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Da “minoria silenciosa” à Maioria Moral: transformações nas relações entre religião e política no fundamentalismo norte-americano na década de 1970

From de “silent minority” to the Moral Majority: transformations in the relationship between religion and politics in American fundamentalism in the 1970s

Resumos

Resumo: Este artigo analisa a trajetória do fundamentalismo religioso e as transformações que ocorreram em sua participação no espaço público norte-americano. Inicialmente, desenvolve-se uma breve discussão sobre o surgimento do fundamentalismo e como, especialmente a partir de meados da década de 1920, essa tendência se tornou minoritária em um país majoritariamente protestante. Em seguida, discutiremos o contexto dos anos 1960 e como o discurso fundamentalista se apresentava marcado por um profundo pessimismo em relação à condição sociopolítica e moral do país. Por fim, analisamos o processo de crescente engajamento político de lideranças fundamentalistas ao longo da década de 1970, processo durante o qual a autoconsciência de “minoria perseguida” perdeu espaço para a crença de que seriam representantes dos anseios da maioria dos norte-americanos.

Palavras-chave:
Fundamentalismo; História dos Estados Unidos; Conservadorismo; Direita Cristã


Abstract: This article analyzes the religious fundamentalism’s trajectory and the transformations that occurred in its participation in the American public space. Initially, a brief discussion about the emergence of fundamentalism, its development, and how, especially since the mid-1920s, this movement saw itself as a minority religious group in a predominantly mainstream Protestant country. Then, we discuss the context of the 1960s and how fundamentalist discourse was marked by deep pessimism about the country’s socio-political and moral condition. Finally, we analyze the process of fundamentalist leadership’s growing political engagement throughout the 1970s, a process during which the self-consciousness of “persecuted minority” lost ground to the belief that this movement represented the aspirations of the majority of the American people.

Keywords:
Fundamentalism; History of the United States; Conservatism; Christian Right


Introdução

A década de 1970 presenciou um movimento de profundas transformações nos discursos e práticas de lideranças fundamentalistas norte-americanas em relação ao papel dos cristãos na sociedade e, mais especificamente, na política. No começo dos anos 1980, Pat Robertson, conhecido pastor e televangelista, conclamava a sua audiência a imaginar “uma sociedade onde os membros da Igreja têm domínio sobre as forças do mundo, onde o poder de Satanás é amarrado pelo povo de Deus […] e o povo de Deus será o povo mais honrado na sociedade”. Ciente das implicações escatológicas de tal fala, Robertson dizia: “Vocês podem dizer que esta é uma descrição do Milênio quando Jesus voltar […] mas tais coisas podem ocorrer agora, neste tempo” (apud O’Leary 1998O’LEARY, Stephen D. (1998), Arguing the Apocalypse: a theory of millennial rethoric. New York: Oxford University Press .:185)1 1 Tradução nossa do trecho original em inglês. O mesmo ocorre em todas as citações diretas de obras em inglês ao longo do texto. . Tal tipo de discurso certamente causaria estranheza no meio fundamentalista da virada da década de 1960 para a de 1970. Os anos 1970 começaram com o sucesso de vendas de livros como The Late Great Planet Earth, de Hal Lindsey, que falava, numa perspectiva pré-milenarista bem característica do fundamentalismo, da iminência do fim dos tempos e da degradação moral dos Estados Unidos como um sinal claro da iminência da volta de Cristo para, aí sim, dar início a um período de mil anos de paz e justiça. A fala de Robertson representava uma ruptura com uma ênfase sectarista que havia marcado o fundamentalismo por décadas.

Em meados da década de 1920, quando se falava de uma “América Cristã” como um país com a maioria de seus habitantes professadamente cristãos e membros de igrejas cristãs, tal “título” teria, de fato, plausibilidade. Mas, em qualquer outro sentido, esse consenso já não era mais tão claro. “A nova América urbana e industrial não era mais predominantemente moldada pelo protestantismo” (Casanova 1994CASANOVA, Jose. (1994),Public Religions in The Modern World. Chicago: University of Chicago Press.:138). O estilo de vida dos grandes centros urbanos e o funcionamento político/institucional dos Estados Unidos pagavam cada vez menos tributo aos valores da religião. E os setores mais conservadores do protestantismo norte-americano estavam tomando uma amarga consciência disso. Sua visão de mundo, “que até pouco tempo atrás era considerada, ao mesmo tempo, religiosa e academicamente impecável, havia se tornado motivo de chacota. Essa foi uma parte essencial da experiência de ‘deslocamento social’ vivida pelos fundamentalistas” (Marsden 2006MARSDEN, George M. (2006), Fundamentalism and American Culture. New York: Oxford University Press , 2ª ed.:218). Despertou-se, entre os fundamentalistas, a sensação de serem peregrinos em uma terra à qual não mais pertenciam.

Tendo sido ridicularizados pela grande mídia desde meados da década de 1920, sem o controle das grandes denominações protestantes - portanto, representando uma corrente minoritária dentro do protestantismo nacionalmente majoritário - e à margem do mainstream cultural norte-americano, o discurso das lideranças fundamentalistas no final da década de 1960 era marcado por um profundo pessimismo em relação ao presente (e ao futuro) dos Estados Unidos. O culto do “Deus dos nossos pais” havia sido trocado pelos novos altares onde se cultuavam o dinheiro, os prazeres e a pretensa autossuficiência humana. Essa “nação eleita” seria, na verdade, um “sepulcro caiado”, em que a realidade vivida era muito distante dos valores pregados. Tal quadro só reforçava o pessimismo dos fundamentalistas. Os verdadeiros fiéis seriam salvos, mas a nação, como um todo, estaria condenada.

Entretanto, nos primeiros anos da década de 1980, o quadro havia se tornado bem diferente. Se a década de 1960 destacou-se pela luta de igrejas engajadas na ampliação dos direitos civis e, também, pela busca - por uma parcela bem mais reduzida da sociedade - de uma espiritualidade orientalizada, aguardando-se a paz que viria com a Era de Aquário, no decorrer dos anos 1970 podemos falar do advento de uma forte “onda conservadora” com fortes implicações na política e na religiosidade. Em sintonia com essa tendência e tendo como figuras de destaque pastores com grandes recursos financeiros e de mídia, como Jerry Falwell, Tim LaHaye e Pat Robertson, os fundamentalistas começaram a abandonar sua descrença na efetividade da ação política e passaram a se organizar e a agir para retomar a “América para Jesus”. As expectativas, antes pessimistas e apocalípticas, apontavam agora para a possibilidade de um futuro muito mais “agradável” para a “cidade no alto da colina”. A fala das lideranças fundamentalistas, ao longo da década, foi perdendo o tom predominantemente pessimista, e a possibilidade de uma reconciliação com seu Deus, com seus valores fundacionais e com seu papel redentor da humanidade começou a fazer parte da retórica de vários religiosos conservadores.

Neste artigo, buscaremos analisar essa passagem do discurso de uma autoconsciência de minoria perseguida - peregrinos em uma nação pecadora - que marcava o fundamentalismo norte-americano na década de 1960 para, no final dos anos 1970, um discurso triunfalista e uma percepção de que seus valores - especialmente ligados a questões morais - no espaço público representavam as crenças da maioria dos norte-americanos. Inicialmente, desenvolveremos um breve histórico do fundamentalismo no contexto protestante norte-americano e seu desenvolvimento ao longo do século XX e em que sentido podemos falar do fundamentalismo como uma minoria religiosa em um país majoritariamente protestante. Na sequência, analisaremos o efervescente campo religioso nos Estados Unidos da década de 1960 e as impressões das lideranças fundamentalistas sobre a condição social, política e “espiritual” do país. Por fim, discutiremos a politização e a transformação do discurso de importantes lideranças fundamentalistas ao longo dos anos 1970 e como a “minoria perseguida” agora falava como a “Maioria Moral”.

