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Sobre fronteiras, tramas e emaranhados: questões para uma antropologia (a partir) da religião. Homenagem a Patrícia Birman1 1 Este artigo é uma versão do texto apresentado em 4 de dezembro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Patricia Birman pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

About Borders, Plots, and Entanglements: Questions for an Anthropology of Religion. A Tribute to Patrícia Birman

Resumos

Resumo: Este artigo tem por objetivo registrar uma análise interessada de alguns dos principais trabalhos e temas tratados por Patricia Birman ao longo de sua carreira. O texto dá destaque às suas contribuições para a Antropologia Brasileira, a partir de seus estudos sobre Religião e Periferias Urbanas. Priorizando a operação intelectual de Birman das ideias de fronteiras, tramas e emaranhados, o artigo aborda questões sobre o religioso e o secular; religião e espaço público; territórios, violências e tramas urbanas; e as fronteiras do humano. Este trabalho é uma homenagem na forma de um registro textual acadêmico e afetivo de um diálogo entre Patricia Birman e a autora do texto que foi sua orientanda, e cujo trabalho é marcado por estas questões.

Palavras-chave:
Fronteiras; Religião; Espaço público; Território; Violência


Abstract: This article aims to provide an engaged analysis of some of the main works and themes addressed by Patricia Birman throughout her career. The text highlights her contributions to Brazilian Anthropology, focusing on her studies of Religion and Urban Peripheries. Prioritizing Birman's intellectual operation of the ideas of borders, plots, and entanglements, the article addresses issues regarding the religious and the secular; religion and public space; territories, violence, and urban plots; and the boundaries of the human. This work is a tribute in the form of an academic and affective textual record of a dialogue between Patricia Birman and the author of the text, who was her student, and whose work is marked by these questions.

Keywords:
Borders; Religion, Public Space; Territory; Violence


Eu não me lembro de nenhum momento da minha formação no qual Patricia Birman tenha me dito que eu precisava ler um texto seu. Das tantas coisas que ela me indicou para ler, dos cursos que me sugeriu fazer, dos eventos que me estimulou a participar, eu não me recordo de nenhuma situação na qual essas coisas estivessem relacionadas diretamente a ela. Os textos indicados eram das pessoas que ela admirava; os cursos a fazer, aqueles que eu precisava para minha formação; os eventos, aqueles que eu devia conhecer e nos quais eu encontraria pessoas que poderiam me inspirar.

Como minha formação não acabou até hoje, e sigo com a sorte de caminhar ao lado de Patricia já há mais de 20 anos, esse padrão é uma realidade ainda atualmente: nunca fico sabendo por ela dos textos que acabou de publicar. Quando os leio, e vou comentar sobre as coisas que gostei, frequentemente escuto o quanto o texto poderia ter ficado melhor, e ouço detalhes da parte que ela queria ter desenvolvido mais. Quando elogio um ponto específico, e dou sorte, vejo um sorrisinho aparecer no rosto, seguido pelo comentário: “ah, essa parte ficou legal, né?”.

Poucos dias depois de receber o convite para escrever esse texto, recebi também um telefonema de Patricia, dizendo: “Que legal que você aceitou escrever esse capítulo! Vai ser ótimo você poder falar sobre o seu trabalho”. Sobre o meu trabalho? Como assim? Rindo com ela, eu “lembrei” à Patricia que esse capítulo era uma comemoração de sua trajetória intelectual. Ela me respondeu que “não fazia sentido nenhum” eu escrever sobre o que ela havia escrito. E reafirmou dizendo firmemente ao telefone que ela mesmo tinha feito isso, ao escrever seus próprios textos. Sob seu ponto de vista, ela argumentou, a partir da minha posição de pesquisadora e autora, eu deveria escrever sobre o meu próprio trabalho.

Tentando encontrar um desvio possível para tornar este projeto viável, negociei com Patricia nos seguintes termos: “mas, o meu trabalho tem muito a ver com o seu, certo?”. Finalmente, consegui que ela concordasse, sem muita convicção, me dizendo que eu então poderia comentar “uma coisa ou outra” sobre isso: sobre nossas conversas, nossos diálogos, nossas trocas. “Aí tudo bem, mas não se preocupe muito com essa parte”, insistiu Patricia.

Privilégio meu o fato de que essa parte das nossas conversas, nossos diálogos e nossas trocas é uma dimensão fundamental da antropologia que eu faço. Ou, melhor dizendo, da antropologia que nós fazemos, lado a lado, desde que enviei um e-mail com meu projeto de doutorado para Patricia analisar se aceitava me orientar no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ), em 2002.

Seguindo mais uma vez sua orientação, proponho desenvolver este capítulo como o registro de nosso diálogo formativo. Agora que começo a preparar o texto, percebo que essa ideia de escrever a partir de uma relação faz muito sentido. A antropologia que Patricia produz e habita é uma antropologia centrada nas relações, nas passagens, nas fronteiras. Uma antropologia que não se conforma com a proposta sedutora e totalizante das grandes categorias, muito menos quando isso significa encapsular seu próprio trabalho em um invólucro de coesão e coerência.

No primeiro capítulo de seu livro Fazer estilo, criando gêneros (Birman 1995BIRMAN, Patricia. (1995), Fazer estilo criando gêneros: estudo sobre a construção religiosa da possessão e da diferença em terreiros de Umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: EdUERJ.), resultado de sua tese de doutorado defendida em 1988 - mais um daqueles trabalhos que ela não me indicou a leitura, e que encontrei por acaso em uma livraria na UERJ - Patricia já deixava muito claro seu projeto antropológico. Primeiramente, porque ao pensar a questão de gênero nos cultos de possessão, Birman formulou um debate contestando uma certa concepção vigente de que haveria modelos específicos que caracterizariam a relação entre “homossexuais” e “cultos de possessão” em particular, ou seja, uma ideia de que haveria uma “coerência” própria para essa relação na umbanda e outra (diferente) no candomblé. Para formular melhor suas questões, nesse primeiro capítulo intitulado “Formas de ser plural”, Birman apresentou as perguntas que serviam de base para sua visão sobre os estudos de religião e gênero (em particular) e sobre a antropologia (no geral). Ela propôs:

Será que devemos pensar essa diferença como uma especificidade de cada um dos cultos, sem considerar qualquer inter-relação entre eles? Estamos afinal lidando com “religiões” autônomas, cada qual com sua “visão de mundo”, ritos e mitos, ou estamos nos referindo a um universo de cultos inter-relacionados e subordinados a uma mesma lógica associada à possessão? Qual a natureza dessas diferenças? (Birman 1995BIRMAN, Patricia. (1995), Fazer estilo criando gêneros: estudo sobre a construção religiosa da possessão e da diferença em terreiros de Umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: EdUERJ.:13).

A antropologia da qual Patricia gosta de participar, e aquela que ela constrói, se faz a partir do contínuo processo de se pensar sobre a produção das diferenças, e não pautada na perigosa agenda culturalista de “descoberta” da diferença e sua reificação. Nesse sentido, marcada pelas dimensões de tempo e espaço, por processos e deslocamentos, a antropologia que recebe seu investimento intelectual tem em seu centro as relações entre pessoas, pessoas e lugares, mudanças sociais e culturais, o que significa que seu fundamento é o fazer etnográfico, as relações compartilhadas no campo, e o conhecimento nelas e a partir delas produzido.

