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“A sua religião é a Antropologia”: histórias e (des)caminhos de um antropólogo-aprendiz em um terreiro de Umbanda

“Your religion is Anthropology”: stories and (mis)adventures of an anthropologist apprentice in an Umbanda’s terreiro

Resumos

Resumo: Pretende-se, neste ensaio, refletir a respeito de alguns dos aspectos envolvidos no processo de aprendizagem na Umbanda e na Antropologia, tomando como foco de atenção as experiências vivenciadas pelo próprio autor durante seu trabalho de campo em um terreiro umbandista. Ao longo dessa imersão, pensada nos termos de uma educação da atenção, alguns acontecimentos serviram para demonstrar a completa impossibilidade de se estabelecer qualquer espécie de dissociação entre certas categorias centrais na conformação de uma “epistemologia ocidental”, bem como da própria prática antropológica. Constatou-se, a partir disso, que saber e sentir, ser e conhecer, participar e observar, ação e percepção, teoria e prática, afeto e cognição não só estão intrinsecamente relacionados, como são partes constitutivas da aprendizagem humana.

Palavras-chave:
Umbanda; Aprendizagem; Experiência; Educação da Atenção


Abstract: This essay intends to reflect on some aspects involved in the learning process in Umbanda and Anthropology, taking as a focus of attention the experiences lived by the author during his fieldwork in a terreiro. Throughout this immersion, thought in terms of an education of attention, some events have served to demonstrate the complete impossibility of establishing any kind of dissociation between certain central categories in the conformation of a “Western epistemology” as well as of anthropological practice itself. From this, it was found that knowing and feeling, participating and observing, being and knowing, action and perception, theory and practice, affection and cognition are not only intrinsically related but are constitutive parts of human apprenticeship.

Keywords:
Umbanda; Apprenticeship; Experience; Education of Attention


Introdução

Nas últimas décadas, tem crescido o interesse por parte de pesquisadores, ligados, sobretudo, à área da Educação, pelos processos de aprendizagem que ocorrem no interior das religiões de matriz africana em diferentes regiões do Brasil. Em tais pesquisas, é comum encontrarmos análises que, de algum modo, procuram estabelecer comparações ou aproximações entre distintos ambientes de aprendizagem, normalmente a partir da dicotomia formal/não formal (ou escolar/não escolar), em que são evidenciados os diferentes “modelos pedagógicos” que fundamentam o aprendizado nesses espaços (Conceição 2006CONCEIÇÃO, Lúcio André. (2006), A pedagogia do candomblé: aprendizagens, ritos e conflitos. Salvador: Dissertação de Mestrado em Educação, UNEB.; Leite 2006LEITE, Valderlei Furtado. (2006), Candomblé e educação: dos ilês às escolas oficiais de ensino. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade São Marcos.; Mota Neto 2008MOTA NETO, João Colares. (2008), A educação no cotidiano do terreiro: Saberes e práticas culturais do Tambor de Mina na Amazônia. Belém: Dissertação de Mestrado em Educação, UEPA.; Domingos 2011DOMINGOS, Reginaldo Ferreira. (2011), Pedagogia da transmissão da religiosidade africana na casa de Candomblé Iabàsé de Xangô e Oxum em Juazeiro do Norte. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em Educação, UFC.; Quintana 2012QUINTANA, Eduardo. (2012), No Terreiro também se educa: relação Candomblé-Escola na perspectiva de Candomblecistas. Niterói: Tese de Doutorado em Educação, UFF.; Oliveira 2014OLIVEIRA, Ariene Gomes. (2014), A educação nos terreiros de Caruaru/PE: um encontro com a tradição africana através dos Orixás. Caruaru: Dissertação de Mestrado em Educação, CAA/UFPE.). A perspectiva da criança sobre esses processos de aprendizagem e o lugar que ela ocupa na vida cotidiana dos terreiros também é um dos elementos que conecta vários trabalhos envolvendo o tema da aprendizagem religiosa (Machado 2002MACHADO, Vanda. (2002), Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica - as crianças do Opô Afonjá. Salvador: EdUFBA .; Falcão 2010FALCÃO, Christiane. (2010), Ele já nasceu feito: o lugar da criança no Candomblé. Recife: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPE.; Sousa 2010SOUSA, Kássia Mota. (2010), Entre a escola e a religião: desafios para crianças de candomblé em Juazeiro do Norte. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em Educação, UFC.; Caputo 2012CAPUTO, Stela Guedes. (2012), Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas.; Sales Júnior 2013SALES JÚNIOR,DárioRibeiro. (2013), Sobre olhar e aprender: um estudo sobre o processo de aprendizado religioso das crianças candomblecistas. Salvador: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UFBA.; Ribeiro 2016RIBEIRO, Jaqueline de Fátima. (2016), Infância e Terreiro: um estudo de vivências de crianças que frequentam o espaço de uma religião de matriz africana. Niterói: Dissertação de Mestrado em Educação, UFF.; Oliveira e Almirante 2014OLIVEIRA, Amurabi; ALMIRANTE, Kleverton. (2014), “Aprendendo com o Axé: processos educativos no terreiro e o que as crianças pensam sobre ele e a escola”. Ilha -Revista de Antropologia , vol. 16, nº 1: 139-174., 2017OLIVEIRA, Amurabi; ALMIRANTE, Kleverton. (2017), “Criança, terreiro e aprendizagem: um olhar sobre a infância no candomblé”. Estudos de Religião, vol. 31, nº 3: 273-297.). Outras pesquisas, especialmente ligadas ao campo da Educação Musical, procuraram enfatizar os processos de aprendizagem relacionados a alguma prática ou técnica específica desenvolvida nos terreiros como, por exemplo, a produção e a utilização de determinados instrumentos musicais ou a aprendizagem dos ritmos e cânticos que atravessam e constituem as experiências religiosas vivenciadas nesses ambientes (Braga 2005BRAGA, Reginaldo. (2005), “Processos sociais de ensino e aprendizagem, performance e reflexão musical entre tamboreiros de nação: possíveis contribuições à escola formal”. Revista da ABEM, nº 12: 99-109.; Cardoso, A. 2006CARDOSO, Ângelo. (2006), A linguagem dos tambores. Salvador: Tese de Doutorado em Música, UFBA. ; Almeida 2009ALMEIDA Jorge Luis. (2009), Ensino/aprendizagem dos alabês: uma experiência nos terreiros Ilê Axé Oxumarê e Zoogodô Bogum Malê Rundó. Salvador: Tese de Doutorado em Música, UFBA.; Podestá 2012PODESTÁ, Nathan. (2012), “Observação e experiência de aprendizagem musical com os ogãs de um centro umbandista de Campinas”. Revista do EDICC - Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura, vol. 1, nº 1: 346-355.; Lunelli 2015LUNELLI, Diego. (2015), “Processo de ensino/aprendizagem em casa de religião: um estudo de caso”. In: Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical. Anais do XXII Congresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical. Natal: ABEM.).

Outro conjunto de trabalhos, notadamente marcados por uma inspiração fenomenológica, distancia-se dessas possíveis comparações com espaços ditos “formais” de educação para mergulhar nas experiências de aprendizagem que se passam no cotidiano dos terreiros, dando especial atenção à dimensão corporal, sensorial e afetiva que caracteriza o processo de aprender na prática (Bergo 2011BERGO, Renata. (2011), Quando o santo chama: o terreiro de umbanda como contexto de aprendizagem na prática. Belo Horizonte: Tese de Doutorado em Educação, UFMG.; Rabelo e Santos 2011RABELO, Miriam; SANTOS, Rita Maria. (2011), “Notas sobre o aprendizado no candomblé”. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade , vol. 20, nº 35: 187-200.; Rabelo 2015RABELO, Miriam. (2015), “Aprender a ver no Candomblé”. Horizontes Antropológicos , vol. 21, nº 44: 229-251.; Castanha 2018CASTANHA, Taísa. (2018), “Educação da audição no Candomblé: notas iniciais”. In: Reunião Brasileira de Antropologia. Anais da 31ª Reunião Brasileira de Antropologia. Brasília: ABA.). Questionando as abordagens que reduzem a aprendizagem a um processo cognitivo de transmissão e aquisição cultural, essas autoras revelaram, a partir de suas imersões etnográficas, que as práticas educativas vivenciadas nas religiões de matriz africana dependem do completo engajamento da pessoa, incluindo todos os seus sentidos físicos. Trata-se de uma aprendizagem corporificada e multissensorial que acontece de maneira dinâmica, gradual e relacional através da plena participação e integração do sujeito-aprendiz na vida cotidiana do terreiro, o que torna o ato de aprender um processo sem fim e sem contornos definidos. A aprendizagem se dá no mundo e com o mundo, num progressivo trabalho de educação dos sentidos físicos, que, na realidade, se encontram interligados. Aprender a ver (Rabelo 2015) ou a ouvir (Castanha 2018), nas religiões de matriz africana, envolve, de fato, todo o corpo. Nesse processo de desenvolvimento da percepção do ambiente, ou de educação da atenção, a pessoa não reparte os sentidos, ela aprende de corpo inteiro, “um aprendizado de cabeça e coração” (Brito 2019BRITO, Lucas Gonçalves. (2019), O véu do congá: sobre três aspectos do conhecimento umbandista. Rio de Janeiro: Gramma.:142). A aprendizagem é, portanto, aquilo que constitui a própria pessoa como um todo, dando a ela o seu modo de ser (Goldman 2005GOLDMAN, Marcio. (2005), “Formas do saber e modos do ser: observações sobre a multiplicidade e ontologia no Candomblé”. Religião & Sociedade , vol. 25, nº 2: 102-120.). Ser e conhecer, ontologia e epistemologia, correspondem desse modo a um único processo de desenvolvimento ou formação da pessoa no ambiente.