Partindo de uma perspectiva historiográfica, este texto insere-se nos já explorados - mas ainda extremamente ricos em possibilidades analíticas - temas da relação entre protestantismo e identidade nacional nos Estados Unidos e das relações entre fundamentalismo e política. Em uma perspectiva herdeira de autores como Ernest Sandeen (1967SANDEEN, Ernest R. (1967), “Toward a historical interpretation of the origins of fundamentalism”. Church History, vol. 36, nº 1: 66-83.) e George Marsden (2006MARSDEN, George M. (2006), Fundamentalism and American Culture. New York: Oxford University Press , 2ª ed.), advogamos que, apesar das porosas fronteiras entre fé e política no fundamentalismo, se deve sempre ter em mente que ele é, antes de tudo, um movimento religioso. O fundamentalismo não deve ser reduzido apenas às suas dimensões sociais e políticas. É verdade que ele está em permanente diálogo com seu contexto e é por este influenciado e, muitas vezes, transformado - e neste trabalho procuramos contextualizar o processo de transformação do discurso fundamentalista na política norte-americana. Mas tem sido um erro comum desconsiderar a compreensão religiosa da política que movimentos como o fundamentalismo possuem. Apesar de também saber “jogar” nas regras do jogo político tradicional - tentando influenciar nas eleições, organizando lobbies etc. -, de fato, o fundamentalismo elabora conteúdos próprios sobre a política. Ela é compreendida a partir de um universo sacralizante de referência. Estudar o fundamentalismo tendo em perspectiva a indissociabilidade entre suas crenças religiosas e políticas nos permite uma visão mais coerente de sua compreensão religiosa da política e das motivações que movem politicamente os agentes religiosos. Estabelece-se aqui um diálogo com a abordagem historiográfica das culturas políticas que procura revelar “outras dimensões explicativas para os fenômenos políticos, como a força dos sentimentos (paixões, medo), a fidelidade a tradições (família, religião) e a adesão a valores (moral, honra, patriotismo)” (Motta 2009MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (2009), “Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia”. In: R. P. S. Motta (org.). Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm.:29). No caso norte-americano, tal perspectiva de relação entre política e religião é ainda mais rica pela discussão em torno do excepcionalismo norte-americano e das disputas sobre a identidade nacional daquele país.

Uma breve trajetória do fundamentalismo norte-americano até os anos 1960

Embora não deva ser confinado ao contexto protestante e norte-americano, qualquer estudo sobre o fundamentalismo deve estar atento para o sentido original do conceito e o contexto em que surgiu. O fundamentalismo foi uma reação contra a modernidade que se implantava nos Estados Unidos no início do século XX, especialmente em suas manifestações no estilo de vida das pessoas nas grandes cidades e na diminuição da importância das referências religiosas no pensamento e nas práticas sociais. Tal reação manifestou-se, inicialmente, nas disputas teológicas. A justificativa inicial dos primeiros passos do que viria a ser chamado de movimento fundamentalista, na virada do século XIX para o século XX nos Estados Unidos, foi uma suposta necessidade de reação da ortodoxia cristã contra as contestações que certas doutrinas bíblicas começaram a sofrer a partir da utilização de métodos científicos na interpretação e análise dos textos sagrados. O conflito que daria início às discussões sobre as questões em torno das quais se uniriam os que viriam a ser chamados fundamentalistas ocorreu dentro dos muros dos seminários e das cúpulas das igrejas protestantes.

Nesse período, começaram a ser debatidos nos seminários norte-americanos trabalhos de teólogos europeus que, dialogando com as teorias científicas e as novas metodologias de pesquisa, buscaram compatibilizar os escritos bíblicos com as novas descobertas da ciência. Abandonando os dogmas e a crença na ausência de erros no texto bíblico, a chamada Alta Crítica passou a encarar a Bíblia como um livro comum e a utilizar as técnicas de análise próprias da literatura e da análise das fontes. A historicidade dos milagres e de vários episódios narrados no texto bíblico passou a ser contestada, e estes vieram a ser tratados numa perspectiva mitológica. Em contraposição, os teólogos conservadores - especialmente da presbiteriana Escola de Princeton - buscaram reafirmar algumas “verdades essenciais” que estavam sendo questionadas pelos adeptos do método histórico-crítico de exegese, que já influenciava vários professores nos seminários norte-americanos. Questões como a infalibilidade e ausência de erros no texto bíblico; a imaculada concepção e o nascimento virginal de Cristo; a morte expiatória na cruz; a ressurreição corporal de Jesus; e a realidade objetiva dos milagres eram considerados fatos que não estavam sujeitos a questionamentos de qualquer ordem. Tais ataques à sã doutrina deveriam ser rechaçados e o protestantismo liberal2 2 Apesar de estarmos cientes do equívoco de rotular todas as correntes de renovação da teologia do século XIX como liberais - como se tratasse de uma única escola de pensamento teológico -, ao longo do trabalho utilizaremos a expressão teologia liberal e liberalismo teológico para nos referirmos às perspectivas teológicas contra as quais se opunham os fundamentalistas/conservadores. poderia ser qualquer coisa menos o cristianismo legítimo.

Logo movimentos de reação ao modernismo teológico e em defesa da inerrância do texto bíblico se alastraram pelas mais diferentes denominações protestantes, especialmente entre batistas e presbiterianos. O conflito entre as duas correntes acirrou-se, e vários professores e pastores, de parte a parte, sofreram processos internos, foram destituídos de suas cadeiras nos seminários e muitos deles expurgados de suas igrejas. Ao mesmo tempo, começaram a ocorrer encontros, como a Conferência Bíblica de Niágara em 1878, de cristãos conservadores que empreendiam uma grande cruzada nacional contra a proliferação de interpretações heterodoxas da Bíblia. Estava lançada a semente do movimento fundamentalista.

A chamada “teologia liberal”, na perspectiva do fundamentalismo inicial, seria apenas a porta de entrada para que a modernidade e seus vários “demônios” (os modernismos) levassem os homens a criarem um mundo que desaprendeu a ver Deus como seu eixo fundante. O fundamentalismo enxergava nas transformações da sociedade norte-americana da passagem do século XIX para o XX um triste processo em que essa outrora nação escolhida por Deus havia virado as costas para os valores sobre os quais foi construída. Não era só na arena teológica que a batalha se travaria. A deterioração dos valores da nação não poderia ser assistida de braços cruzados. Sua luta tornou-se uma luta cultural. Uma luta contra a cultura dominante engendrada pelo modernismo, uma cultura que virou as costas para Deus.

Dessa forma, o que era um posicionamento teológico e uma querela interna aos seminários transformou-se em um movimento que possuía um ideário e uma prática política. Iniciou-se uma batalha pela hegemonia da cultura norte-americana, pela hegemonia dos códigos e discursos partilhados pelos fundamentalistas no todo da sociedade norte-americana, pelo retorno dos valores religiosos no processo de criação e execução das leis num processo deliberado de busca da restauração da “América Cristã”. Nesse primeiro momento, os fundamentalistas entendiam-se como representantes do cristianismo protestante majoritário e dos valores morais da maioria dos norte-americanos. José Casanova (1994CASANOVA, Jose. (1994),Public Religions in The Modern World. Chicago: University of Chicago Press.:140-141) afirma que o fundamentalismo “travou suas batalhas em três frentes: contra as heresias liberal-modernistas dentro das denominações evangélicas do Norte, contra o ensino do darwinismo nas escolas públicas e contra o ‘rum e o romanismo’ nas áreas urbanas”.

O combate às teorias darwinistas foi responsável, em 1925, por um episódio que marcaria a história do fundamentalismo e teria, também, papel fundamental para a estigmatização dos fundamentalistas nos grandes meios de comunicação e entre a intelectualidade norte-americana. Na pequena cidade de Dayton, no estado do Tennessee, o jovem professor de biologia John Scopes foi processado por infringir a lei do estado ao ensinar a teoria da evolução em suas aulas3 3 Os eventos ocorridos antes, durante e depois do julgamento do Caso Scopes no Tennesse possuem uma série de nuanças, como o papel da American Civil Liberties Union (ACLU), que colocou anúncios em alguns jornais do estado pedindo a colaboração de algum professor local disposto a desafiar a lei do Tennessee. Devido aos limites deste texto, apresentamos o episódio de forma bem resumida. Para maiores detalhes sobre o Scopes Trial, ver Larson (1997). . O julgamento do caso Scopes mobilizou a imprensa norte-americana da época, ávida por polêmicas que turbinassem suas vendas de jornais. Os grandes órgãos de imprensa do norte dos EUA, partidários de uma cultura moral mais flexível, desenvolveram uma narrativa na qual o tribunal de Dayton seria palco de uma série de batalhas: ciência versus religião, urbano versus rural, norte versus sul. De acordo com Ruthven (2007RUTHVEN, Malise. (2007), Fundamentalism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press.:12), o Scopes Trial “foi um dos primeiros exemplos do que viria a ser conhecido como evento de mídia, em que a própria cobertura feita pela imprensa foi mais importante do que o que realmente aconteceu no tribunal”. A cobertura do julgamento feita por H. L. Mencken para o Baltimore Evening Sun foi fundamental para a repercussão do julgamento. Conhecido por opiniões “ácidas” (e mesmo elitistas) em relação à influência da religião nas crenças do “homem comum” norte-americano, Mencken assim explicou o “entusiasmo” da população de Dayton em relação ao fundamentalismo em sua coluna de 29 de junho de 1925:

As razões do homem inferior para odiar o conhecimento não são difíceis de discernir. Ele o odeia porque é complexo - porque coloca um fardo insuportável sobre sua limitada capacidade de absorver ideias. Assim, sua busca é sempre por atalhos. Todas as superstições são atalhos. Seu objetivo é tornar o ininteligível simples e até óbvio. […] A popularidade do fundamentalismo entre as ordens inferiores dos homens pode ser explicada exatamente da mesma maneira. […] A cosmogonia do Gênesis é tão simples que até um caipira pode entendê-la. Ela é apresentada em algumas poucas frases. Ela oferece, para um homem ignorante, a irresistível razoabilidade do absurdo. Então ele a aceita com ruidosas hosanas e tem mais uma desculpa para odiar aqueles que são melhores que ele (Mencken 2002MENCKEN, Henry Louis. (2002), On religion. Edited by S. T. Joshi. New York: Prometheus Books.:167).