Outro aspecto relacional fundamental da antropologia vivenciada por Patricia é o processo de formação por ela compartilhado na sala de aula e nas experiências de orientação. Como no centro de seu interesse está o fazer antropológico, e não uma antropologia específica, Patricia sempre dá cursos e orienta trabalhos sobre temáticas muito variadas. Esses encontros com as pessoas que ano após ano se relacionam com ela, em sala de aula ou no processo de orientação, são sempre encontros nos quais existem coisas sobre as quais ela sabe, e outras coisas sobre as quais a outra pessoa sabe mais do que ela. E essa dinâmica é absolutamente inspiradora.

É a partir dessa relação orientadora-aluna, devidamente trabalhada pelo tempo, que nos tornou hoje companheiras de trabalho e amigas, que vou desenvolver esta reflexão sobre o fazer antropológico.

Fronteiras do religioso

A própria categoria religião se coloca como um tema crucial em uma antropologia que se dedica a esee campo de estudos. Definir, delimitar, diferenciar e compreender o religioso são questões desafiadoras. No entanto, para além da busca por uma definição e uma delimitação do que seja “a religião”, é possível produzir conhecimento a partir da relação das pessoas com diferentes coisas, sejam estas do campo material, afetivo, ritual, entre outros, e procurar acompanhar como a “questão do religioso” é tratada e vivida no âmbito dessas relações pelos próprios atores que as protagonizam. Essa abordagem tenta afastar-se das perguntas mais institucionais e circunscritas ao que se define a priori como religioso, buscando acompanhar as relações.

Minha tese de doutorado foi formulada inicialmente a partir da questão colocada pela relação entre religião, ciência e tecnologia, um tema muito geral, a princípio, mas que já me levava a pensar sobre a própria categoria “religião” diante de seu arqui-inimigo moderno, a ciência. Esse tema, excessivamente genérico, precisava, então, ser incorporado, ganhar um lugar no mundo, uma vida social. Foi assim que, durante nossos diálogos de orientação, chegamos ao Movimento Raeliano: um novo movimento religioso dos anos 70, de origem francesa, que se apresentava ao mundo naquela época - início dos anos 2000 - desafiando os limites do humano, da ciência e da religião, ao afirmar ter realizado a clonagem de um ser humano. No centro do debate estava a questão da criação da vida humana, um tema que, por definição, resiste a esferas e domínios particulares.

Importa, aqui, analisar mais cuidadosamente como chegamos a este tema na época. No final dos anos 90 e início dos anos 2000, Patricia dedicava-se ao tema das “seitas” na França. Seu artigo de 1999, intitulado “Entre França e Brasil: viagens antropológicas num campo (religioso) minado”, tratava das especificidades nacionais das questões em torno da relação entre religião e seita, ao acompanhar o caso das acusações feitas no espaço público francês a um templo umbandista em Paris (Cf. Birman 1999BIRMAN, Patricia. (1999), “Entre França e Brasil: viagens antropológicas num campo (religioso) minado”. Horizontes Antropológicos, vol. 5, nº 10: 35-60. ). O tema despertava sensibilidades muito diferentes na sociedade francesa e brasileira. Na França, “seitas” representavam ameaças nacionais; no Brasil, a categoria pouco circulava no espaço público, e sua carga de perigo era mínima ou quase nula. A partir desta questão, Birman analisou a dimensão política da produção das categorias religião e seita, em sua articulação com projetos de nação, e as moralidades que os sustentam. No centro dos debates conduzidos por Birman não estava o estudo de uma “seita” específica, mas o debate público sobre como um grupo é definido como seita em diferentes contextos nacionais, ou seja, como se produz a diferença, a alteridade, e em que termos.

Em sua análise das questões específicas das denúncias contra esse templo umbandista em Paris, Birman retoma o tema da possessão (Cf. Birman 1995BIRMAN, Patricia. (1995), Fazer estilo criando gêneros: estudo sobre a construção religiosa da possessão e da diferença em terreiros de Umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: EdUERJ.), agora em outro terreno e contexto. As acusações ao templo umbandista giravam em torno dos temas da incorporação, do xamanismo, das práticas terapêuticas com perfil “étnico”, e de acusações de “manipulação mental”. Nestes termos, a possessão ganhava novos contornos analíticos. No cerne deste artigo destaca-se o aspecto dinâmico e fluido das (in)definições das categorias, e como estas se fazem a partir de relações sociais, culturais, históricas e de poder. O texto demonstra como as ideias de religião, seita, terapia, tratamento ou perigo alteram-se radicalmente quando transitam por fronteiras simbólicas nacionais de França e Brasil, seja no campo da política, seja no campo das subjetividades.

Quando comecei a falar com Patricia sobre meu interesse no debate religião e tecnologia, e nas questões pertinentes aos imaginários tecno-religiosos que floresciam no início dos anos 2000 em diferentes lugares do mundo, Patricia sugeriu-me conhecer o movimento Raeliano. O grupo figurava no topo da lista das seitas mais perigosas da França à época de sua pesquisa. Seu líder, Raël, inclusive, já não mais vivia em território francês.

Acompanhando as questões colocadas nas pesquisas de Patrícia, o meu trabalho também não foi um estudo sobre o perfil peculiar de uma seita, seguindo o modelo das pesquisas sobre novos movimentos religiosos, tal como desenvolvido naquele momento nos EUA e na Europa. A pesquisa para a tese foi uma experiência etnográfica transnacional, no sentido sul-norte, e nela tive a possibilidade de aprender como trabalhar antropologicamente com diferentes frentes analíticas possíveis. Enquanto Patricia Birman (2005BIRMAN, Patricia. (2005), “Fronteiras espirituais e fronteiras nacionais: o combate às seitas na França”. Mana, vol. 11, nº 1: 7-39.) abordava o debate sobre fronteiras espirituais e nacionais, meu trabalho explorou primordialmente outras fronteiras: os imaginários tecno-religiosos que abarcavam livros e filmes de ficção científica; os projetos de futuro de cientistas da computação e da neurociência; o clássico debate sobre a criação da vida humana e o sonho da vida eterna em termos mágicos, religiosos e científicos (Cf. Machado 2006MACHADO, Carly. (2006), Imagine se tudo isso for verdade: O movimento Raeliano entre verdades, ficções e religiões da modernidade. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Ciências Sociais, UERJ.).

Na interface de nossas pesquisas naquela época, analisei conflitos centrais ao contexto europeu. Na vida das pessoas envolvidas com o Movimento Raeliano, que conheci em diversos países da Europa,2 2 Minha pesquisa de campo desenvolveu-se de maneira transnacional. Estive em atividades de grupos do Movimento Raeliano na Bélgica, na Holanda e na Inglaterra, e participei do Seminário Continental Europeu de 2005, que reunia pessoas do Movimento de diversos países. proliferavam dilemas em torno de suas relações com suas famílias e com seus países de residência, desafios para o exercício do que entendiam como sua “liberdade religiosa”, questões acerca dos modelos morais que queriam adotar em suas vidas privadas, acusações de “manipulação mental” por parte de seus parentes, além de conflitos específicos vividos por aqueles que decidiram sair do Movimento, e mesmo denunciá-lo. Um olhar orientado por Patricia sobre meu campo inclinava meu trabalho para um debate sobre política, poder, conflitos, Estado e nação.

