Acessibilidade / Reportar erro

Utilização de serviços ambulatoriais em Pelotas: onde a população consulta e com que freqüência

Use of outpatient services in an urban area of Southern Brazil: place and frequency

Resumos

OBJETIVO: Estabelecer a utilização de serviços médicos ambulatoriais na Cidade de Pelotas, RS, Brasil. METODOLOGIA: Foi feito estudo transversal amostral com base populacional. Foram entrevistados 1.657 adultos, durante os meses de março e junho de 1992. As perdas amostrais totalizaram 9,7%. Durante a análise utilizou-se duas variáveis dependentes: o tipo de serviço de saúde classificado quanto à natureza do lucro e a freqüência de consultas durante o último ano. RESULTADOS: Na análise verificou-se que o tipo de serviço estava associado com variáveis sociais tais como classe social, propriamente dita, escolaridade e local de residência. A variável freqüência de consultas relacionou-se com sexo feminino, fatores de risco e motivos de consultas. CONCLUSÃO: Concluiu-se que a escolha do tipo de serviço de saúde dependia de fatores ligados à classe social antes do que variáveis associadas à gravidade dos problemas de saúde.

Assistência ambulatorial; Classe social; Necessidades e demanda de serviços de saúde


OBJECTIVE: The objective was determine the use of health services by the adult population in Pelotas, RS, Brazil. METHODS: A cross-sectional study was made on the basis of a population sample. One thousand six hundred and fifty-seven persons we interviewed during the months of March and June, 1992. A percentage of 9.7 of the sample was lost. RESULTS: Two dependents variables. One the type of service as determined by type of payment. The other the number of medical visits made during the previous year. The type of service was seen to be associated with the following social variables: social class, level of schooling and place of residence. The frequency of medical visits was associated with sex, risk factors and reasons for the visit. CONCLUSION: It was conclued that choise of the type of service depends more heavily in social class than other variables associated with the severity of the disease in question.

Ambulatory care; Social class; Health services needs and demand


Utilização de serviços ambulatoriais em Pelotas:

onde a população consulta e com que freqüência

Use of outpatient services in an urban area of Southern Brazil:

place and frequency

Juvenal S. Dias da Costa e Luís Augusto Facchini

Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, RS - Brasil

Resumo Objetivo Estabelecer a utilização de serviços médicos ambulatoriais na Cidade de Pelotas, RS, Brasil. Metodologia Foi feito estudo transversal amostral com base populacional. Foram entrevistados 1.657 adultos, durante os meses de março e junho de 1992. As perdas amostrais totalizaram 9,7%. Durante a análise utilizou-se duas variáveis dependentes: o tipo de serviço de saúde classificado quanto à natureza do lucro e a freqüência de consultas durante o último ano. Resultados Na análise verificou-se que o tipo de serviço estava associado com variáveis sociais tais como classe social, propriamente dita, escolaridade e local de residência. A variável freqüência de consultas relacionou-se com sexo feminino, fatores de risco e motivos de consultas. Conclusão Concluiu-se que a escolha do tipo de serviço de saúde dependia de fatores ligados à classe social antes do que variáveis associadas à gravidade dos problemas de saúde. Assistência ambulatorial, utilização. Classe social. Necessidades e demanda de serviços de saúde. Abstract Objective The objective was determine the use of health services by the adult population in Pelotas, RS, Brazil. Methods A cross-sectional study was made on the basis of a population sample. One thousand six hundred and fifty-seven persons we interviewed during the months of March and June, 1992. A percentage of 9.7 of the sample was lost. Results Two dependents variables. One the type of service as determined by type of payment. The other the number of medical visits made during the previous year. The type of service was seen to be associated with the following social variables: social class, level of schooling and place of residence. The frequency of medical visits was associated with sex, risk factors and reasons for the visit. Conclusion It was conclued that choise of the type of service depends more heavily in social class than other variables associated with the severity of the disease in question. Ambulatory care, utilization. Social class. Health services needs and demand.

INTRODUÇÃO

Diversos autores4, 9, 10, 22 têm afirmado que o emprego de estudos epidemiológicos pode auxiliar o planejamento em saúde como, por exemplo, no diagnóstico da realidade, na produção de informações a partir da análise de dados, na decisão de escolha de prioridades, nas estimativas de acesso e cobertura ou na avaliação da efetividade de programas.

As fontes tradicionais dos sistemas de informações em saúde são submetidas a uma série de vieses e a problemas de classificação e de subnotificação13, 16. Alternativamente, para a superação dos problemas referidos, alguns autores1, 8, 14, 17 têm proposto estudos com desenhos específicos para a elaboração de informações em saúde, mais consistentes e próximas da realidade, como os estudos observacionais transversais.

Pelotas é uma cidade situada na região Sul do Estado do Rio Grande do Sul, possuindo 289.500 habitantes (dados preliminares do Recenseamento Geral de 1991, divulgados na imprensa local). Durante a década de oitenta houve uma expansão da rede municipal de postos de saúde.

O Plano Municipal de Saúde, planejado para ser regionalizado e hierarquizado, foi estruturado a partir de três níveis de atendimento. Na época do presente estudo, em 1992, estes níveis tinham a seguinte estrutura:

Primeiro nível: Constituído por postos de saúde com médicos e outros profissionais, com função de porta de entrada do sistema e do desenvolvimento de ações básicas de saúde. No momento do estudo, na zona urbana da cidade, existiam 37 postos, destes, 19 pertenciam à Secretaria Municipal de Saúde; 7, incluindo um do antigo INAMPS, à Secretaria da Saúde e Meio Ambiente; 5, à Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), e 6, à Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Na zona rural existiam 12 postos de saúde.