Dessa forma, a divulgação que a imprensa do Norte fez do julgamento desacreditou o fundamentalismo junto a uma considerável parte do público, e o adjetivo fundamentalista, antes ostentado com orgulho, passou a ser sinônimo de ignorância e desinformação. Os fundamentalistas seriam, a priori, inimigos da ciência, das liberdades civis e do progresso. Alguns autores têm procurado problematizar essa noção de fundamentalismo que acabou por migrar das colunas de Mencken para trabalhos acadêmicos. David Harrington Watt, em Antifundamentalism in modern America (2017WATT, David H. (2017), Antifundamentalism in modern America. Ithaca/London: Cornell University Press.), argumenta que a atual noção ampliada (para além do contexto protestante norte-americano) e negativa de fundamentalismo é herdeira de uma tradição antifundamentalista, que divide o mundo entre os adeptos do progresso e os “intolerantes” e reacionários. Os antifundamentalistas veem-se do “lado certo” da história, entendendo-se como defensores de um “conjunto de verdades que são eternas, universais e incontroversamente verdadeiras” (Watt 2017:45). Bem antes do lançamento do livro de Watt, Susan Harding (1991HARDING, Susan. (1991), “Representing fundamentalism: the problem of the repugnant cultural other”. Social Research, vol. 58, nº 2: 373-393.) já havia chamado a atenção para essa “retórica dos modernos” - sendo Mencken um dos exemplos - que apresentava os fundamentalistas como uma categoria inferior de indivíduos cuja existência carecia de explicação. Sobre o Scopes Trial, Harding afirma que o julgamento foi apresentado para a maioria dos norte-americanos a partir da perspectiva dos “modernos”. “O ponto de vista dos fundamentalistas, explicitado em suas próprias vozes, foi apagado e depois reinscrito dentro - encapsulado por - da metanarrativa moderna nas notícias lidas e ouvidas em todo o país e no exterior” (Harding 1991:382).

De fato, muito do senso comum contemporâneo sobre o fundamentalismo é herança de tais repercussões midiáticas. Apesar do prosseguimento da luta antievolucionista no país - inclusive com a aprovação de lei semelhante à do Tennessee no estado de Arkansas em 1928 -, o caso Scopes marcou o fim da primeira fase do fundamentalismo. A rejeição aos argumentos fundamentalistas pelas pessoas com um melhor nível educacional e pela grande mídia acabou por reforçar a radicalização dos discursos antimodernistas que se tornaram cada vez mais rasos e dogmáticos. As lideranças fundamentalistas que tinham ainda alguma respeitabilidade no meio acadêmico perderam sua proeminência no movimento para pregadores radicais que falavam da influência das forças demoníacas no “mundo moderno”. Marsden (2006MARSDEN, George M. (2006), Fundamentalism and American Culture. New York: Oxford University Press , 2ª ed.:191) afirma que, “após o verão de 1925, as vozes do ridículo se tornaram tão altas que muitos protestantes conservadores mais moderados, aos poucos, foram abandonando a causa, temerosos de serem associados” a figuras radicais que se destacavam. O caminho rumo ao sectarismo (acrescido de um discurso de “minoria perseguida”), à espiritualidade mística e às expectativas apocalípticas foi a tendência para o que podemos chamar de grande agregado fundamentalista até meados da década de 1970.

No campo eclesiástico, a derrota dos fundamentalistas foi notória. “O descrédito sofrido pelos fundamentalistas serviu para aumentar a respeitabilidade pública de seus antagonistas no [campo eclesiástico e teológico] […]. Protestantes liberais e suas igrejas haviam se tornado mainline” (Casanova 1994CASANOVA, Jose. (1994),Public Religions in The Modern World. Chicago: University of Chicago Press.:143). Mesmo nos dois principais ramos em que possuíam enorme influência, os batistas e presbiterianos do Norte - dos quais faziam parte algumas de suas lideranças mais respeitadas -, em 1926 eles já haviam se tornado “minorias enfraquecidas” (Marsden 2006MARSDEN, George M. (2006), Fundamentalism and American Culture. New York: Oxford University Press , 2ª ed.:191). Alguns fundamentalistas permaneceram como uma espécie de resistência conservadora dentro das maiores denominações, mas a grande maioria de suas lideranças abandonou as igrejas e seminários tradicionais, já dominados por liberais e teólogos do Social Gospel, e criaram suas próprias instituições, igrejas, seminários e agências missionárias menores e independentes, onde a defesa da inerrância e do literalismo bíblico era enfatizada4 4 Apesar de todas essas adversidades, o fundamentalismo ainda atraía o interesse de muitas pessoas e o movimento continuou a ganhar adeptos. Bjerre-Poulsen (1988:95) buscou atestar essa informação através da constatação do crescimento de denominações declaradamente fundamentalistas. Entre 1926 e 1940, os batistas do Sul conquistaram cerca de 1,5 milhão de novos adeptos - num total de 4.949.174 membros -, e as pentecostais Assembleias de Deus, muito fortes entre brancos do sul dos Estados Unidos, passaram de 47.950 para 198.834 membros no mesmo período. .

Nas grandes cidades, o apego às tradições e aos valores da moral puritana ia sendo colocado de lado a passos largos. A modernidade passou a ser, então, demonizada nos discursos daqueles a quem os benefícios dessa modernidade foram negados e por aqueles que viam suas crenças e estilo de vida “violentados” por ela. Sendo assim, foi entre os conservadores e tradicionalistas (cada vez mais reduzidos), os excluídos do meio urbano e o sul empobrecido que o fundamentalismo conseguiu ser ouvido em seu apelo para uma volta à Old Time Religion. Com uma percepção tão pessimista quanto ao “admirável mundo moderno”, os fundamentalistas não se sentiam mais representados nos sonhos pós-milenaristas do século XIX. A aceleração da modernidade não apontava para um futuro luminoso, um reino milenar de paz e justiça na terra - nem nos Estados Unidos -, mas sim para a total depravação da humanidade e para um afastamento cada vez maior do homem moderno em relação às verdades de Deus.

O fundamentalismo tornou-se um outsider diante do majoritário protestantismo mainstream norte-americano. Ganhou “corpo” fora das estruturas das denominações tradicionais. Os fundamentalistas ampliaram suas denominações independentes, seus institutos bíblicos, suas agências missionárias, suas escolas, seus programas de rádio, seus jornais etc. Criaram um senso cada vez maior de identidade - os defensores do cristianismo “verdadeiro” em meio a um ambiente hostil e “pecaminoso” -, aumentaram sua força no nível local e ampliaram sua base de adeptos no sul do país. O movimento descentralizou-se. Com poucas exceções, como a Southern Baptist Convention, as denominações fundamentalistas não se impuseram sobre as demais, tendo, geralmente, força apenas regional, sem conseguir maior penetração nacional.

Nos anos que se seguiram ao caso Scopes, o fundamentalismo também se afastou, cada vez mais, do envolvimento em questões sociais e políticas. O discurso voltado para o combate às injustiças sociais e para a implantação dos chamados “valores do reino” na terra, visando à correção das desigualdades, passou a ser visto pelos mais conservadores como ideias de liberais pós-milenaristas influenciados pelo “comunismo ateu”. Boyer (1992BOYER, Paul S. (1992), When time shall be no more: prophecy belief in modern American culture. Cambridge: Harvard University Press.:107), analisando a falta de envolvimento dos fundamentalistas pré-milenaristas em questões políticas e sociais após a década de 1920, dizia que: “Durante a campanha presidencial de 1932, um periódico pentecostal perguntou: ‘O que podemos fazer para deter a correnteza descendente? Nada! É tarde demais para tentar remendar este velho mundo… Nosso objetivo é preparar os homens para a próxima era’”. Os fundamentalistas enfatizaram a busca pela “salvação das almas” das pessoas e abandonaram, temporariamente, a luta pela “alma da nação”. O afastamento de assuntos do “mundo” e o sentido de urgência dos trabalhos evangelísticos estavam em consonância com as expectativas de iminência do fim e da impossibilidade de haver justiça na Terra precedendo a volta de Cristo.