Na análise de Birman, pensar sobre as dinâmicas do religioso a partir do tema das seitas na França não implicava um debate sobre o “campo religioso francês” (suas instituições, seus ritos, seus fiéis, seus conflitos), mas sim uma reflexão sobre “fronteiras espirituais e nacionais” (como no título de seu artigo de 2005, supracitado). Ao especificar as questões que fundamentam sua análise da Association pour la Défense de la Famille et de l’Individu (ADFI), explica:

Escolhemos compreender a emergência desse movimento social como parte de conflitos identitários e políticos envolvendo famílias e suas relações com o Estado em lugar de interrogá-lo privilegiando fundamentalmente as questões relativas ao campo religioso na sociedade francesa. Partimos da premissa, que tentaremos validar ao longo da nossa exposição, de que dificilmente os eventos político-religiosos associados a estas narrativas sobre o perigo das seitas poderão ser compreendidos se nos limitarmos às discussões acerca dos conflitos e diferenças entre igrejas e seitas e/ou os limites variáveis da secularização e da laicidade francesas. Ao privilegiar a associação entre família, homogeneidade cultural e integridade da nação, de um lado, e irracionalidade e seitas estrangeiras, de outro, os movimentos contra as seitas na França construíram o perigo das seitas como uma ameaça aos fundamentos da nação, sob a guarda da instituição familiar (Birman 2005BIRMAN, Patricia. (2005), “Fronteiras espirituais e fronteiras nacionais: o combate às seitas na França”. Mana, vol. 11, nº 1: 7-39.:9).

A categoria da religião opera assim como uma fronteira analítica para se pensar a vida social e política, e não como um fim em si mesmo. Na antropologia (a partir) da religião realizada por Patricia Birman, o campo religioso é sempre o terreno onde são construídas as questões sobre o que se classifica como religioso, e o que essa classificação produz a partir de suas fronteiras. As pesquisas sobre religião constituem, nesse sentido, vias de acesso privilegiadas para estudos sobre a formação de subjetividades territorialmente situadas, e seus agenciamentos sociais, culturais e políticos na tessitura da vida cotidiana.

Religião e espaço público: outras fronteiras

Queremos aqui explorar o religioso como um aspecto, um componente importante, ou mesmo fundamental de vários processos sociais e políticos que ocorrem hoje em nosso país. Com esta perspectiva, o livro orienta o olhar sobre fenômenos religiosos dando uma especial importância aos espaços públicos onde muitas coisas “religiosas” acontecem. A nossa ambição neste livro não se esgota no estudo dos religiosos, ou das religiões nelas próprias, mas no diálogo, na dinâmica e nos confrontos em que temas, procedimentos e identidades considerados como tais se integram na configuração tanto do que se designa como “religião” na sociedade quanto do espaço público em que estas dinâmicas acontecem (Birman 2003BIRMAN, Patricia (org). (2003), Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial, CNPq PRONEX.:11).

A presente citação foi retirada da coletânea Religião e Espaço Público, organizada por Patricia Birman em 2003BIRMAN, Patricia (org). (2003), Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial, CNPq PRONEX.. Esse livro resultou de um Colóquio de mesmo título organizado por cientistas sociais da UERJ, com a participação do núcleo Movimentos Religiosos no Mundo Contemporâneo do Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex/CNPq).

Esse parágrafo introdutório evidencia alguns aspectos centrais de uma rica e densa agenda de pesquisa sistematizada na coletânea: um olhar sobre os fenômenos religiosos, dando uma especial atenção aos espaços públicos onde muitas coisas “religiosas” acontecem. As aspas no “religioso” indicam que sua definição não é dada a priori, e que o resultado deste olhar atento aos espaços públicos tem potencial de incidir sobre a própria categoria “religião”, ela mesma sendo produzida nessas relações. Este horizonte de questões, no contexto específico do livro, apontava para reflexões sobre as “conjugações” entre o religioso, o cultural, o turístico, o político e o econômico, com artigos elaborados por Regina Novaes, Márcia Leite, Véronique Boyer, Rosane Prado, Clara Mafra, Roger Sansi, Emerson Giumbelli, Sandra Carneiro, Cecília Mariz, Maria das Dores Machado, Ari Oro, Carlos Steil, dentre outros, com posfácio de Marc Piault. Dentre as temáticas discutidas, o Movimento Popular de Favelas, o Rap, os Baniwa evangélicos, o “chute da santa”, os livros de Paulo Coelho, a Vinde TV, a Igreja Universal do Reino de Deus, Evangélicos e Política no Rio de Janeiro, e outros tantos assuntos que despontavam como situações críticas potentes para um debate devidamente situado sobre religião e espaço público no início dos anos 2000.

No posfácio de Piault, encontramos ainda um tratamento cuidadoso da dimensão metodológica de pesquisas que ali intentavam construir seus objetos no “espaço público”, com uma reflexão sobre a ideia de “situação antropológica”. Diante de dois problemas para uma antropologia contemporânea - tanto a ideia de “objeto” quanto de “espaço público” - Piault sugere um tratamento antropológico da situação, “situação antropológica” - pensada por ele como “um conjunto movente de relações entre o antropólogo - submetido a suas próprias determinações culturais e sociais - e o meio no qual ele efetua a sua pesquisa e que reage ao mesmo tempo diretamente sobre ele e a propósito dele”. E continua Piault: “É preciso acrescentar que a situação antropológica não é estável e permanece em princípio inacabada na medida em que ela implica as modalidades de recepção da pesquisa, tanto no exterior quanto no interior do meio concernido” (Piault em Birman 2003BIRMAN, Patricia (org). (2003), Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial, CNPq PRONEX.:366-367).

O artigo de Patricia nesse livro aborda a relação entre os evangélicos e a mídia, no contexto de sua pesquisa sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Neste texto do início dos anos 2000, a autora dá ênfase analítica à produção imagética da IURD, destacando que “a sua mídia participa da elaboração de um imenso repertório de imagens rituais e cerimônias político-religiosas que oferece ao seu público fiel novos lugares sociais de existência e também novas formas de integração num espaço transnacional” (Birman 2003BIRMAN, Patricia (org). (2003), Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial, CNPq PRONEX.:241).

Esse recorte da relação entre religião e mídia foi explorado por Birman como um ângulo produtivo para se pensar o grande tema da relação entre religião e espaço público. Este seu trabalho sobre a IURD somou-se à época a um campo pioneiro de pesquisa, articulado internacionalmente em torno do tema Religião, Mídia e Espaço Público.3 3 No contexto deste diálogo, fiz meu estágio de doutorado no âmbito do projeto de pesquisa Pionner Project in Mass Media and the Imagination of Religious Communities (Bolsa CAPES - Doutorado Sanduíche, 2005), sob a supervisão de Birgit Meyer, da Universidade de Amsterdam. Em um livro de 2006 editado por Meyer e Moors, intitulado Religion, Media, and the Public Sphere, Birman discute como a IURD trabalhou para integrar a mídia religiosa e secular em seus rituais e atividades simbólicas, dentro e fora da igreja. Explorar os recursos midiáticos, afirma Birman, parecia ser um aspecto central para as atividades religiosas da igreja, incluindo o exorcismo. A partir dessa análise, Birman indicou que a mídia operava no âmbito da IURD como um elemento central da transformação simbólica de seus seguidores: de uma condição de indivíduos pobres, para a de participantes de um estoque de capital social e religioso que lhes atribuiu meios efetivos para a mobilização de uma demanda de reconhecimento e de direitos na sociedade (Birman 2006:53BIRMAN, Patricia. (2006), “Future in the mirror: media, evangelicals, and politics in Rio de Janeiro”. In: B. Meyer & A. Moors (ed.). Religion, Media and the Public Sphere. Indiana University Press.).

Esse olhar sobre a relação entre religião e mídia foi o terreno de encontro de nossos interesses, resultando no artigo “A violência dos justos: evangélicos, mídias e periferias das metrópoles” (Birman & Machado 2012BIRMAN, Patricia & MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27: 55-69.). Neste trabalho, discutimos a relação entre pentecostalismo e violência nas periferias do Rio de Janeiro, tomando como foco uma igreja situada na Baixada Fluminense, conhecida à época como uma igreja de “ex-bandidos”. Em conjunto, argumentamos que

A relação do pentecostalismo com as mais diversas mídias e tecnologias chama atenção no campo de pesquisa dos estudos da religião, mas é, em geral, tomada como um dado acessório na descrição etnográfica. O caso específico que pretendemos analisar neste artigo implica uma reflexão sobre a mídia, especificamente os vídeos produzidos por esta comunidade religiosa da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, não como via de exibição de suas práticas, mas como canal santificado de transmissão de seus projetos e de sua missão (Birman & Machado 2012BIRMAN, Patricia & MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27: 55-69.:56).

