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Mise-en-scène da religiosidade afro-brasileira no cinema de Arthur Omar: fabulações de um Reinado em A coroação de uma rainha

Mise-en-scène of Afro-Brazilian religiosity in Arthur Omar's cinema: Confabulations of a Reinado in The coronation of a queen

Resumo:

A proposta do presente artigo é refletir sobre a mise-en-scène das experiências do sagrado próprias às tradições do Congado, ou Reinado, no cinema-documentário, especialmente no filme A coroação de uma rainha (1993), de Arthur Omar. Baseado nos conceitos de fabulação e de sagrado, o artigo traz uma leitura da obra de Omar com atenção para as formas pelas quais o olhar da câmera, a montagem e a trilha sonora se afetam e, portanto, são constituídos pelos ritos, mitos e cosmologia do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá. Para tanto, identificam-se tanto os objetos, sons, gestos congadeiros que adquirem potência de ficção, quanto os recursos fílmicos que reverberam tal potência.

Palavras-chave:
experiência; sagrado; fabulação; temporalidade

Abstract:

The purpose of this article is to think about the mise-en-scène of religious experiences of Congadas, or Reinados, on film documentary, especially in the movie The coronation of a queen (1993), directed by Arthur Omar. Based on the concepts of confabulation and sacredness, the article brings a reading of Omar's work with attention to the ways how camera, montage and soundtrack become affected and, therefore, are constituted by the rites, myths and cosmology of the Reinado of Our Lady of the Rosary of Jatobá. To do so, we identify both the objects, sounds, gestures of Congadas that acquire a fictional power, as well as the filmic resources that reverberate such power.

Keywords:
experience; sacredness; confabulation; temporality.

Introdução

Não é de hoje que a religiosidade afro-brasileira vem se tornando motivo ou objeto de trabalhos realizados nos mais variados campos da arte moderna e contemporânea. Das religiões de matriz africana ao catolicismo popular, das artes plásticas ao cinema documentário, inúmeros foram os encontros, trocas e diálogos estabelecidos entre artistas e crentes, fiéis e/ou devotos de tradições religiosas fundamentalmente negras no decorrer de todo o século XX. Essas interações entre diferentes formas de sentir, pensar e agir (n)o mundo suscitam um amplo conjunto de questões filosóficas e antropológicas sobre as formas de mediação das experiências do sagrado próprias a essas tradições.

Na seara desses estudos, e no limite deste artigo, investigamos uma manifestação específica da religiosidade em questão (o Congado, ou o Reinado) tal como abordado por Arthur Omar - artista de várias linguagens, porém com intenso trânsito no campo do documentário -, dentro do filme A coroação de uma rainha (1993). A proposta é pensar o Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá no corpo a corpo com a obra de Arthur Omar e, para tanto, indagamos: por meio de quais mecanismos cinematográficos A coroação de uma rainha põe em cena tal experiência religiosa? Em que medida o filme é afetado pelos mitos, ritos e cosmologia, e como reverbera a potência que há neles? Como a abordagem dessa experiência dá forma(s) à sua fabulação?

Um estudo sob essa perspectiva se justifica, sobretudo, em função do atual contexto de produção de imagens que concernem às manifestações da cultura popular de um modo geral. Essa tendência à sua documentação nos mais variados suportes está, muitas vezes, fortemente associada a um movimento de patrimonialização em diversas esferas políticas.

Desde, pelo menos, a década de 1980, as tradições religiosas afro-brasileiras vêm se tornando pauta de atuação de muitos órgãos de patrimônio - do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) até os departamentos específicos do campo dentro das administrações municipais. A partir da década de 2000, esse trabalho se expandiu e generalizou por meio do instrumento legal do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, criado por meio de Decreto nº 3.551/2000. O “Tambor de Crioula” e o “Maracatu Nação”, por exemplo, já se tornaram objeto desse instrumento. As “Congadas de Minas” (nome usado provisoriamente para denominação das tradições do Congado no estado de Minas Gerais), por sua vez, estão sendo amplamente levantadas, identificadas e documentadas em um processo de Registro aberto no IPHAN em 2008 e em andamento até a data de elaboração deste artigo.

Paralelamente, observa-se uma proliferação de câmeras a registrar tais manifestações, “alimentando”, muitas vezes, o corpus de imagens-clichês exaustivamente reproduzidas nos meios de comunicação, e contribuindo para a banalização desses rituais e o consequente esvaziamento das forças dos saberes tradicionais, já tão obliterados pela indústria cultural em sua razão capitalista e pela epistemologia eurocêntrica.

Realizado justo em uma época na qual o interesse pelas manifestações da religiosidade afro-brasileira crescia rapidamente nos mais diversos campos do saber - do cinema documentário aos programas televisivos e órgãos de patrimônio -, A coroação de uma rainha põe em cena as experiências do sagrado de membros do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, mais especificamente de Alzira Germana Martins, uma senhora negra de meia-idade que é coroada, pelos seus, como Rainha de Nossa Senhora das Mercês.

O filme, produzido para exibição no canal da televisão inglesa, Channel Four, nos chama a atenção, sobretudo, pela direção de Arthur Omar, artista renomado no domínio do cinema experimental que, no início dos anos 1970, lançou no Brasil uma crítica voraz à fórmula padrão do cinema documentário vigente até então. Trata-se, principalmente, do artigo O antidocumentário, provisoriamente (1972) - no qual questiona o suposto dever do documentário de traduzir o real em cinema - e do filme Congo, produzido no mesmo ano - o qual se refere à experiência do Congado, mas a elabora por meio de um processo profundamente experimental, que rompe completamente com a estrutura clássica do documentário, principalmente daqueles que pretendem registrar e dar a conhecer rituais religiosos. A coroação de uma rainha ecoa algumas dessas questões, porém as trabalha sob uma orientação bastante particular, que ganha forma, sobretudo, nos anos 1990, a partir de trabalhos como Antropologia da face gloriosa (1993) e outros1 1 Referimo-nos a uma proposta artística que foi teorizada pelo próprio Arthur Omar e explicada por Ivana Bentes como uma “estética do êxtase”, articulada a uma “etnografia estética”. Enquanto a ideia de “estética do êxtase” se refere mais diretamente a um conceito – qual seja, o de êxtase –, a noção de “etnografia estética” se baseia em um método específico. Para Bentes, a proposta de uma “etnografia estética” surge em contraposição, ou em “substituição”, ao documentário convencional, sociológico ou folclorista, na medida em que visa “explorar estruturas do imaginário ao invés de fatos da realidade, num documental transcendido” (BENTES 2003: 115) Essa exploração se operaria, sobretudo, por um método chamado por Arthur Omar de “investigação livre”. O método consiste basicamente em “esquecer o que se sabe” sobre a realidade filmada – em vez de obter, ou manter, um conhecimento prévio –, a fim de que, por meio da primeira visão, do “primeiro contato virgem” com ela, sejam gerados sensorialmente – “através das imagens que se superpõem ou se sucedem” – conceitos não verbalizáveis, sensações novas, “que só poderiam surgir do trabalho daquela obra em particular” (OMAR 1999: 10). .

Criado em fins do século XIX por descendentes de africanos escravizados nas fazendas da região do Jatobá, limites do atual município de Belo Horizonte, o Reinado em questão era (e é até hoje) uma das irmandades de tradição “congadeira”2 2 A definição de Congado varia muito de acordo com o autor ou com a região onde o termo é utilizado. Por vezes, Congado é definido como a totalidade dos ritos de eleição, coroação e cortejo de reis negros. Em outros casos, é associado a apenas uma das guardas que compõem esses ritos, as guardas de Congo. A partir de meados do século XX, na região metropolitana de Belo Horizonte, tornou-se comum o uso do termo para se referir aos festejos de devoção negra – em honra a Nossa Senhora do Rosário e/ou outros santos católicos – conduzidos por guardas – sejam elas de Congo, Moçambique, Marujos, Caboclos etc. –, envolvendo Irmandades ou não, possuindo Reinados ou não. Seja como for, trata-se de um termo forjado no contexto de relatos sobre essas manifestações escritos por observadores externos, não pertencentes àquele universo. As primeiras referências às Congadas aparecem ainda no século XIX na narrativa de viajantes estrangeiros que, em suas andanças, presenciaram brevemente festas de reis negros em diversas regiões do Brasil (SOUZA 2002). mais antigas da capital mineira. Por meio de suas várias atividades - com destaque para a festa em honra a Nossa Senhora do Rosário -, o Reinado mantém um enorme repertório de cantos, ritmos, danças, histórias e até mesmo línguas herdadas dos antepassados vindos da África Centro-Ocidental, transmitido oralmente, de geração em geração, por décadas, num impressionante processo de resistência cultural e sociopolítica. Não à toa, dois anos depois do lançamento de Coroação, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá foi tombada pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte, ganhando o reconhecimento de patrimônio histórico do município3 3 Os processos de filmagem de Coroação e de elaboração do dossiê de tombamento da Irmandade foram simultâneos, porém, se desenvolveram de forma paralela, sem que um tenha influenciado diretamente o outro. Na verdade, embora tenha sido concluído dois anos depois do lançamento do filme, o trabalho da Prefeitura de Belo Horizonte se iniciou nos idos de 1991, antes mesmo das primeiras visitas de Arthur Omar ao Jatobá. .

Diante desse contexto, interpelados por uma proposta estética consagrada em uma filmografia de mais de duas décadas, indagamos: o que surge de potente na escritura fílmica de Arthur Omar quando ele se volta ao Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá - suas performances, narrativas e expressões, enraizadas em uma tradição de quase dois séculos -, e é por este afetado?

O filme: A coroação de uma rainha

A coroação de uma rainha põe em cena as experiências de Alzira Germana Martins, uma senhora negra que participa ativamente do Congado em seu bairro, na periferia de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Integrante do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, ela vem a ser coroada Rainha de Nossa Senhora das Mercês dentro dos festejos dessa Irmandade. A câmera acompanha os gestos, olhares e falas da personagem em sua própria casa e nos diversos ritos que compõem esses festejos, expondo-os quase sempre com foco sobre ela.