Mas seriam os fundamentalistas uma minoria religiosa em um país de maioria protestante? A partir da polêmica entre fundamentalistas e liberais, e com o controle da maioria das grandes denominações protestantes nas mãos de simpatizantes de uma perspectiva teológica mais liberal, muitos grupos fundamentalistas passaram a se diferenciar dos mainline protestants (presbiterianos, congregacionais, episcopais, metodistas, batistas etc., principalmente de convenções do Norte) -, já que, com a “inoculação do veneno liberal”, ser protestante deixou de ser sinônimo de cristão “verdadeiro”. Em sua maioria, autodenominavam-se - e são, por muitos, assim classificados - como evangelicals5 5 A noção de evangelicals está relacionada, mantendo-se aí uma continuidade com o sentido do termo no início do século XX, com a necessidade de uma conversão individual e uma experiência de vida santificada pela ação do Espírito Santo. O uso do termo ainda é alvo de controvérsias entre os pesquisadores do protestantismo norte-americano. De forma geral, entende-se que todos os fundamentalistas seriam evangelicals, mas nem todos os evangelicals seriam fundamentalistas. ou born again Christians. E esses born again Christians, nos quais podemos incluir os mencionados grupos influenciados pelo fundamentalismo, pentecostalismo e pré-milenarismo, eram, de fato, um grupo minoritário - embora numeroso - nos Estados Unidos.

Dessa forma, as décadas que precederam a onda de politização do conservadorismo religioso, a partir de meados dos anos 1970, foram caracterizadas, nos ambientes fundamentalistas e, portanto, fora das grandes denominações protestantes do norte do país, por: uma religiosidade que demonizava “as coisas do mundo” - incluindo aí a política e as expressões modernas nas artes e na cultura norte-americana em geral -, que buscava uma experiência religiosa cada vez mais mística e menos intelectualizada, que se preocupava mais com a salvação das almas e com a pureza moral do que com as mazelas da sociedade, e que aguardava, a qualquer momento, o fim da história através da intervenção sobrenatural de Deus e o advento da parousia.

Anos 1960 - os EUA em ebulição político-religiosa

As transformações aceleradas despertaram na aguçada religiosidade protestante norte-americana o temor de se perder uma herança cultural e religiosa que, muitos criam, era a pedra fundamental da nação e a própria mensagem que os Estados Unidos teriam a missão de levar ao mundo. Entretanto, até meados da década de 1960, prevalecia o consenso nacional sobre o excepcionalismo norte-americano. O país havia se estabilizado como a grande potência econômica e bélica mundial e o American Way of Life era exportado para o resto do mundo como o ideal civilizacional a ser alcançado. Mesmo os fundamentalistas, apesar de seu sentimento de estranhamento perante a modernidade, eram fervorosos patriotas.

A estabilidade da conservadora década de 1950 reprimiu, por um certo período, a contestação ao consenso sobre a pax americana e, também, escondeu as rachaduras internas da sociedade norte-americana. O que foi “freado” ao longo da década anterior veio com toda a velocidade a partir dos anos 1960. Os protestos contra a Guerra do Vietnã e o movimento pelos direitos civis ganharam grande destaque no período, mas eles foram apenas as expressões mais “barulhentas” de uma série de protestos em curso. De acordo com Bellah (1986BELLAH, Robert N. (1986), “A nova consciência religiosa e a crise na modernidade”. Religião & Sociedade, vol. 13, nº 2: 18-37.:20), os anos 1960 foram marcados pelo “descontentamento de massa em relação aos valores comuns da cultura e da sociedade americanas”, com uma consequente “erosão da legitimidade das instituições americanas - os negócios, o governo, a educação, as Igrejas, a família -, observada particularmente entre os jovens […]”. E tal descontentamento gerou um clima em que diversos grupos, em busca de reformas sociais e ampliação dos direitos, se organizaram para tentar desmascarar uma “sociedade hipócrita” que se arrogava o título de reino da liberdade e da democracia, mas que abrigava, em seu interior, opressões e mazelas sociais terríveis. O propagado “sonho americano” estava muito distante da realidade almejada por jovens, mulheres, homossexuais, negros etc.

Na década de 1960, os Estados Unidos tiveram de lidar com traumas mal resolvidos e com uma série de problemas que haviam sido “varridos para debaixo do tapete”, mas que, naquele momento, aparentemente, não podiam mais ser evitados. Se essas divisões internas da sociedade norte-americana ficavam em um segundo plano em momentos de ufanismo nacional e de tensões provocadas por conflitos externos - como no caso da Segunda Guerra Mundial -, os anos 1960, por outro lado, foram marcados por uma crescente divisão interna que culminou nos protestos contra a Guerra do Vietnã e em um início de década de 1970 extremamente conflituoso.

No decurso dos anos 1960, muitos norte-americanos passaram a considerar certos grupos de compatriotas como inimigos contra os quais estavam engajados em uma luta pela alma da nação. Brancos contra negros, liberais contra conservadores (bem como liberais contra os radicais), jovens contra velhos, […] ricos contra pobres, contribuintes contra beneficiários de programas sociais, religiosos contra seculares, […] homossexuais contra heterossexuais - para todos lugares que se olhavam, novos batalhões entravam no campo de batalha num espírito que ia do sacrifício redentor ao desafio vingativo (Isserman & Kazin 2000ISSERMAN, Maurice; KAZIN, Michael. (2000), America divided: the civil war of the 1960s. New York: Oxford University Press.:4).

A influência das crenças religiosas sobre as práticas políticas e sobre a noção de identidade nacional está no cerne de vários conflitos e antagonismos presentes na sociedade norte-americana. Uma referência fundamental para analisarmos essas tensões nos Estados Unidos é a noção de Culture Wars, desenvolvida pelo sociólogo James Davidson Hunter (1991HUNTER, James Davison. (1991), Culture wars: the struggle to define America. New York: Basic Books.). As polêmicas que vão ganhando maior espaço na sociedade norte-americana durante a década de 1960 - como a legalização do aborto, descriminalização das drogas, limites da liberdade de expressão, ampliação dos direitos dos homossexuais etc. - deveriam, na ótica de Hunter, ser analisadas a partir de um conflito mais profundo que se dá em torno de discordâncias sobre o que é “justo”, “bom”, “bem comum”, enfim, sobre quais princípios devem ordenar a sociedade. Hunter buscou definir mais claramente essa divisão. Essa “cisão cultural” da sociedade norte-americana se daria entre dois polos que ele denomina como impulse toward orthodoxy e impulse toward progressivism, ou, poderíamos dizer, entre uma perspectiva mais conservadora e voltada para valores tradicionais (entre eles a religião) e outra de caráter mais progressista e secularizada. Na concepção de Hunter, os “tradicionalistas” orientariam suas ações a partir de valores considerados atemporais - verdades eternas e imutáveis - e, no mais das vezes, de origem transcendente. Os “progressivistas”, por outro lado, partiriam de uma percepção moderna de que os valores deveriam se adaptar ao “espírito do tempo”. A “verdade” e a autoridade moral que deveriam ordenar a sociedade seriam, portanto, dinâmicas - e não fixas. O fundamentalismo talvez represente o mais eloquente exemplo do impulse toward orthodoxy na sociedade norte-americana. Suas expressões de fé, suas práticas e sua noção de identidade nacional são orientadas por valores considerados atemporais e de origem transcendente. A Bíblia seria o inerrante grande “manual do fabricante” que deveria ordenar não só a vida espiritual, mas também a moralidade e a vida em sociedade.

Os turbulentos anos 1960 viriam a acirrar leituras antagônicas sobre os “fundamentos” da sociedade norte-americana, e os fundamentalistas, apesar do patriotismo em seus discursos, se sentiriam cada vez mais “fora do lugar” em uma sociedade que consideravam em crescente “decadência moral e espiritual”. A ideia da ruína iniciada por fatores internos ganhou grande força a partir das agitações que marcaram o país na década de 1960, dando espaço para o surgimento de antagonismos cada vez mais declarados, que punham abaixo as noções de grandes consensos entre os norte-americanos. Nas “tintas” do fundamentalismo, os anos 1960 foram pintados como a “idade das trevas” na história norte-americana. Segundo o discurso conservador, a nação estaria imersa na mais profunda desordem moral e política: não havia mais respeito pelas autoridades instituídas; o uso de drogas e a promiscuidade marcavam o comportamento de uma juventude sem valores; a família tradicional era colocada em cheque por movimentos feministas, homossexuais e pelo crescimento no número de divórcios; a luta dos negros pela expansão dos direitos civis era vista como reflexo da falta de autoridade dos governos (especialmente no sul do país, onde o fundamentalismo possuía grande força) etc. A antes “nação eleita” agora estava sob o “domínio de Satanás”.