Esses vídeos traziam cenas da presença da igreja e do pastor em diferentes territórios: favelas, prisões, bailes funk, delegacias, ruas, formulando uma cartografia do alcance interessado e insistente do poder de Deus, que se movia incansavelmente em terrenos urbanos por meio dos missionários da igreja. Além disso, nos vídeos, era possível acompanhar o desenrolar do tempo: o passado no pecado e à beira da morte contrastava com o presente redimido e seguro na comunidade de irmãos.

Além da fronteira produtiva da relação entre religião e mídia, este trabalho mobilizava “outras fronteiras” que já no início dos anos 2000 configuravam um aspecto central dos interesses de pesquisa de Birman, e que merecem um tratamento mais cuidadoso, e destacado: as fronteiras urbanas.

Territórios, violências e fronteiras urbanas

Em 2004, Patricia Birman e Marcia Leite organizaram um livro intitulado Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz.4 4 Esse trabalho foi realizado no âmbito da pesquisa Mural da Dor: Movimentos Sociais, Religião e Política no Rio de Janeiro, desenvolvida por Marcia Leite e Patricia Birman juntamente com Regina Novaes e Ludmila da Silva Catela no âmbito do Núcleo de Religião e Política do Pronex - Movimentos Religiosos no Mundo Contemporâneo, com a colaboração de diversos pesquisadores. A apresentação do livro é clara: esse trabalho foi resultado do impacto causado pelos testemunhos de vítimas de violência no Rio de Janeiro, a partir de uma cena específica, o Mural da Dor, espaço no Largo da Carioca, no centro do Rio, onde dezenas de pessoas “num burburinho contínuo [...] afixavam fotografias, olhavam, comentavam, protestavam, desenhavam e elaboravam cartazes onde expunham os seus casos como vítimas da violência” (Birman & Leite 2004:9).

O livro Um mural para a dor apresentava premissas fundamentais que caracterizavam a abordagem do coletivo de pesquisadores que compartilhavam suas reflexões sobre o tema da violência. Estas premissas eram 1) a primazia da vítima, entendida em um sentido amplo que incluía não só aqueles atingidos diretamente pela violência, mas também seus familiares; 2) os efeitos extensivos e absolutamente diversos e desiguais de uma ideia vaga de “violência urbana”; e 3) a centralidade do tema da morte e do sofrimento, não só enquanto acontecimentos situados no tempo e no espaço, mas prolongados e produtores de tempos e espaços. Destacam-se assim os processos de reparação e de justiça e, a partir destes, a produção do intolerável. Nas palavras das autoras, “A falta de reparação e o apagamento deliberado dos traços que permitem reconstituir os acontecimentos que levaram a certas mortes ofendem profundamente as pessoas e, por vezes, transforma a vida em algo difícil de continuar” (Birman & Leite 2004BIRMAN, Patricia & LEITE, Marcia (org.). (2004), Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, CNPq PRONEX.:11).

Nessa coletânea, Patricia Birman assina o capítulo “Movimentos cívico-religiosos no Rio de Janeiro e alguns de seus impasses: o caso do Mural da Dor”. Nele, a autora desenvolve uma reflexão sobre a formação de um campo de ação crítica diante do problema da violência na cidade, movido pela articulação entre religião e política. Em sua análise, ressaltam-se mediadores de vários tipos: instituições, movimentos, intelectuais, religiosos e categorias. Dentre estas, destaca-se o olhar atento às ideias de paz, amor, solidariedade, espiritualidade, assistencialismo, projeto, caridade e direitos. Birman concentra sua análise em alguns eventos agregadores, como cerimônias públicas nas quais estes mediadores se apresentam em ação. O ato “Basta! Eu quero paz”, organizado pelo Viva Rio em 2000, é trabalhado pela autora de modo a evidenciar os esforços ali mobilizados, suas ambiguidades e contradições. Partindo assim de uma genealogia de um certo processo de formulação pública de enfrentamento da violência a partir da articulação de movimentos sociais e religiosos, Birman chega ao “Mural da Dor”, marcado pela radicalidade dos testemunhos de sofrimento ali vocalizados em carne viva, oferecendo não apenas uma discussão deste evento específico, mas um olhar crítico sobre um processo mais amplo. Birman denomina esse processo em alguns momentos como o “campo da paz”, e seu trabalho configura um esforço minucioso para refletir sobre suas ações e impasses. Dentre estes impasses, a autora já apontava para o limite do alcance de algumas dessas iniciativas mais tradicionais na sua relação com “territórios periféricos”:

A indiferenciação política (como uma exigência quase que inteiramente naturalizada) de um projeto de paz (assumido pelas camadas médias) cujo preço é a exclusão dos direitos básicos a serem reconhecidos às populações civis, em tempo “de guerra”, viabiliza um descompromisso quase generalizado quanto às práticas de extermínio e também uma cegueira seletiva relativa à cumplicidade do Estado diante da corrupção das forças policiais. Embora eventualmente execradas, essas práticas nunca foram de fato excluídas do horizonte político daqueles que nos governam e de muitos que os elegem. Estes subordinam de forma cada vez mais explícita o respeito aos “direitos humanos” às exigências de segurança do “lado bom” da cidade [...]. As tentativas de unificação da cidade contra a violência, na medida em que não explicita o seu campo de alianças, se transforma num esforço quase inútil para derrotar os arautos de uma segurança a qualquer preço (Birman 2004BIRMAN, Patricia & LEITE, Marcia (org.). (2004), Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, CNPq PRONEX.:285).

A disposição de Birman para tratar criticamente deste impasse crucial presente nas formas de articulação entre religião e política na abordagem do tema da violência confirmou-se em seu investimento na temática das periferias e margens. Seu artigo de 2009, intitulado “Feitiçarias, territórios e resistências marginais” é, a meu ver, um trabalho precioso de apresentação de uma formulação teórica e metodológica que radicaliza as possibilidades analíticas pautadas em uma antropologia das fronteiras, dedicada aos territórios e às populações das periferias urbanas.

No momento em que o crescimento do pentecostalismo nas periferias urbanas do Rio já começava a ser notado, Birman dedicou um olhar atento às camadas do vivido que rasgavam o cotidiano das pessoas em situação, enfrentando conflitos violentos e dilemas éticos de forma densa, através da mobilização de ideias, valores e sentimentos, de modos intensamente variáveis e, portanto, impossíveis de serem capturados pelas categorias duras de separação das esferas da vida e dos pertencimentos religiosos. Partindo da pergunta “O que está acontecendo com o emprego da feitiçaria nestes tempos pentecostais?”, Birman escapa de uma análise plana da transformação de um campo religioso em outro, e investe na análise etnográfica situada não no “problema da religião em transformação”, mas nos problemas que as pessoas apresentam como centrais em suas vidas. No caso específico, o problema era a violência, e como as religiões (nas pessoas, nas relações e nos territórios) fazem parte do manejo desses problemas de vida e morte nas periferias urbanas.