Essa compreensão a respeito do processo de aprendizagem vivenciado nas religiões de matriz africana inspira-se, em grande medida, na reflexão contida nas obras de Jean Lave e Tim Ingold, dois antropólogos que não se dedicaram propriamente ao estudo da religião, mas que refletiram muito acerca dessa interface entre aprendizagem, pessoa, cultura e ambiente. As ideias de aprendizagem como/na prática e aprendizagem na vida cotidiana desenvolvidas por Lave (2015LAVE, Jean. (2015), “Aprendizagem como/na prática”. Horizontes Antropológicos, ano 21, nº 44: 37-47., 2019LAVE, Jean. (2019), Learning and everyday life. Cambridge: Cambridge University Press.), assim como os conceitos de habilidade (skill) - definido como a capacidade de ação e percepção do organismo como um todo (em que corpo e mente são indissolúveis), situado em um ambiente ricamente estruturado - e de educação da atenção elaborados por Ingold (2000INGOLD, Tim. (2000), The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling, and skill. London: Routledge., 2010INGOLD, Tim. (2010), “Da transmissão das representações à educação da atenção”. Educação, vol. 33, nº 1: 6-25.), são fundamentais para a compreensão de uma maneira de aprender ou de educar a percepção que é completamente indissociável de uma dimensão prática ou experiencial. É justamente essa forma de perceber a aprendizagem que nos permitirá estabelecer uma conexão com um terceiro grupo de autores interessados não apenas em compreender os diferentes modos de aprender vivenciados pelos “nativos”/interlocutores de suas pesquisas etnográficas, como também em refletir sobre a maneira como os próprios etnógrafos vivenciaram ou foram “afetados” por aquilo que experienciaram ao longo de seus trabalhos de campo. Mesmo que algumas dessas pesquisas não tenham o tema da aprendizagem como seu principal foco de investigação, a ideia que subjaz a essas abordagens é a de considerar o próprio percurso etnográfico realizado pelo pesquisador como um processo de aprendizagem da/na prática, procurando perceber que o ato de aprender é constitutivo de qualquer investigação (Gomes, Faria e Bergo 2019GOMES, Ana Maria; FARIA, Eliene; BERGO, Renata. (2019), “Aprendizagem na/da etnografia: reflexões conceitual-metodológicas a partir de dois casos bem brasileiros”. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, vol. 28, nº 56: 116-135.; Pierini 2016PIERINI, Emily. (2016), “Embodied Encounters: Ethnographic Knowledge, Emotion and Senses in the Vale do Amanhecer’s Spirit Mediumship”. Journal for the Study of Religious Experience , nº 2: 25-49.).

Essa centralidade do processo de conhecer durante a prática etnográfica resultará em um exercício de autorreflexão ou auto-observação sobre a própria experiência etnográfica e seus distintos modos de participação. Expressões como “participação total” (Halloy 2016HALLOY, Arnaud. (2016), “Full participation and ethnographic reflexivity: an Afro-Brazilian case study”. Journal for the Study of Religious Experience, nº 2: 7-24.) ou “radical” (Goulet & Granville Miller 2007GOULET, Jean-Guy; GRANVILLE MILLER, Bruce. (2007), “Embodied Knowledge: Towards a Radical Anthropology of Cross-cultural Encounters”. In: J.-G. Goulet; B. Graville Miller (ed.). Extraordinary Anthropology: transformations in the field. Lincoln: University of Nebraska Press.), “engajamento cognitivo e empático” (Bowie 2013BOWIE, Fiona. (2013), “Building Bridges, Crossing Boundaries: Towards a Methodology for the Study of the Afterlife, Mediumship, and Spiritual Beings”. Journal of the American Academy of Religion, vol. 81, nº 3: 698-733.), “observação experiencial” (Mercante 2012MERCANTE, Marcelo. (2012), Imagens de cura: ayahuasca, imaginação, saúde e doença na Barquinha. Rio de Janeiro: Fiocruz.), “imersão participativa” (Palmisano 2016PALMISANO, Stefania. (2016), “Immersion in Experiencing the Sacred: Insights into the Ethnography of Religion”. Journal for the Study of Religious Experience , nº 2: 105-116 .), “etnografia encorporada, performada” (Araújo 2015ARAÚJO, Fabiano Lucena. (2015), O feito e o olhado: performances da aflição e a liturgia popular dos corpos em afecção. João Pessoa: Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPB.) ou “sensorial” (Pink 2009PINK, Sarah. (2009), Doing Sensory Ethnography. London: Sage.) apontam para a tentativa de definir um tipo de comprometimento do antropólogo em campo que vai além de uma simples dimensão cognitiva ou racional. Logo, se quiser absorver seus significados, preceitos e “fundamentos”, o antropólogo de algum modo precisará experimentar a religião (Silva 2006SILVA, Vagner Gonçalves da. (2006), O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp.:89). Trata-se, portanto, de pensar sobre as dimensões corporais e afetivas envolvidas na prática etnográfica (Pierini & Groisman 2016PIERINI, Emily; GROISMAN, Alberto. (2016), “Introduction. Fieldwork in Religion: Bodily Experience and Ethnographic Knowledge”. Journal for the Study of Religious Experience , nº 2: 1-6.), especialmente no âmbito das experiências religiosas, procurando perceber o próprio corpo como um instrumento de conhecimento etnográfico.

A proposta de apreender algo da experiência nativa através do próprio corpo vale-se, em grande medida, de um conjunto de ideias e formulações bastante caras à chamada “virada experiencial” na Antropologia (Pierini 2020PIERINI, Emily. (2020), Jaguars of the Dawn. New York: Berghahn Books.:10) como, por exemplo, os conceitos de embodiment (corporeidade) de Thomas Csordas (2008CSORDAS, Thomas. (2008), Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: UFRGS Editora.) e de être affecté (ser afetado) de Jeanne Favret-Saada (2005FAVRET-SAADA, Jeanne. (2005), “Ser afetado”. Cadernos de Campo, nº 13: 155-161.). Parafraseando outra importante referência nesse campo de reflexão, pode-se dizer que tais conceitos, somados a uma atitude crítica diante da ideia de neutralidade científica, contribuíram para “conferir dignidade” (Goldman 2003GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus”. Revista de Antropologia, vol. 46, nº 2: 445-476.:450) à experiência vivida pelo antropólogo durante o seu trabalho de campo, possibilitando a elaboração de uma investigação antropológica que não é “nem uma perspectiva estritamente nativa (religiosa), nem uma análise fria e distante (científica)” (Halloy 2016HALLOY, Arnaud. (2016), “Full participation and ethnographic reflexivity: an Afro-Brazilian case study”. Journal for the Study of Religious Experience, nº 2: 7-24.:8, tradução nossa). Tal gesto epistemológico-metodológico também não coincide com o conhecido e muitas vezes controverso processo de “tornar-se nativo”, não só em razão da problemática categoria “nativo” - que pressupõe a existência de uma homogeneidade de experiências, visões de mundo e trajetórias de vida -, mas igualmente porque “a participação não implica que o pesquisador automaticamente feche seu ‘olho etnográfico’” (Pierini 2020:11, tradução nossa), deixando de refletir criticamente sobre sua experiência pessoal ou de conversar a respeito dela com seus interlocutores.

É precisamente no interior dessas discussões sobre o processo de imersão do antropólogo em campo, e de todo o aprendizado multissensorial envolvido nessa experiência etnográfica, que o presente artigo pretende ancorar sua reflexão. Trata-se de acompanhar uma narrativa em primeira pessoa, sem ser propriamente uma autoetnografia, procurando perceber em que medida um certo conjunto de situações, impressões e sensações vivenciadas pelo autor nos auxilia a conhecer um pouco mais sobre o processo de aprendizagem na Umbanda e, também, na Antropologia. Uma aprendizagem, ou melhor, uma educação da percepção mediúnica e etnográfica que compreende determinadas dimensões constitutivas da vida humana - saber/sentir, ser/conhecer, participar/observar, ação/percepção, teoria/prática, afeto/cognição - como partes indissociáveis de um único modo de conhecer “incorporado”.