Mas, apesar dessa percepção fundamentalista de que a “América Cristã” havia se tornado uma espécie de “paraíso perdido”, podemos dizer que os fundamentalistas teriam rompido com seu patriotismo para se tornarem apenas “cidadãos do céu”? Alguns indícios nos levam a acreditar que a crença no excepcionalismo norte-americano e na “relação especial” que Deus teria com aquele país ainda era algo presente, apesar de todo o pessimismo. O anticomunismo que caracterizava o discurso político dos fundamentalistas durante a Guerra Fria era marcado pela constante presença de uma retórica que falava dos Estados Unidos como uma nação cristã que se contrapunha ao projeto de dominação mundial do ateísmo comunista. Essa noção dualista no terreno da política levou vários religiosos a sacralizar o que entendiam como os principais “valores americanos”. Esse e alguns outros exemplos nos levam a crer que o patriotismo continuava presente. Só faltavam as condições para que ele ganhasse espaço. Caso as “condições propícias” se colocassem, ele poderia aflorar novamente, e a luta pela “alma da nação” poderia ser retomada.

Dos bunkers ao mainstream

Na perspectiva conservadora, a década de 1960 não teria colocado em “risco” apenas a “herança cristã” da nação, como bradavam os fundamentalistas. Ela teria sido responsável pela divisão interna do país, pelo “apequenamento” dos Estados Unidos como potência-líder do mundo ocidental e pela desilusão nacional, especialmente da juventude, em relação ao excepcionalismo norte-americano. O conservadorismo, que havia tido um lugar marginal na academia e nas discussões do espaço público norte-americano, retomou espaço não mais como um “refugo do passado”, mas como uma perspectiva plausível para se interpretar o mundo e para se pensar o presente e o futuro dos Estados Unidos. Nosso interesse neste texto está voltado para a chamada Direita Cristã - que abordaremos mais adiante -, mas é necessário apresentar um brevíssimo panorama da evolução e da configuração dessa nova onda conservadora. Algumas obras que foram lançadas durante as décadas de 1940 e 1950, como The road to serfdomHAYEK, Friedrich A. (2001), The road to serfdom. New York/Abingdon: Routledge. (publicado em 1944), do economista austríaco Friedrich Hayek, e The conservative mindKIRK, Russell. (2001), The conservative mind: from Burke to Eliot. Washington: Regenery Publishing.(publicado em 1953), de Russell Kirk, fizeram relativo sucesso na época de suas primeiras edições, mas, a partir da década de 1970, tornaram-se referências importantíssimas para o conservadorismo norte-americano. Tanto a perspectiva econômica liberal clássica e a dura crítica ao socialismo de Hayek quanto a importância da tradição e o chamado à “prudência” em relação a reformas de Kirk tiveram enorme impacto na formação do multifacetado conservadorismo das décadas de 1970 e 1980.

Politicamente, a nova geração de conservadores começou a se organizar em torno do Partido Republicano a partir do momento em que o senador Barry Goldwater conseguiu a indicação para concorrer contra Lyndon Johnson na eleição presidencial de 1964. Goldwater agradou os “discípulos” do pensamento de Hayek ao criticar os programas de bem-estar social desenvolvidos nos governos democratas - como o New Deal e o Fair Deal - e advogar uma menor intervenção do Estado em questões econômicas. Por outro lado, também ganhou a simpatia de lideranças políticas e religiosas (fundamentalistas principalmente) sulistas devido ao “seu anticomunismo ‘linha dura’ e à sua oposição aos direitos civis” (Williams 2010WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right. New York: Oxford University Press .:73). Apesar da derrota para Johnson, a candidatura de Goldwater abriu as portas para a organização de uma base conservadora que pudesse apresentar propostas que pautariam o Partido Republicano e, também, iriam na contramão da hegemonia liberal vigente. Os neocons eram apenas uma das tendências conservadoras que ganhavam espaço e faziam parte do que ficou conhecido como new right, junto com tradicionalistas, anticomunistas e a direita religiosa. Entretanto, é importante perceber que, para destacadas lideranças do neoconservadorismo - apesar de serem, em grande parte, judeus e, muitos deles, terem pouca afinidade com questões de fé -, a religião teria um papel fundamental dentro da sociedade ideal imaginada pelos neocons. Segundo Irving Kristol (2011KRISTOL, Irving. (2011), The Neoconservative persuation: selected essays 1942 - 2009. New York: Basic Books .:293), “os três pilares do conservadorismo moderno são a religião, o nacionalismo e o crescimento econômico. Destes, a religião é sem dúvida o mais importante, porque é o único poder que pode moldar o caráter das pessoas e regular a motivação”.

Esse pano de fundo é importante para se entender a ressurgência dos fundamentalistas como atores ativos no cenário político norte-americano a partir de meados dos anos 1970. Assim como vários movimentos (beats, direitos civis etc.) foram gestados na década de 1950 e explodiram na de 1960, podemos traçar um paralelo sobre o conservadorismo religioso: ele foi alimentando sua rejeição em relação aos liberais durante a década de 1960, começou a se organizar na de 1970 para, finalmente, conseguir a sua “desforra” no alvorecer dos anos 1980. O fundamentalismo sempre foi simpático a ideias conservadoras no campo teológico, social e político. O que consideravam excesso de ingerência do Estado, como programas de assistência social e respostas à luta pelos direitos civis, era visto como “coisa de comunista” e, nunca deixando de alfinetar seus inimigos, de teólogos liberais ligados ao Social Gospel.

Mas é necessário entender que, para os fundamentalistas, as questões políticas e econômicas tinham importância periférica, não eram o “X” da questão. Se para alguns pensadores do neoconservadorismo o foco principal de seus ataques estava na crítica ao tamanho do Estado e às políticas de bem-estar herdeiras do New Deal, o principal ponto da crítica dos religiosos permanecia o mesmo do início do século XX: os Estados Unidos viviam uma profunda crise moral, e os anos 1960 só vieram a confirmar a percepção de que o país que, pensava-se, seria a Nova Jerusalém havia se tornado como Sodoma e Gomorra. Até a década de 1970, esse imenso contingente de fiéis fundamentalistas permaneceu politicamente desmobilizado e, quando muito, aderia a um discurso genérico de anticomunismo e patriotismo. Enquanto vários grupos foram às ruas para demandar por mudanças na sociedade norte-americana, os fundamentalistas fecharam-se em suas igrejas e ampliaram suas escolas confessionais, um refúgio para as crianças que não seriam ali contaminadas pelo veneno secularizante das escolas públicas.

Durante a década de 1960, os fundamentalistas, extremamente “incomodados” com a efervescência social e com as transformações pelas quais o país passava, começaram a se manifestar de maneira mais aberta em relação a algumas questões de caráter político. John F. Kennedy foi um presidente visto com extrema desconfiança pelos fundamentalistas, que entendiam a eleição de um católico como uma ameaça às tradições protestantes do país. Além disso, consideravam que Kennedy não combatia o comunismo com o vigor devido e, também, seria muito simpático ao nascente movimento pelos direitos civis. Entretanto, seus protestos isolados e desarticulados não conseguiram influenciar as ações dos governos democratas da década de 1960. “Em 1964, eles estavam mais divididos politicamente do que haviam estado em pelo menos vinte anos” (Williams 2010WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right. New York: Oxford University Press .:67). Apesar dessa dispersão, os fundamentalistas começaram a se envolver mais nas campanhas políticas, especialmente no sul do país.

Como vimos, o fundamentalismo surgiu como uma reação às “ameaças” que a modernidade teológica, científica e nos costumes representava para a religiosidade protestante e os valores morais tradicionais. Essa tendência de se apresentar sempre como uma reação aos “inimigos” da “sociedade cristã” marcou a trajetória do discurso fundamentalista ao longo do século XX. No entanto, se sua reação se caracterizou inicialmente por uma atitude de rejeição e “alienação” da ordem política e social secularizada que se afirmava nos Estados Unidos, fechando-se em seus bunkers - igrejas, escolas confessionais, institutos bíblicos etc. -, a partir dos primeiros sinais da virada conservadora que ganhava força na década de 1970, uma atitude mais agressiva - porém ainda desorganizada - no espaço público começava a se desenhar. Na perspectiva fundamentalista, o demônio e seus seguidores estariam se tornando cada vez mais poderosos e influentes nos Estados Unidos.