Ao longo do filme, podemos observá-la em seus preparativos para as cerimônias (maquiando-se, vestindo colares e brincos, mexendo no quintal ou cozinha), na coroação propriamente dita, na visita de uma guarda à sua casa, e na saída para um cortejo pelas ruas. Também assistimos depoimentos casuais ou formais em que ela expressa seus sentimentos ou relata suas vivências relacionadas a Nossa Senhora do Rosário e ao Reinado. Paralelo a eles, ouvimos a voz de sua filha, a professora Leda Maria Martins4 4 Filha da protagonista de A coroação de uma rainha, Leda Maria Martins desenvolveu uma ampla pesquisa sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, publicada no livro Afrografias da memória, uma importante referência sobre a temática do Reinado, fartamente utilizada no presente artigo. Cabe destacar que, após o falecimento de sua mãe, a pesquisadora herdou a coroa de Nossa Senhora das Mercês e a sucede hoje como Rainha. Paralelamente, Leda Martins é professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), vinculado à Faculdade de Letras (FALE). , que fala a respeito do mito fundador de toda a ritualística, a partir do qual seus principais elementos são significados. Ela conta a fábula da aparição de Nossa Senhora do Rosário para os africanos escravizados em um passado não datado e explica, a partir dela, fundamentos do Reinado e de suas guardas5 5 De acordo com Leda Martins, o termo guarda “designa um grupo específico de dançantes ou ‘marinheiros’, com suas vestes, funções e características próprias”. Vários indícios nos levam a supor que remetem, indiretamente, às cortes ou milícias que acompanhavam os reis das nações africanas em seus desfiles rituais. De um modo geral, o Congado, ou Reinado, é formado por uma significativa variedade de “guardas”, com diferentes funções, comportamentos e expressões conforme a sua tradição ou identidade específica – Moçambique, Congo, Marujo, Caboclo, Catopê, de Vilão, entre outras (MARTINS 1997). de Moçambique6 6 As guardas de Moçambique são as que “guardam as coroas”, isto é, aquelas que se mantêm sempre próximas de reis e rainhas, caminhando vagarosamente, sob batidas lentas, sincopadas, regulares, e levando, como instrumento, apenas o tambor, o patangome e a gunga. e Congo7 7 As guardas de Congo são as que “abrem os caminhos”, isto é, aquelas que estão sempre à frente das demais guardas, marchando agilmente, sob batidas repicadas, e utilizando uma variedade maior de instrumentos – além do tambor, os pandeiros, chocalhos, reco-recos, bem como violões e sanfonas. . Apropriando-se da voz de uma ou outra personagem, bem como dos cantos, ritmos, performances próprios de seu universo, o filme exibe uma face dessa tradição particular, diretamente vinculada à experiência de povos da África Centro-Ocidental no continente americano, ao longo de séculos de dominação e resistência.

O espectador é, assim, colocado diante de expressões amplamente vinculadas à memória coletiva de um povo, atualizada periodicamente por instrumentos, palavras e gestos de seus sujeitos. Ao longo do filme, os ritos performados no Jatobá são diversas vezes postos em relação às fábulas contadas a respeito de Nossa Senhora do Rosário e seu Reinado em meio à comunidade negra, como expressões indissociáveis entre si.

Por meio dos atos litúrgicos e cerimoniais, reinstaura-se o tempo mítico de “Nossa Senhora quando andava pelo mundo” e, ao mesmo tempo, testemunha-se oral, corporal e materialmente a experiência das majestades, cortes e sacerdotes da África Centro-Ocidental, da travessia do Atlântico, da escravidão no Brasil e do próprio Reinado do Jatobá. Os reis e rainhas do presente fazem o intermédio com a própria Nossa Senhora, os santos cristãos, os ancestrais fundadores, bem como herdam papéis dos reis e rainhas do passado, no contexto das nações africanas. As guardas de Congo são continuadoras dos negros escravos que, há muito tempo, por meio de seus repiques alegres e festivos, levantaram Nossa Senhora das águas do mar. As guardas de Moçambique, daqueles que, com suas batidas lentas e solenes, trouxeram Nossa Senhora até a terra firme, onde então ela sentou no tambor. O filme se apropria desses elementos que vêm sendo transmitidos, de geração em geração, pela oralidade, difundindo-os agora por meio da experiência coletiva do cinema.

A singularidade dessa posta em cena reside, no entanto, no fato de que, nas idas e vindas entre a observação dos rituais, a narração do mito, os depoimentos de seus atores-narradores, Arthur Omar promove uma intensa experimentação com a imagem e o som. Longe de se constituir como um “documentário sociológico”8 8 Referimo-nos nesse caso ao gênero narrativo que se tornou mais recorrente na elaboração de registros audiovisuais sobre a cultura popular de um modo geral. Herdando características de um “modelo sociológico” – conforme teorizado por Jean-Claude Bernardet em seu livro Cineastas e imagens do povo –, identificamo-lo como um gênero que se formou, sobretudo, em torno do propósito de documentar as manifestações de caráter regional ou étnico que constituem as “raízes” do país. No intuito de representá-las de modo abrangente, generalizante, totalizante, prevalece, nele, a opção por estratégias híbridas, as quais se apropriam, no mesmo enunciado, de recursos como a voz over de uma autoridade, a entrevista e a observação em som direto. A prática da entrevista é, sem dúvida, a mais difundida e, provavelmente, a mais automática, tendo em vista ser utilizada como um recurso aplicável em qualquer projeto de documentário, uma forma igualmente adequada para abordar qualquer tema. Cabe destacar que a noção de “modelo sociológico” foi criada por Jean Claude Bernardet a partir da análise de Viramundo (Geraldo Sarno 1964), entre outros filmes brasileiros da década de 1960 (BERNARDET 2003). a respeito do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá - como era de se esperar, tendo em vista o programa estético do diretor desde o radical Congo -, o filme tende para a abstração espaço-temporal do acontecimento em busca de uma transcendência, oscilando entre particularismos e generalidades, aproximações e distanciamentos, imersões e extrapolações. Por um lado, a manifestação quase não é contextualizada, são poucas as informações de onde, quando e como ela ocorre, e ainda menos sobre a relação que o cineasta possui com a mesma. Por outro lado, alguns gestos, sons e matérias dos rituais são destacados como leitmotivs, que aparecem repetidas vezes, quase sempre por meio de closes, slows ou fusões, de maneira a nos proporcionar um contato mais sensorial, corporal e intenso com eles. Algo da afetação que o cineasta sofre, exposto que está aos tempos do ritual, também nos afeta, espectadores de cinema que vemos aquele mundo recriado, potencializado em sua fabulação, por meio da dupla mediação que se imbrica em uma “subjetiva indireta livre”9 9 Utilizamos essa noção tal como aparece no pensamento de Gilles Deleuze a respeito do “cinema verdade” de Jean Rouch. O autor a desenvolve sob o viés da narrativa tal como é construída tanto no cinema de ficção quanto no cinema de realidade (ou documentário), identificando, em ambos, a presença de dois regimes da imagem: o da narrativa veraz, e o da narrativa simulante. A distinção entre ambos estaria nas relações entre sujeito e objeto – ou entre o que a câmera vê (objetiva) e o que o personagem vê (subjetiva) – que se desenvolvem em cada um. O primeiro regime, próprio do cinema clássico, é identificado como aquele em que as narrativas indiretas objetivas (do ponto de vista da câmera), e as narrativas diretas subjetivas (do ponto de vista da personagem) costumam aparecer explicitamente demarcadas, de modo a não gerar dúvidas ao espectador quanto à veracidade do que assiste. O segundo regime questiona a separação entre pontos de vista objetivo e subjetivo, superando a dicotomia da narrativa tradicional e estabelecendo uma contaminação dos dois tipos de imagem, “de tal modo que as visões insólitas da câmera (...) exprimiam as visões singulares da personagem, e estas se expressavam naquelas, mas levando o conjunto à potência do falso” (DELEUZE 1990: 181). Nesse regime, não é mais o ideal de verdade que está em vista. A narrativa assume um caráter de simulação que extrapola as fronteiras entre objetivo e subjetivo e, por sua vez, entre realidade e ficção. Situando-o nesse regime, Deleuze aborda o “cinema verdade” como uma tendência do documentário que mantém o gesto de filmar personagens reais sem neles buscar a apreensão de uma verdade, mas indo ao encontro de sua função de fabulação, que “dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda” (DELEUZE 1990: 183). Suas principais obras põem em cena não “a identidade de uma personagem, real ou fictícia, por meio de seus aspectos objetivos e subjetivos”, e sim “o devir da personagem real quando ela própria se põe a ‘ficcionar’, quando entra ‘em flagrante delito de criar lendas’, e assim contribui para a invenção de seu povo” (DELEUZE 1990: 183, grifo nosso). Daí a força política da fabulação: é ela que produz esse devir, essa passagem entre um antes e um depois, entre um si e uma invenção de si, entre a subjetividade e um povo por vir, que modifica tanto personagem quanto cineasta, ambos tornando-se “outros”. A personagem torna-se outra na medida em que, sendo real, sua fabulação afirma a ficção como potência, e não como modelo. O cineasta torna-se outro na medida em que substitui suas ficções pelas fabulações de seus personagens e, ao mesmo tempo, atribui a estas o estatuto de lendas, ou de memórias. : a de D. Alzira e sua experiência, e a de Omar e sua estética.

A manifestação: Congado, ou Reinado

A manifestação posta em cena em A coroação de uma rainha vem sendo abordada pelos mais variados estudos acadêmicos sob a denominação de “Congado”. No entanto, a complexidade e a especificidade daquela tradição nos obrigam a extrapolar o termo genérico e exógeno. Mais do que o Congado, o filme nos coloca diante de um Reinado:

Ainda que sejam tomados um pelo outro, os termos Congado e Reinado mantêm diferenças. Ternos ou guardas de Congo podem existir individualmente, ligados a santos de devoção em comunidades onde não existia o Reinado. Os Reinados, entretanto, são definidos por uma estrutura simbólica complexa e por ritos que incluem não apenas a presença das guardas, mas a instauração de um Império, cuja concepção inclui variados elementos, atos litúrgicos e cerimoniais e narrativas que, na performance mitopoética, reinterpretam as travessias dos negros da África às Américas (MARTINS 1997MARTINS, Leda Maria. (1997), Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza; São Paulo: Perspectiva.: 31-32, grifo nosso).

