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Minorias Religiosas: identidade e política em movimento

Desde fins dos anos 1960, na esteira dos grandes embates estudantis e do grande impacto do movimento pelos direitos civis dos negros e negras americanos/as, temos assistido a uma notável mutação na ação coletiva. De um lado, uma tensão entre o âmbito da sociedade (civil) e o das instituições estatais que paulatinamente saiu de uma confrontação aberta para um tipo de disputa intermitente com momentos de interpenetração. De outro lado, a quebra da perspectiva de um ator unificado da mudança, definido por sua posição estrutural na ordem social e imbuído de tarefas históricas a realizar (de modo relativamente independente de sua consciência e vontade). Passamos a um quadro em que a atenção à emergência de novos atores, com características e demandas específicas, se vê num registro de micropolíticas (cada luta vale por si), mas também de articulações contingentes e temporárias (as lutas se inscrevem em “coalizões” mais amplas, à sombra de bandeiras ou de campos de intervenção mais gerais, ainda que nem sempre por iniciativa própria).

Neste cenário, o termo minoria recobra uma saliência poucas vezes percebida na história ocidental. Desveste-se da conotação fortemente pejorativa ou subalternizante predominante e passa a ser invocado por seus próprios membros (ou segmentos ativos dos coletivos) de modo assertivo, ressignificando positivamente atributos e demandas até então julgadas negativamente de forma discriminatória, condenatória ou violenta. Seja em função dos espaços conquistados de visibilidade pública, seja em função do alargamento do discurso político e dos marcos regulatórios estatais de defesa e proteção de direitos coletivos, o custo de assumir-se como minoria diminuiu relativamente. Multiplicação de minorias. Assertividade minoritária. Alteração do campo da ação para acolher demandas parciais, mesmo quando estas não demonstravam imediata capacidade de ir além do momento corporativo (Bhabha e Anfeng 2009BHABHA, Homi K., e Sheng ANFENG . (2009), Minoritization as A Global Measure in the Age of Global Postcoloniality: An Interview with Homi K. Bhabha. Ariel 40(1): 161-80.; Cohen 2006COHEN, Job. (2006), “Can a Minority Retain Its Identity in Law? The 2005 Multatuli Lecture”. In: de Vires, Hent; Sullivan, Lawrence E. (orgs.). Political Theologies: Public Religions in a Post-Secular World, pp. 539-56. New York: Fordham University.; Perlongher 2013PERLONGHER, Néstor. (2013), Minoritarian Becomings. Disidencia 10(2): 1-14.).

Apesar de serem modernamente a origem dessas políticas de minorias, as minorias religiosas não foram as protagonistas deste processo. Com exceção do movimento negro americano, com forte identificação simbólica com a religião (mesmo sem constituir um movimento confessionalizado), quer o cristianismo de Martin Luther King Jr. quer o islã de Malcolm X, as emergências minoritárias dos anos de 1960 e décadas seguintes foram “laicas” e mesmo “secularistas”. Enquanto as novas minorias, forjadas em torno de demandas por reconhecimento, igualdade ou justiça - acesso e/ou reparação -, contestavam abertamente pilares da ordem constituída nos países ocidentais, seja referentes a relações de gênero, étnico-raciais, de trabalho, com o meio ambiente, seja aos efeitos cumulativos das desigualdades em matéria de cultura, economia e política, a iniciativa não parecia estar com minorias religiosas. Ou, pelo menos, estas não figuraram de modo “tranquilo” no interior das formações minoritárias do período. Isso porque, enquanto as novas minorias se constituíam num terreno de disputa agonística ou mesmo antagonística com suas maiorias relativas (não nos esqueçamos, maioria e minoria são conceitos relacionais, a variável puramente numérica de modo algum é suficiente para defini-las), as minorias religiosas frequentemente se autoisolavam ou procuravam escapar da discriminação e desprezo distanciando-se da ribalta das disputas públicas (Burity 2016aBURITY, Joanildo . (2016a), “Minoritisation and global religious activism: Pentecostals and ecumenicals confronting inequality in politics and culture”. In: Llewelyin, Dawn; Sharma, Sonya (orgs.). Religion, Equalities and Inequalities, pp. 137-48. Abingdon/New York: Routledge.; Ghanea 2012GHANEA, Nazila. (2012), Are Religious Minorities Really Minorities? Oxford Journal of Law and Religion 1(1): 57-69.; Vives e Braga 2012VIVES, Juan Martin, e Luigi Mateus Braga . 2012. “As minorias religiosas e sua complexa relação com a secularização”. In: Bittencourt, Josias; Lellis, Lélio (orgs.). Libertas: ensaios em Estado, cultura e religião, pp. 107-23. Engenheiro Coelho: Unaspress.; Giumbelli 2017GIUMBELLI, Emerson . (2017), A vida jurídica das igrejas: observações sobre minorias religiosas em quatro países (Argentina, Brasil, México e Uruguai). Religião & Sociedade 37 (2): 121-43.).