(Des)caminhos de um “aspirante”

“A sua religião é a Antropologia”, me disse um dos médiuns. Achei interessante a associação feita por ele e fiquei imaginando por um instante quais seriam meus orixás ou guias espirituais nessa “minha religião” (talvez Claude Lévi-Strauss ou, quem sabe, Marcel Mauss). O fato é que, de algum modo, eu o havia decepcionado. A expectativa depositada sobre mim era clara. Afinal, depois de tanto tempo frequentando aquele lugar e demonstrando interesse tão grande por tudo o que ali acontecia, era natural que eu “entrasse para a corrente” e me tornasse um dos médiuns da casa. Mas não foi o que aconteceu, porque, para eles, eu havia escolhido a Antropologia.

“Meus nativos” eram céticos em relação à minha pesquisa antropológica e crentes em relação à minha suposta mediunidade (esta sim tinha importância). “A Antropologia não ajuda ninguém”, diziam. Eu era, ao contrário, crente demais em relação à Antropologia e por isso mesmo tive que paradoxalmente encerrar o meu campo. Digo paradoxalmente pois, levando a sério o ponto de vista dos “nativos” da “minha religião”, era natural que eu continuasse a pesquisa especialmente no momento em que ela parecia ter ficado mais interessante. Mas não foi o que aconteceu, porque, para eles, eu havia escolhido a Umbanda.

A Antropologia me iniciou na Umbanda, a Umbanda me iniciou na Antropologia. Mas a verdade é que, naquela ocasião, eu não era nem antropólogo, nem umbandista. Eu era ou estava em devir (devir-antropólogo, devir-umbandista?). Eu era (e certamente ainda sou) um mero aprendiz, um “estudante”, como gostavam de me chamar no terreiro, e essa minha vontade de aprender serviu para despertar o interesse do dirigente da casa. Pai Valdo também gostava de estudar, conhecer coisas novas, e recomendou que eu fizesse o seu curso sobre a Umbanda. “Seria bom para as minhas pesquisas”. Curiosamente, iniciei o Mestrado em Antropologia na mesma semana em que comecei a frequentar o curso ministrado por ele em seu centro de Umbanda. Frequentava a casa há mais ou menos um mês e, desde o primeiro dia, vislumbrei a possibilidade de fazer daquele lugar o meu campo de estudos.

Meu interesse em pesquisar alguma coisa relacionada ao universo religioso afro-brasileiro era recente e surgira em um evento acadêmico que havia assistido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em meados de 2009, sobre a Umbanda e o Candomblé. Era, portanto, a primeira vez que entrava em um terreiro. Depois disso, cheguei a conhecer outras casas, mas optei por continuar minha pesquisa naquele ambiente por uma razão especial. A princípio, minha ideia era refletir sobre as dimensões estéticas da Umbanda, o uso dos objetos, imagens e outros artefatos, procurando compreender a importância dos elementos materiais na cosmologia e nos rituais religiosos. No entanto, com o passar do tempo, tive que redefinir meus interesses de pesquisa, pois percebi, que apesar de as dimensões estéticas e materiais serem de fato relevantes, esse não era um tema que despertava a atenção dos frequentadores e dirigentes dessa casa em questão. Não era sobre isso que eles gostavam de conversar. E se por um acaso conversassem sobre as imagens ou os objetos presentes no terreiro era para tratar fundamentalmente sobre o “uso correto e sadio” de todas as coisas materiais contidas no ambiente. Atrelada, portanto, à dimensão estética, havia uma dimensão ética que passou a me interessar. Além disso, paralela e conectada à dimensão material, havia outra, espiritual (ou sagrada), que deveria ser percebida (Chiesa 2012aCHIESA, Gustavo Ruiz. (2012a), “Criando mundos, produzindo sínteses: experiência e tradição na Umbanda”. Debates do NER, vol. 13, nº 21: 205-235.).

Na realidade, foram dois os principais motivos que me levaram a permanecer no Cruzeiro da Luz, terreiro dirigido por Pai Valdo, e fazer desse lugar (ou a partir desse lugar) o meu “objeto” de investigação. Primeiramente, o esforço de sistematização e racionalização da experiência religiosa realizado no Templo Espiritualista do Cruzeiro da Luz, sobretudo por seu dirigente, chamou minha atenção desde o início. Os cursos oferecidos na casa, os artigos escritos pelo dirigente, as apostilas por ele organizadas indicavam a clara tentativa de estabelecer um conteúdo comum de ideias, valores, regras e princípios religiosos que pretendiam tanto orientar a conduta moral dos médiuns e frequentadores do templo quanto oferecer um quadro sistemático e normativo para a Umbanda. Os cursos e textos, além de fornecerem os valores morais e princípios éticos que fundamentam a prática religiosa e auxiliam os indivíduos no exercício de uma “espiritualidade sadia”, funcionavam também para esclarecer determinados elementos presentes na cosmologia e nos rituais da Umbanda conforme praticada e refletida no Cruzeiro da Luz. Esclarece-se, por exemplo, o que são orixás, quais as suas funções e significados na Umbanda; qual o papel desempenhado pelas entidades espirituais (caboclos, pretos-velhos, crianças, exus e pombagiras), o que elas representam; quais as funções das ervas e outros objetos litúrgicos, como velas, pedras, alimentos, entre outros materiais; qual a importância do canto, do atabaque e da dança para assegurar a eficácia ritual etc. O segundo motivo de interesse reside na própria experiência religiosa do dirigente desse terreiro. Ao longo do tempo, frequentando as atividades e realizando os cursos oferecidos na casa durante os anos de 2010 e 2011, descobri alguns acontecimentos interessantes vividos por Pai Valdo que me serviram para pensar e traçar possíveis conexões entre experiência pessoal e cosmologia religiosa, isto é, o papel fundamental que a criatividade, a subjetividade e a experiência exercem na elaboração de uma cosmologia e uma estrutura religiosa específica. Assim, mergulhando na trajetória de vida desse líder religioso, e em suas múltiplas experiências, pude compreender como essas últimas auxiliaram e, mais do que isso, atuaram de maneira criativa na conformação de uma cosmologia e de uma prática religiosa que se encontram em permanente processo de transformação e movimento. Deslocando certas dualidades e oposições, pude perceber, a partir da narrativa pessoal e do percurso “etnobiográfico” realizado por Pai Valdo, que trajetória de vida, pensamento cosmológico e estrutura religiosa são atravessados, construídos e compreendidos na experiência singular da pessoa (Chiesa 2012bCHIESA, Gustavo Ruiz. (2012b), “Pai Valdo: fragmentos de uma religião em movimento”. In: M. A. Gonçalves et al. (ed.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7Letras.).

A situação que descrevi no início deste tópico ocorreu quando resolvi deixar o “aspirantado”. Trata-se de um “período de testes”, um “estágio” ou “processo de seleção”, com duração de dois ou três meses, destinado àqueles que desejam fazer parte da “corrente mediúnica” do Cruzeiro da Luz, ou seja, para aqueles que desejam exercer sua mediunidade nesse terreiro de Umbanda. Os “aspirantes” são constantemente avaliados e cobrados pelos membros da hierarquia religiosa e tomam conhecimento de tudo o que acontece na casa, sobretudo quando o público não está presente. Os “aspirantes” recebem o “regimento interno” da casa com todas as obrigações e regras de conduta que os médiuns devem cumprir, dentro e fora do terreiro, em que o respeito à hierarquia religiosa é, sem dúvida, um dos pontos mais enfatizados1 1 Conforme descrito no próprio regimento, a hierarquia religiosa no Cruzeiro da Luz é constituída da seguinte forma: 1. “Sacerdote-Chefe” (“Pai”, dirigente da instituição); 2. “Sacerdote Substituto” (“Pai-Pequeno”, vice-dirigente); 3. “Sacerdotes Auxiliares” (“Pais-Pequenos” e “Mães-Pequenas” auxiliares); 4. “Ogãs” (Auxiliares de Culto, não “incorporantes”); 5. “Ekédis” (Auxiliares de Culto, não “incorporantes”); 6. “Iniciados” (Médiuns que já completaram a sua iniciação); 7. “Iniciandos” (Médiuns em período de iniciação); 8. “Aspirantes” (Não iniciados). . Eles também ficam cientes de todas as etapas ou iniciações que deverão cumprir e os cursos, práticos e teóricos, que obrigatoriamente deverão fazer para se tornar médiuns competentes e responsáveis. Logo, alguém que deseja aprender a dinâmica de funcionamento desse grupo religioso, bem como compreender e mergulhar profundamente em seus valores e suas visões de mundo, precisa inevitavelmente passar por uma série de etapas, descritas nesse “regimento interno”, cujo início corresponde ao “aspirantado”.