Em Coroação, portanto, estamos diante de uma manifestação performática10 10 A noção de performance se tornou um conceito-chave nas pesquisas contemporâneas sobre os Congados ou Reinados, na medida em que supera as leituras que tomam essas manifestações enquanto representações, proporcionando uma visada mais ampla do que aquelas lançadas pelos estudos folcloristas. Sob essa nova perspectiva, “o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance. Ou ainda, o gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas fundamentalmente, performativo” (MARTINS 2002: 72). , que não se encerra na pura e simples encenação de feitos passados no distante continente africano por homens trajados, agindo e falando à moda da época e do ambiente representado (suas vestimentas são mais do que fantasias, suas danças, mais do que imitações, e seus cantos, mais do que textos decorados e reproduzidos de forma automática), tal como retrataram muitos estudos folcloristas sobre o Congado. Em seus ritos, o que está em jogo não são apenas as vestimentas, instrumentos, ritmos, danças e cantos de cada guarda isoladamente, mas a articulação desses e outros elementos em uma performance que viabiliza a instauração de um Reino e que transforma a condição de status dos seus participantes dentro de uma “estrutura simbólica complexa” vivenciada diariamente antes, durante e depois dos festejos. Desse modo, a performance ritual11 11 Com essa observação, não pretendemos alegar que os efeitos em questão não sejam possíveis em uma performance teatral. Pelo contrário, reconhecemos a existência de um continuum entre o teatro e o ritual, uma vez que ambos podem vir a engendrar uma transformação simbólica e emocional tanto do performer quanto do espectador. Em sua análise sobre a atuação ritual-dramática de Verônica dentro das procissões e encenações da Semana Santa de Ouro Preto, Edilson Pereira, em diálogo com Richard Schechner, utiliza as noções de transformation e transportation para pensar os efeitos da “experiência de assumir certo personagem”, seja na esfera da arte ou da religião. Para o autor, essa atuação proporciona, à performer, uma saída de si mesma e do “mundo comum” (referente a seus papéis habituais e à vida cotidiana) e uma entrada em um mundo performativo (referente a uma figura emblemática, em um contexto ritual), cujo retorno ao primeiro estágio pode implicar em uma transformação da mulher e de seu próprio papel, ou lugar, nele (PEREIRA 2015: 206). afeta o próprio modo como o congadeiro se apresenta à comunidade e a si mesmo, não se apartando da vida cotidiana como algo isolado e estanque, mas a permeando, refletindo e constituindo em um constante processo de interação com a realidade social na qual o performer se insere.

Mesmo marcada pelas formas de relação com o sagrado impostas pela Igreja Católica ao longo de três séculos de escravidão africana no Novo Mundo, a tradição do Reinado possui fortes raízes nas culturas da África Centro-Ocidental ou, mais especificamente, dos povos bantos12 12 Banto é o nome atribuído genericamente, pelos ocidentais, ao conjunto de povos africanos falantes de línguas que têm uma origem comum. O termo foi criado por W. H. Bleck em 1860 ao estudar um grupo de cerca de 2.000 línguas africanas, identificando nelas diversas semelhanças morfológicas. Com o tempo, a denominação se estendeu e abarca, hoje, praticamente todos os grupos étnicos da África Centro-Ocidental, Oriental e Austral, em função não apenas de suas línguas, mas também de seus modos de vida, determinados por práticas afins. Entre esses grupos, os bacongos e ambundos – ocupantes da região dos rios Congo e Cuanza, respectivamente – foram os que influíram mais diretamente na formação dos Congados, ou Reinados, no Brasil (LOPES 2006). , tais como os bacongos, ambundos etc.

No âmbito da performance, em seu aparato - cantos, danças, figurinos, adereços, objetos cerimoniais, cenários, cortejos e festejos, e em sua cosmovisão filosófica e religiosa, reorganizam-se os repertórios textuais, históricos, sensoriais, orgânicos e conceituais da longínqua África, as partituras dos seus saberes e conhecimentos, o corpo alterno das identidades recriadas, as lembranças e as reminiscências, o corpus, enfim, da memória que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das diásporas (MARTINS 2002______. (2002), “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (org.).Performance, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Pós-Lit, Faculdade de Letras/UFMG.: 83).

Para Leda Martins, as cerimônias do Reinado traduzem a devoção a santos católicos por meio de uma gnosis ritual africana em sua concepção, estruturação simbólica e visão de mundo. Por um lado, seus ritos estão indissociavelmente vinculados à figura de Nossa Senhora do Rosário e às narrativas sobre sua aparição para os negros no contexto da sociedade escravocrata ocidental. Por outro, são permeados por uma filosofia telúrica africana, que está densamente baseada na noção de ancestralidade. Transmitida de geração em geração por meio de repertórios orais e corporais, naquilo que Martins chama de “oralitura da memória” - os traços mnemônicos inscritos na grafia do corpo em movimento e da vocalidade -, essa visão de mundo se mantém bastante presente entre os recriadores dos Reinados. Em sua performance ritual, esses sujeitos atualizam o saber filosófico para o qual a vida de cada indivíduo é uma extensão da vida dos antepassados, bem como uma preparação para que ela continue em seus descendentes. Todo indivíduo é concebido como “expressão de um cruzamento triádico: os ancestrais (...), as divindades e ‘outras existências sensíveis’, o grupo social e a série cultural” (MARTINS 1997MARTINS, Leda Maria. (1997), Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza; São Paulo: Perspectiva.: 37).

Assim, sua história não está dissociada da memória coletiva ancestral, familiar ou étnica, do mesmo modo que o humano não está separado do divino, nem o terreno, do celeste, nem o corpo, da palavra, mas se complementam. No mesmo circuito fenomenológico, são incluídos os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, “concebidos como anelos de uma complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e devir” (MARTINS 2002______. (2002), “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (org.).Performance, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Pós-Lit, Faculdade de Letras/UFMG.: 84).

Operador de análise: dupla fabulação

Em sua análise de A coroação de uma rainha, Consuelo Lins explora as relações entre sujeito e objeto estabelecidas por Arthur Omar, partindo de uma sumária comparação com Congo (1972)13 13 Congo (1972) foi um dos primeiros filmes de Arthur Omar, lançado juntamente com o seu consagrado ensaio O antidocumentário, provisoriamente. Na ocasião, filme e ensaio se tornaram um marco teórico e prático para a problemática da representação do Outro no cinema documentário brasileiro. O filme põe em xeque a representação do Congado, o qual já era então percebido como estando sob a constante ameaça de desaparecimento diante das transformações culturais e sociais impulsionadas pelo capitalismo. Apropriando-se de textos folcloristas sobre a encenação “teatral” do conflito entre uma corte de Rei do Congo e um embaixador da Rainha Ginga – no que foi identificado por Mário de Andrade como a parte dramática das Congadas, as Embaixadas –, o filme se desenvolve sem mostrar nenhuma imagem, fixa ou em movimento, dessa tradição. . A autora lembra que Congo nega o propósito de ser meio de representação do “objeto-congada” para tornar-se ele próprio um objeto fechado em si mesmo. Já Coroação não se isola completamente do acontecimento, mas também não o aborda como um objeto de estudo. Ainda investindo na experimentação fílmica, afirma “uma outra maneira de mostrar imagens do mundo e colocar em cena personagens” (LINS 1998LINS, Consuelo. (1998), “A coroação de uma rainha, ou a nobreza popular brasileira”. Cinemais, nº 10, Mar./ Abr. 1998, p. 35-42. 37). Lins sugere que Coroação opera com uma dupla fabulação. Em primeiro lugar, existe uma fabulação religiosa “profundamente enraizada e misturada à vida cotidiana dessa comunidade de negros” (LINS 1998: 41), para os quais os santos ou divindades possuem existências reais e as rainhas são de fato autoridades se não políticas, ao menos espirituais. A ela se soma então uma fabulação “que produz arte”. Por mais que esteja impregnado das referências trazidas pelo cineasta ao longo da sua carreira, o filme produziria essa segunda fabulação a partir da afetação pela primeira. O ato de fabular é, no filme, “uma atividade que envolve não apenas personagens, mas também o cineasta, que intensifica a fabulação dos outros, contribuindo para a invenção de um povo” (LINS 1998: 41).

Essa dupla fabulação de Coroação nos remete, em certa medida, aos trabalhos do antropólogo-cineasta Jean Rouch e às suas discussões a respeito de um “cine-transe”. Antecipando questões centrais para a antropologia contemporânea, o cineasta promoveu uma reviravolta epistemológica que “consistiu em acrescentar à tarefa de registrar e documentar por meio de imagens fenômenos socioculturais (...) uma dimensão propriamente dialógica” (SZTUTMAN 2009______. (2009), “A utopia reversa de Jean Rouch: de Os mestres loucos a Petit à Petit”. Devires - Cinema e Humanidades, vol. 6, nº 1. Belo Horizonte: UFMG.:. 111). Diferenciando-se dos filmes etnográficos produzidos até então, que estavam fechados em seus propósitos de retratar o Outro com um olhar unilateral, Rouch desenvolveu uma abertura para o Outro a partir de estratégias reconhecidas por se aproximarem dos métodos de uma antropologia reversa. Trata-se de métodos que se referem, em linhas gerais, a uma antropologia da “antropologia feita pelo Outro”, considerando que as reflexões desse sobre si mesmo ou sobre sua alteridade (o Outro do Outro, incluindo o Eu), feitas com base em seus próprios conceitos, possam ser tratadas como antropologia. “Num sentido mais largo, admitir uma antropologia reversa é considerar a reflexividade dos outros, é estabelecer uma espécie de ‘paridade epistemológica’ entre o observador e o observado” (SZTUTMAN 2009: 113). Produzir um “cinema reverso”, por sua vez, seria, em primeiro lugar, reconhecer o olhar como uma via de mão dupla: do mesmo jeito que segue da câmera para o filmado, retorna desse para aquela.

Tomando essa consciência do olhar, Jean Rouch submeteu seus filmes a um processo de “autoria múltipla”, no qual concede espaço para que os personagens, com suas auto-mise-en-scènes, se tornem coautores, direta ou indiretamente. Para Renato Sztutman, ao filmar os povos da África Ocidental, o cineasta tratou seu pensamento, seus costumes, suas tradições “não como ilusões ou enganos, tampouco como fenômenos que só se explicam por um conceito exterior a eles (...), mas, sobretudo, com base nos próprios termos por eles empregados” (SZTUTMAN 2009______. (2009), “A utopia reversa de Jean Rouch: de Os mestres loucos a Petit à Petit”. Devires - Cinema e Humanidades, vol. 6, nº 1. Belo Horizonte: UFMG.: 114).

No filme Yenendi, les hommes qui font la pluie (1951), por exemplo, Rouch põe em cena diversos ritos de possessão de uma aldeia Sorko, executados com a finalidade de pedir a Dongo, mestre do trovão, que se faça a chuva, para depois nos mostrar, por meio da última sequência do filme, que a chuva de fato se fez e, logo, que os ritos têm um poder sobre o mundo. Considerando os saberes africanos sobre a natureza, as divindades, o cosmos como formas legítimas de conhecimento, Rouch assume que “há algo que nós [ocidentais] ainda não conhecemos e que interessa a toda a humanidade” (ROUCH apud SZTUTMAN 2009______. (2009), “A utopia reversa de Jean Rouch: de Os mestres loucos a Petit à Petit”. Devires - Cinema e Humanidades, vol. 6, nº 1. Belo Horizonte: UFMG.:11). Com base nesse pressuposto, ele opera, neste e em outros filmes, um trabalho de atualização, ou realização, das experiências mágico-religiosas dos povos que filma dentro de sua mise-en-scène. Ao longo das décadas de 1950, 60 e 70, esse trabalho será radicalizado em vários sentidos, até o ponto de a própria câmera ser afetada pelos ritos de possessão filmados, levando-a a “imitar”, ou viver, o transe.