No entanto, o processo de ampliação dessas formas de identificação e ação coletiva que chamamos de minorias aliou-se a processos “moleculares” de ampliação da democracia, para além do seu marco institucional e eleitoral, quer no contexto de uma crítica ao marco liberal dessa concepção institucional da democracia, quer no da vigência de regimes autoritários (América do Sul e Sul da Europa sendo casos em tela nos anos 1970 e 1980). As condições de emergência das políticas de minorias, coincidindo com transições políticas de monta, politizaram as demandas minoritárias, construindo entre elas cadeias de equivalência imprevistas e inauditas. Novas e velhas minorias, mesmo quando pretendendo “focar em si mesmas”, tiveram suas identidades transformadas por uma injunção a pensar modelos de reconstrução da ordem social pós-autoritarismos. Exemplos disso podem ser identificados, a partir de fins dos anos 1980, na emergência do novo movimento sindical brasileiro em seu encontro com demandas de mulheres e pessoas negras, de um lado, e com a lógica da política de alianças eleitorais e partidárias das democracias pluripartidárias, de outro. Os próprios movimentos feminista, negro, indígena e ambientalista precisaram desenvolver uma nova forma de atuação face às políticas públicas como espaço de incidência. Também se pode falar da transformação da teologia da libertação e do ecumenismo latino-americanos a partir de seus diálogos com os temas da cultura e da identidade, da ecologia e dos direitos humanos.

As oportunidades novas de participação que o processo ensejou motivaram (ou provocaram) a entrada em cena de outras minorias. As religiosas não ficaram de fora, nem para trás, juntando-se à maré montante desses processos de incidência minoritária. Como em todo processo de questionamento de uma ordem que morre, a “crise” abre espaço para uma infinidade de pequenos e grandes protagonismos, amplia notavelmente a agenda das questões social e politicamente sensíveis, relevantes, e enseja novas formas de articulação sociopolítica.

No contexto latino-americano, a grande novidade deste processo foi a minoritização evangélico-pentecostal. Duplamente polêmica - por ser abertamente proselitista e expressar-se de modo francamente corporativo -, essa emergência “desarrumou” ainda mais os cenários abertos de reconstrução democrática, movendo-se ambiguamente entre outras minorias, absorvendo repertórios de ação tanto das velhas elites políticas quanto dos novos movimentos sociais e formações políticas articuladas do período (frentes, coalizões, alianças, redes) e combinando pautas “conservadoras” e “progressistas”. O “modelo” minoritizante evangélico mais bem sucedido foi o da via eleitoral, que acabou sendo emulado por outras minorias religiosas, embora com bastante menos sucesso. Outras vias de politização, no entanto, foram também acionadas, cruzando-se e potenciando-se com a via eleitoral, conforme as conjunturas ou os temas que levantavam (Burity 2015BURITY, Joanildo. (2015), Políticas de minoritização religiosa e glocalização: notas para um estudo de redes religiosas de ativismo socio-político transnacional. Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad 18(7): 9-30.; 2016bBURITY, Joanildo . (2016b), Minoritization and Pluralization: What Is the ‘People’ That Pentecostal Politicization Is Building? Latin American Perspectives 43(3): 116-132.; Giumbelli 2006GIUMBELLI, Emerson. (2006), “Minorias religiosas”. In: Teixeira, Fautino; Menezes, Renata (orgs.). As Religiões no Brasil: continuidades e rupturas., 229-47. Petrópolis: Vozes.).