Sem dúvida, a experiência que vivi como “aspirante” do Cruzeiro da Luz foi crucial para o desenvolvimento de minha pesquisa e, acima de tudo, para começar a “catar as folhas” certas2 2 Segundo nos lembra Marcio Goldman (2005), “catar folhas” corresponde, no universo das religiões de matriz africana, a um processo de aprendizagem sem fim que demanda muita paciência, comprometimento e participação constante na vida cotidiana do terreiro, na esperança de que em algum momento todo esse aprendizado vivido comece a fazer algum sentido. Nota-se, portanto, que tal metáfora corresponde em grande medida ao processo de contínua aprendizagem que caracteriza o fazer etnográfico (Gomes, Faria e Bergo 2019). . Antes disso, em quase um ano de convívio, foram pouquíssimas as oportunidades que tive para conversar com os médiuns ou mesmo os dirigentes da casa. Posteriormente, ao ingressar no “aspirantado”, descobri que, de fato, existe uma regra proibindo que os médiuns conversem com os frequentadores da casa; uma proibição que, segundo os membros da hierarquia religiosa, estaria justificada por razões de natureza mental e espiritual.

A minha entrada para o “aspirantado” não foi planejada em algum momento anterior ou pensada previamente como uma estratégia interessante para o desenvolvimento da pesquisa. Ao contrário, procurei simplesmente me deixar levar pelo campo e pelos afetos, desejando que a plena participação guiasse meu olhar, educasse meus sentidos. Eu quis participar e não apenas observar, mas, no decorrer da pesquisa, “não parei de oscilar entre esses dois obstáculos” (Favret-Saada 2005:157): participar e observar, estar dentro e estar fora, e essa oscilação me fez deixar o “aspirantado”. Hoje, percebo que por trás dessa oscilação subjaz uma falsa questão, visto que uma dimensão não precisa necessariamente excluir a outra. No entanto, naquela ocasião, e sobretudo para os médiuns da casa, ali, a partir do momento em que atravessei o portão de entrada e me tornei um “aspirante”, eu só poderia ser uma coisa: médium. Logo, diziam eles, a Antropologia deveria me esperar do lado de fora. “Eu não poderia fazer do terreiro o meu laboratório de pesquisa”, diziam os dirigentes da casa3 3 É interessante perceber que a metáfora do “laboratório de pesquisa” utilizada pelos dirigentes da casa pode nos dizer algo sobre uma determinada concepção de pesquisa e de ciência. Por um lado, tal analogia pode expressar uma certa concepção “ortodoxa” de ciência (típica às chamadas hard sciences) que demarca uma nítida separação entre sujeito e objeto de pesquisa, isolando este último em um ambiente controlado para que a subjetividade do pesquisador não interfira nos “fatos” a serem “descobertos”. Por outro lado, essa frase pronunciada pelos médiuns (“Eu não poderia fazer do terreiro o meu laboratório de pesquisa”) talvez possa significar uma grave advertência, revelando que, de algum modo, eu acabei transformando os interlocutores em meus “objetos” de pesquisa, distanciando-me do tipo de vínculo e de relação que certamente desejava estabelecer com eles. . Mas, por não ter conseguido deixá-la de fora, ou seja, por ter feito dela a “minha religião”, quem acabou saindo fui eu. “Afinal, eu tinha uma dissertação para entregar, tinha prazos apertados para cumprir, tinha, enfim, que produzir… e, por essa razão, não poderia me envolver…”, pensei naquele instante. Pensamento equivocado, percebo agora, pois o envolvimento que receava obter seria, na realidade, uma condição essencial para o conhecimento que ansiava produzir. De todo modo, mesmo sem muito sucesso, tentei, ao menos em alguns momentos, fazer da minha participação um instrumento de conhecimento. Consegui, também em alguns momentos, estabelecer relações, base fundamental de toda e qualquer observação participante.

Eu não era uma pessoa religiosa no sentido de ser adepto de alguma religião, mas também não estava ou nunca estive fechado à possibilidade de experienciar determinados fenômenos difíceis de serem compreendidos de uma maneira “razoável” (ou seja, pelo uso exclusivo da razão). Certas discussões presentes na religião, sobretudo nas assim chamadas “religiões mediúnicas”, me despertavam a atenção, mas não a ponto de me tornar um praticante entusiasmado que procura ler tudo sobre os ditos “fenômenos paranormais”, “atividades extracorpóreas”, “comunicações espirituais”, “transes” e “possessões”. Foi, portanto, somente naquele momento que vislumbrei a possibilidade de fazer da religião, ou de algum assunto ao redor dela, o meu “objeto” de investigação. Não sabia dizer por que exatamente havia escolhido fazer meu campo em um terreiro de Umbanda4 4 Talvez tenha sido capturado ou seduzido por sua estética que inclui, entre outras coisas, danças, músicas, aromas, comidas e boas histórias para ouvir e contar. , assim como não fazia ideia o que significava ser umbandista. Ao final de pouco mais de um ano de convivência nem sempre sistemática nesse terreiro situado em um bairro da zona norte carioca, não cheguei a ter a certeza se descobri o significado de ser adepto dessa prática religiosa tão rica e complexa.

Aprendendo a participar

Foram inúmeras as dificuldades que surgiram durante a realização dessa pesquisa. A maior delas, sem dúvida, foi a impossibilidade de conversar detalhadamente com os médiuns da casa e, principalmente, de não poder compartilhar de um mesmo ambiente. Com isso aprendi que os ensinamentos religiosos (ou, ao menos, umbandistas) não ocorrem por meio da simples transferência ou transmissão de palavras, imagens ou representações que devem ser assimiladas e memorizadas, mas sim, e fundamentalmente, a partir da vivência, da experiência, da completa imersão e engajamento em um ambiente de aprendizagem ou, mais exatamente, em uma “comunidade de prática” (Lave & Wenger 1991LAVE, Jean; WENGER, Etienne. (1991), Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge: Cambridge University Press . ). Percebi que mais do que uma relação do tipo mestre/aprendiz, a aprendizagem na Umbanda é essencialmente uma atividade de participação (no sentido de tornar-se parte de algo, ser aceito ou reconhecido) em um determinado contexto de prática, em que os noviços ou aprendizes se tornam parte estruturante dessa comunidade ao mesmo tempo que desenvolvem suas habilidades práticas.

Nesse templo, assim que os médiuns chegam, devem cumprimentar as entidades espirituais que protegem a casa (presentificadas nas imagens feitas de gesso ou em determinados objetos associados a elas), saudar todos os membros da hierarquia religiosa e dirigir-se para um local de acesso restrito aos médiuns, permanecendo lá, sem contato, até o início da “gira”. Nesse espaço reservado, os médiuns podem vestir seus uniformes brancos, conversar rapidamente entre si, fazer algum lanche leve e se concentrar para as atividades que logo se iniciarão. Assuntos relacionados à vida pessoal, familiar e profissional devem ser evitados, fato que nem sempre acontece, sobretudo quando os médiuns são amigos ou já se conheciam anteriormente. Tais conversas são proibidas ou devem ser evitadas, porque, de acordo com os dirigentes, interferem diretamente no ambiente espiritual da casa, criando determinadas “vibrações” que podem não estar condizentes com o estado de harmonia necessário para o desenvolvimento mediúnico e para a atuação eficaz dos espíritos que ali trabalham. Assim, paralelamente à dimensão física, haveria uma dimensão sutil, energética ou espiritual, à qual deveríamos prestar atenção, fato que envolve, evidentemente, um treinamento de nossa percepção do ambiente. Além disso, os médiuns devem evitar conversar com os frequentadores, pois estes apresentam, ao menos em princípio, um “padrão mental” diferente dos primeiros. Desse modo, a harmonia e a concentração que os médiuns precisam manter visando ao bom exercício de suas atividades caritativas podem ser prejudicadas ou afetadas pelo desequilíbrio emocional e espiritual presente em grande parte dos indivíduos que procuram uma casa de Umbanda para “resolver seus problemas”5 5 Subentende-se, desse modo, que quem procura um centro de Umbanda se encontra de alguma maneira “desequilibrado” ou envolvido em algum problema. . É comum, por exemplo, que um frequentador se aproxime de determinado médium e diga: “seu guia é muito bom, viu? Você não atende em casa?”. Essa situação, se não for bem administrada pelo médium, pode provocar o seu desequilíbrio psíquico gerando alguns sentimentos (vaidade, orgulho ou, caso outro médium ouça a conversa, inveja e ciúme) que não devem de maneira alguma estar presentes em um ambiente religioso. Todavia, essa postura de evitar o público faz com que muitas vezes o médium do Cruzeiro da Luz seja tido, sobretudo pelos novos frequentadores, como “grosso”, “sério”, “fechado”, “mal-educado”, “frio” etc. Essa foi a primeira impressão que tive e isso foi o que muitos frequentadores me disseram. Logicamente, eu só fui entender o motivo de tal atitude depois que me tornei “aspirante” da casa. Aliás, a evitação ou separação entre o médium e o frequentador, entre o “lado de dentro” e o “lado de fora”, parece ser, na realidade, o reflexo ou a continuidade de outra separação existente entre “espíritos encarnados” e “espíritos desencarnados” que fundamenta essa prática religiosa. Tal atitude também gera outro efeito importante, a saber, a centralização, o controle ou a concentração dos discursos produzidos na figura de uma só pessoa. O dirigente da casa torna-se, dessa forma, o porta-voz oficial do grupo, pois é o único que tem a liberdade para andar pela casa e conversar com quem quiser. Os outros membros da hierarquia também possuem certa liberdade, em especial o “pai-pequeno” (vice-dirigente) e os “ogãs”, mas não do mesmo modo que o dirigente. Existe, portanto, um controle rígido sobre o que é dito (e não dito), para quem é dito e quem pode dizer, que se estrutura a partir de uma lógica fortemente hierárquica refletida também em termos espirituais, tendo em vista que a relação entre poder e dizer igualmente se faz presente no contato com o mundo dos espíritos.

