no pensamento de Searles. As suas ideias se relacionam diretamente com postulações teóricas de autores da psicanálise contemporânea, sobretudo no que diz respeito à constante articulação entre as dimensões intrapsíquicas e intersubjetivas presentes em uma análise. Esperamos ter instigado a leitura e o uso das ideias de Searles em nosso trabalho clínico e teórico.
Lembramos que neste artigo tratamos apenas de uma parte específica das contribuições de Searles para a psicanálise. Em futuras publicações nos debruçaremos sobre temas encontrados em outros trabalhos seus, tais como a noção de simbiose terapêutica, o esforço para enlouquecer o outro e a natureza psicoterapêutica do psiquismo. Convidamo-os a nos acompanharem em outros artigos sobre esse “[...] clínico genial, ligeiramente amalucado [...]” (Figueiredo, 2002, p. 915).
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Resultado parcial da pesquisa de doutorado “Os ódios nos casos-limite: dialogando com Winnicott e Searles”, realizada no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
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Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br.) / This work is supported by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Brasília, DF, Br.).
Agradecimentos
Agradecemos ao CNPq pela bolsa de doutorado. Agradecemos as contribuições e sugestões do grupo de pesquisa Psicanálise Experimental do IPUSP.
Por ter tido a gentileza de nos disponibilizar um de seus trabalhos, agradecemos ao psicanalista Francisco Balbuena. Pelo diálogo sobre Searles, agradecemos à psicanalista Anne-Louise Silver.
O primeiro autor agradece as contribuições de Luciana Formaggio e Rodrigo Veinert.
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Para uma visão de conjunto do pensamento de Searles, indicamos os trabalhos de Aron & Lieberman (2017), Balbuena (2016, 2018) e Souffir (2005).
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Aos interessados na história do Chestnut Lodge, indicamos o artigo de Silver (2019), analista que fez parte do corpo clínico dessa instituição.
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Em linhas gerais, Figueiredo e Coelho Junior (2018) organizam a psicopatologia psicanalítica em duas matrizes clínicas: 1) freudo-kleinina: centrada nas angústias e nas formas ativas do psiquismo se defender delas; e 2) ferencziana: de uma forma suplementar às posições freudo-kleinianas, foca-se nos colapsos das defesas ativas diante dos traumatismos precoces.
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No Diário Clínico, lemos: “segundo caso de análise mútua: é a revelação de seus próprios sentimentos de angústia e de culpa, que permite evidenciar as mesmas tendências na analisanda (DM) que, por caminhos similares, desperdiça todas as suas possibilidades na vida e muitas das possibilidades de suas análises. Quase poderíamos dizer que, quanto mais um analista tem fraquezas que o levam para um caminho dos erros e fracassos maiores ou menores, e que são em seguida descobertos e tratados na análise mútua, mais uma análise tem probabilidade de ter fundamentos profundos e reais” (Ferenczi, 1990, p. 47). Com Silver (1996), pensamos que a análise mútua possui ressonância com o pensamento de Searles, mas, diferentemente da experiência ferencziana com a mutualidade, o analista americano manteve a assimetria entre analista e analisando.
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Aos interessados no pensamento de Fromm-Reichman, sugerimos a leitura dos trabalhos de Balbuena (2011) e Silver (2000).
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Vale ressaltar: apesar de ressonâncias de Ferenczi no trabalho de Fromm-Reichmann (1965/1950), ela faz críticas ao trabalho do analista húngaro. Para a autora, o pensamento de Ferenczi poderia levar alguns analistas a uma técnica pouco abstinente e muito participativa.
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No segundo capítulo do livro sobre o ambiente não humano (Searles, 1960), o texto “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios” (Ferenczi, 1913/2011a) é brevemente citado. Em seu livro sobre a esquizofrenia (1965b), Searles novamente cita esse artigo de Ferenczi e faz referência ao texto “Thalassa” (1924/2011b). No entanto, em todas essas menções Ferenczi não é um autor de destaque nos argumentos de Searles.
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Searles trabalhará o tema das fronteiras do Eu em seu livro My Work with Borderlines Patients (1986). Entre nós, Coelho Junior e Getlinger (2006) destacam o impacto no sentido de realidade do analista na condução de casos-limite. Aos interessados nesse tema, indicamos a leitura do artigo desses últimos autores.
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Nesse texto de Searles estudado por nós, ele considera sinônimos os termos incorporação, identificação inconsciente e introjeção (1958/1965a).
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Aos interessados, Ogden (2009) escreveu um curioso relato de sua experiência de supervisão com Searles. Ogden destaca o estilo peculiar de Searles e a sua tendência a criar um campo de verdadeira intimidade na interação entre supervisor e supervisionando.
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Em recente artigo, Coelho Junior (2019) traça a linha de interlocução entre autores como Ogden, Ferenczi, Searles, Langs e o casal Baranger. Indicamos esse texto aos interessados na constituição e no desenvolvimento da psicanálise contemporânea.
Referências
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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Mar 2022
Histórico
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Recebido
27 Mar 2021 -
Aceito
19 Jul 2021