Ao menos no caso brasileiro, os evangélicos vêm agenciando com perspicácia a alternância entre se constituir como minoria e se afirmar como parte de uma maioria. A própria categoria “evangélicos” é parte dessa dinâmica, pois ela pode ser enunciada como um contraponto ao “católico”, em um movimento que inclui um deslocamento do próprio catolicismo. Desafiado em seus privilégios históricos, o catolicismo é colocado “ao lado” de outras religiões, em uma lógica que valoriza e provoca o pluralismo. Por outro lado e simultaneamente (sim, as coisas são complexas), a categoria evangélico pode ser conjugada de modo a ser parte e a reforçar uma “nação cristã”. Nesse golpe, os evangélicos juntam-se aos católicos para constituir maioria. Estão também em jogo operações que envolvem apostas de homogeneização, tanto da parte de quem se alvora em porta-voz desse coletivo nomeado “evangélicos”, quanto da parte daqueles que os acusam. Isso permite vislumbrar novas dinâmicas de minoritização, agora visando fazer emergir as diferenças entre esses “evangélicos” (Oro 1996ORO, Ari Pedro. (1996), Avanço pentecostal e reação católica. Petropolis: Vozes.; Mafra 1998MAFRA, Clara. 1998. A dialética da perseguição. Religião & Sociedade , 19(1): 59-84.; Campos et al 2015CAMPOS, Roberta Bivar Carneiro; GUSMÃO, Eduardo Henrique Araújo de; MAURICIO JÚNIOR, Cleonardo Gil de Barros. (2015), A disputa pela laicidade: uma análise das interações discursivas entre Jean Wyllys e Silas Malafaia. Religião & Sociedade , 35(2): 165-188.).

Ainda no cenário brasileiro, as religiões de culto aos orixás (ou, se preferirem, de matriz africana) apontam para outra situação. Sem a mesma expressão política que os evangélicos, a articulação pública dessa religiões vai depender de outros canais e dispositivos. Podemos citar a luta contra a intolerância (por meio de fóruns, conselhos, caminhadas), algo que coloca essas religiões como vítimas maiores de preconceitos, discriminações e violências. Do outro lado, está o cristianismo, ao menos naquilo que sustenta a condenação das religiões de matriz africana e de outras minorias, religiosas ou não. Já as ações dessas religiões no campo da cultura evidenciam outros agenciamentos. Por exemplo, reivindicações para que o candomblé seja reconhecido como “patrimônio cultural” podem gerar resultados que estabelecem para as religiões de matriz africana um lugar já atribuído ao catolicismo como parte da formação nacional. Esse lugar é menos acessível aos evangélicos. Por outro lado, para as religiões de culto aos orixás, tal conquista envolve elaborações da noção de africanidade que podem gerar tanto tensões internas ao universo religioso quanto alianças (nunca estáveis) com outros atores sociais que dependem da mesma noção (Birman 1997BIRMAN, Patrícia. (1997), O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, 18(2): 75-92. ; Giumbelli 2008______. (2008), A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião & Sociedade, 28(2): 80-101.; Montero 2017MONTERO, Paula. (2017), The “culture of justification” in the production of public religiosities in Brazil. In: Mapril, José et al. (orgs.). Secularisms in a postsecular age? Religiosities and subjectivities in comparative perspective. New York: Palgrave, pp. 207-229.).