De fato, abrindo um breve parêntese, é possível estabelecer uma analogia existente na relação entre os mundos material e espiritual, por um lado, e entre os frequentadores (localizados na “assistência”, no “lado de fora” e, portanto, mais “material”) e os médiuns (situados no “abaçá”, no “lado de dentro”, mais “espiritual”), por outro, especialmente quando se deseja realizar o contato entre esses dois mundos por intermédio do transe mediúnico. Em relação ao contato entre médiuns e guias espirituais, essa comunicação entre mundos só se faz possível porque se reconhece uma unicidade constitutiva entre ambos, tendo em vista que, nessa ontologia, todos os seres são derivados de uma mesma matéria, de origem divina; todos são espíritos - alguns encarnados, outros desencarnados - variando apenas a densidade dessa substância - o “axé” - presente em todos os seres. Logo, é a unicidade que assegura a continuidade entre mundos tratados em alguma medida como descontínuos. Continuidade, todavia, temporária e controlada, que tem sua expressão máxima no transe ou na possessão6 6 Inspiro-me aqui nas reflexões realizadas por Maria Laura Cavalcanti (1983), sobre o Espiritismo, e Marcio Goldman (1985), a respeito do Candomblé, que, partindo da noção de ritual elaborada por Lévi-Strauss, concebem o transe e a possessão como um momento de comunicação, de troca entre os mundos, em que estão suspensas, ao menos temporariamente, as distâncias que separam o “mundo visível” e o “invisível”, o “aiê” e o “orum”. . O controle é fundamental, pois o contato entre os mundos não pode ser realizado em qualquer momento e circunstância. Ao contrário, o transe realizado fora do devido momento (“giras de aconselhamento” e “tratamentos espirituais”) significa descontrole e indisciplina. Nota-se, portanto, que o contato entre os mundos material e espiritual, assim como entre médiuns e frequentadores, é virtualmente possível em qualquer ocasião, mas deve ser realizado apenas em determinados momentos, muito bem controlados, nos quais apenas algumas coisas podem ser ditas ou reveladas7 7 Além disso, assim como essa relação entre mundo material e espiritual deve ser constantemente renovada, por exemplo, através das festas, oferendas e do próprio transe mediúnico, a relação que se estabelece entre frequentadores, médiuns e seus guias espirituais, sobretudo através das consultas e aconselhamentos, também é permanente e precisa ser sempre renovada. “Afinal, ‘dar consultas’, ou oferecer ‘conselhos’, como disse Walter Benjamin, é menos uma resposta a uma questão do que uma proposta para a continuação de uma estória que está se abrindo” (Cardoso, V. 2007:338). .

O fato de nem tudo poder ser dito e, principalmente, de nem todos poderem dizer o que querem ou quando querem foi algo que aprendi durante o meu período de “aspirantado” a partir de uma situação um tanto constrangedora que vivenciei em uma certa ocasião comemorativa. Naquele dia, o terreiro recebia a visita de Pedro Miranda, presidente da União Espiritista de Umbanda do Brasil, o que obviamente despertou a minha curiosidade de pesquisador. Interessado em saber um pouco mais sobre essa instituição e, claro, sobre a trajetória de vida desse ilustre pai de santo carioca, deixei de lado minhas tarefas de “aspirante” e comecei a conversar com Pai Pedro enquanto todos aguardavam, em silêncio, o início da “sessão”. Alguns minutos se passam e percebo o “pai-pequeno” (vice-dirigente) do Cruzeiro da Luz caminhar apressadamente em minha direção, com ares de poucos amigos. Com a voz baixa, ele se aproxima de meu ouvido e solicita que eu o acompanhe até parte de fora do salão. Caminho em direção à porta de saída, sob o olhar atento de médiuns e alguns frequentadores. Ao chegar na área externa, recebo, em silêncio, com a cabeça e os olhos baixos, um belo sermão que me coloca em meu devido lugar de aprendiz e me ensina a perceber que aprender a ouvir calado e respeitar a hierarquia, como já apontado em outras investigações (Castanha 2018CASTANHA, Taísa. (2018), “Educação da audição no Candomblé: notas iniciais”. In: Reunião Brasileira de Antropologia. Anais da 31ª Reunião Brasileira de Antropologia. Brasília: ABA.), são habilidades fundamentais para aqueles que desejam se tornar umbandistas.

A concentração do discurso em uma ou poucas pessoas implica um certo consenso a respeito do que é dito e praticado no terreiro, o que não quer dizer que os demais médiuns pensem sempre da mesma forma que o seu dirigente e concordem com tudo o que é dito por ele ou realizado na casa. Pelo menos foi o que me disse, em certo tom de confidência, um dos médiuns. Opiniões contrárias, por exemplo, à rigidez e à excessiva disciplina da casa estão presentes, mas dificilmente serão apresentadas aos membros da hierarquia religiosa. Estes últimos são claros: “médium não tem que achar nada. Ele está aqui para trabalhar e obedecer às diretrizes espirituais. Se achou, devolve!”. A ideia é reduzir ao mínimo o espaço para a divergência e o conflito, mas, caso isso aconteça, o que é inevitável já que estamos lidando com humanos, o provável é que o médium divergente peça para se desvincular da “corrente mediúnica” e deixar a casa. E são bem raros os casos de pessoas que retornam a frequentar a casa regularmente após terem sido “desligadas da corrente”. Mesmo os “aspirantes” que desistiram da vinculação dificilmente voltam a pedir conselhos a alguma entidade espiritual ou a fazer qualquer um dos tratamentos espirituais oferecidos no centro.

A proibição e a centralização do que é falado em uma só pessoa obviamente fez com que eu voltasse minhas atenções para o dirigente do terreiro, algo que me incomodou em alguns momentos no decorrer da pesquisa. Um dos incômodos estava, por exemplo, na diferença etária. Conforme registrei certa vez em meu diário de campo,

[…] a diferença de idade entre mim e os médiuns da casa, em especial o dirigente, faz com a relação se estabeleça de uma forma “mestre-discípulo”, o que me incomoda um pouco. Não é uma relação simétrica. Só que a tradicional hierarquia (antropólogo-nativo), no meu caso, está invertida: quem parece deter autoridade não sou eu, mero jovem, estudante, aprendiz, curioso, mas sim o dirigente espiritual, já senhor de idade, detentor de uma vasta sabedoria em diversos assuntos. Mas isso tudo pode ser uma coisa da minha cabeça, e talvez ele não enxergue a relação desse modo. Enfim, vamos deixar rolar… (nota do diário de campo realizada em 10 de abril de 2010).

Não saberia dizer se isso, de fato, em algum momento o incomodou. Penso que não. Mas o tom professoral que marcava as suas respostas às minhas indagações sempre me incomodou, e tive muita dificuldade em romper com essa barreira criada, talvez, por mim mesmo, justamente por me apresentar (ou representar) como um estudante, na ocasião mestrando em Antropologia. Outro incômodo estava na enorme dificuldade em conseguir marcar uma conversa com Pai Valdo. Sempre muito ocupado e pouco disponível, ele não tinha interesse em falar de sua vida, mas apenas de sua religião. E se quisesse conhecer um pouco mais sobre a sua religião, eu deveria ler os seus textos e fazer os seus cursos. Foi o que eu fiz. E entre um curso e outro, uma “gira” e outra, consegui, aos poucos, descobrir algumas coisas sobre ele, sua vida, suas ideias e ensinamentos religiosos.

A questão da transmissão e aquisição dos ensinamentos e conhecimentos religiosos, bem como o caráter fortemente hierárquico envolvido nesse processo de aprendizagem, foi algo destacado por inúmeros pesquisadores das religiões brasileiras de matriz africana (Cossard 1981COSSARD, Gisèle Binon. (1981), “A Filha de Santo”. In: C. E. Moura (org.). Olóòrisà: Escritos sobre a Religião dos Orixás. São Paulo: Agora.; Goldman 1985GOLDMAN, Marcio. (1985), “A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé”. Religião & Sociedade, vol. 12, nº 1: 22-54.; Prandi 2001PRANDI, Reginaldo. (2001), “O Candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº 47: 43-58. ; Rabelo e Santos 2011RABELO, Miriam; SANTOS, Rita Maria. (2011), “Notas sobre o aprendizado no candomblé”. Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade , vol. 20, nº 35: 187-200.). No Cruzeiro da Luz, como em muitos outros lugares, a controvérsia que envolve a ideia de segredo também se faz presente, sem remeter, no entanto, a todo o contexto de repressão e perseguição oficial sofrido por essas práticas religiosas ao longo da história e que justificou, em grande parte, a necessidade de controlar e regular o acesso a seus saberes, limitando-o a um pequeno número de pessoas. Porém, o estudo desse caso me pareceu interessante, pois mesmo que seja aceita a premissa de que esse conjunto de saberes deva ser gradualmente revelado aos aprendizes e iniciados, os cursos, textos e imagens produzidos e divulgados por Pai Valdo parecem não desestabilizar o sistema notadamente hierárquico de controle desses saberes secretos, nem colocar em risco a sua posição de prestígio, algo que, em outros contextos, foi alvo de inúmeras disputas, conflitos e tensões (Johnson 2002JOHNSON, Paul Christopher. (2002), Secrets, Gossip, and Gods: The Transformation of Brazilian Candomblé. Oxford: Oxford University Press.; Silva 2006SILVA, Vagner Gonçalves da. (2006), O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp.; Castillo 2008CASTILLO, Lisa Earl. (2008), Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EdUFBA.).

