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Pérola do sofrimento

CAMPOS, Roberta Bivar C. Quando a tristeza é bela: o sofrimento e a constituição do social e da verdade entre os Ave de Jesus – Juazeiro do Norte – CE. Recife: UFPE, 2013. 187. Prefácio de Cecília Mariz, orelha de Otávio Velho. 9788541502412

CAMPOS, Roberta Bivar C. Quando a tristeza é bela: o sofrimento e a constituição do social e da verdade entre os Ave de Jesus – Juazeiro do Norte – CE. Recife: UFPE, 2013, 187pp. Prefácio de Cecília Mariz, orelha de Otávio Velho.

Um dos maiores desafios dos estudos sobre catolicismo, notadamente quando relacionados a manifestações qualificadas de “populares” ou “tradicionais”, mais ainda em países cujo passado colonial implicou numa espécie de representação de conaturalidade entre religião católica, povo, Estado e Nação, está em renovar a pauta de questões. Para tal, é preciso escapar tanto do modismo novidadeiro, quanto das armadilhas tautológicas da doxa em pesquisas “demonstrativas”, em que se apresenta mais do mesmo sob outra roupagem, a fim de ser capaz de produzir uma “pesquisa gerativa”, a partir de articulações criativas, cujo resultado seja conhecimento que gere conhecimento, não apenas sobre o próprio catolicismo, mas sobre o social em geral.

O pequeno grande livro de Roberta Campos pertence a essa última categoria de estudos. Ele tem por base um trabalho de campo sobre os “Ave de Jesus”, ou “Penitentes do Braço Sagrado do Coração de Jesus”, grupo mendicante que habita Juazeiro do Norte, no Ceará, o santuário de padre Cícero no sertão do Cariri, aguardando o (próximo) final dos tempos e exemplificando, com seu modo de vida penitente, a importância da palavra de Deus. O material de campo que serve de base ao trabalho foi produzido para a tese de doutorado da autora, defendida em St. Andrews, Escócia, em 2001, sob a orientação de Joanna Overing e David Riches, ao qual se agregaram, para composição do livro, reflexões e referências bibliográficas posteriores, como também relatos de jovens provenientes de Juazeiro que se tornaram estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde Campos desenvolve importante atividade como professora e pesquisadora.

O objetivo do livro é compreender o modo de vida penitente, sobre o qual há poucos estudos, a partir da particularidade dos Ave de Jesus e, daí, aproximar-se de um universo religioso e simbólico mais amplo. Para isso, retoma o conceito de “cultura bíblica” de Otávio Velho, em O cativeiro da besta-fera (1995), que Carlos Steil, em O Sertão das Romarias (1996), reconfigurara como “cultura bíblico-católica”, e que Campos vai definir como “uma espécie de matriz cultural que funciona como referência para o pensamento e ação; [...] um acervo cultural que constitui um modo de vida, uma socialidade” (Campos 2013:27). Segundo a autora, sua proposta é integrar o conceito de cultura bíblica ao de habitus, de Bourdieu, analisando simbolismo e relações sociais, mas também a constituição do pensamento, de modos de agir, do corpo, das emoções, atingindo o indivíduo na sua dimensão moral e total maussiana (:28).

Campos insere-se, assim, numa cadeia de reflexões antropológicas sobre “catolicismo sertanejo”, inovando-a. Ela nos lembra que os penitentes fazem parte de um largo conjunto, de fronteiras nebulosas, em que estão os beatos, os romeiros, os peregrinos, os tirantes de benditos e outros personagens, e que foi tratado sob as rubricas de milenarismo, messianismo ou profetismo. Sem desconhecer esses trabalhos clássicos, a autora introduz a perspectiva de explorar a forma como o grupo performa seus valores morais no cotidiano, como penitência, caridade, sofrimento, misericórdia, mimetizando e exemplificando os valores que identificam no próprio Cristo, num esforço constante de tornar-se como Ele. É na radicalidade de um modo de vida que busca igualar crença e prática, encarnando a palavra de Deus através do ascetismo, da abstinência sexual, do trabalho manual e da mendicância, que os Ave de Jesus se tornam exemplos vivos de santidade, capazes de converter seu sofrimento em caridade e misericórdia por parte daqueles que lhes doam coisas, fazendo com que o Amor de Deus se realize. Portanto, o sofrimento torna-se belo. E os Ave de Jesus, localizados cultural e espacialmente, qualificados através da apresentação de sua cosmologia, ontologia e valores, tornam-se não apenas representantes de um tipo de catolicismo, o catolicismo sertanejo, mas um grupo socialmente relevante para pensar a teoria social.

É nesse duplo movimento de contextualização etnográfica e articulação com questões mais amplas que Quando a tristeza é bela vai se estruturar em cinco capítulos, com um prefácio bastante esclarecedor de Cecília Mariz. Nos capítulos desdobram-se e aprofundam-se artigos que a pesquisadora publicou nos últimos anos, em que diferentes possibilidades de compreensão dos Ave de Jesus são exercitadas. No capítulo primeiro, “Como tudo começou”, são apresentadas narrativas do surgimento dos Ave de Jesus, as características gerais de seu modo de vida, as formas de ingresso no grupo, suas práticas rituais, suas regras rígidas de comportamento, seu papel de mediação e aconselhamento junto aos romeiros de Juazeiro. A partir desse conjunto de dados, Campos vai problematizar algumas formulações clássicas sobre o milenarismo e o messianismo, lidos tradicionalmente como estratégias de reprodução do grupo social. A autora demonstra que a lógica operante é outra, pois a ascese rigorosa e a abstinência sexual colocam o grupo, de 22 membros, em risco de extinção, com um modo de vida difícil de seguir, que se por um lado se configura como exemplar, por outro, surge como inalcançável para a grande maioria.