Esses comentários mostram como a contraposição entre maioria e minoria não é uma operação mecânica, orientada por uma matemática simples. Os representantes de um coletivo minoritário em termos numéricos podem reivindicar espaço usando o vocabulário da liberdade e da perseguição, e, ao mesmo tempo, podem se sentir à vontade para acionar noções e bandeiras hegemônicas ou articular suas lutas disputando os sentidos do passado e da formação societária. Esses exemplos buscam evidenciar que a constituição de minorias não se faz apenas no contraponto a maiorias, mas também dependem do agenciamento de noções totalizantes (nação, história, etc). Procuram também chamar a atenção para o caráter contingente dessas configurações, cuja compreensão demanda uma cuidadosa caracterização de agentes, cenários e argumentos.

O desfecho dessas políticas de minoria não se deu ainda. É muito precipitado ler, nos últimos anos - particularmente desde as chamadas jornadas de junho no Brasil e no pós-impeachment da presidenta Dilma Rousseff -, uma espécie de revelação do que sempre estivera “lá”. A inflexão vivenciada na ação coletiva e no reconhecimento das minorias após a ascensão de conjunturas hegemonizadas por discursos de direita e extrema-direita não é um fato irreversível e muito menos consumado. Outros momentos de inflexão se produziram, por exemplo, no início dos anos 1990 e no início dos 2000, por razões distintas. A ação coletiva não se caracteriza por um contínuo. Ela tem “ciclos” de mobilização e (re)configuração. O importante é ressaltarmos o impacto deixado tanto pela emergência minoritária mais geral quanto religiosa em nossos contextos recentes, ao ponto de provocarem reações conservadoras, com diferentes conteúdos ou alvos, internacionalmente.

Muitas dessas minorias se utilizaram intensamente da linguagem dos direitos e acabaram por produzir uma pluralização sociocultural de grande impacto - a julgar pelos fenômenos do multiculturalismo, do feminismo e das “guerras sexuais” (Natividade e Oliveira 2013NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro. (2013), As novas guerras sexuais: diferença, poder religiosos e identidade LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond.), especialmente a partir da década de 1990, globalmente. No entanto, grande parte delas, mesmo as mais inovadoras ou radicais, recorrem reiteradamente, frente à oposição a seu discurso ou demandas, a protocolos essencialistas de marcação da identidade coletiva. Embora esta seja uma marca dos discursos minoritários recentes, ela expressa uma contradição insanável: de um lado, a necessidade de “territorialização” do que e quem a identidade minoritária contém; de outro lado, o efeitos “desterritorializantes” que a publicização e as disputas com outros atores impõem a essa identidade territorializada, fixada, essencializada. Se a afirmação dos direitos tem um potencial de construir equivalências entre demandas minoritárias, a afirmação da própria identidade como recurso estratégico de reconhecimento e mesmo barganha política e cultural enrijece como um dado prévio o que na verdade jamais cessa de se constituir - a identificação minoritária - e se transformar - seu sucesso relativo em termos de inclusão ou participação que a torna parte de complexos tanto mais amplos quanto contingentes.

Interessa-nos neste dossiê a interface religiosa desses processos. Os autores e autoras que o compõem apresentam abordagens empíricas e teóricas desses fenômenos, em contextos nacionais diversos e a respeito de identificações religiosas várias. Como se define uma minoria religiosa? O que há de cruzamentos de fronteiras? Como se manifesta o “especificamente religioso” nesses cruzamentos, seja em sua agenda ou nas disputas que se dão com lógicas laicas, que borram fronteiras clássicas entre religioso e secular, nacional e internacional, local e global? Como entender as minorias religiosas segundo a ótica qualitativa que se instalou, na qual a quantidade não se traduz necessariamente em critério definidor da emergência ou do sucesso das demandas? O que acontece com as maiorias (sociais, culturais, políticas) quando referidas à minoritização religiosa? O que acontece, na esteira da pluralização, com o interno das próprias minorias religiosas ou das maiorias, ao emergirem variações, dissidências e disputas pela enunciação identitária e pela estratégia de incidência pública? Que dimensões espaciais impactam a definição e as formas de vida que se autoapresentam como minoritárias (ou assim podem ser descritas por um certo marco analítico)? Como os processos de convergência, afastamento e contestação entre as minorias se dão no interior das dinâmicas político-culturais e político-institucionais das últimas décadas?