Assim, em minha investigação, pude constatar que a principal preocupação desse dirigente é manter, sob o seu controle, as informações dadas (ou, mais exatamente, as pessoas que podem receber essas informações) e não, necessariamente, as esconder por completo. Ou seja, o maior acesso às práticas rituais e outros saberes depende, acima de tudo, da maior integração, vontade e engajamento às atividades realizadas pelos membros do terreiro. Digo isso porque foi apenas quando me tornei voluntário oficial da casa que comecei a ter mais informações sobre os bastidores das atividades rituais e das festividades. Portanto, ao sair de uma “participação periférica” e caminhar em direção a uma forma de “participação plena” (Lave & Wenger 1991LAVE, Jean; WENGER, Etienne. (1991), Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge: Cambridge University Press . ), adquiri a confiança necessária, mas ainda não completa, dos integrantes que deixaram de me ver como apenas mais um frequentador ou mesmo um curioso qualquer. Sem dúvida, a confiança depositada em mim aumentaria ainda mais no instante em que desejasse me tornar um deles. Para isso, eu deveria me candidatar ao “aspirantado”, fato que ocorreu algum tempo depois.

Existem, dessa forma, informações, sobretudo teóricas e conceituais, que são dadas ao público em geral mediante os cursos, textos e palestras que visam esclarecer e transmitir os ensinamentos da Umbanda conforme pensada no Cruzeiro da Luz, informações e conhecimentos que, no entanto, só serão aprofundados, praticados e verdadeiramente compreendidos a partir do real envolvimento, comprometimento e responsabilidade com as atividades da casa. Um engajamento que, além do mais, lhe possibilitará ser afetado pelas mesmas forças que afetam o “nativo” ou iniciado.

Entre sonhos e tambores: “ser afetado” como um modo de conhecer

A entrada no “aspirantado” me favoreceu o acesso à “exegese interna” (Halloy 2016HALLOY, Arnaud. (2016), “Full participation and ethnographic reflexivity: an Afro-Brazilian case study”. Journal for the Study of Religious Experience, nº 2: 7-24.), possibilitando conhecer a forma e o contexto no qual o conhecimento é transmitido, e não apenas o discurso (escrito ou falado) bem estruturado sobre ele. Além disso, essa entrada me permitiu vivenciar algumas experiências que eu nunca havia experimentado enquanto mero observador ou frequentador do terreiro. Algumas são impossíveis de descrever, mas gostaria de tentar esclarecer o que para mim significou ser afetado a partir de duas breves situações que vivenciei.

No Cruzeiro da Luz, os “aspirantes” são os principais responsáveis pelos trabalhos de faxina e arrumação da casa após o término das atividades realizadas nas quintas-feiras (dia dos “tratamentos espirituais”) e nos sábados (dia das “giras de aconselhamento” com as entidades espirituais). Devem recolher o lixo deixado pelos frequentadores, pelos guias espirituais (guimbas de cigarro ou charuto, restos de flores, por exemplo), varrer e limpar a sala da “assistência” (local onde ficam os frequentadores) e o “abaçá” (espaço onde ocorre a “gira” e os “aconselhamentos”), arrumar as cadeiras, separar o lixo (visto que o “lixo normal” não pode ser colocado no mesmo reservatório destinado ao “lixo litúrgico”). Depois que cumpri essas minhas obrigações, voltei para casa, cansado pelo tardar da noite (as atividades costumam terminar por volta da meia-noite), tomei um banho e fui dormir. Nessa mesma noite, já dormindo, sonhei que estava em uma grande casa, um sobrado, com um belo e enorme jardim onde se encontravam o “pai-pequeno” do Cruzeiro da Luz e um dos “ogãs” da casa, justamente os dois principais responsáveis por orientar os “aspirantes”. Ali, o “pai-pequeno” da casa me pediu para que eu o ajudasse a limpar o jardim e recolhesse algumas folhas que estavam caídas no chão. Fiz isso e voltei para a parte interna da casa onde havia uma grande sala. Nesta, um dos médiuns do Cruzeiro da Luz estava sentado em um sofá e assistia a um filme do qual não me recordo. Lembro-me apenas de sentar-se ao seu lado para ver o filme com ele. De manhã, acordei com a nítida sensação de que havia continuado o meu trabalho no terreiro, mas em outro ambiente, outra casa, bem maior e mais espaçosa e arborizada do que a casa que conhecia.

Na semana seguinte fui conversar com o vice-dirigente do centro e dizer o que havia sonhado. Ele disse que sonhos como esse são comuns entre os médiuns, “volta e meia alguém nos procura dizendo que sonhou algo mais ou menos assim”, e que, de fato, eu havia estado no “verdadeiro” Cruzeiro da Luz, ou seja, na casa de atendimento aos espíritos que precisam de auxílio, localizada na Colônia Espiritual Divina Misericórdia. “A casa que nós trabalhamos aqui, no plano físico, é só uma cópia, um rascunho, malfeito, da verdadeira casa que existe no plano espiritual. Terminado o nosso trabalho aqui, no plano material, é natural que nossos espíritos continuem o trabalho, que nunca cessa, no outro plano”. Ele ainda disse que esse meu sonho significava que eu realmente estava “sintonizado” com as vibrações da casa, o que era um ótimo sinal de comprometimento. Apesar de ter conseguido estabelecer de alguma forma uma “comunicação involuntária e não-intencional” (Favret-Saada 2005) com uma dimensão dessa epistemologia nativa, na realidade eu não fazia ideia do que aquele sonho pudesse significar. De todo modo, achei interessante o fato de que sonhos dessa natureza eram comuns entre os médiuns da casa; algo que revela, em outro nível, a continuidade e a relação hierárquica estabelecida entre os planos espiritual e material e, mais do que isso, entre “sonho” e “realidade”.

A outra situação foi vivenciada no próprio Cruzeiro da Luz, durante uma atividade de “desenvolvimento mediúnico”, e certamente será bem mais difícil de descrever e compreender. As atividades de desenvolvimento mediúnico são realizadas aos sábados, algumas horas antes da “gira” começar. Trata-se de um momento essencial no processo de aprendizagem no terreiro, em que os médiuns iniciantes, sob a orientação dos mais experientes, “ensaiam”, “treinam”, “preparam” a sua mediunidade de incorporação desempenhando os mesmos procedimentos realizados em uma “gira” normal. Eles incorporam as entidades, dançam, gesticulam, se posicionam para aplicar o “passe”, cumprimentam os dirigentes. Estes, por sua vez, explicam o que deve ser feito, como deve ser feito, auxiliando e corrigindo os movimentos realizados pelos aprendizes. Enfim, tudo se passa como se fosse realmente uma “gira” de Umbanda, mas fechada ao público que costuma frequentar a casa. Os “aspirantes” não participam ativamente desse treinamento para o desenvolvimento das habilidades mediúnicas, sendo reservado àqueles que já passaram pelo “aspirantado” e se tornaram “iniciandos” no processo de incorporação dos guias espirituais e entidades da Umbanda. No entanto, o fato de nós, “aspirantes”, não podermos participar diretamente desse “ensaio”, não nos impossibilita de ver, ouvir e, principalmente, sentir tudo aquilo que se passa naquele ambiente, naquele momento.

Os “ogãs” aproximam-se de seus atabaques e começam a tocar e cantar o seguinte “ponto” para o orixá Xangô:

Ele bradou na aldeia Bradou na cachoeira Em noite de luar. No alto da pedreira Vai fazer justiça Pra nos ajudar. Ele bradou na aldeia Caô, caô! E aqui vai bradar Caô, caô! Ele é Xangô da pedreira Ele nasceu na cachoeira Lá na Juremá!