Em relação às estruturas de poder e à secularização da sociedade, o tom das críticas dos fundamentalistas começou a ser paulatinamente menos genérico e passou a estabelecer alvos mais específicos: o governo federal e o Judiciário. Uma sociedade pecaminosa geraria instituições pecaminosas que fariam leis pecaminosas. Determinadas ações do governo e decisões do Judiciário, especialmente da Suprema Corte, foram fundamentais para despertar em algumas lideranças fundamentalistas um senso de urgência em relação à necessidade de uma ação política mais direta. Avigorou-se a crença de que estaria sendo orquestrada por forças obscuras a intromissão do Estado no sentido de retirar qualquer resquício de cristianismo do país e de criar uma juventude ateísta. Reinhardt (2011REINHARDT, Bruno. (2011), “Reiterando o pacto: história, teologias políticas cristãs e a religião civil americana em uma era de multiculturalismo e império”. Religião & Sociedade , vol. 31, nº 2: 29-54.:34) menciona como uma das motivações para essa “guinada radical de uma tradição marginal, privatista e extramundana na direção de uma exposição política secular” o que ele denomina de “cruzada secularizante do poder judiciário”. Decisões como as do caso de Abington School District vs. Schempp (1963) - que declarou inconstitucional a leitura da Bíblia nas escolas públicas norte-americanas - faziam os fundamentalistas crerem que os seus “inimigos” ocupavam os principais postos de poder do país. Um episódio fundamental para o início da mobilização política de várias lideranças fundamentalistas foi a polêmica decisão da Suprema Corte no caso Roe vs. Wade, de 1973. Por sete votos a dois, os juízes da mais alta corte norte-americana declararam que, baseados no “direito à privacidade”, as mulheres possuíam o direito constitucional ao aborto durante os dois primeiros trimestres da gravidez, até o ponto da viabilidade fetal.

Tal discurso ganhou cada vez mais força devido aos “castigos de Deus” pela incredulidade e promiscuidade da nação. Pastores argumentavam que, após o fim da oração nas escolas públicas, o país teria sido tomado por desordens internas, pelo aumento da criminalidade, pela desagregação das famílias - com um grande aumento do número de divórcios e de mães solteiras -, pelos efeitos da crise do Petróleo de 1973 e, inclusive, pela decadência do poderio bélico norte-americano, antes invencível graças à bênção divina, que foi humilhado na Guerra do Vietnã. Os males da nação eram fruto de um processo de dissociação entre moralidade e política. Havia a necessidade de se colocar Deus novamente nas discussões políticas. Aos poucos, o discurso derrotista e de certa conformidade com a “degradação” moral nacional perdeu espaço, e os fundamentalistas começaram a se mobilizar no sentido de “resgatar” a influência das virtudes cristãs na sociedade e de combater a “iniquidade” que proliferava na esfera pública.

Nas eleições presidenciais de 1976, os temas ligados à moral religiosa, entre eles o direito ao aborto e a fé pessoal dos candidatos, ganharam um grande destaque nos debates. Para os fundamentalistas, era preciso votar em “homens de Deus” para que o Congresso, o Executivo e o Judiciário voltassem a se pautar pelos valores morais do cristianismo. Os republicanos buscaram ao máximo manter o suporte que começaram a receber dos religiosos conservadores durante a década de 1960. Nenhum dos dois principais candidatos republicanos, Gerald Ford e Ronald Reagan, levava uma vida devota ou tinha um maior interesse em questões religiosas. Mas, a partir do momento em que sentiram a necessidade de garantirem os votos dos fundamentalistas, citações a Deus e à “América Cristã” tornaram-se cada vez mais recorrentes em seus discursos.

O Partido Democrata, que havia ganhado a antipatia dos fundamentalistas (especialmente do Sul) após seu suporte para as legislações sobre direitos civis e, também, pela radicalização do discurso mais liberal de alguns de seus integrantes, saiu atrás nessa luta pelos votos dos religiosos mais conservadores. Na questão do aborto, embora não tenham apoiado de forma aberta nenhuma pauta claramente a favor do direito ao aborto, os democratas, no geral, opunham-se à tentativa da aprovação de uma emenda constitucional o proibindo. Entretanto, apesar desse quadro adverso, um dos primeiros políticos a conseguir capitalizar esse voto religiosamente orientado foi Jimmy Carter. Por mais improvável que pudesse parecer o apoio dos fundamentalistas a um candidato democrata - partido dos contestados presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson -, as declarações de Carter sobre sua experiência religiosa e sua autoidentificação como born again Christian fizeram com que vários religiosos vissem sua candidatura como uma resposta às suas orações e como a possibilidade de colocar um “homem de Deus” na Casa Branca. Contudo, a “lua de mel” entre Carter e os fundamentalistas começou a entrar em crise antes mesmo de sua eleição. Durante a campanha, os posicionamentos do candidato democrata sobre questões morais e espirituais lhe renderam várias “saias-justas” em sua tentativa de agradar, ao mesmo tempo, os liberais democratas e os religiosos conservadores. Mesmo com essas polêmicas, Carter saiu vitorioso da eleição presidencial, tendo inclusive vencido em todos os estados do Sul, com exceção da Virgínia. Para muitos religiosos, a autoidentificação como “cristão renascido” falou mais alto do que as citadas polêmicas. Porém, a relação entre o presidente Carter e o conservadorismo religioso foi se tornando insustentável e, no final de seu mandato, as lideranças fundamentalistas estavam entre as mais eloquentes forças de oposição ao seu governo.

Até esse período, os fundamentalistas podiam se queixar dos posicionamentos do presidente, da secularização da sociedade norte-americana e das seguidas “derrotas” que sofriam nas culture wars. Entretanto, sua estrutura paralela de escolas, institutos bíblicos, seminários, programas na mídia etc. continuava crescendo e viabilizava sua “sobrevivência” como uma importante minoria às margens do mainstream cultural norte-americano. Entendemos que o momento crucial de modificação da forma de atuação dos fundamentalistas na esfera pública política norte-americana - após anos de sectarismo e incursões ocasionais e desorganizadas em questões de fundo moral e religioso - se deu quando as “ameaças” secularistas não colocavam em risco só a sua idílica “América Cristã” fundada a partir da “fé de nossos pais”. A partir de meados da década de 1970 e, especialmente, durante o governo Carter, havia um temor generalizado entre importantes lideranças fundamentalistas de que o governo federal estaria buscando legislar e regular as estruturas organizacionais, educacionais e midiáticas ligadas às igrejas e aos grupos religiosos conservadores. Temia-se ingerências e fiscalizações sobre o recebimento de doações, limitação de espaço na mídia etc.

No entanto, esses temores só ganharam corpo e um “caso concreto” a partir das ações do governo federal que tornaram mais rigorosas e exigentes as políticas de isenção fiscal para escolas particulares confessionais. Especialmente após a série de decisões da Suprema Corte sobre a inconstitucionalidade das orações e leitura da Bíblia nas escolas públicas, o número de escolas confessionais criadas e administradas por igrejas e organizações fundamentalistas teve um grande crescimento nos Estados Unidos. De acordo com Hartman (2015HARTMAN, Andrew. (2015), A history of the culture wars: a war for the soul of America. Chicago: University of Chicago Press .:85), entre 1965 e 1975 as matrículas em escolas cristãs cresceram 202 por cento e, em 1979, já somavam mais de um milhão de alunos. Para os fundamentalistas, essas escolas seriam um “oásis” onde as crianças poderiam estudar com base em uma perspectiva cristã e livre dos perigos representados por uma escola pública secular e secularizante e por professores “ateus” que estariam buscando abalar a fé de seus filhos com o ensino da teoria da evolução, educação sexual e outras bandeiras da “falsa ciência”. Além disso, é importante relembrar que o grande polo dessas escolas - assim como a grande massa de igrejas fundamentalistas - se encontrava no Sul, um sul que ainda tentava digerir o fim do sistema de segregação racial. O período de grande crescimento das escolas cristãs citado por Hartman - 1965-1975 - coincidiu com o momento de dessegregação das escolas públicas. Se nestas últimas a convivência com os negros havia se tornado obrigatória, o mesmo não seria necessariamente verdade nas escolas particulares. Obviamente, o governo federal percebeu essa tendência e criou uma série de dispositivos para impedir essa prática.