Um dos conceitos propostos na chamada para o dossiê, e explorado em algumas das contribuições aqui, é o de minoritização. Mais do que de uma “produção” de minorias, o conceito alude a uma trama relacional que acompanha a radicalização das demandas democráticas desde os anos de 1960, produzindo novos atores políticos, novas agendas de reivindicação e novos repertórios de ação. O primeiro momento dessa trama manifestou-se como autoafirmação de dignidade e reivindicação de justiça e de tratamento isonômico diante da lei. Ocorre que tal autoafirmação suscitava questionamentos profundos para a definição majoritária, implicando em denúncias de discriminação, exclusão sistemática e mesmo violências. Sua emergência implicava na contestação do que constituía a maioria, do que representava a normalidade, de quem tinha acesso à lei, à participação e à justiça social. Em alguns casos, as “minorias” sequer eram numericamente pequenas, como mulheres, negros brasileiros e norte-americanos, indígenas do México ao Chile. Assim, ao momento autoassertivo, que dava nome a uma minoria, somava-se uma expectativa de reconhecimento que era acompanhada por uma real “equiparação” da maioria ao nível da minoria. A multiplicação das minorias, ao longo das últimas décadas, intensificou essa dimensão contestatória do momento assertivo da minoritização. Também desencadeou resistências e reações da maioria definida hegemonicamente, rejeitando a legitimidade, a oportunidade e os métodos da reivindicação minoritizante. Este outro lado da trama relacional tornou todos esses processos de minoritização lugares de disputa, tensões e tentativas de reforço do statu quo ante. A novidade que se encontrará nas análises oferecidas neste dossiê é que a dinâmica religiosa fez parte desses processos, quer de forma transversal, quer produzindo afirmações minoritárias.

Estas são algumas das questões com que se defrontam os autores e autoras deste dossiê. Nem sempre a abordagem traz para o proscênio a discussão do que faz e como se faz uma minoria e do marco social-histórico da multiplicação e politização das minorias. No entanto, é possível perceber, no conjunto da leitura, como as várias problematizações estão inseridas no feixe multidimensional de relações e iniciativas que definem o lugar, a visibilidade e o impacto das minorias religiosas em nossas sociedades.

Panotto discute a interface entre minorias religiosas e a incidência de suas organizações na sociedade civil, sem perder a perspectiva de que esta atuação se cruza com a atuação estatal de várias maneiras. De qualquer modo, questiona uma abordagem meramente institucionalista dessa incidência, ressaltando as disputas culturais e hermenêuticas entre os distintos atores religiosos e não-religiosos. Como consequência, explora a produtividade do conceito de minoritização para enquadrar essa relação entre religião, política e sociedade civil.

Camurça, desde uma compreensão de minoria religiosa contrastante com a maioria sincrético-hierárquica e politicamente definida (minoritização), propõe-se a analisar a utilização discursiva da imagem de minoria perseguida como forma de (auto)legitimação da Igreja Universal do Reino de Deus em sua estratégia política, ao mesmo tempo em que ressalta o marco interativo, agonístico e pragmático em que essa invocação minoritária se dá.

Lopes Jr discute, no contexto do crescimento evangélico das últimas décadas, como a presença de igrejas evangélicas nas periferias urbanas de grandes cidades produz impacto social em relação às situações vivenciadas naqueles espaços. Identifica, também, como essa “presença” é construída teologicamente e no contato com outros atores, particularmente em termos de uma tensão - que o autor chama de dualista - entre espiritual e físico, evangelização e “responsabilidade social”, em disputa com tentativas de superá-la.