Os médiuns em iniciação começam, então, a incorporar os espíritos mensageiros da chamada “vibratória de Xangô”. Ao mesmo tempo, eu começo a ter uma sensação estranha, difícil de ser traduzida em palavras. Sensação que, em parte, estou sentido agora ao relembrar daquela situação (como se a escrita fosse de algum modo capaz de trazer novamente à tona as afecções vivenciadas naquele instante). Minhas mãos e meus pés começaram a suar frio. Simultaneamente, comecei a sentir uma pressão muito forte à altura do meu tórax. Enquanto os médiuns tocavam, cantavam e dançavam, uma emoção muito forte se abateu sobre mim. Emoção que duramente consegui controlar e, aos poucos, fui voltando ao meu “normal”. Após esse fato, fui perguntar para um dos médiuns mais experientes o que havia se passado comigo. Ele disse que isso era um sintoma de que a minha “sensibilidade mediúnica” começava a se aflorar. Disse que eu simplesmente senti, fui afetado pela presença e pela força dos espíritos da “vibratória de Xangô” que ali se encontravam.

Sobre esse caso, é importante dizer que não considero que tenha sido afetado (apenas) em razão da forte emoção que senti, mas fundamentalmente porque, ao menos por alguns instantes, pude acessar uma condição que me transformou e me permitiu partilhar de uma experiência e estabelecer um tipo de relação com os médiuns diferente do que havia vivenciado até aquele momento, o que certamente foi reconhecido por eles. Afeto, portanto, “não tem aqui absolutamente o sentido de emoções ou sentimentos, mas o de ‘afecções’: um devir-cavalo, por exemplo, não significa que eu me torne um cavalo ou que eu me identifique psicologicamente com o animal; significa que ‘o que acontece ao cavalo pode acontecer a mim’” (Goldman 2003GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus”. Revista de Antropologia, vol. 46, nº 2: 445-476.:464).

De fato, durante os meses em que frequentei a casa como observador, “de fora”, nunca havia sentido algo parecido com isso que descrevi, mesmo quando ouvia esse “ponto cantado” para Xangô. A possibilidade de ser afetado surgiu, assim, apenas no instante em que tentei de alguma maneira entrar e participar ativamente daquele ambiente e me relacionar com todos os seres que ali estavam presentes (sem obrigatoriamente querer me tornar um deles). Tal envolvimento de corpo inteiro, fruto de uma “ressonância empática” (Halloy 2016HALLOY, Arnaud. (2016), “Full participation and ethnographic reflexivity: an Afro-Brazilian case study”. Journal for the Study of Religious Experience, nº 2: 7-24.) com meus interlocutores em campo, de algum modo me permitiu ser “capturado” pela experiência nativa. Ser afetado, participar e experimentar subjetivamente aquilo que até então observava apenas de fora me possibilitou não só conhecer e compreender um pouco mais aquelas pessoas, suas sensações, percepções e experiências religiosas na Umbanda, mas também desenvolver ou, ao menos, iniciar o desenvolvimento de minhas próprias habilidades mediúnicas8 8 Afirmar que tais habilidades podem ser desenvolvidas ou aprendidas não exclui ou se contrapõe, de maneira alguma, à ideia de que “dons naturais” ou “missões espirituais”, previamente programadas, possam existir. Como já apontado por alguns autores, o “inato” e o “adquirido” são imanentes um ao outro, não havendo, portanto, qualquer oposição ou polarização entre essas duas modalidades de relação, mas sim mútua implicação e participação (Sansi 2009; Goldman 2012). . É nesse sentido que considero ter tentado fazer da participação, ou das afecções, um modo (somático) de produção de conhecimento ou de um “saber sobre o mundo” (Goldman 2003GOLDMAN, Marcio. (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia e política em Ilhéus”. Revista de Antropologia, vol. 46, nº 2: 445-476.). Trata-se da proposição de uma abordagem metodológica baseada no engajamento cognitivo, empático e, também, corporal do pesquisador (Pierini 2020PIERINI, Emily. (2020), Jaguars of the Dawn. New York: Berghahn Books.), que resultará no aprendizado de uma maneira singular de ser, conhecer e perceber o mundo.

No entanto, foram vários os momentos em que descuidadamente procurei não sentir ou participar de nada, tentando apenas observar, registrar e “coletar” o que se passava nas “giras” ou em qualquer outra atividade da casa, como se fosse possível estabelecer uma nítida separação entre participação e observação, entre agir e prestar atenção ou, dito de outra forma, entre ser/estar no mundo e conhecer o mundo. Curiosamente, tal tentativa de separação - derivada da ausência de um verdadeiro comprometimento ontológico com o outro (Ingold 2016INGOLD, Tim. (2016), “Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia”. Educação , vol. 39, nº 3: 404-411.) - significava, na visão dos médiuns e dirigentes do terreiro, que eu não havia conseguido deixar do “lado de fora” a Antropologia, isto é, a minha preocupação com os estudos, a pesquisa, os livros, os prazos, as produções e tudo aquilo que impedia o meu engajamento prático, direto e sensível com o que acontecia ali, ao meu redor. Assim, meu receio em “perder o controle” - e, de fato, esse parece ser um risco inerente a todo e qualquer processo de aprendizagem - ou minha vontade ingênua de objetivamente pesquisar - derivada de uma má compreensão a respeito do papel crucial que a empatia, as emoções e a subjetividade podem desempenhar na prática etnográfica - acabou atrapalhando a minha própria investigação, o que me fez perceber, agora, ao escrever e refletir distanciadamente sobre essa experiência, que eu não era nem antropólogo, nem umbandista. Eu era um aprendiz, um estudante 9 9 Do latim studiosus, termo que significa pessoa dedicada, que gosta de algo, que é zelosa. O estudante é, por definição, aquele que ama o que faz, que ama aprender. , que tentou fazer de sua experiência antropológica algo relevante para si mesmo. Era um “macumbeiro de primeira viagem” que não soube dizer se a sua religião, a sua “macumba”, era a Umbanda ou a Antropologia.

Apesar dos (des)caminhos e das (des)venturas surgidas ao longo dessa imersão etnográfica, a condição de ser um eterno aprendiz tem a sua beleza, a começar, por exemplo, pelo esforço de rejeitar toda forma de superioridade ou colonialidade do saber acadêmico em relação aos conhecimentos “nativos”. Tal gesto de “humildade epistemológica” (Brito 2019BRITO, Lucas Gonçalves. (2019), O véu do congá: sobre três aspectos do conhecimento umbandista. Rio de Janeiro: Gramma.) possibilita que levemos a sério tudo aquilo que nossos interlocutores nos dizem em campo, o que evidentemente afeta nossa participação na pesquisa, tornando-nos, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos de nossa investigação. Possibilita, enfim, que o antropólogo-aprendiz esteja consciente de que o ato de aprender envolve, necessariamente, a disposição para transformar a sua participação, assumindo que a pesquisa pode se tornar um experimento que se passa em seu corpo (Wacquant 2002WACQUANT, Loic. (2002), Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará.; Marchand 2010MARCHAND, Trevor. (2010), “Making knowledge: explorations of the indissoluble relation between minds, bodies, and environment”. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 16, nº s1: S1-S21.; Halloy 2015HALLOY, Arnaud. (2015), Divinités incarnées: l’apprentissage de la possession dans un culte afrobrésilien. Paris: Pétra.).

Considerações finais

Perdido em meio a dois devires - devir-antropólogo, devir-umbandista -, a experiência liminar ou o lugar marginal que momentaneamente ocupei me permitiu vivenciar um processo verdadeiramente pedagógico ou educativo, no sentido que Tim Ingold dá ao termo, ou seja, uma prática criativa e transformadora que resulta em um movimento de abertura ou deslocamento da percepção. A educação (derivada do latim educere = ex: “fora” + ducere: “levar para”), nesse sentido, consiste justamente em levar o noviço ou aprendiz “para fora, para o mundo, e não, como entendemos hoje, para dentro de suas mentes” (Ingold 2016:408). Em suma, a imersão antropológica e/ou umbandística tornou-se para mim uma educação da atenção que, longe de ser uma simples aquisição de conteúdos e informações transmitidas por um mestre (antropólogo e/ou umbandista), se caracteriza pelo desenvolvimento de certas modalidades de percepção, atenção e engajamento com o mundo. Nesse processo, a participação (ou a atividade produtiva e engajada) e a aprendizagem estão intrinsecamente relacionadas, o que faz com que as práticas da/na Umbanda e, também, da/na Antropologia assumam necessariamente uma dimensão pedagógica (Bergo 2011BERGO, Renata. (2011), Quando o santo chama: o terreiro de umbanda como contexto de aprendizagem na prática. Belo Horizonte: Tese de Doutorado em Educação, UFMG.; Ingold 2018INGOLD, Tim. (2018). Anthropology and/as Education. London: Routledge .).

Na visão de Ingold, o trabalho do antropólogo (e, acrescentaria, do umbandista) consiste basicamente em “se manter atento ao que os outros estão fazendo ou dizendo, ao que acontece à sua volta; a acompanhar os demais aonde quer eles vão, ficar à sua disposição, não importando o que isso implique e para onde o leve” (2016:408). Trata-se, sem dúvida, de um risco “perturbador”. É como se lançar em direção a um mundo ainda não formado, nos diz o autor. Assim, “comandados não pelo dado, mas pelo que está a caminho de sê-lo, deve-se estar preparado para esperar [wait]” (Ingold 2016:408). Esperar - verbo que, na língua inglesa, também pode significar “servir”, “estar atento”, “acompanhar” e, finalmente, “cuidar” - é, por definição, o que o antropólogo mais pratica durante a sua observação participante. Esperar, mas com atenção voltada para tudo aquilo que acontece a sua volta. Essa é a maneira de aprender da/na Antropologia. Esse é o seu método de investigação.