Patricia traz então o caso de Alice e a piscadela de Exu. Moradora de uma favela carioca, vinculada ao Candomblé, Alice convivia com a transformação na vida religiosa de suas vizinhas, antigas frequentadoras de casas de culto afro-brasileiro, que passaram a fazer parte das igrejas pentecostais locais e a “testemunhar” o que estas podiam oferecer para suas vidas. Enquanto os filhos de suas amigas galgavam espaços de prestígio na igreja e na favela, a filha de Alice namorava o filho de um pai de santo que, na época, encarava a decadência de seu prestígio moral e religioso. O rapaz era, ainda, envolvido com o tráfico.

Alice e a filha enfrentavam, nesse contexto, um cotidiano tenso e turbulento. Habitavam as fronteiras do “mal”, entre o crime e a religião. Mas a narrativa de Alice sobre o abandono do Candomblé traz um conjunto de elementos complexos cuidadosamente analisados por Birman em seu texto. Um dia, ao voltar do trabalho, Alice encontrou um arsenal de armas em sua casa, escondidas ali pelo namorado da filha. Indignada, ela gritou com o rapaz e o expulsou de casa. O namoro, no entanto, continuou mesmo assim, e a raiva de Alice foi crescendo. Um dia ela proferiu em voz alta, na rua, um pedido de vingança que se realizaria através da interferência do seu Exu: “Seu pedido a Exu era nada menos que ele providenciasse o desaparecimento do jovem da vida da sua filha”. A continuação do relato é contada por Patricia:

Infelizmente, pouco tempo depois, a favela é invadida pela facção rival do tráfico e o jovem morre no tiroteio, nos braços de sua filha que, por pouco, não é atingida. Alice escuta os tiros, sai para a rua e cruza com o assassino com a arma na mão, que desce a ladeira onde mora, deixando atrás de si o corpo do seu inimigo no chão. O assassino, destaca, que não era dali, ao passar por ela faz um gesto de cumplicidade, pisca os olhos e se deixa identificar por Alice como o “seu” Exu, aquele mesmo a quem ela pedira vingança e com quem tinha uma relação privilegiada no candomblé. Não bastasse isto, este jovem vira o novo “dono do morro” e passa a namorar a sua filha, oferecendo-lhe todas as riquezas que o tráfico pode comprar. Ela, sabendo que o novo dono do morro é o “seu” Exu “incorporado” em um jovem traficante, não pode sequer protestar. Finalmente, é a vez de a polícia invadir o morro. O jovem tenta fugir, mas é crivado de balas e cai. O seu corpo tomba num despenhadeiro, chocando-se com uma grade de ferro que o perfura e o mata. Ela o viu morrer. Nesta hora, ele ainda teve fôlego de se apresentar por um segundo, sob a imagem tradicional do Exu, vestido de Zé Pilintra, tal como ela o reconhecia nas festas do candomblé (Birman 2009:328).

Alice percebeu seu apelo à entidade como a causa da morte dos jovens. Sentiu-se responsável pelos acontecimentos trágicos. Como explica Birman:

O Exu de Alice, como vemos, adquiriu um perfil que se assemelha àquele atribuído às entidades afro-brasileiras: mostrou-se sob uma face demoníaca, comprometida com o Mal e responsável por crimes executados por traficantes e polícia, disseminando o terror e a morte (Birman 2009:328).

Por ter relacionado as mortes ao seu Exu, Alice percebeu-se como uma agência maléfica onde morava, por englobar a ação das entidades afro-brasileiras. Para ela,

Ganhar autonomia em relação a estas entidades, libertar-se delas, como dizem os membros da Igreja Universal do Reino de Deus, passou a ser necessário não somente para defender a sua imagem mas, sobretudo, por discordar do comportamento do Exu (Birman 2009:28).

Alice passou a se entender, então, como “sem religião”, já que saiu do candomblé, mas, apesar de eventualmente frequentar igrejas evangélicas, não se converteu.

A análise de Birman sobre a trama do religioso e da violência na situação vivida por Alice não mobiliza criticamente apenas a sobreposição tensa de elementos de campos religiosos diferentes. A autora desdobra uma discussão sobre as formulações acerca do mal, do perigo, da violência e da morte também a partir dos protagonistas do campo da violência: traficantes, policiais e o Estado. Tratadas em situação, as entidades religiosas participam da vida social respondendo com violência no interior de um mundo profundamente antagônico, conflituoso, e, como tal, articulado através da força física:

Alice não contou a sua história como uma mudança que tenha ocorrido na sua forma de perceber as coisas, mas como uma mudança na sua relação real com a sua entidade, que se transformou no interior das relações violentas existentes na favela (Birman 2009:330).

O caso de Alice não é o único analisado no texto. Há outros igualmente ricos e densamente trabalhados. Através destas situações, Birman elabora, a meu ver, não apenas um argumento, mas uma proposta analítica para as pesquisas sobre religião, política e violência nas periferias urbanas. Nas palavras dela:

Busquei ampliar a sua compreensão mostrando que a força dos enunciados de feitiçaria neste quadro encontra-se ligada também a processos de diabolização, relacionados à criminalização de certas figuras sociais e de territórios situados nas margens. Sugeri que as identificações promovidas pelo Estado favorecem o universalismo pentecostal e seus chamados à transcendência e à ruptura com os enraizamentos religiosos locais. Como resultado, indico a mutação religiosa e política que se passa no interior desses territórios nos quais cresce a palavra evangélica e o seu horizonte político, que os orientaria a se tornarem os futuros responsáveis pela reconfiguração moral de tais territórios (Birman, 2009:339).

Emaranhados e tramas urbanas

Haverá um lugar, ou lugares, claramente delimitados em suas fronteiras, que podemos designar como “periféricos”? Bem sabemos que não. No entanto, esta coletânea busca responder ao desafio de tratar de “periferias”, considerado os lugares construídos como periféricos, mas sem buscar fixá-los a priori (por meio de atributos sociais, pelo estatuto de seus habitantes ou outros exames que desconsideram as formas variadas de inserção nesses espaços). Desse modo, ao empregar esse termo, houve um empenho dos organizadores de abrir ao máximo o campo de análises, buscando abranger um grande leque de questões - interligadas, porém não redutíveis entre si - em torno das quais a noção de periferia “circula”. (Birman 2013:7).

Os trabalhos de Patricia a partir das periferias urbanas fizeram com que ela sistematizasse diferentes reflexões e organizasse algumas sínteses dos diálogos que vem travando ao longo deste processo. Mas suas contribuições sempre trazem destaques às perguntas que devem ser formuladas no fazer antropológico, mais do que às respostas encontradas. A citação que abre esta seção é parte da apresentação do livro Sobre periferias: novos conflitos do Brasil contemporâneo, organizado por Neiva Vieira da Cunha e Gabriel Feltran e publicado em 2013CUNHA, Neiva Vieira da & FELTRAN, Gabriel (org.). (2013), Sobre periferias: novos conflitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, FAPERJ.. É uma coletânea de textos apresentados no Grupo de Trabalho (GT) Sobre periferias: novos conflitos no espaço público, sob coordenação dos editores do livro, como parte das atividades dos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) dos anos 2010 e 2011.

No âmbito desse GT, posteriormente coordenado por Patricia Birman ao lado de Cibele Rizek, as perguntas sobre o religioso a partir do tema da periferias passaram a atingir diferentes campos de pesquisa e gradativamente se estabeleceram como parte de um conjunto já consolidado de temáticas que mobilizavam esses diálogos, tais como as questões sobre o mundo do trabalho, a informalidade, a habitação, os projetos de mobilidade social, as políticas públicas, as lutas por direitos, bem como o crime, os ilegalismos e a marginalidade (Cunha & Feltran 2013CUNHA, Neiva Vieira da & FELTRAN, Gabriel (org.). (2013), Sobre periferias: novos conflitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, FAPERJ.:9). De todo modo, destaca-se aqui um esforço em manter a categoria “periferia” como uma questão em vez de uma resposta, pois há o risco de sua reificação se tornar equivocadamente uma “substância” que qualifica a especificidade dos processos pesquisados. Pensar a partir da questão da periferia implica abrir um registro analítico que tem como principal efeito produtivo a presunção da incerteza e do provisório como condições da pesquisa e, nesse sentido, carrega uma convocação à etnografia.