Rocha oferece uma visão histórica da formação e inserção de uma vertente fundamentalista no protestantismo estadunidense ao longo do século XX. Em uma ilustração diacrônica das tensões apontadas nesta apresentação para o caso dos evangélicos brasileiros, o texto mostra como os fundamentalistas passaram de uma autoimagem como “minoria perseguida” para a afirmação que os situa como representantes dos anseios da maioria dos norte-americanos.

Ceriani analisa a política visual de uma missão pentecostal no norte da Argentina que atua desde meados do século XX junto a populações indígenas (wichí e toba/qom). Seu enfoque integra a discussão sobre minoritização ao estudo das materialidades e visualidades e aponta como a construção de uma cultura patrimonial e sua encenação durante um ciclo de celebrações comemorativas desloca as fronteiras entre o religioso e o cívico, entre o nacional e o étnico no contexto local.

Campos e Silva enfocam a inserção das religiões afro-indo-brasileiras na esfera pública, tomando como referência ações que ocorrem a partir de coletivos religiosos no Nordeste brasileiro e a discussão sobre as formas de presença pública das religiões no Brasil. Em diálogo com o que apontamos acima sobre as religiões de culto aos orixás e seus modos de constituição como minoria, os autores apontam vias que se acrescentam à forma que depende da noção de cultura em seu sentido étnico.

Abalos interessa-se pelas formas de ação coletiva que caracterizam organizações afro-religiosas na Argentina, acompanhando dois grupos radicados na região metropolitana de Buenos Aires. Sua perspectiva parte da diferenciação entre modos mais ou menos tradicionais de ação por parte de movimentos sociais, encontrando diferenças quando compara duas daquelas organizações. A perspectiva permite considerar, para a caracterização de minorias, questões como recurso a tecnologias sócio-digitais, relação com o território e horizontalidade da tomada decisões.

Pires trata das reações, na Itália, à pluralização religiosa, que contou com o surgimento e introdução de diversas minorias, apresentadas em termos conceituais como novos movimentos religiosos. Especificamente, trata do projeto teológico-político empreendido por exorcistas italianos vinculados à Igreja Católica, analisados como parte de uma resistência tridentina às mudanças propostas pelo Vaticano II.

Cordovil empreende uma pesquisa comparativa entre duas associações civis que congregam neopagãos, uma situada no Brasil e outra em Portugal. O texto apresenta as formas pelas quais essas associações atuam no espaço público nos dois países e, por meio de entrevistas, problematiza discursos relativos à sexualidade, feminismo e meio ambiente. Nesse caso, a caracterização de minorias e sua atuação no espaço público articula-se aos temas do gênero e da ecologia.

Em relação à diversidade religiosa, temos trabalhos sobre evangélicos/pentecostais (Panotto, Camurça, Lopes Jr., Rocha, Ceriani), religiões afro-americanas (Campos e Silva, Abalos), indígenas (Campos e Silva, Ceriani), neopagãs (Cordovil) e novos movimentos religiosos (Pires). Considerando esse conjunto de nove artigos, os países cobertos pelas pesquisas são Brasil, Argentina, Portugal, Itália e Estados Unidos. O tema das minorias é explorado ora em seu sentido mais tradicional, de pequeno número frente a uma maioria ou poder estabelecido, ora em sentido qualitativo. Alguns trabalhos enfocam a condição ou identidade de minoria como autoidentificação; outros, de forma negativa, como objeto de discriminação. Por fim, os trabalhos focalizam em localidades, processos de escala nacional ou contextos transnacionais. O conjunto oferece um panorama rico e diversificado resultante de estudos voltados para a compreensão das minorias religiosas em diálogo com um amplo leque de questões e problematizações.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020
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