Em alguns casos, como no filme Les Maîtres Fous (1954), as imagens produzidas por Rouch chegaram a ser vistas por seus pares como incompletas, descontextualizadas e, sobretudo, perigosas, uma vez que estabelecem com a possessão uma associação por contiguidade, na qual “filmar o ritual é (...) menos retratá-lo que potencializá-lo, amplificá-lo” (SZTUTMAN 2005SZTUTMAN, Renato. (2005), “Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch”. Cadernos de campo, nº 13, p. 115-124.: 122). Daí a expressão “cine-transe”, cunhada pelo próprio cineasta para se referir à proposta de um cinema em que a câmera, ao participar ativamente da cena filmada, é capaz de conduzir o público ocidental a uma experiência análoga à do ritual africano. Para Sztutman, “o cinema rouchiano constrói-se (...) sob o signo do ritual de possessão, que lhe oferece, sem abolir o perigo, um certo modo de mostrar e agir sobre o mundo, passando pela proposição de um outro mundo, prenhe de imagens ambíguas, entre a humanidade e a divindade” (SZTUTMAN 2005: 124).

Uma das razões pelas quais as imagens dos corpos possuídos em Les Maîtres Fous foram consideradas perigosas concernia à acusação de que o filme não media o efeito que elas poderiam ter para a audiência e, logo, oferecia o risco de endossar o racismo, ao permitir o entendimento de que a subordinação de negros era justificável por seu caráter “selvagem”.

O perigo que as imagens de corpos possuídos (e, portanto, de práticas rituais não familiares aos ocidentais) oferecem para nossa sociedade pode ser relacionado, ainda que indiretamente, à forma que a religião adquire na modernidade, definida pela noção de crença e por ela confinada a uma esfera marginal, oposta ao saber científico.

Em reflexão sobre o “fetiche” e a crítica dos modernos aos “fetichistas”, Emerson Giumbelli pensa a crença, à luz de Bruno Latour, como uma noção comprometida com a separação entre sujeito e objeto e, logo, entre epistemologia e ontologia, uma vez que denuncia as projeções de representações (atributos humanos, por exemplo) sobre a realidade (coisas da natureza, supostamente autônomas) que ocorrem na esfera da religião. Parafraseando o filósofo francês, Giumbelli sugere que a “crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre povos […]. Em todos os lugares que eles [os modernos] jogam a âncora, eles estabelecem fetiches, ou seja, eles veem em todos os povos com que encontram adoradores de objetos que são nada” (LATOUR apud GIUMBELLI 2011GIUMBELLI, Emerson. (2011), “A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad”. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 17, nº 35, Jan./Jun. 2011, p. 327-356.: 344)14 14 Emerson Giumbelli observa que o gesto de denúncia dos modernos aos fetichistas costuma ser acompanhada de um movimento de destruição e/ou de reparação dos fetiches. Por um lado, busca-se a desconstrução dos mecanismos de sua invenção para que os objetos sejam reconhecidos “tal como eles são”. Por outro lado, reivindica-se a preservação dos mesmos objetos em museus, por exemplo, como testemunho de um imaginário ultrapassado, ou em vias de se tornar passado. Cabe destacar que esse movimento é observável em diversos campos discursivos da modernidade, entre eles, o próprio cinema. No cinema documentário identificado por nós como “sociológico”, tornou-se recorrente a abordagem da religiosidade popular como sendo feita de práticas condenadas ao desaparecimento, em vista de seu (suposto) caráter arcaico, primitivo e, em alguns casos, até irracional, diante do qual os filmes assumem uma de duas posturas: a crítica ao que é visto como ilusão, engano, alienação, ou o lamento por aquilo que é dado como perdido. É justo com essa dualidade que os cinemas de Jean Rouch e de Arthur Omar, por exemplo, rompem, uma vez que desviam tanto à crítica baseada na razão científica, ou moderna, quanto a uma defesa motivada pela perda. .

Desse modo, a noção de crença se tornou, por meio de um longo processo histórico, um recurso construído e utilizado pela modernidade em sua crítica à fragilidade ontológica da religião, acusando-a de “ter mais a ver com os sujeitos e suas representações do que com o mundo objetivo” (GIUMBELLI 2011GIUMBELLI, Emerson. (2011), “A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad”. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 17, nº 35, Jan./Jun. 2011, p. 327-356.: 348). Sabemos, no entanto, que as críticas em questão só se sustentam com base em um regime de verdade próprio da ciência. A noção de crença, portanto, nos diz menos sobre os chamados “fetichistas” do que sobre “como agem e o que fazem os modernos”.

Em referência a sua pesquisa sobre um terreiro de Candomblé em Ilhéus/BA, Marcio Goldman, em diálogo com Favret-Saada, Lévy-Bruhl, Evans-Pritchard e outros, propõe que, ao se abordar o que é próprio da religião, a questão da crença seja repensada. Um estudo sobre o sagrado não pode se limitar à mera identificação de que as pessoas crêem nisto ou naquilo, mas deve tomar ritos, mitos, cosmologia como um saber sobre o mundo. Nesse sentido, GoldmanGOLDMAN, Marcio. (1999), “A experiência de Lienhardt: uma teoria etnográfica da religião”. Religião e Sociedade, nº 19, 1999B, p. 9-30. sugere que o sagrado seja percebido não como crença, mas como experiência, a qual pode ocorrer em vários níveis, e não apenas no nível da religião, tal como definida pela modernidade15 15 Aproximamo-nos das reflexões de Michel Leiris a respeito do “sagrado na vida cotidiana”, nas quais o autor o pensa como um estado, ou “mundo”, que não ocorre apenas no âmbito da religião, pátria ou moral, mas pode ser suscitado por “fatos bem simples”, por objetos, lugares ou circunstâncias que despertem um “misto de temor e apego”, “essa atitude ambígua determinada pela aproximação de algo ao mesmo tempo atraente e perigoso, prestigioso e rejeitado” (LEIRIS 2017: 15). Esse pensamento nos leva a considerar que o sagrado se institui menos por uma crença do que por uma experiência relacionada ao secreto, ao vertiginoso, ao sobrenatural. . Assim, um etnógrafo que não partilha das crenças de um “nativo” poderá sim ter experiências do sagrado análogas às suas. Não se trata, porém, de se identificar com o ponto de vista do “nativo”, nem tampouco de se utilizar da experiência de campo para fechar-se em seu próprio. Com isso, Goldman propõe, ao contrário, que, por meio da afetação pela experiência do “nativo”, se vise um equilíbrio entre a aproximação e o distanciamento na relação com o Outro.

Nos termos de Favret-Saada, trata-se assim de ser afetado pelas mesmas forças que afetam o nativo, não de pôr-se em seu lugar ou desenvolver em relação a ele algum tipo de empatia. Não se trata, portanto, de apreensão emocional ou cognitiva dos afetos dos outros, mas de ser afetado por algo que os afeta e assim poder estabelecer com eles uma certa modalidade de relação (GOLDMAN 2003______. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos”. Revista de Antropologia, vol. 46, nº 2. São Paulo: USP.: 465).

Guardadas as diferenças entre finalidades, a antropologia de Marcio Goldman e o cinema de Jean Rouch podem ser relacionados, em vários quesitos, com os trabalhos de Arthur Omar, principalmente no que diz respeito a seus métodos de afetação pela realidade abordada.

De volta à análise de Consuelo Lins, cabe trazer para discussão a sua hipótese de que Coroação trabalharia com “subjetivas indiretas livres”. A autora menciona, como exemplo, um segmento inicial do filme, em que assistimos o rosto de uma criança soprando para o alto em fusão com nuvens que se movimentam no céu, ao mesmo tempo em que ouvimos ruídos que simulam o sopro do vento. Por meio da junção dessas duas imagens, o filme nos proporcionaria, segundo ela, experimentar uma crença “sem passar pela religião”, em uma “espécie de milagre cinematográfico” (LINS 1998LINS, Consuelo. (1998), “A coroação de uma rainha, ou a nobreza popular brasileira”. Cinemais, nº 10, Mar./ Abr. 1998, p. 35-42.: 36).

Nessa operação, a imagem objetiva estaria se contaminando por algum grau de subjetividade por meio do que ela chama de “mise-en-scène da crença”, permitindo ao filme mostrar o poder da fé de transformar realidades - a ponto de mover nuvens - “sem imprimir um tom crítico, mas também sem que haja uma adesão à crença religiosa” (LINS 1998LINS, Consuelo. (1998), “A coroação de uma rainha, ou a nobreza popular brasileira”. Cinemais, nº 10, Mar./ Abr. 1998, p. 35-42.: 41). Essa crença religiosa seria duplicada a partir de uma crença no cinema - e, talvez, em um cinema do transe, ou do sobrenatural.

Na abordagem de Lins, o par crença/religião nos lança a uma terceira perspectiva no interior desse amplo debate. Se ela faz uma separação clara entre ambos é para afirmar outra união: aquela que religa o cinema - um empreendimento moderno - ao sobrenatural, ao mítico, ao sagrado, dimensão à qual ele esteve ligado desde seu nascimento. Como lembra Edgar Morin, pensador e companheiro de filmagem de Rouch, citando Valentin: “a objetiva confere a todo que se aproxima um aspecto de lenda que transporta tudo o que cai em seu campo para fora da realidade. O espantoso é que a qualidade ‘lendária’, ‘surrealista’, ‘sobrenatural’ provenha diretamente da imagem mais objetiva que se possa conceber!” (2014: 32).

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Marco Rodrigo, a criança que sopra nuvens

Trata-se agora de nos voltarmos novamente para o cinema documentário (e para Coroação) também ele como, potencialmente, uma experiência do sagrado, a qual se dá em outro nível de religião que não aquele do Congado. A ideia de “crença no cinema”, ou de “milagre cinematográfico”, remete à experiência do espectador que é conduzido a uma crença, até então não partilhada com os congadeiros. Tal crença se dá pelo processo de projeção que acomete aquele que assiste ao filme na tela gigante à sua frente, no interior da sala escura de cinema. A ideia é que o cinema, em função do caráter “de duplo” da imagem, evoca a dimensão fantasmática e encantada do mundo pela qual corpos, rostos e sons permitem, por serem uma presença-ausente, a extensão do imaginário e, portanto, uma passagem ao ato de fabulação conjunta.

O cinema opera um tipo de ressurreição da visão primitiva do mundo descobrindo a superposição quase exata entre a percepção real e a visão mágica - sua comunicação sincrética. Ele atrai, permite e tolera o fantástico, inscrevendo-o no real. Ele renova, diz muito claramente Epstein, o espetáculo da natureza e “nele, o homem encontra alguma coisa de sua infância espiritual (...)” (MORIN 2014MORIN, Edgar. (2014), O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações-Editora.: 187).