Apesar desse “endurecimento” na legislação ter sido iniciado no governo Nixon e prosseguido no governo de Gerald Ford, a “antipatia” que vinha sendo nutrida por líderes fundamentalistas em relação a Carter desde o período da campanha de 1976 fez com que ele “capitalizasse” toda a fúria fundamentalista. A ação do Internal Revenue Service (IRS, a receita federal norte-americana) em 1978, tentando impor cotas mínimas de minorias raciais nas escolas privadas para que essas pudessem usufruir de isenções fiscais, foi o estopim de uma nova “cruzada” fundamentalista na arena política. Com essa atitude, o governo Carter acabou por gerar uma mobilização e organização política sem precedentes das escolas cristãs e das lideranças fundamentalistas. O baque financeiro para as escolas - que, além de uma “alternativa cristã” às escolas públicas, significavam uma enorme fonte de renda para os pastores e igrejas que as mantinham - seria terrível. Se o fundamentalismo conseguia se refugiar em suas “ilhas de santidade” - suas igrejas e suas escolas - nas décadas anteriores, agora, com o governo interferindo e prejudicando o funcionamento de suas instituições educacionais, não havia outra opção senão buscar combater esses governos “iníquos” não mais apenas com orações e pregações.

Ao invés de cederem à nova política do IRS e promoverem ações que incentivassem a presença de negros em suas escolas, as direções das Christian schools e as lideranças fundamentalistas fizeram um imenso lobby em Washington para tentar “derrubar” essa nova política. Tendo à sua frente Robert J. Billings, diretor de uma escola batista de Indiana, foi fundada a Christian School Action - que mais tarde seria transformada em National Christian Action Coalition (NCAC) - em 1978, uma organização que, num primeiro momento, buscaria deter a ingerência estatal nas escolas através de ações políticas. O racismo presente nas igrejas conservadoras do Sul foi escondido “debaixo do tapete”, e o discurso de Billings e outras lideranças fundamentalistas era de que o governo estaria procurando, com a desculpa de impedir a discriminação racial, obstruir a educação cristã e impor sua filosofia secular às crianças (Martin 1996MARTIN, William. (1996), With God on our side: the rise of the religious right in America. New York: Broadway Books.:169). Espalhava-se a ameaça de que, mesmo nas escolas particulares ligadas às igrejas, as crianças não teriam espaço para orações e leitura da Bíblia e entrariam em contato com o darwinismo, com o feminismo e com uma moral sexual mais flexível. A campanha capitaneada por Billings obteve uma grande adesão e, ao final da “batalha”, os fundamentalistas saíram fortalecidos: o IRS cedeu às pressões e recuou em seu plano.

O lobby pela autonomia das escolas cristãs mostrou aos líderes fundamentalistas o poder que poderiam exercer caso estivessem organizados e com seus discursos “afinados”. Billings declarou que “a controvérsia com o IRS fez mais pela união dos cristãos do que qualquer homem desde o apóstolo Paulo” (Williams 2010WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right. New York: Oxford University Press .:164). Relativizando um pouco a abrangência do termo “cristãos”, podemos dizer que Billings tinha certa razão. Como vimos, as lideranças religiosas conservadoras já vinham dando manifestações de força e de poder de pressão no espaço público, mas, até aquele momento, faltavam organização e lideranças claras que dessem foco e coesão ao movimento para defender seus interesses e valores. Como força dispersa e diluída em várias denominações e diversas lideranças locais, os fundamentalistas tinham dificuldades para se organizar ou mesmo para construir um discurso político comum. Após derrotar o IRS, o quadro alterou-se e as lideranças fundamentalistas decidiram não mais retirar sua “máquina de guerra” da arena política.

Entretanto, havia a necessidade de transformar essas mobilizações passageiras e motivadas por algum episódio polêmico em uma organização sistemática e permanente de defesa dos interesses dos cristãos conservadores. Como articular discursos e interesses que iriam da escola de Billings em Indiana às organizações fundamentalistas do sul da Califórnia, passando pelos líderes de pequenas igrejas do interior dos estados do Bible Belt? A ferramenta que viria a viabilizar uma nova dinâmica de atuação e organização dos fundamentalistas foi o uso da mídia. Desde a década de 1920, o rádio já vinha sendo utilizado pelos religiosos nos Estados Unidos, e os fundamentalistas não eram exceção. Para o fundamentalismo, “o rádio foi crucial para unir culturalmente uma congregação de fiéis dispersos no espaço geográfico, estabelecendo temas e agendas em comum” (Bellotti 2008BELLOTTI, Karina Kosicki. (2008), “A batalha pelo ar: a construção do fundamentalismo cristão norte-americano e a reconstrução dos ‘valores familiares’ pela mídia (1920-1970)”. Mandrágora, vol. 14: 55-72.:56).

No final da década de 1970, um dos mais famosos e influentes televangelistas norte-americanos era o pastor batista Jerry Falwell. Ele era pastor de uma enorme igreja na cidade de Lynchburg na Virgínia e, de acordo com Elliot (1988ELLIOT, Emory. (1988), “Religião, identidade e expressão na cultura americana: motivo e significado”. In: V. Sachs et al. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal.:125), no começo da década de 1980 seu programa Old Time Gospel Hour era “transmitido por 324 estações de televisão, visto por 50 milhões de espectadores, e disp[unha] de um orçamento de um milhão de dólares semanais”. Já tendo se firmado como um dos mais populares pregadores norte-americanos, Falwell progressivamente fez a passagem de um discurso sectário de afastamento das “coisas do mundo” para pregações e declarações sobre a necessidade de trazer os Estados Unidos de volta à pureza moral e a seus fundamentos cristãos, mesmo que fosse preciso para isso agir por canais políticos.

Muitos fundamentalistas criam na necessidade de se ter uma liderança, uma “voz” que falasse em nome de seus interesses e, em 1979, Billings convidou Falwell para uma reunião na qual estavam presentes outras lideranças religiosas conservadoras6 6 Paul Weyrich, Howard Phillips, Richard Viguerie e Ed McAteer. . No pensamento deles, os verdadeiros crentes no Senhor Jesus Cristo não poderiam mais assistir de braços cruzados à decadência da nation under God que estaria sendo fomentada pela geração dos anos sessenta e por governos ímpios. A América deveria voltar para os trilhos de seu caminho rumo ao futuro luminoso. Cientes disso e colocando a herança cristã como a principal base sobre a qual essa nação-exemplo teria sido construída, eles buscaram direcionar seu discurso ao que chamavam de “maioria silenciosa”. No entendimento dessas lideranças conservadoras, a grande maioria dos norte-americanos também via com desconforto os rumos políticos e morais do país. Porém, essa maioria estaria desmobilizada: apenas lamentava o fato e não agia politicamente para tentar reverter a situação. Com o intuito de criar um instrumento para transformar o descontentamento em prática política, Billings, Falwell e os demais presentes na citada reunião fundaram uma organização política chamada Maioria Moral (Moral Majority).

A difusão da mensagem dessa nova direita cristã pelo país também se beneficiou de certos movimentos de mobilidade demográfica e social que ocorreram nos Estados Unidos ao longo do século XX. Especialmente com a migração de sulistas para outras partes do país em busca de empregos na indústria - como ocorreu no sul da Califórnia7 7 Cf. Alves Jr. (2013). -, os valores fundamentalistas tornaram-se cada vez menos “coisa de caipiras do sul”. “Os eleitores evangélicos socialmente conservadores dos subúrbios do Sunbelt e do Meio-Oeste também fizeram progressos em outras áreas. Em 1960, somente 7% dos evangélicos tinham ensino superior, mas em meados da década de 1970 esse número havia aumentado para 23%” (Williams 2010WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right. New York: Oxford University Press .:161). Ainda de acordo com Williams, cresceu o número de brancos sulistas vivendo em áreas urbanas. Esse público com formação teológica conservadora sentiu-se atraído pelos grandes ministérios midiáticos e pelas igrejas que mantinham um discurso religioso, moral e politicamente conservador. Se, por um lado, as crenças fundamentalistas tradicionais, entre elas o pré-milenarismo, eram abraçadas, por outro, a apatia política e o sectarismo que poderiam ser viáveis nas pequenas cidades rurais do deep South tornavam-se impraticáveis para essa classe média ascendente que queria manter sua fé, mas também desejava melhorar seu nível de vida e, inclusive, influenciar a esfera política para defender seus interesses. Podiam até mesmo crer que o retorno de Jesus era iminente, mas estavam mais preocupados em fazer as suas economias para pagar a universidade para os filhos, comprar suas casas nos subúrbios usando financiamentos de longo prazo, contratar planos de aposentadoria privada etc.