Uma perspectiva importante das pesquisas sobre periferias, ou a partir das periferias, reside no fato de que, ao focar nas pessoas em seus territórios, as fronteiras temáticas perdem centralidade, dando lugar a um intenso esforço intelectual de mobilização pelos pesquisadores dos campos de estudos relevantes às exigências de seu material de pesquisa. Foi respondendo às questões formuladas por Machado da Silva para o livro Vida Sob Cerco, de 2008SILVA, Luiz Antonio Machado (org.). (2008), Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira ., que Patricia elaborou um desses valiosos esforços.

No conjunto desse livro, centrado no debate sobre as favelas no Rio de Janeiro, reúnem-se debates metodológicos e reflexões sobre os temas sensíveis dessa agenda de trabalho. Destacam-se, nesse sentido, o capítulo de Machado da Silva, intitulado “Violência urbana, sociabilidade violenta e agenda pública”, e seu texto com Marcia Leite “Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas?”5 5 Demais autores presentes no livro: Luis Carlos Fridman, Jussara Freire, Juliana Farias, Lia de Mattos Rocha, Wânia Amélia Belchior Mesquita e Pedro Paulo de Oliveira. .

O capítulo de Patricia, “Favela é Comunidade?”, é um exercício analítico dedicado a pensar as filigranas da relação entre as ideias de favela e comunidade, de modo a esmiuçar os vários sentidos que atravessam as operações de articulação entre esses dois campos tão amplos de significados. Para realizar esse trabalho, Birman mobilizou algumas outras díades analiticamente produtivas como “cidadão” e “população”, e retomou o debate que sempre lhe é caro sobre as formas de classificação e seus efeitos políticos na formulação de “técnicas governamentais”, aplicadas sempre a populações, e nunca a cidadãos. Distanciando-se de qualquer tentativa de responder à pergunta “Favela é Comunidade?” por uma abordagem culturalista ou pela perspectiva das identidades, Birman apresenta sua pergunta central, que trata das políticas de identificação e seus efeitos:

Do meu ponto de vista, como estou tentando deixar claro, o mais importante aqui não é dizer que tal ou qual especificidade cultural atribuída à favela é falsa ou não foi “ainda” cientificamente comprovada: não se trata de responder ao governador e aos que pensam como ele que a favela não é um reduto de marginais, mas é uma comunidade de trabalhadores, ou de afirmar que ela é uma comunidade cristã ou, ainda, que ela atualmente estaria “perdendo” os seus valores e práticas tradicionais, como o samba e a capoeira. A meu ver, é mais interessante abandonar toda e qualquer tentativa de discutir as identidades para, em seu lugar, discutir as políticas de identificação e seus efeitos (Birman, 2008BIRMAN, Patricia. (2008), “Favela é Comunidade?”. In: L. A. Machado da Silva (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.: 105).

O livro Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências, organizado por Patricia Birman, Marcia Leite, Carly Machado e Sandra de Sá Carneiro, e publicado em 2015BIRMAN, Patricia et al. (org). (2015), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV Editora, FAPERJ. , é mais um registro desse intenso diálogo empírico, teórico e metodológico em torno do tema das periferias urbanas. Nessa coletânea encontram-se campos muito variados de pesquisa: comércio ambulante, crime, religião, ONGs, favelas, ocupações, turismo, quilombos, moradia, campos de refugiados, projetos sociais, condomínios fechados, violência policial, entre outros (Cf. Birman et al. 2015). O religioso, nesta trama, não é entendido como tema central. Nenhum dos temas, na prática, é central. A centralidade desse movimento crítico é manter pulsante um conjunto de temáticas que compõem, de forma sensível e dramática, dispositivos urbanos em operação. Esse trabalho coletivo sobre o tema das periferias urbanas, desenvolvido a partir do colóquio de mesmo título realizado na UERJ em 2011, deu forma ao Grupo de Pesquisa Distúrbio - Dispositivos, tramas urbanas, ordens e resistências, que reúne um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições.6 6 Integram o grupo os seguintes nomes: Patrícia Birman (UERJ), Marcia Leite (UERJ), Sandra de Sá Carneiro (UERJ), Adriana Fernandes (UERJ), Camila Pierobon (UERJ;Universidade Estadual de San Diego), Carly Machado (UFRRJ), Edson Miagusko (UFRRJ), Joana Barros (UNIFESP), Mariana Côrtes (UFU), Mariana Tavares Ferreira (SUS), Cleiton Maia (UERJ), além de estudantes de graduação, mestrado e doutorado dessas instituições. O nome do grupo traz a assinatura de Patricia, seu estilo e seus interesses teóricos. A abordagem foucaultiana da relação entre Estado e sociedade, presente na ideia de “dispositivo”, tem sido uma referência para as questões formuladas por Birman em seus vários trabalhos. E o termo “trama”, soma-se aos de “fronteiras” e “emaranhados”, que mais (ou menos) do que categorias teóricas, convocam um modo de olhar para as relações e as imbricações presentes nos nossos vários campos de pesquisa.

“Um emaranhado de casos: tráfico de droga, estado e precariedade em moradias populares” é o título de um artigo publicado por Patricia Birman, Adriana Fernandes e Camila Pierobon em 2014BIRMAN, Patricia; FERNANDES, Adriana & PIEROBON,Camila. (2014), “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares”. Mana , vol. 20: 431-460.. Esse trabalho consolida o diálogo de pesquisa entre as autoras sobre o tema das ocupações no Rio de Janeiro. Cito um trecho introdutório:

Emerge da observação e das atividades de nossos interlocutores um emaranhado de práticas, de grupos de atores e de formas de pertencimento que se sobrepõe, se conflita e se associa. Assim, muitas das situações que perfazem esse contexto produzem efeitos que envolvem diferentes graus de opacidade, contradição e indeterminação. A nossa tentativa de clarificar esse emaranhado começa, pois, por reconhecer que não é possível separar as linhas de uma racionalidade subjacente desses efeitos de opacidade, contradição e indeterminação. Essa trama de forças faz parte das formas de governança que buscamos analisar (Birman, Fernandes & Pierobon 2014BIRMAN, Patricia; FERNANDES, Adriana & PIEROBON,Camila. (2014), “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares”. Mana , vol. 20: 431-460.:432).

Assumir o “emaranhado”, as tramas, e discutir os “nós” (ao invés de desatá-los) implica construir a proposição teórico-metodológica de um exercício compreensivo que se faz a partir da complexidade das relações entre ideias, práticas e moralidades mobilizadas pelo Estado, pelo tráfico, e pelos moradores, priorizando a perspectiva daqueles que vivenciam a realidade das ocupações urbanas, e descolando a prática da análise científica de uma ação de esquadrinhamento da realidade a fim de, supostamente, produzir esclarecimento. Mais uma vez, a aposta analítica é situada nas relações. Explicam as autoras:

A nossa intenção é - reconhecendo os prismas assumidos pelos moradores da Ocupação Nelson Mandela - explorar o que se apresentou para eles como uma relação mais estreita entre tráfico e polícia, entre tráfico e moradores e entre tráfico e o direito de uso obtido pelos ocupantes através do processo judicial. Interrogamos neste artigo a suposição de que essas fronteiras estejam legitimamente garantidas, bem como reconhecidas por seus moradores (Ferguson 2008). Trata-se de uma narrativa que destaca como certas relações sociais se encontram embebidas em uma produção constante de ilegalismos (Telles 2010; Magalhães 2013), precariedade (Rizek et al. 2011) e violência (Feltran 2010; Vianna 2014; Farias 2014; Machado da Silva 2008SILVA, Luiz Antonio Machado (org.). (2008), Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira .) envolvendo agentes e instituições do Estado, agentes do tráfico de drogas e segmentos populares. Em suma, tentamos elaborar uma etnografia das imbricações dessas forças no que concerne a uma governança dos pobres (Birman, Fernandes & Pierobon 2014BIRMAN, Patricia; FERNANDES, Adriana & PIEROBON,Camila. (2014), “Um emaranhado de casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares”. Mana , vol. 20: 431-460.:432).