Por meio dos atributos próprios ao aparato técnico e das opções estéticas do cineasta, Coroação opera no nível do sagrado, permitindo que aqueles que não partilham das mesmas crenças - como, no caso, o congadeiro e o espectador branco não congadeiro, por exemplo - possam partilhá-las na experiência da sala de cinema. Ao ampliar rostos na tela por meio de uma mise-en-scène controlada, ao dividir e reunir o tempo pela montagem fragmentada, Arthur Omar reafirma o cinema como passagem entre universos da crença, que alarga a noção de religião como experiência do sagrado, graças à mediação cinematográfica. Sobre essa potência de mediação, Epstein diz:

As vidas que ele (o cinema) cria, tirando os objetos das sombras da indiferença, levando-os à luz do interesse dramático, essas vidas (...) parecem-se com a vida dos amuletos, dos patuás, dos objetos ameaçadores e tabus em certas religiões primitivas. Creio que se quisermos compreender como um animal, uma planta ou uma pedra podem inspirar respeito, temor, terror, três sentimentos sobretudo sagrados, é preciso vê-los viver numa tela de cinema (EPSTEIN apud MORIN 2014MORIN, Edgar. (2014), O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações-Editora.: 187).

Percursos do sagrado: sons, rostos, corpos gloriosos

Coroação se desenvolve em uma constante oscilação entre imagens de Dona Alzira, em particular, e imagens do Reinado do Jatobá em geral. Em certas cenas, a performance da rainha e sua coroa se sobressai, toda a atenção se concentra nela; em outras ela quase desaparece. No entanto, não esquecemos que ela integra, junto com os demais congadeiros, o mundo filmado, sendo a personagem escolhida por Omar para, de um modo geral, mediar nossa imersão no universo místico do Reinado. Seu gesto fabulador, impresso em sua voz, sua postura e suas ações como Rainha de Nossa Senhora das Mercês, subjaz toda a narrativa do filme. Ao longo dela, essa senhora negra de meia-idade, moradora de um bairro de periferia, se constrói não apenas como mais uma congadeira, devidamente identificada, subjetiva ou objetivamente, que nos fornece informações, conta histórias, expressa sentimentos relativos a uma determinada manifestação folclórica. Pelo contrário, D. Alzira emerge como aquela que, por ocasião dos festejos em honra a Nossa Senhora do Rosário, torna-se de fato uma rainha e, por meio de sua coroa, se aproxima do mundo dos ancestrais, dos santos e das divindades, cumpre a função de intermediar as relações da comunidade com ele, detendo, inclusive, o poder de “agenciar” graças, ou milagres.

Logo de início, a personagem é apresentada por elementos que já indicam seu “tornar-se outro” por meio da função que assume ao longo de todo filme. Em uma fusão vemos o rosto de D. Alzira em close, contraplongè e slow sobreposta a uma panela de feijão em cozimento, mexida em traçados circulares, a ser partilhada no “banquete” do Reinado - a imagem do cosmos, por excelência, no filme. Sons de batidas graves e espaçadas criam a atmosfera mística própria à tradição.

Um canto de Congo - “A semelhança que Deus fez nos céu, nós cá na terra queremos fazer” - sugere o propósito dos festejos. Em uma fala - “Hoje é o dia mais feliz da minha vida” - D. Alzira expressa os significados atribuídos à coroação. Depoimentos de outras rainhas do Jatobá - “Quando a gente tá vestida de rei, a gente é diferente” - demonstram o quanto a performance da realeza não implica apenas em fingir um cargo, mas em transformar de fato a própria identidade, o ser e estar, o lugar no mundo.

Em seguida, seja na ocupação das mulheres em fazer suas unhas, cabelo e maquiagem ou em preparar a comida, seja na reunião das guardas de Congo e Moçambique em torno da igreja e nos eventos que se sucedem um após o outro durante os festejos, temos constantemente a impressão de que D. Alzira a tudo observa, como uma rainha, se não a governar, a se fazer presente nas atividades de seu Reinado, enquanto aquela que, junto com outros, viabiliza a religação entre a Terra e o Céu.

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Alzira Martins, rainha de Nossa Senhora das Mercês

Podemos dizer então que a fabulação religiosa do Reinado emerge no filme, sobretudo, por meio dessa personagem, por meio das situações que ela vivencia, das funções que assume, dos estados aos quais se lança. É principalmente em torno de D. Alzira que reconhecemos, enfim, a construção de “subjetivas indiretas livres” em Coroação, por meio de uma fabulação artística que intensifica os elementos formadores das potências de ficção desse universo místico.

No entanto, tal fabulação não se desenvolve tanto por meio de um encontro cineasta-personagem que viesse motivar uma narração conjunta de Omar e Alzira, onde um “empresta” a voz à outra, e é contaminado pelo olhar que esta outra dirige à sua realidade. Por um lado, os elementos privilegiados pelos recursos fílmicos não são tanto o texto, a voz, a palavra de D. Alzira, mas sim os sons, rostos, corpos, objetos, movimentos que existem ou se fazem em torno dela. Por outro, o encontro em questão - mesmo que tenha sido determinante para a realização do filme - não é posto em cena diretamente, logo, a presença do cineasta naquele ambiente, sua interação com os sujeitos filmados, não é em nenhum momento explicitada pelo filme. Pelo contrário, fica à margem do trabalho executado a posteriori na ilha de edição, o qual adquire bem mais importância na realização de seu gesto fabulador. É, sobretudo, pela montagem desses sons, objetos e movimentos que o filme se afeta pelo devir sagrado de seus personagens.

Diríamos, então, que a fabulação artística de Coroação não se define tanto pela “relação entre o que comumente chamamos de imagens objetivas - as imagens da câmera ou cineasta - e imagens subjetivas - a visão dos personagens”, em que aquelas entram em relação com estas, tal como propõe Consuelo Lins. Se for o caso de distinguir provisoriamente imagens objetivas e imagens subjetivas, não colocaríamos essa distinção em termos de “imagens do cineasta” e de “visões dos personagens”, mas sim em termos de uma proposta estética adotada por Arthur Omar e das formas expressivas, sensíveis, materiais que compõem as experiências do sagrado próprias do Reinado do Jatobá.

Muitos filmes de Omar são marcados por uma proposta estética que recoloca várias questões levantadas por seus antidocumentários e que se consolida na forma de uma “estética do êxtase” e de uma “etnografia estética”. Para o cineasta, essa proposta não se refere tanto ao “refinamento de determinado estilo”, mas ao “aperfeiçoamento de uma técnica mental” (OMAR 1999______. (1999), O zen e a arte gloriosa da fotografia. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil.: 10). A cada filme, ela se atualiza por meio de uma noção e de um método pré-definidos. De um lado, a noção de “êxtase” o engaja na apropriação, tradução, recriação de situações extáticas, de estados gloriosos, de sensações de mistério por meio, sobretudo, de um tratamento a posteriori das imagens (e sons). De outro, um “método da investigação livre” desvia sua atenção de quaisquer conhecimentos prévios que se possam obter ou manter sobre a realidade filmada, a fim de liberá-lo para gerar conceitos não verbalizáveis, apreensíveis tão-somente por imagens (e sons). Em Coroação, essa proposta é claramente visível por meio de um trabalho de montagem focado principalmente sobre as propriedades sensíveis dos elementos do universo místico do Reinado, cuja matéria-prima são as faces, os sons, os instantes. É nesse sentido que a fabulação produzida por Omar não se refere tanto a um “ato de contar e se contar” uma história de graças ou milagres, baseada em determinada crença religiosa, mas a um gesto de investigar, experimentar, articular (livremente) as formas expressivas em questão.

É nesse sentido que utilizamos o conceito de fabulação para além do que está formulado no trabalho de Consuelo Lins. Inicialmente, problematizamos a noção de crença utilizada pela autora, já discutida anteriormente. Tendo em vista que a mística do Reinado não é apropriada por Coroação no nível da ciência, mas sim da arte, buscamos pensar as graças, as emoções e as devoções vivenciadas por seus personagens não tanto como uma questão de acreditar ou não, mas sim de vivenciar. A proposta estética de Arthur Omar reforça isso na medida em que não está tão focada em narrar essas experiências pela via do texto, mas sim de pô-las em cena imageticamente, produzindo o que o artista chama de “narração sem história”.

O filme intensifica a fabulação religiosa do Reinado apenas sensorialmente, isto é, pela via de seus corpos. Sugerimos, assim, pensar a fabulação artística de Coroação em termos de uma mise-en-scène da experiência - ou, mais especificamente, do êxtase, da glória, do mistério. Estamos, sem dúvida, diante de uma mise-en-scène que se afeta pelo “tornar-se outro” de seus personagens - tornando-se, ela própria, outra -, porém, essa afetação se refere menos a uma contaminação por formas de pensamento do que a uma fecundação pelas formas expressivas que refazem a conexão entre Terra e Céu, deslocando seus personagens de uma referência espaço-temporal profana para outra que é sagrada, e alçando-os a um estado radicalmente distinto. Parafraseando Michel Leiris, diríamos que são expressões que desempenham a função de chaves, trazendo-nos a vaga percepção de um desvio que caracteriza a “passagem de um estado comum para um estado privilegiado, mais cristalino, mais singular” (LEIRIS 2017LEIRIS, Michel. (2017), “O sagrado na vida cotidiana”. Debates do NER, ano 18, nº 31, Jan./Jun. 2017, p. 13-26. : 23).

Um segmento emblemático: “visita de coroa”

Por volta dos 18 minutos de filme, a experiência religiosa de Dona Alzira, em específico, e do Reinado do Jatobá, em geral, aparece de maneira bastante emblemática pela posta em cena da visita de uma guarda de Congo à casa da Rainha, em um segmento identificado por nós como “visita de coroa”. O segmento, tal como o delimitamos, se inicia com o amanhecer de um novo dia dentro dos festejos do Reinado, simulado com a repetição de imagens e sons já utilizados na abertura do filme: o detalhe de uma lua minguante e o plano médio de D. Alzira posicionando um vaso de flores em seu quintal, sob o canto de um galo e de alguns passarinhos. Como um leitmotiv, esses elementos nos sugerem, por um lado, um caráter bastante rotineiro para os eventos a serem postos em cena, mas, por outro, sua inscrição em um tempo sagrado, espiral, próprio ao mito.

Nesse retorno sobre a figura de Dona Alzira, somos mais uma vez levados para dentro de sua casa. Tão trivial quanto a visão da lua ou o canto do galo são os detalhes de um vaso, um fogão, uma pia que se sucedem rapidamente. No decorrer desses planos, porém, os sons do ambiente vão pouco a pouco rareando e sendo substituídos por ruídos externos produzidos por idiofones, mais especificamente por gongos, xilofones e pratos. A atmosfera criada ultrapassa o nível do ordinário. Os ruídos idiofônicos nos conduzem para outra dimensão, inclinada ao sobrenatural.