Reinhardt (2011REINHARDT, Bruno. (2011), “Reiterando o pacto: história, teologias políticas cristãs e a religião civil americana em uma era de multiculturalismo e império”. Religião & Sociedade , vol. 31, nº 2: 29-54.:34-35) menciona a importância de uma “mudança na balança cultural Norte/Sul” após a diminuição das tensões em relação à questão racial para a maior penetração nacional dos discursos de lideranças da Maioria Moral:

Os anos 1970, portanto, são marcados pelo avanço tenso, mas contínuo, da integração racial nos territórios do sul, após o turbilhão gerado pelo movimento em prol dos direitos civis no país. Tal processo ocorre de modo paralelo à lenta incorporação da região, antes tida como uma área cultural isolada, pela consciência nacional. Nesses termos, a lógica antagonista do fundamentalismo passa a operar não mais em referência à sua custódia sobre a cultura sulista, mas em confronto com o que consideram uma crise de abrangência nacional. Essa mudança de escopo acompanha uma importante troca de prioridades. A ênfase no tema da raça passa ser substituída pela defesa da família através de temas relativos à vida, ao gênero e à sexualidade, tais como aborto e eutanásia, pornografia, direitos reprodutivos e direitos dos gays.

Rapidamente a Direita Cristã, da qual a Maioria Moral seria a principal organização, se tornou uma grande força política nos EUA e tinha como principais bandeiras: a defesa dos “valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em qualquer caso, o combate à expansão dos direitos dos homossexuais e, também, a restrição à pornografia); a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas; o combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa de cunho patriótico ferrenha do capitalismo e do “modo de vida” americano; uma posição extremamente crítica às políticas de bem-estar social; a defesa de uma postura pró-Israel por parte do governo norte-americano; entre outras. Esse movimento acabaria se tornando uma importante base popular para o conservadorismo e para o Partido Republicano, que, com as seguidas decepções dos fundamentalistas com os governos democratas, acabou recebendo a simpatia e tornando-se o abrigo partidário das lideranças da Direita Cristã. A luta na arena política em torno dos valores pro-moral, pro-family e pro-life fez com que lideranças da Maioria Moral renunciassem ao seu sectarismo numa busca pragmática por aliados. De acordo com Reinhardt (2011REINHARDT, Bruno. (2011), “Reiterando o pacto: história, teologias políticas cristãs e a religião civil americana em uma era de multiculturalismo e império”. Religião & Sociedade , vol. 31, nº 2: 29-54.:34), a movimentação da direita religiosa atraiu “outros grupos conservadores, como católicos romanos e mórmons”. Com sua força crescente, a Maioria Moral mobilizava-se no sentido de cadastrar eleitores, apoiar candidatos que abraçassem suas bandeiras e trabalhar contra as candidaturas de políticos que consideravam liberais e “inimigos da família”. A Maioria Moral e as diversas organizações da Direita Cristã também souberam se organizar para atuar no Congresso como grandes lobbies para aprovar projetos de seu interesse e para impedir a tramitação e aprovação de leis “anticristãs”.

Conclusão

A onda conservadora, da qual a Direita Cristã era parte essencial, ganhou força nos Estados Unidos ao longo da década de 1970 e gerou uma mudança na própria autocompreensão dos fundamentalistas. De um grupo minoritário e com características sectárias - grupo dos “santos” que se opunha às opressoras “ideias mundanas” que haviam se tornado hegemônicas no país -, os fundamentalistas passaram a acreditar que vários de seus valores eram compartilhados pela maioria da população norte-americana, a “maioria silenciosa” da qual falava Falwell. Cresceu o sentimento de que a “América” pertencia aos fundamentalistas e de que os fundamentalistas pertenciam à “América”. De acordo com Williams (2010WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right. New York: Oxford University Press .:160), “no final da década de 1970, os evangélicos desfrutavam de um grau de riqueza e de prestígio social maior do que em qualquer outro momento do século XX”. Em menos de uma década, as expectativas dos fundamentalistas em relação ao futuro do país haviam se transformado: se em 1970 o que restava aos cristãos era orar e buscar ganhar o máximo de “almas para Jesus” antes do Arrebatamento, em 1980 o foco estava em transformar os Estados Unidos em uma nação cristã, moral e próspera, enquanto Jesus não retornava para buscar os seus.

Os fundamentalistas entraram na década de 1980 extremamente fortalecidos politicamente e alimentando sonhos de levar os Estados Unidos novamente à “estrada da bem-aventurança”. Um ambiente muito diferente do início dos anos 1970. E o otimismo tornou-se ainda maior com a eleição de Ronald Reagan. Apesar de nunca ter sido um cristão muito fervoroso, Reagan percebeu a imensa força da Direita Cristã e abraçou as suas bandeiras, construindo um discurso que agradava as lideranças fundamentalistas. Nesse período, representantes do conservadorismo fundamentalista foram nomeados para importantes cargos no governo federal. O próprio Robert Billings assumiu um cargo relevante no Departamento de Educação do governo norte-americano, sendo responsável pela coordenação dos seus dez escritórios regionais. Organizados como uma grande força dentro do Partido Republicano, os fundamentalistas começaram a sentir o “gostinho” do poder. Sentiam-se agora como peças importantes do tabuleiro político norte-americano, com fácil acesso ao presidente e capazes de influenciar os resultados das eleições e a escolha de juízes conservadores para a Suprema Corte. A Reaganation apresentava-se como a “terra prometida” para os setores conservadores da sociedade norte-americana.

Dessa forma, encorajados pela onda conservadora, organizados através da mídia religiosa e mobilizados por novas “ameaças” - como a legalização do aborto -, os fundamentalistas fizeram uma transição, durante a década de 1970, da apatia política para uma organizada e poderosa forma de militância no espaço público e para um discurso de que faziam parte, não mais da comunidade dos “santos perseguidos”, mas sim da “maioria silenciosa”, uma minoria que se entendia como porta-voz da maioria dos norte-americanos.

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  • WILLIAMS, Daniel K. (2010), God’s own party: the making of the Christian Right New York: Oxford University Press .

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  • 1
    Tradução nossa do trecho original em inglês. O mesmo ocorre em todas as citações diretas de obras em inglês ao longo do texto.

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  • 2
    Apesar de estarmos cientes do equívoco de rotular todas as correntes de renovação da teologia do século XIX como liberais - como se tratasse de uma única escola de pensamento teológico -, ao longo do trabalho utilizaremos a expressão teologia liberal e liberalismo teológico para nos referirmos às perspectivas teológicas contra as quais se opunham os fundamentalistas/conservadores.

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  • 3
    Os eventos ocorridos antes, durante e depois do julgamento do Caso Scopes no Tennesse possuem uma série de nuanças, como o papel da American Civil Liberties Union (ACLU), que colocou anúncios em alguns jornais do estado pedindo a colaboração de algum professor local disposto a desafiar a lei do Tennessee. Devido aos limites deste texto, apresentamos o episódio de forma bem resumida. Para maiores detalhes sobre o Scopes Trial, ver Larson (1997LARSON, Edward J. (1997), The summer of the gods: the Scopes Trial and America’s continuing debate over science and religion. New York: Basic Books .).

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  • 4
    Apesar de todas essas adversidades, o fundamentalismo ainda atraía o interesse de muitas pessoas e o movimento continuou a ganhar adeptos. Bjerre-Poulsen (1988BJERRE-POULSEN, Niels. (1988), “The transformation of the fundamentalist movement, 1925-1943”. American Studies in Scandinavia, vol. 20: 91-103.:95) buscou atestar essa informação através da constatação do crescimento de denominações declaradamente fundamentalistas. Entre 1926 e 1940, os batistas do Sul conquistaram cerca de 1,5 milhão de novos adeptos - num total de 4.949.174 membros -, e as pentecostais Assembleias de Deus, muito fortes entre brancos do sul dos Estados Unidos, passaram de 47.950 para 198.834 membros no mesmo período.

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  • 5
    A noção de evangelicals está relacionada, mantendo-se aí uma continuidade com o sentido do termo no início do século XX, com a necessidade de uma conversão individual e uma experiência de vida santificada pela ação do Espírito Santo. O uso do termo ainda é alvo de controvérsias entre os pesquisadores do protestantismo norte-americano. De forma geral, entende-se que todos os fundamentalistas seriam evangelicals, mas nem todos os evangelicals seriam fundamentalistas.

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  • 6
    Paul Weyrich, Howard Phillips, Richard Viguerie e Ed McAteer.

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  • 7
    Cf. Alves Jr. (2013ALVES JR., Alexandre Guilherme da Cruz. (2013), “A direita cristã e o florescer econômico do sunbelt nos anos 1980”. Revista Cantareira, nº 18 (jan./jun.): 67-81. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2019
  • Aceito
    27 Abr 2020
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