Mas isso está longe do que se convenciona chamar de método segundo os protocolos da ciência normal, em que implementá-lo é executar uma sequência de passos preestabelecidos e regulados rumo à consecução de uma meta determinada. Pois os passos da observação participante, como os da própria vida, dependem das circunstâncias, e não avançam rumo a um fim preestabelecido. E envolvem modos de levar a vida e de ser por ela levado, de viver uma vida junto com outros - humanos e não humanos - que reconhecem o passado, atentam para as condições do presente e se abrem especulativamente a possibilidades futuras (Ingold 2016INGOLD, Tim. (2016), “Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia”. Educação , vol. 39, nº 3: 404-411.:409).

A Antropologia é essencialmente “uma conversa sobre a vida humana” que, ao invés de apenas descrever e relatar aquilo que já passou, nos estimula ao engajamento e à correspondência com o outro na intenção de “coimaginar” futuros possíveis para a humanidade ou, mais exatamente, imaginar “uma forma de ser humano em um mundo para o qual nós estamos indo” (Ingold apud Mafra et al. 2014MAFRA, Clara et al. (2014), “A antropologia como participante de uma grande conversa para moldar o mundo: entrevista com Tim Ingold”. Sociologia & Antropologia, vol. 4, nº 2: 303-326.:310). Nascida com a vocação para expandir e diversificar nossas formas de perceber e conhecer o mundo, a Antropologia, ou melhor, os/as antropólogos/as teriam a missão de trazer todo esse conhecimento aprendido ao longo dos anos “à grande conversa sobre como moldar uma humanidade para todos nós” (Ingold apud Mafra et al. 2014:310). Pensando especificamente a respeito desse diálogo com os saberes “incorporados” e as experiências religiosas, acredito que mais interessante do que elaborar uma nova especialidade e subdivisão no interior da própria Antropologia - resultando, por exemplo, no surgimento de uma Antropologia da Experiência ou da Corporeidade - seria estimular o convite a outras formas de conhecer e se engajar no mundo. Um movimento de abertura para o outro que resultará não em uma Antropologia de ou sobre alguma coisa, e sim com as pessoas, os grupos, as coisas, isto é, um criativo e constante aprendizado com tudo aquilo que nos envolve e que nos ajuda a perceber e a imaginar nossas práticas e a nós mesmos de outra maneira, com olhos mais atentos às relações do que às divisões entre seres, coisas e mundos.

Encerro este ensaio relembrando um belíssimo ensinamento que recebi, durante minha experiência de campo, sobre vida, movimento e transformação. Certa vez, Pai Valdo me disse que a Umbanda era essencialmente uma religião em movimento. Tal como a vida, ela jamais ficaria parada, estagnada ou acabada, mas, ao contrário, permaneceria em constante movimento. “As pessoas entram, recebem, colhem, aprendem, doam, e chega uma hora que tem que ir para dar lugar a outros… E esse é o trabalho. O problema não é o médium entrar e sair, é ele saber entrar e saber sair, com espiritualidade, com vivência religiosa…”, disse ele. O importante é “saber entrar e saber sair”, é se transformar, se deixar afetar e conquistar uma nova percepção sobre o ambiente, sobre a vida, sobre o outro. É aprender a levar a vida e ser por ela levado. O fundamental é ficar atento e perceber que a vida e o universo são/estão em movimento e que nós participamos ativamente desse movimento no instante em que nos movimentamos, nos relacionamos, nos afetamos… No instante em que vivemos e aprendemos a “girar”. “E é por isso que se chama ‘gira’ de Umbanda”, me disse um dos médiuns da casa. “Porque tudo gira. O mundo gira… E a gente também tem que aprender a girar…”. Em tempos difíceis e preocupantes como os que atualmente estamos vivendo, essa é certamente uma dica valiosa. Afinal, aprender a girar nada mais é do que aprender a reinventar e reexistir. Girar é colocar-se em movimento de resistência (ou re-existência) e (re)criação, algo que o “povo de terreiro”, através dos séculos, teve a inteligência e a sensibilidade para aprender e ensinar.

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  • 1
    Conforme descrito no próprio regimento, a hierarquia religiosa no Cruzeiro da Luz é constituída da seguinte forma: 1. “Sacerdote-Chefe” (“Pai”, dirigente da instituição); 2. “Sacerdote Substituto” (“Pai-Pequeno”, vice-dirigente); 3. “Sacerdotes Auxiliares” (“Pais-Pequenos” e “Mães-Pequenas” auxiliares); 4. “Ogãs” (Auxiliares de Culto, não “incorporantes”); 5. “Ekédis” (Auxiliares de Culto, não “incorporantes”); 6. “Iniciados” (Médiuns que já completaram a sua iniciação); 7. “Iniciandos” (Médiuns em período de iniciação); 8. “Aspirantes” (Não iniciados).
  • 2
    Segundo nos lembra Marcio Goldman (2005), “catar folhas” corresponde, no universo das religiões de matriz africana, a um processo de aprendizagem sem fim que demanda muita paciência, comprometimento e participação constante na vida cotidiana do terreiro, na esperança de que em algum momento todo esse aprendizado vivido comece a fazer algum sentido. Nota-se, portanto, que tal metáfora corresponde em grande medida ao processo de contínua aprendizagem que caracteriza o fazer etnográfico (Gomes, Faria e Bergo 2019).
  • 3
    É interessante perceber que a metáfora do “laboratório de pesquisa” utilizada pelos dirigentes da casa pode nos dizer algo sobre uma determinada concepção de pesquisa e de ciência. Por um lado, tal analogia pode expressar uma certa concepção “ortodoxa” de ciência (típica às chamadas hard sciences) que demarca uma nítida separação entre sujeito e objeto de pesquisa, isolando este último em um ambiente controlado para que a subjetividade do pesquisador não interfira nos “fatos” a serem “descobertos”. Por outro lado, essa frase pronunciada pelos médiuns (“Eu não poderia fazer do terreiro o meu laboratório de pesquisa”) talvez possa significar uma grave advertência, revelando que, de algum modo, eu acabei transformando os interlocutores em meus “objetos” de pesquisa, distanciando-me do tipo de vínculo e de relação que certamente desejava estabelecer com eles.
  • 4
    Talvez tenha sido capturado ou seduzido por sua estética que inclui, entre outras coisas, danças, músicas, aromas, comidas e boas histórias para ouvir e contar.
  • 5
    Subentende-se, desse modo, que quem procura um centro de Umbanda se encontra de alguma maneira “desequilibrado” ou envolvido em algum problema.
  • 6
    Inspiro-me aqui nas reflexões realizadas por Maria Laura Cavalcanti (1983CAVALCANTI, Maria Laura. (1983), O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.), sobre o Espiritismo, e Marcio Goldman (1985), a respeito do Candomblé, que, partindo da noção de ritual elaborada por Lévi-Strauss, concebem o transe e a possessão como um momento de comunicação, de troca entre os mundos, em que estão suspensas, ao menos temporariamente, as distâncias que separam o “mundo visível” e o “invisível”, o “aiê” e o “orum”.
  • 7
    Além disso, assim como essa relação entre mundo material e espiritual deve ser constantemente renovada, por exemplo, através das festas, oferendas e do próprio transe mediúnico, a relação que se estabelece entre frequentadores, médiuns e seus guias espirituais, sobretudo através das consultas e aconselhamentos, também é permanente e precisa ser sempre renovada. “Afinal, ‘dar consultas’, ou oferecer ‘conselhos’, como disse Walter Benjamin, é menos uma resposta a uma questão do que uma proposta para a continuação de uma estória que está se abrindo” (Cardoso, V. 2007CARDOSO, Vânia Zikán. (2007), “Narrar o mundo: estórias do ‘povo da rua’ e a narração do imprevisível”. Mana, vol. 13, nº 2: 317-345.:338).
  • 8
    Afirmar que tais habilidades podem ser desenvolvidas ou aprendidas não exclui ou se contrapõe, de maneira alguma, à ideia de que “dons naturais” ou “missões espirituais”, previamente programadas, possam existir. Como já apontado por alguns autores, o “inato” e o “adquirido” são imanentes um ao outro, não havendo, portanto, qualquer oposição ou polarização entre essas duas modalidades de relação, mas sim mútua implicação e participação (Sansi 2009SANSI, Roger. (2009), “‘Fazer o santo’: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras”. Análise Social, vol. 44, nº 1: 139-160.; Goldman 2012GOLDMAN, Marcio. (2012), “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana , vol. 18, nº 2: 269-288.).
  • 9
    Do latim studiosus, termo que significa pessoa dedicada, que gosta de algo, que é zelosa. O estudante é, por definição, aquele que ama o que faz, que ama aprender.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2019
  • Aceito
    08 Jul 2020
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