Não à toa, vemos se repetir, logo depois, aquela imagem do cosmos por excelência no filme: o close, plongè e slow da panela de feijão em cozimento que é mexida em sentido horário e de baixo para cima. Diferentemente do que ocorre na abertura do filme, porém, o feijão nos é mostrado agora em uma tomada enviesada que se corrige enquanto realiza uma descida e uma aproximação na sua direção. Também como um leitmotiv, ela convoca as fabulações do Reinado do Jatobá, dessa vez evocadas por um relato revelador de Dona Alzira.

Toda a sequência acima descrita prepara o terreno para o depoimento que talvez constitua o ápice da fabulação de Dona Alzira em Coroação. A intensidade da trilha sonora diminui para que ouçamos então a narração da personagem sobre sua própria experiência de uma graça alcançada por intercessão de Nossa Senhora do Rosário. Ela conta que em uma das várias ocasiões em que sua casa foi visitada por uma guarda do Reinado, acompanhada de reis e rainhas, algo de excepcional ocorreu. Primeiro, o portão da casa se abriu por conta própria, sem que ninguém o puxasse. Depois, D. Alzira resolveu pedir a ajuda de Nossa Senhora do Rosário para acolher a guarda da melhor forma possível, providenciando umas “florzinhas” para que ela pudesse jogar nas coroas:

(...) Eu olhei pro céu e pedi: “Nossa Senhora, ouve Santíssima! Ô Nossa Senhora do Rosário, vós dá um jeitinho de arranjar umas florzinhas aqui mãezinha do céu? Porque eu queria que na hora que as coroas tivessem entrando aqui... Eu queria ter uma florzinhas pra mim jogar nas minhas coroas”. E aí, parece que Nossa Senhora “tava” aqui na árvore e ouviu falar! Quando as guarda foi chegando e (...) o portão abriu, na hora que as guardas “começou” a entrar aqui dentro do meu portão, deu aquele ventozinho de leve. As flores que “tavam” daqui desse lado, do lado de lá, veio tudo! Coroou tudo! Coroou os reis e rainhas. (Entrevista com Dona Alzira, OMAR 1993OMAR, Artur (dir.). (1993), A coroação de uma rainha. .[DVD] Cortex/South Productions. Inglaterra/Brasil. (26 minutos), colorido.)

O depoimento é todo filmado de uma posição bastante atípica para uma entrevista. Em uma única tomada segmentada por jump cuts, vemos Dona Alzira em close, de perfil e às vezes desfocada, numa fragmentação do ponto de vista que normalmente, nesse procedimento fílmico, é único. Seu corpo se dirige constantemente para o lado oposto ao da câmera, de modo a deixá-la de costas para as lentes. Seus braços gesticulam a todo o momento, ocultando sua boca, sombreando seu rosto e por vezes perturbando o foco da câmera. Toda a forma como o quadro é composto, margeado inicialmente por um de seus braços e, depois, pela mancha de objetos desfocados, em primeiro plano, produz a sensação de que a personagem está sendo observada de fora, por qualquer sujeito externo à cena.

A lente utilizada (provavelmente uma teleobjetiva) simula uma proximidade entre câmera e personagem, porém, um zoom out nos indica que a câmera está significativamente distante dela, não participando da entrevista fisicamente. No entanto, analisando a montagem do depoimento em relação ao segmento (e ao filme) como um todo, reconhecemos que Omar trabalha com outros níveis de aproximação, ou de participação, em relação às experiências de D. Alzira.

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Dona Alzira olhando para o céu durante o seu depoimento sobre a graça concedida por Nossa Senhora do Rosário

A força imagética do relato por si só nos convida a imaginar a história com tal vivacidade que somos levados a compartilhar a experiência narrada junto com a protagonista, independente de acreditarmos na intercessão de Nossa Senhora do Rosário ou não. O depoimento está inserido em um segmento (e em um filme) que reitera e intensifica a todo o momento as expressões do poder adquirido por D. Alzira, por meio de sua coroa, não apenas diante de sua irmandade, mas também do cosmos (tal como é concebido pela gnosis do Reinado). O empoderamento de D. Alzira pela força da coroação é atributo do filme, em sua fabulação artística que nos leva a ver aquela mulher negra e simples como uma rainha.

Ressoando a atmosfera mítica criada pelos leitmotivs e pelas articulações iniciais do segmento, o depoimento de Dona Alzira “habita” igualmente uma temporalidade espiral, concentrando em si diversos rastros da experiência dos antepassados. Ela suscita a força que elementos rituais como as majestades, as coroas e as flores possuem dentro da tradição, conectando-se a toda uma oralitura da memória, tal como se percebe nos versos do canto ancestral:

Lá na rua debaixo, Lá no fundo da horta A polícia me prende, olelê A Rainha me solta Ta caindo fulo, eheh Ta caindo fulo, eh ah Lá do céu, cai na terra Olelê, ta caindo fulô

O poder que as majestades do Reinado detêm, graças ao porte de suas coroas, para realizar feitos aparentemente impossíveis, e a confirmação desse poder por meio das flores que descem sobre elas em contextos rituais, constitui um fato afirmado não apenas pelo relato de Dona Alzira, mas pelos vários saberes congadeiros que vem sendo transmitidos de geração em geração. A respeito do canto transcrito anteriormente, puxado normalmente por guardas de Congo, Leda Martins sugere que ele traduz “o sentido de valor colado à coroa dos reis, símbolo de autoridade que descentra, em vários níveis, o poder institucional hegemônico” (1997: 62). De maneira análoga, o depoimento de D. Alzira reivindica a coroa também como emblema de uma realeza feminina negra que encarna, sob forma humilde, uma potência milagrosa, transformadora, bem como autônoma quanto a instituições religiosas ou políticas de nossa sociedade.

Sem dúvida, a narração da protagonista conforma um dos momentos em que o filme se abre para o que não pertence à ordem do visível. Esse universo momentaneamente instaurado inscreve traços de um extracampo mítico que ecoam e refletem a instituição de “outro poder”, presente na fábula da aparição de Nossa Senhora do Rosário para os negros e atualizado periodicamente pelas performances dos Reinados.

Nesse sentido, a experiência testemunhada por D. Alzira não é somente individual e não se delimita espacial ou temporalmente. Trata-se de uma experiência de seus antepassados, originária de um espaço não geográfico, de um tempo imemorial, que se atualiza periodicamente no Reinado sem perder sua potência. Tal como a performance ritual congadeira, seu depoimento restitui o “círculo fenomenológico” de uma “temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo mas a sua concepção linear” (MARTINS 2002______. (2002), “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (org.).Performance, exílio, fronteiras. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Pós-Lit, Faculdade de Letras/UFMG.: 85).

Findo o depoimento, assistimos a uma sequência de planos detalhes e médios que acompanham os preparativos de Dona Alzira para a visita, e ouvimos os ruídos idiofônicos que voltam em toda a sua intensidade. Ela põe seu colar, calça os sapatos e confere a mesa do café da manhã. Por fim, passa em frente ao altar - montado na sala com diversos objetos rituais (flores, coroa, manto, rosário e vela) - dirigindo-se à área externa da casa para receber a Guarda de Congo de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá. Ela se encontra primeiramente com o porta-bandeira da guarda, que lhe saúda com o estandarte da santa e um cumprimento em sinal da cruz, e depois com José Apolinário Cardoso, o mestre de Congo, e demais membros da guarda. A câmera a segue nesse movimento em um único travelling, que é divido em várias partes por jump cuts, até o instante em que a abandona para deter-se sobre o referido estandarte. Cessam, então, os ruídos idiofônicos.

Em seguida, assistimos à performance da saudação à coroa de Nossa Senhora das Mercês pela guarda, ouvindo em som direto o canto que é puxado por Apolinário e repetido pelo coro, em ritmo de Dobrado, com suas caixas e pandeiros. Os versos exaltam o objeto ritual: “Coroa santa!”. Temos aí um dos raros planos do filme que se demora sobre a ação filmada - nesse caso, sobre a prostração de cada membro da guarda diante da coroa.

Na porta de casa, enquanto segura a coroa diante de si, D. Alzira recebe, um a um, os membros da guarda, que se ajoelham à sua frente. Um capitão retira o boné para abaixar a cabeça e encostá-la na coroa, outro apenas a beija. Cada um, à sua maneira, expressa física e corporalmente a reverência ao objeto, em uma movimentação intimamente vinculada ao Dobrado e, portanto, rápida, vibrante e pulsante. Inicialmente, a performance é vista em um plano longo e estático; em seguida, continua em três planos curtos e de movimento. Como se incorporasse a vibração dos gestos dos congadeiros, o quadro treme, vacila, e os cortes se sucedem bruscamente, sem raccords. No último plano da sequência, em um corte abrupto, a posição da câmera em relação a D. Alzira é alterada em um eixo de quase 180º - ela é vista, então, de frente, e nos olha sem desvios - e a voz de Apolinário é substituída por um brevíssimo repique de caixas.

O plano funciona como transição para uma nova situação, em que a performance em som direto é novamente interrompida, dessa vez, para ceder lugar a uma sequência de retratos posados dos membros da guarda. Vemos os rostos de cada um em primeiro plano, intercalados por uma batida de caixa, por um ruído gutural e pela fricção de um reco-reco, que se repetem em determinados cortes. Trata-se de uma das poucas ocasiões do filme em que a câmera se detém em silêncio sobre o rosto de um personagem que não Dona Alzira. Tal como no depoimento da rainha, a fotografia da sequência e a posição que ela ocupa na montagem do filme possibilitam uma aproximação com essas faces16 16 Para David Le Breton, a face é o lugar sagrado da relação do homem para com ele mesmo e com o outro. É nela que ocorre o reconhecimento, a inscrição da diferença de um indivíduo perante a sociedade, bem como as múltiplas combinações dos modos e traços de sua expressividade, que adquirem uma infinidade de significações, as quais variam de acordo com as circunstâncias, podendo vir a causar tanto o fascínio quanto a repulsa. Desse modo, “a relação com o rosto é uma relação que se dá sob o mesmo registro das relações com o sagrado”, com toda a ambivalência própria à experiência do mistério, que conduz do amor ao terror e vice-versa. “O mesmo indivíduo conhece ao longo de sua existência as diferentes intensidades que testemunham seu valor junto de um espaço social no qual ele é submetido à apreciação de outros”. O autor sugere, portanto, que o sagrado da face se estabelece no olhar do outro, “na projeção de sentidos que o coloca ou priva do mundo” (LE BRETON 2017: 168). , que também revelam uma potência gloriosa.

Sob o olhar da câmera de Arthur Omar, o sagrado dos rostos se estabelece sem a mediação de palavras. Todas as possíveis significações emergem da expressão de seus olhos, testas, lábios: alguns encaram a câmera; outros, intimidados, olham para os lados; alguns sorridentes, outros abatidos; alguns pensativos, outros concentrados nos sabores dos quitutes e do café da rainha.