Mais do que uma (bela) citação, potente em explicitar o modo de raciocínio que conduz o artigo, este trecho evidencia também diálogos a partir dos quais as questões discutidas no Distúrbio vêm sendo formuladas. Nomes que ainda não haviam aparecido no corpo deste texto, podem ser aqui (re)conhecidos. Ainda faltam outros, muitos outros, mas uma leitura na íntegra dos artigos citados certamente serão mais do que reveladoras dos trabalhos a partir dos quais e com os quais essa agenda de pesquisa vem sendo pensada e realizada.

Em 2013 publiquei o artigo “É muita mistura: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro”. Nele, analisei o show do Ministério de Louvor Diante do Trono, realizado no Campo do Sargento, dentro do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, aproximadamente três meses depois de sua ocupação em novembro de 2010 pelo Exército Brasileiro. A ocupação do Alemão foi uma ação empreendida dentro do escopo da política de pacificação do Estado do Rio de Janeiro. A organização do evento, parte do programa Rio Contra a Dengue, era uma parceria da TV Globo com o Governo do Estado e o Grupo Cultural AfroReggae. Esse artigo foi uma aposta no potencial analítico de emaranhados e tramas urbanas. Daquelas situações que estão sempre lá, especialmente no contexto de pesquisas etnográficas, mas que nem sempre recebem descrições e análises atentas à sua densidade.

Enquanto as estratégias duras da segurança pública e seus impactos nas favelas cariocas vêm sendo largamente discutidas ao longo do tempo (Cf. Silva 2008SILVA, Luiz Antonio Machado (org.). (2008), Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira ., entre outros), eventos como aquele show no Alemão por vezes orbitam como elementos satélites e secundários de um contexto de coisas outras concebidas como efetivamente centrais e pertinentes à discussão. A análise de tais eventos, como busquei demonstrar no artigo, soma-se significativamente ao escopo de trabalhos em desenvolvimento sobre as políticas de pacificação do Rio de Janeiro, ao concentrar esforços na compreensão de situações aparentemente secundárias ao processo, mas que de perto revelam-se importantes campos de articulação dos diversos agentes políticos e especialmente morais presentes nestes contextos (Machado 2013MACHADO, Carly. (2013), “‘É muita mistura’: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro”. Religião & Sociedade, vol. 33, nº 2: 13-36. :14).

Discutir o dispositivo da pacificação a partir das relações entre segurança pública, religião e mídia me possibilitou acompanhar diferentes situações e projetos a partir dos quais tentei compreender uma composição específica de forças que configuravam a realidade cotidiana da vida dos moradores das periferias fluminenses nos anos das UPPs, e que ainda se fazem presentes em diferentes articulações nestes territórios, ora fortalecidas, ora esmiuçadas (Cf. Machado 2017aMACHADO, Carly. (2017a). “The church helps the UPP, the UPP helps the church: pacification apparatus, religion and boundary formation in Rio de Janeiro’s urban peripheries”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, vol. 14, nº 3: e143075., 2017bMACHADO, Carly. (2017b), “Conexões e rupturas urbanas: projetos, populações e territórios em disputa”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , vol. 32, nº 93: e329308. ). Além disso, uma das principais pistas de um olhar sobre as tramas urbanas, em particular a partir dos estudos de religião, é a possibilidade de contornar os encantamentos e desencantamentos do religioso e discutir-se as formações do secular (Asad 2003ASAD, Talal. (2003), Formations of The Secular: Christianity, Islam, Modernity. California: Stanford University Press.). Como indicado por Patricia em vários de seus textos, o manejo da violência nos contextos urbanos do Rio de Janeiro mobiliza arranjos específicos do religioso e do secular, que operam nas fronteiras do cuidado e do controle, da proteção e da disciplina, da subjetivação e da doutrinação.

As fronteiras do humano

Já contamos algumas décadas de acumulação de narrativas sobre o crime e a violência urbana. Embora se possa afirmar que, de modo geral, elas se apresentam e são reconhecidas como atividades relacionadas ao mundo secular, percebe-se que houve um aumento gradativo de discursos religiosos que participam ativamente da sua problematização nas esferas públicas. É do relacionamento variado entre dinâmicas, dispositivos e personagens religiosos e seculares que trataremos aqui. Vamos explorar encontros e confrontos na esfera pública entre algumas práticas seculares que inscrevem o crime e a violência no cotidiano das cidades com os discursos e práticas religiosas que com elas se relacionam. Sugerimos que o tratamento da violência nesses discursos possui como eixo a distinção entre o humano e o não humano, bem como as pequenas nuanças dispostas ocasionalmente em suas fronteiras (Birman 2019BIRMAN, Patricia. (2019), “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres”. Revista Sociologia e Antropologia, vol. 9: 111-134.:111).

Os textos de Birman a partir de 2016 retomam o tema das “fronteiras do humano” de forma bastante incisiva. Cabe lembrar que este foi o ano do Golpe que destituiu do governo a presidenta Dilma Roussef, fato seguido pelo mandato de Michel Temer e pela eleição, em 2018, de Jair Bolsonaro e sua agenda política marcada pelo elogio às mais variadas agendas de produção da morte e da gestão diferenciada da vida. Durante seu governo, imperou publicamente no país uma narrativa explícita de qualificação diferenciada dos diretos e da noção de humanidade, narrativa esta transversal às desqualificações mobilizadas no âmbito da produção de diferenciações de raça, gênero e sexualidade.

A citação que abre esta seção foi retirada do artigo “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres” (Birman 2019BIRMAN, Patricia. (2019), “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres”. Revista Sociologia e Antropologia, vol. 9: 111-134.). Nesse texto, Patricia dedica-se a uma reflexão sobre as fronteiras do religioso e do secular, a fim de pensar a violência no Rio de Janeiro. Para isso, ela trabalha as ideias de guerra, crueldade e tortura, conforme formuladas por Talal Asad, e suas reflexões sobre os sentidos modernos atribuídos a esses temas no âmbito da discussão sobre o secularismo. Dos emaranhados entre o religioso e o secular nas tramas do urbano, Patricia acentua seu olhar crítico sobre o que, efetivamente, está em jogo: as fronteiras do humano. E procura qualificar esse argumento crítico.

