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Tropicalizando a medicina

A ROUSP procura sempre estender os seus limites, trazendo artigos de importância para nossa reflexão. Assim, apresentamos este texto do Prof. Dr. Paulo Lotufo, hoje pesquisador visitante do Harvard Medical School em Boston. Leiam e meditem sobre a mensagem deixada.

Tropicalizando a medicina* * Transcrição autorizado do artigo publicado originalmente na Revista Médicos HC/FMUSP - Ano I, nº 5, p. 104-105, 1998.

Paulo LOTUFO ** * Transcrição autorizado do artigo publicado originalmente na Revista Médicos HC/FMUSP - Ano I, nº 5, p. 104-105, 1998.

A leitura das principais publicações médicas mostra que a biologia molecular e os ensaios clínicos estão permitindo avanços significativos nas ciências médicas neste final de século. Repete-se hoje o sentimento de progresso existente há cem anos com a microbiologia iniciando um período de grandes descobertas. Entretanto, quando R. Kock isolou o Vibrio cholera (1893), J. Snow já tinha mostrado a transmissão hídrica do cólera e a necessidade do controle de qualidade da água (1849). Quando L. Pasteur isolou os germes causadores da febre puerperal (1879), I. Semmelweiss já havia demonstrado a transmissão da infecção durante o ato operatório e a necessidade de assepsia no parto (1847). Olhar um século atrás, permite perceber que o atual frenesi com a biologia molecular e os ensaios clínicos precisa ser visto com as lentes da moderação e da prudência.

Nos últimos anos, a produção científica brasileira na área biomédica cresceu em qualidade. No presente ano, quatro trabalhos originados no Brasil foram publicados nas duas principais revistas, o The New England Journal of Medicine e o The Lancet. Ainda é pouco, considerando-se o potencial brasileiro, e estamos muito longe dos Estados Unidos, que, com quase a metade da produção de trabalhos científicos, exercem liderança incontestável, que será mantida e até aumentada nos próximos anos com o incremento do investimento em pesquisa biomédica por parte do governo americano.

Supondo então ser natural que os estudos americanos sejam referência no restante do mundo, também seria natural que cada país soubesse o quanto esse novo conhecimento é aplicável à sua realidade. Não é o caso do Brasil, onde as realidades demográfica, nutricional e epidemiológica exercem pouca influência na aplicação do conhecimento externo. No passado, argumentava-se que não havia dados. Hoje, um pesquisador que nunca tenha pisado no solo brasileiro, mas que acesse o site do Ministério da Saúde (http://www.datasus.gov.br) com a ajuda de um dicionário pode traçar com precisão razoável o perfil epidemiológico da população brasileira.

O envelhecimento da população é uma realidade, a obesidade representa um problema maior do que a desnutrição (restrita a algumas áreas no país e que já deveria estar banida, frise-se) e a altura média dos jovens brasileiros elevou-se nas últimas três décadas em todas as regiões do país. Os riscos decorrentes da obesidade, do alcoolismo e do cigarro são muito maiores do que os provocados, por exemplo, pela dengue e pela tuberculose. Cânceres associados ao hábito de fumar (boca, laringe e pulmão) causaram quatro vezes mais mortes do que a tuberculose em 1996 em todo o país. As doenças infecciosas continuarão a existir no Brasil, porque não serão vencidas aplicando-se um modelo militar, e sim controladas usando-se os ensinamentos diplomáticos que devem reger o relacionamento do homem com as outras espécies. O surto de sarampo em São Paulo, em 1997, não alterou o padrão de mortalidade da cidade, da mesma forma como, em 1984, um surto de difteria na Suécia com dezessete casos e três mortes não significou que o perfil epidemiológico daquele país aproximava-se do existente na África. Erro crasso é abandonar o investimento em vigilância epidemiológica tal como ocorreu em vários países dos quais o Brasil tornou-se um exemplo a mais.

Para mostrar a importância das doenças crônicas no Brasil, deve-se lembrar que, desde a década de 70, a maioria das mortes são causadas pelas doenças cardiovasculares e pelo câncer. Uma comparação com Estados Unidos e Europa, no entanto, mostra que no Brasil há um maior número de óbitos por doença cerebrovascular do que por infartos do miocárdio e uma proporção maior de óbitos pelos cânceres de orofaringe, laringe, esôfago, estômago e colo uterino. Os dados de morbidade também confirmam a importância dessas doenças: a prevalência de hipertensão (aproximadamente 20%) e do diabetes (7,6%) é elevada, as doenças respiratórias são a principal causa de internação, e o gasto com tratamento dialitíco dos renais crônicos supera o orçamento de alguns Estados da federação.

Doenças descritas em outros povos e países comportam-se de modo diferente no Brasil. Os japoneses apresentam incidência elevada de câncer de próstata e de mama e alta prevalência de obesidade e diabetes, e os italianos e os espanhóis têm incidência mais elevada de câncer de orofaringe, esôfago, mama, colo uterino e mais baixa de câncer de pulmão quando comparada às existentes nos países de origem. Uma doença com poucos fatores ambientais, como o lúpus eritematoso sistêmico, tem diferentes formas clínicas no Brasil, na Suécia e na Inglaterra. A história natural da endocardite infecciosa em São Paulo nos anos 80 foi distinta do padrão americano dos anos 50.

O desconhecimento da realidade brasileira também influencia a prática e o ensino médico. Nos hospitais-escola, nas reuniões clínicas, com freqüência os doentes são adaptados ao livro-texto, cuja base de informação é proveniente de outro local e época. Quando não há concordância, culpa-se o doente que não sabe informar, o laboratório que é ruim, o remédio que foi mal administrado. Apesar do número menor de casos de AIDS no Brasil, o aparecimento da doença foi temporalmente próximo; porém, durante quase dois anos, assistiu-se a uma série de casos sem diagnósticos, que só foram classificados como uma nova doença após a chancela da literatura americana e européia.

Em suma, temos um padrão de doenças semelhante ao americano e europeu, mas com importantes e significativas diferenças que não podem ser desprezadas. O desenvolvimento da medicina do país ocorrerá de forma consistente se houver integração do avanço tecnológico com a perspectiva de bem-estar coletivo. Exames, remédios e técnicas cirúrgicas somente têm valor se forem disponíveis a quem necessitar, e não para as consumistas impulsivas e os hipocondríacos abonados. Para isso, torna-se imperioso aumentar o conhecimento da realidade brasileira sem preconceitos ideológicos e religiosos, porque até de situações constrangedoras, como o aborto ilegal no Brasil e a distribuição da água para as unidades de diálise em Caruaru (PE), foi possível extrair-se conhecimento sobre a teratogenicidade do misoprostol e o efeito das microcistinas das cianobactérias no organismo humano.

Podemos ensinar o mundo publicando nas principais revistas indexadas com altas taxas de citação e ao mesmo tempo desenvolver práticas eficazes de saúde pública. Há exemplos a serem observados: a Finlândia consegue rivalizar os Estados Unidos em algumas áreas (diabetes) e realizar projetos de saúde pública avançados, como a prevenção de doenças crônicas na Carélia do Norte. A Índia tem o domínio da fissão nuclear, mas não consegue fornecer água potável para sua população.

** Médico e Professor Assistente Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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    Transcrição autorizado do artigo publicado originalmente na Revista Médicos HC/FMUSP - Ano I, nº 5, p. 104-105, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 1999
    • Data do Fascículo
      Jan 1999
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