O contexto da sequência, porém, nos permite saber que, apesar das diferenças, todas essas faces integram um único grupo: o conjunto dos homens que saem de casa de manhã cedo, vestindo capacetes de fitas e flores a fim de tocar, dançar e cantar em honra de Nossa Senhora do Rosário e uma de suas representantes, Alzira Martins. D. Alzira não está em campo, mas ainda distinguimos a varanda de sua casa, onde esses homens se reúnem em torno da mesma experiência; identificamos os quitutes e o café que vimos dispostos sobre a mesa e reconhecemos nos rostos que observam, sorriem e/ou comem a mesma “fé movedora de montanhas” expressa pela rainha no depoimento antecedente, que move flores de suas árvores para coroar guardas, ou move homens de suas casas para saudar coroas. Com base nessas relações, diríamos que a câmera nos apresenta esses homens como igualmente dotados da capacidade de se alçar a um estado glorioso, por sua relação com o sagrado instituído na coroa e na rainha, e assim transformar o mundo ao seu redor.

Após os closes, vemos outra performance de saudação à coroa por meio de uma montagem de campo-contracampo entre a guarda, ajoelhada, cantando, e a rainha, solene, maquiando-se. Novamente ouvimos seu canto em som direto, porém, dessa vez acompanhado tão-somente pela sanfona. No único canto sem percussão de todo o filme, Apolinário entoa os versos: “Os pretinhos do Rosário, ajoelhou, senhora”. Em vez de repetir os versos, o coro realiza aquilo que foi ordenado - ajoelha-se diante da coroa -, e continua o texto dizendo: “Vamos louvar o Senhor”.

Outra cena emblemática, na qual percebemos explicitamente uma relação que é, na maior parte do filme, fabulada apenas oralmente: a de autoridade espiritual daqueles que portam a coroa sobre os demais congadeiros. O cineasta encena essa fabulação por meio da montagem, articulando entre si imagens que provavelmente não foram gravadas ao mesmo tempo e justapondo-as de maneira a situar os personagens em extremos opostos: de um lado os súditos, humildes, devotos, de outro, a realeza, altiva, majestosa. Mais uma vez, Omar aposta em intensificar, à sua maneira, a cosmologia do Reinado, com sua hierarquia própria.

Sequência 1
Campo-contracampo entre a rainha de Nossa Senhora das Mercês, majestosa, e sua guarda de Congo, humilde

Os membros da guarda de Congo que se prostram diante da rainha não se colocam apenas como súditos, mas como filhos. Na medida em que a realeza detém um poder temporal e também divino, representando os próprios santos de devoção, ela assume a responsabilidade pela harmonia, prosperidade e manutenção da Irmandade e de suas festividades. Nesse sentido, Dona Alzira, do mesmo jeito que as outras rainhas do Jatobá, exerce função análoga a de uma matriarca - aquela que toma conta, que dá a benção, que providencia, tal como a própria Nossa Senhora do Rosário, mãe dos “pretinhos do Rosário”.

Conclusão

Durante o percurso do texto, traçamos algumas das formas de mediação das experiências do sagrado referentes ao Reinado do Jatobá elaboradas pela mise-en-scène do filme A coroação de uma rainha, enfatizando sua afetação direta pelos elementos dos ritos, mitos e cosmologia que constituem essa manifestação religiosa.

Levando em consideração que o filme tanto se dirige a eventos, lugares e personagens que se elevam, por meio de seus ritos, à dimensão do sagrado, quanto recorre a procedimentos próprios ao experimentalismo cinematográfico, o conceito de fabulação nos pareceu render bem como operador analítico. De um lado, buscamos observar os elementos do Reinado que adquirem uma função de fabulação ou que constituem uma potência de ficção. De outro, apreender os recursos de Coroação que reverberam essa função ou potência, engendrando aquilo que identificamos como “subjetivas indiretas livres”.

Tal caminho de análise nos conduziu a vários atributos fílmicos que distinguem Coroação de um filme etnográfico, histórico ou sociológico, e que o torna uma obra particular dentro do conjunto de documentários sobre Congados, ou sobre manifestações da religiosidade afro-brasileira.

Não estamos diante de um filme que visa ou se integra a um propósito de documentação dessas tradições. Pelo contrário, seu trabalho não passa tanto pelo “registro”, descrição ou narração, mas sim pela experimentação com uma matéria de base documental que se detém principalmente sobre suas expressividades, agenciando recursos, formas, efeitos de natureza predominantemente sensorial. Essa experimentação, por sua vez, se desenvolve, em vários aspectos, por meio de uma afetação pela realidade filmada, viabilizando, em diversos momentos, traduções das experiências do sagrado do Outro em consonância com sua temporalidade.

Oscilando entre ficção e documentário, real e imaginário, diríamos que Coroação é um filme híbrido, um cinema em devir e, logo, fértil - isto é, que se fecunda pela realidade filmada. Muito de seu hibridismo, inclusive, é desdobramento da fecundação pelas formas temporais próprias ao Reinado, na medida, por exemplo, em que Dona Alzira se torna outra de si mesma, sendo “arrancada” de toda identidade substancial possível, um devir que aparece na dupla fabulação de filme e personagens, e que se constrói menos pela palavra oral do que pelas expressões faciais, corporais, plásticas, sonoras e cinéticas. Nesse sentido, a temporalidade própria às experiências do sagrado do Reinado do Jatobá não é apenas retratada, mas incorporada no mecanismo cinematográfico do filme, como dispositivo e linguagem, na medida em que ele se mobiliza pela mesma dinâmica da repetição e inovação.

O movimento oscilatório executado pelo filme entre recursos, formas e efeitos que se tencionam - combinando, associando, (con)fundindo quadros próximos e distantes, sons locais e externos, planos-sequência e instantâneos - desenha o traçado curvilíneo de um vai-e-vem entre fragmento e duração, experimentação e convenção.

Por fim, diríamos que A coroação de uma rainha merece estar vivo nos debates sobre cinema documentário e religiosidade afro-brasileira, não só por intensificar a potência ficcional da cosmologia do Reinado, mas pelo modo como propõe, na mediação das experiências do sagrado, uma forte relação entre estética e política que, ao superar uma abordagem documental supostamente cientificista e distanciada, reivindica uma mise-en-scène que respeita, incorpora, afirma a diferença e, principalmente, empodera o Outro.