Outros pontos importantes, que retornarão ao longo do livro, são trazidos no capítulo, como a Bíblia encarnada na história e geografia local; a estética e a simbologia regional em torno do sol, da seca, de Deus e do sofrimento; ou seja, como a transformação de imagens bíblicas em coisas concretas e seu reverso – a subjetivação da natureza – estão muito presente no universo nordestino.

No capítulo 2, “Carisma e exemplaridade entre os Ave de Jesus: muito além da dominação”, a autora vai retomar as formulações weberianas sobre este conceito para, a partir de seu caso etnográfico, deslocá-lo do lugar da dominação para o domínio da confiança e da verdade (:73). Lembrando que autoridade e autoritarismo não são sinônimos e que, para os Ave de Jesus, o carisma possui um papel ativo na constituição do grupo, Campos defenderá a ideia de um carisma compartilhado ainda que de forma hierarquizada internamente, entre toda a comunidade, seguindo um fluxo do líder para seus seguidores. A articulação entre dor, sofrimento e santidade aparece também como uma das características do carisma em questão.

Já no capítulo 3, “Dominando palavras, dominando o mundo: ou será que Mestre José está fadado ao mesmo destino de Dom Quixote?”, a autora vai trazer discussões sobre a produção da verdade entre os Ave de Jesus e das noções de alteridade implicadas nesse processo, notadamente a partir das modalidades discursivas de Mestre José, que negocia sua verdade com a própria pesquisadora. Se os Ave de Jesus acreditam viver no tempo do Cristo e no lugar onde tudo começou e onde tudo chegará ao fim, onde Maria teve seu filho e o viu ser crucificado, quais as implicações disso para sua percepção de mundo e de verdade? E em que medida mestre José, um grande contador de causos, mesmo antes de ser uma espécie de profeta, pode ser entendido como um Quixote sertanejo? As formulações desse capítulo deixam entrever possibilidades de comparação entre modalidades narrativas que vão do estilo apocalíptico ao estilo do “causo”, passando pelo conto popular, pela literatura de cordel, ou pela literatura armorial, e que fazem parte do repertório da região.

No capítulo 4, “Sofrimento e sacralização do espaço: a produção de uma tradição”, Campos vai retomar a ideia de uma cultura bíblica e procurar entender como uma certa moralidade e religiosidade, que enfatiza o sofrimento e a misericórdia, a pobreza e a caridade, se tornou reconhecida social e coletivamente como uma tradição identitária regional, ou mesmo, retomando referências cinematográficas, como referências identitárias do brasileiro. Nesse capítulo, apesar de retomar ideias presentes em capítulos anteriores, a autora colocará a ênfase na compreensão da religiosidade como identidade cultural. Por outro lado, “entender o significado social e cultural do sofrimento para essa gente é uma importante pista para se chegar ao código moral que fornece a base de um modo de vida construído na pobreza e na caridade” (:135).

Por fim, no capítulo 5, “Tempo de Romaria: milagre e tradição cultural, temporalidades em coexistência”, as questões que articulam cultura, identidade e religião em Juazeiro são colocadas em relação com relatos de jovens estudantes da UFPE provenientes da região, numa espécie de prolongamento do trabalho de campo, a fim de demonstrar que não é apenas o tempo da romaria, ou o tempo bíblico dos Ave de Jesus, que caracteriza a cidade, mas também o tempo da modernidade. Se o processo identitário do lugar se faz por meio de práticas religiosas, que atualizam ritualmente representações e categorias da moralidade tradicional campesina – piedade, caridade, sofrimento, compadecimento, reciprocidade e compartilhamento –, os jovens de Juazeiro manifestam um certo desconforto com essa caracterização. Pois, para eles, “a romaria, que é vivida pelos devotos de Padre Cícero como revelação, pode ser vivida [...] como encampesinamento, como aprisionamento de si a uma identidade campesina” (:158). O dilema a ser enfrentado por eles é que “se definir-se como Juazeiro é redutor, definir-se sem Juazeiro, sem a romaria, é incompleto” (:163). Campos conclui, assim, o capítulo – e o livro – com uma afirmação que poderíamos estender ao fazer antropológico em geral: “as experiências religiosas só podem ser compreendidas antropologicamente na articulação reversa e simétrica entre as categorias do nativo e as do antropólogo” (:168).

Uma última nota diz respeito à estética do livro, cujo título, capa, impressão e fotos remetem a dimensões poéticas. Se de fato poderia ter havido uma revisão editorial mais cuidadosa, isso, no entanto, não chega a obscurecer as qualidades da obra, cuja leitura fica aqui vivamente recomendada, e não apenas aos estudiosos do catolicismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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