Em outro artigo, “Guerra, religião, secularismo e alguns sujeitos sensíveis: reflexões preliminares a partir de Talal Asad” (2020), Birman reflete sobre a eleição de Jair Bolsaro sob a égide de um Brasil cristão, e estreita o debate com Talal Asad buscando desmontar tentativas simplistas na abordagem da associação do perigo da guerra aos “perigos” do religioso. Em diálogo com Asad, afirma:

Ao perguntar sobre as diferenças entre uma guerra em nome do Ocidente cristão e uma guerra em defesa de Maomé, ele [Tala Asa] nos reenvia para o horror da guerra em nome da religião ao mesmo tempo que destaca a nossa habitual complacência quando a guerra é realizada em nome do estado-nação. A interrogação de Asad visaria, pois, em primeiro lugar, questionar o lugar de violência atribuído aos mulçumanos “terroristas”. Em segundo lugar, destacar como se naturalizaram certas formas de violência no Ocidente moderno (Birman 2020BIRMAN, Patricia. (2020), “Guerra, religião, secularismo e alguns sujeitos sensíveis: reflexões preliminares a partir de Talal Asad”. EXILIUM Revista de Estudos da Contemporaneidade, vol. 1, nº 1: 73-100. :79).

Para desenvolver sua análise, Birman discute a articulação entre guerra, religião, Estado e secularismo a partir de um sutil ponto dessa trama: pensando na “ação dos homens”, nas relações de gênero, nos temas da profanação e da liberdade de expressão. E conclui com uma proposta de agenda de análise:

O tempo da guerra e o tempo da paz pouco se diferenciam atualmente. Articulam-se de modo tão efetivo que não me parece possível discutir os horizontes da democracia sem discutir esse projeto que une guerra e religião entre nós (Birman 2020BIRMAN, Patricia. (2020), “Guerra, religião, secularismo e alguns sujeitos sensíveis: reflexões preliminares a partir de Talal Asad”. EXILIUM Revista de Estudos da Contemporaneidade, vol. 1, nº 1: 73-100. :95)

Finalizo a escrita deste texto, em 2023, durante os dias do conflito entre o Estado de Israel e o Hamas em território palestino. Estamos há semanas somando as mortes em Gaza. Passamos anos somando as mortes da pandemia da covid-19. Há décadas contamos diariamente as mortes nas periferias urbanas do Rio de Janeiro. A agenda política e antropológica de Patricia Birman acerca das fronteiras do humano confirma-se como absolutamente urgente e atual.

No Corre

Uma das características marcantes de Patricia é sua excepcional atualidade. Seu olhar sobre a antropologia e sobre a agenda pública é profundo e extremamente atento. E isso se mantém sempre atual.

Peço licença para encerrar este artigo com um registro afetivo sobre o futuro. Já na minha tese de doutorado fiz uma conclusão sobre o futuro, então se Patricia me permitiu fazer esse movimento lá, acho que tudo bem fazer aqui também.

Há muito tempo, bastante tempo mesmo, eu vinha discutindo com estudantes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde trabalho desde 2010, sobre um nome para o nosso grupo de pesquisa. Sentíamos que havíamos chegado a um ponto em nossas reflexões sobre periferias urbanas no qual fazia sentido darmos uma forma mais institucional ao nosso trabalho. Desde que começamos a incursão atrás de um nome, eu dizia: “Poxa, Patricia colocou o nível muito alto com o Distúrbio”. Eu realmente acho esse nome ótimo, e acho Patrícia particularmente ótima em dar títulos às coisas: basta olhar a lista dos títulos dos textos dela citados neste capítulo. Não vou nem me arriscar a apresentar todos os nomes que pensamos para o nosso grupo de pesquisa nesses (muitos) meses, mas posso dizer que “Emaranhados” era um deles. Acho que não preciso explicar o porquê.

Buscávamos um nome que trouxesse a intensidade da vida nas periferias urbanas, as imbricações entre o religioso e a vida social, uma pegada que não fosse normativa ou essencialista das categorias. Um nome que fosse receptivo às temáticas que surgissem a partir das pesquisas, sem pré-definir um campo temático. Que pulsasse, que fosse dinâmico, intenso, atual.

Em um almoço durante a Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em 2023, passamos algum tempo juntos com Patricia. 7 7 Essa edição da RAM foi realizada em julho de 2023 na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro. Nesse dia, inclusive, pude apresentar a turma quase toda a ela. Expliquei então o dilema do nome, falei sobre a marca forte do Distúrbio, e disse que estávamos “sofrendo” há meses com a dificuldade de encontrar um nome que fizesse sentido para todo mundo. E completei dizendo que eu achava que ela era realmente ótima com títulos e nomes. Confesso que esperei uma resposta do tipo “Ah, que nada…”. Mas ela disse: “É… acho que nisso eu sou boa sim”.

Seguimos falando os nomes que já havíamos pensado: alguns ótimos para grupos de samba, outros para coletivos artísticos, outros praticamente impublicáveis. Todos, na verdade, faziam sentido, mesmo os impublicáveis, mas faltava um atributo de síntese em cada um deles. Todos deixavam alguma coisa de fora, ou enfatizavam demais uma coisa só. Foi quando Patricia entrou na conversa, dizendo: “Olha, eu não sei se vocês vão gostar, mas eu já pensei que CORRE seria um ótimo nome para um grupo de pesquisa sobre periferias”.

Em uma frase que silenciou o barulhento coletivo que falava naquela mesa de almoço, o grupo de pesquisa acabava de encontrar seu nome: CORRE - Experimentações etnográficas em territórios urbanos. “Tem tudo a ver com a gente, como não pensamos nisso antes?” Essa foi a única frase que conseguimos dizer. Na verdade, tem mais uma: “Tinha que ser a ‘madrinha’ mesmo para achar esse nome pra gente”.

E assim eu concluo este texto, registrando aqui que Patricia Birman está no CORRE.

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  • MACHADO, Carly. (2006), Imagine se tudo isso for verdade: O movimento Raeliano entre verdades, ficções e religiões da modernidade Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Ciências Sociais, UERJ.
  • SILVA, Luiz Antonio Machado (org.). (2008), Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira .
  • 1
    Este artigo é uma versão do texto apresentado em 4 de dezembro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Patricia Birman pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).
  • 2
    Minha pesquisa de campo desenvolveu-se de maneira transnacional. Estive em atividades de grupos do Movimento Raeliano na Bélgica, na Holanda e na Inglaterra, e participei do Seminário Continental Europeu de 2005, que reunia pessoas do Movimento de diversos países.
  • 3
    No contexto deste diálogo, fiz meu estágio de doutorado no âmbito do projeto de pesquisa Pionner Project in Mass Media and the Imagination of Religious Communities (Bolsa CAPES - Doutorado Sanduíche, 2005), sob a supervisão de Birgit Meyer, da Universidade de Amsterdam.
  • 4
    Esse trabalho foi realizado no âmbito da pesquisa Mural da Dor: Movimentos Sociais, Religião e Política no Rio de Janeiro, desenvolvida por Marcia Leite e Patricia Birman juntamente com Regina Novaes e Ludmila da Silva Catela no âmbito do Núcleo de Religião e Política do Pronex - Movimentos Religiosos no Mundo Contemporâneo, com a colaboração de diversos pesquisadores.
  • 5
    Demais autores presentes no livro: Luis Carlos Fridman, Jussara Freire, Juliana Farias, Lia de Mattos Rocha, Wânia Amélia Belchior Mesquita e Pedro Paulo de Oliveira.
  • 6
    Integram o grupo os seguintes nomes: Patrícia Birman (UERJ), Marcia Leite (UERJ), Sandra de Sá Carneiro (UERJ), Adriana Fernandes (UERJ), Camila Pierobon (UERJ;Universidade Estadual de San Diego), Carly Machado (UFRRJ), Edson Miagusko (UFRRJ), Joana Barros (UNIFESP), Mariana Côrtes (UFU), Mariana Tavares Ferreira (SUS), Cleiton Maia (UERJ), além de estudantes de graduação, mestrado e doutorado dessas instituições.
  • 7
    Essa edição da RAM foi realizada em julho de 2023 na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2024
  • Aceito
    04 Abr 2024
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