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  • 1
    Referimo-nos a uma proposta artística que foi teorizada pelo próprio Arthur Omar e explicada por Ivana Bentes como uma “estética do êxtase”, articulada a uma “etnografia estética”. Enquanto a ideia de “estética do êxtase” se refere mais diretamente a um conceito – qual seja, o de êxtase –, a noção de “etnografia estética” se baseia em um método específico. Para Bentes, a proposta de uma “etnografia estética” surge em contraposição, ou em “substituição”, ao documentário convencional, sociológico ou folclorista, na medida em que visa “explorar estruturas do imaginário ao invés de fatos da realidade, num documental transcendido” (BENTES 2003BENTES, Ivana. (2003), “Vídeo e Cinema: rupturas, reações e hibridismo”. In: MACHADO, Arlindo INSTITUTO CULTURAL ITAU.Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural.: 115) Essa exploração se operaria, sobretudo, por um método chamado por Arthur Omar de “investigação livre”. O método consiste basicamente em “esquecer o que se sabe” sobre a realidade filmada – em vez de obter, ou manter, um conhecimento prévio –, a fim de que, por meio da primeira visão, do “primeiro contato virgem” com ela, sejam gerados sensorialmente – “através das imagens que se superpõem ou se sucedem” – conceitos não verbalizáveis, sensações novas, “que só poderiam surgir do trabalho daquela obra em particular” (OMAR 1999: 10).
  • 2
    A definição de Congado varia muito de acordo com o autor ou com a região onde o termo é utilizado. Por vezes, Congado é definido como a totalidade dos ritos de eleição, coroação e cortejo de reis negros. Em outros casos, é associado a apenas uma das guardas que compõem esses ritos, as guardas de Congo. A partir de meados do século XX, na região metropolitana de Belo Horizonte, tornou-se comum o uso do termo para se referir aos festejos de devoção negra – em honra a Nossa Senhora do Rosário e/ou outros santos católicos – conduzidos por guardas – sejam elas de Congo, Moçambique, Marujos, Caboclos etc. –, envolvendo Irmandades ou não, possuindo Reinados ou não. Seja como for, trata-se de um termo forjado no contexto de relatos sobre essas manifestações escritos por observadores externos, não pertencentes àquele universo. As primeiras referências às Congadas aparecem ainda no século XIX na narrativa de viajantes estrangeiros que, em suas andanças, presenciaram brevemente festas de reis negros em diversas regiões do Brasil (SOUZA 2002SOUZA, Marina de Mello e. (2002), Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG .).
  • 3
    Os processos de filmagem de Coroação e de elaboração do dossiê de tombamento da Irmandade foram simultâneos, porém, se desenvolveram de forma paralela, sem que um tenha influenciado diretamente o outro. Na verdade, embora tenha sido concluído dois anos depois do lançamento do filme, o trabalho da Prefeitura de Belo Horizonte se iniciou nos idos de 1991, antes mesmo das primeiras visitas de Arthur Omar ao Jatobá.
  • 4
    Filha da protagonista de A coroação de uma rainha, Leda Maria Martins desenvolveu uma ampla pesquisa sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, publicada no livro Afrografias da memória, uma importante referência sobre a temática do Reinado, fartamente utilizada no presente artigo. Cabe destacar que, após o falecimento de sua mãe, a pesquisadora herdou a coroa de Nossa Senhora das Mercês e a sucede hoje como Rainha. Paralelamente, Leda Martins é professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), vinculado à Faculdade de Letras (FALE).
  • 5
    De acordo com Leda Martins, o termo guarda “designa um grupo específico de dançantes ou ‘marinheiros’, com suas vestes, funções e características próprias”. Vários indícios nos levam a supor que remetem, indiretamente, às cortes ou milícias que acompanhavam os reis das nações africanas em seus desfiles rituais. De um modo geral, o Congado, ou Reinado, é formado por uma significativa variedade de “guardas”, com diferentes funções, comportamentos e expressões conforme a sua tradição ou identidade específica – Moçambique, Congo, Marujo, Caboclo, Catopê, de Vilão, entre outras (MARTINS 1997).
  • 6
    As guardas de Moçambique são as que “guardam as coroas”, isto é, aquelas que se mantêm sempre próximas de reis e rainhas, caminhando vagarosamente, sob batidas lentas, sincopadas, regulares, e levando, como instrumento, apenas o tambor, o patangome e a gunga.
  • 7
    As guardas de Congo são as que “abrem os caminhos”, isto é, aquelas que estão sempre à frente das demais guardas, marchando agilmente, sob batidas repicadas, e utilizando uma variedade maior de instrumentos – além do tambor, os pandeiros, chocalhos, reco-recos, bem como violões e sanfonas.
  • 8
    Referimo-nos nesse caso ao gênero narrativo que se tornou mais recorrente na elaboração de registros audiovisuais sobre a cultura popular de um modo geral. Herdando características de um “modelo sociológico” – conforme teorizado por Jean-Claude Bernardet em seu livro Cineastas e imagens do povo –, identificamo-lo como um gênero que se formou, sobretudo, em torno do propósito de documentar as manifestações de caráter regional ou étnico que constituem as “raízes” do país. No intuito de representá-las de modo abrangente, generalizante, totalizante, prevalece, nele, a opção por estratégias híbridas, as quais se apropriam, no mesmo enunciado, de recursos como a voz over de uma autoridade, a entrevista e a observação em som direto. A prática da entrevista é, sem dúvida, a mais difundida e, provavelmente, a mais automática, tendo em vista ser utilizada como um recurso aplicável em qualquer projeto de documentário, uma forma igualmente adequada para abordar qualquer tema. Cabe destacar que a noção de “modelo sociológico” foi criada por Jean Claude Bernardet a partir da análise de Viramundo (Geraldo Sarno 1964), entre outros filmes brasileiros da década de 1960 (BERNARDET 2003BERNARDET, Jean Claude. (2003), Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia das Letras.).
  • 9
    Utilizamos essa noção tal como aparece no pensamento de Gilles Deleuze a respeito do “cinema verdade” de Jean Rouch. O autor a desenvolve sob o viés da narrativa tal como é construída tanto no cinema de ficção quanto no cinema de realidade (ou documentário), identificando, em ambos, a presença de dois regimes da imagem: o da narrativa veraz, e o da narrativa simulante. A distinção entre ambos estaria nas relações entre sujeito e objeto – ou entre o que a câmera vê (objetiva) e o que o personagem vê (subjetiva) – que se desenvolvem em cada um. O primeiro regime, próprio do cinema clássico, é identificado como aquele em que as narrativas indiretas objetivas (do ponto de vista da câmera), e as narrativas diretas subjetivas (do ponto de vista da personagem) costumam aparecer explicitamente demarcadas, de modo a não gerar dúvidas ao espectador quanto à veracidade do que assiste. O segundo regime questiona a separação entre pontos de vista objetivo e subjetivo, superando a dicotomia da narrativa tradicional e estabelecendo uma contaminação dos dois tipos de imagem, “de tal modo que as visões insólitas da câmera (...) exprimiam as visões singulares da personagem, e estas se expressavam naquelas, mas levando o conjunto à potência do falso” (DELEUZE 1990DELEUZE, Gilles. (1990),Cinema 2: A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense.: 181). Nesse regime, não é mais o ideal de verdade que está em vista. A narrativa assume um caráter de simulação que extrapola as fronteiras entre objetivo e subjetivo e, por sua vez, entre realidade e ficção. Situando-o nesse regime, Deleuze aborda o “cinema verdade” como uma tendência do documentário que mantém o gesto de filmar personagens reais sem neles buscar a apreensão de uma verdade, mas indo ao encontro de sua função de fabulação, que “dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda” (DELEUZE 1990: 183). Suas principais obras põem em cena não “a identidade de uma personagem, real ou fictícia, por meio de seus aspectos objetivos e subjetivos”, e sim “o devir da personagem real quando ela própria se põe a ‘ficcionar’, quando entra ‘em flagrante delito de criar lendas’, e assim contribui para a invenção de seu povo” (DELEUZE 1990: 183, grifo nosso). Daí a força política da fabulação: é ela que produz esse devir, essa passagem entre um antes e um depois, entre um si e uma invenção de si, entre a subjetividade e um povo por vir, que modifica tanto personagem quanto cineasta, ambos tornando-se “outros”. A personagem torna-se outra na medida em que, sendo real, sua fabulação afirma a ficção como potência, e não como modelo. O cineasta torna-se outro na medida em que substitui suas ficções pelas fabulações de seus personagens e, ao mesmo tempo, atribui a estas o estatuto de lendas, ou de memórias.
  • 10
    A noção de performance se tornou um conceito-chave nas pesquisas contemporâneas sobre os Congados ou Reinados, na medida em que supera as leituras que tomam essas manifestações enquanto representações, proporcionando uma visada mais ampla do que aquelas lançadas pelos estudos folcloristas. Sob essa nova perspectiva, “o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance. Ou ainda, o gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas fundamentalmente, performativo” (MARTINS 2002: 72).
  • 11
    Com essa observação, não pretendemos alegar que os efeitos em questão não sejam possíveis em uma performance teatral. Pelo contrário, reconhecemos a existência de um continuum entre o teatro e o ritual, uma vez que ambos podem vir a engendrar uma transformação simbólica e emocional tanto do performer quanto do espectador. Em sua análise sobre a atuação ritual-dramática de Verônica dentro das procissões e encenações da Semana Santa de Ouro Preto, Edilson Pereira, em diálogo com Richard Schechner, utiliza as noções de transformation e transportation para pensar os efeitos da “experiência de assumir certo personagem”, seja na esfera da arte ou da religião. Para o autor, essa atuação proporciona, à performer, uma saída de si mesma e do “mundo comum” (referente a seus papéis habituais e à vida cotidiana) e uma entrada em um mundo performativo (referente a uma figura emblemática, em um contexto ritual), cujo retorno ao primeiro estágio pode implicar em uma transformação da mulher e de seu próprio papel, ou lugar, nele (PEREIRA 2015PEREIRA, Edilson. (2015), “As mulheres por trás da face de Cristo: apropriações, performances e ambivalências da Verônica”. Revista Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, nº 35 ( 1), p. 193-215.: 206).
  • 12
    Banto é o nome atribuído genericamente, pelos ocidentais, ao conjunto de povos africanos falantes de línguas que têm uma origem comum. O termo foi criado por W. H. Bleck em 1860 ao estudar um grupo de cerca de 2.000 línguas africanas, identificando nelas diversas semelhanças morfológicas. Com o tempo, a denominação se estendeu e abarca, hoje, praticamente todos os grupos étnicos da África Centro-Ocidental, Oriental e Austral, em função não apenas de suas línguas, mas também de seus modos de vida, determinados por práticas afins. Entre esses grupos, os bacongos e ambundos – ocupantes da região dos rios Congo e Cuanza, respectivamente – foram os que influíram mais diretamente na formação dos Congados, ou Reinados, no Brasil (LOPES 2006LOPES, Nei. (2006), Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica.).
  • 13
    Congo (1972) foi um dos primeiros filmes de Arthur Omar, lançado juntamente com o seu consagrado ensaio O antidocumentárioOMAR, Arthur. (1978), “O antidocumentário, provisoriamente”. Revista de Cultura Vozes, nº 6, volume 72. Rio de Janeiro, p. 405-418., provisoriamente. Na ocasião, filme e ensaio se tornaram um marco teórico e prático para a problemática da representação do Outro no cinema documentário brasileiro. O filme põe em xeque a representação do Congado, o qual já era então percebido como estando sob a constante ameaça de desaparecimento diante das transformações culturais e sociais impulsionadas pelo capitalismo. Apropriando-se de textos folcloristas sobre a encenação “teatral” do conflito entre uma corte de Rei do Congo e um embaixador da Rainha Ginga – no que foi identificado por Mário de Andrade como a parte dramática das Congadas, as Embaixadas –, o filme se desenvolve sem mostrar nenhuma imagem, fixa ou em movimento, dessa tradição.
  • 14
    Emerson Giumbelli observa que o gesto de denúncia dos modernos aos fetichistas costuma ser acompanhada de um movimento de destruição e/ou de reparação dos fetiches. Por um lado, busca-se a desconstrução dos mecanismos de sua invenção para que os objetos sejam reconhecidos “tal como eles são”. Por outro lado, reivindica-se a preservação dos mesmos objetos em museus, por exemplo, como testemunho de um imaginário ultrapassado, ou em vias de se tornar passado. Cabe destacar que esse movimento é observável em diversos campos discursivos da modernidade, entre eles, o próprio cinema. No cinema documentário identificado por nós como “sociológico”, tornou-se recorrente a abordagem da religiosidade popular como sendo feita de práticas condenadas ao desaparecimento, em vista de seu (suposto) caráter arcaico, primitivo e, em alguns casos, até irracional, diante do qual os filmes assumem uma de duas posturas: a crítica ao que é visto como ilusão, engano, alienação, ou o lamento por aquilo que é dado como perdido. É justo com essa dualidade que os cinemas de Jean Rouch e de Arthur Omar, por exemplo, rompem, uma vez que desviam tanto à crítica baseada na razão científica, ou moderna, quanto a uma defesa motivada pela perda.
  • 15
    Aproximamo-nos das reflexões de Michel Leiris a respeito do “sagrado na vida cotidiana”, nas quais o autor o pensa como um estado, ou “mundo”, que não ocorre apenas no âmbito da religião, pátria ou moral, mas pode ser suscitado por “fatos bem simples”, por objetos, lugares ou circunstâncias que despertem um “misto de temor e apego”, “essa atitude ambígua determinada pela aproximação de algo ao mesmo tempo atraente e perigoso, prestigioso e rejeitado” (LEIRIS 2017: 15). Esse pensamento nos leva a considerar que o sagrado se institui menos por uma crença do que por uma experiência relacionada ao secreto, ao vertiginoso, ao sobrenatural.
  • 16
    Para David Le Breton, a face é o lugar sagrado da relação do homem para com ele mesmo e com o outro. É nela que ocorre o reconhecimento, a inscrição da diferença de um indivíduo perante a sociedade, bem como as múltiplas combinações dos modos e traços de sua expressividade, que adquirem uma infinidade de significações, as quais variam de acordo com as circunstâncias, podendo vir a causar tanto o fascínio quanto a repulsa. Desse modo, “a relação com o rosto é uma relação que se dá sob o mesmo registro das relações com o sagrado”, com toda a ambivalência própria à experiência do mistério, que conduz do amor ao terror e vice-versa. “O mesmo indivíduo conhece ao longo de sua existência as diferentes intensidades que testemunham seu valor junto de um espaço social no qual ele é submetido à apreciação de outros”. O autor sugere, portanto, que o sagrado da face se estabelece no olhar do outro, “na projeção de sentidos que o coloca ou priva do mundo” (LE BRETON 2017LE BRETON, David. (2017), “Antropologia da face: alguns fragmentos”. Política & Trabalho - Revista de Ciências Sociais, n° 47, Jun./Dez. 2017, p. 153-169.: 168).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2018
  • Aceito
    31 Dez 2018
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