Segundo Nível: Constituído por 5 ambulatórios de especialidades: ambulatórios da Faculdade de Medicina da UFPEL, ambulatório do Hospital Universitário da UCPEL, ambulatório da Santa Casa de Misericórdia, ambulatório da Sociedade de Beneficência Portuguesa e ambulatório do antigo INAMPS, na época, gerenciado pela Delegacia Regional de Saúde. Cada grande ambulatório seria referência de grandes bairros da cidade, embora, na realidade, não existisse regionalização e hierarquização desses serviços.

Terceiro nível: Constituído pelos 6 hospitais da cidade, sendo dois universitários e quatro filantrópicos. Entre os filantrópicos dois eram gerais e dois psiquiátricos.

Existiam duas universidades na cidade, sendo que ambas possuíam faculdades de medicina. O Plano não levou em conta uma imensa quantidade de profissionais credenciados ou conveniados, assim como, o setor privado propriamente dito, pois os recursos citados acima eram suficientes para garantir uma cobertura universal.

Apesar do sistema de saúde na cidade ser quantitativamente suficiente, não se dispunha de informações mais rigorosas quanto à quantidade das ações desenvolvidas. Mesmo supondo-se que o sistema local mantivesse alta cobertura ambulatorial, percebia-se que o acesso aos procedimentos de maior complexidade era diferenciado, que possuía níveis de participação escassa e que existia superposição de ações, expressando, desta forma, sua irracionalidade.

Em função disto, através de um estudo transversal representativo entre a população adulta da zona urbana da cidade de Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul, objetivou-se acumular informações de forma a descrever, analisar e entender os padrões de utilização dos serviços ambulatoriais daquela cidade, na tentativa de contribuir para a construção de um sistema local de saúde mais equânime.

MATERIAL E MÉTODO

Realizou-se estudo transversal, com base populacional, no período de março a junho de 1992, entre a população de 20 a 69 anos, residente na zona urbana da Cidade de Pelotas-RS.

O tamanho da amostra foi definido a partir da estimativa da prevalência de diferentes eventos envolvidos no Projeto Utilização dos Serviços de Saúde pela População Adulta da Cidade de Pelotas. Estimou-se que a impossibilidade de locomoção, sem auxílio, seria o evento estudado de menor prevalência, em torno de 4% nos não expostos (as classes sociais mais elevadas). Além disso, considerou-se um nível de confiança de 95%, poder estatístico de 80% e um risco relativo de 2,0. Adotou-se a maior amostra, suficiente para estudar todos os eventos. Também levou-se em conta a possibilidade de perdas e a necessidade de controle de fatores de confusão, estimando-se uma amostra de 1.500 pessoas. Sabendo-se o número de pessoas necessárias para a amostra (1.500), a média de pessoas por domicílio na Cidade de Pelotas (4,0), assim como a proporção da população na faixa etária entre 20 e 69 anos (44,0%), de acordo com o IX Recenseamento Geral do Brasil - 19806, estimou-se um total de 852 domicílios a serem visitados.

Foram visitados 36 domicílios por setor censitário. Foram sorteados 25 setores dos 258 existentes na cidade. Em cada setor, a partir de um quarteirão, previamente sorteado, escolhia-se, também, de maneira aleatória o ponto de partida. Após realizada uma entrevista, sistematicamente saltavam-se três casas, antes da próxima.

Encontraram-se 1.657 pessoas, com perdas de 9,7% dos indivíduos, portanto uma amostra superior à necessária para os objetivos do estudo. Utilizaram-se questionários padronizados e pré-codificados, aplicados por estudantes de medicina previamente submetidos a programa de treinamento e estudo-piloto.

A partir de um modelo teórico hierarquizado (Fig.) estabeleceu-se a inserção de classe da população como a variável sobredeterminante. Na operacionalização de classe social utilizou-se duas classificações. A primeira, categorizava os indivíduos a partir da propriedade dos meios de produção2. A segunda, preconizada pela Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercados (ABIPEME)18, baseava-se na acumulação de bens materiais e escolaridade.


Figura - Modelo teórico hierarquizado para utilização de serviços de saúde.

Figure - Theoretical hierarchical model for the use of health services.

Na primeira classificação, como a quantidade de pessoas na burguesia era muito pequena, esta foi agrupada, para fins estatísticos, com a nova pequena burguesia, passando este agrupamento a contar com, pelo menos, 10% das observações. Na classificação da ABIPEME, agrupou-se os indivíduos das classes A e B, que totalizaram 10%, também para fins estatísticos.

Como variáveis independentes e de confusão coletaram-se informações sobre sexo, idade, escolaridade, acessibilidade a serviços de saúde (distância e local de moradia), motivos de consulta (aspectos preventivos, motivos administrativos, doenças agudas e doenças crônicas), presença de fatores de risco (tabagismo, exposição ao álcool e hipertensão) e hospitalizações no último ano.

As variáveis dependentes do estudo referiam-se à freqüência de consultas no último ano e, caso o entrevistado tivesse consultado com médico nos últimos três meses, em que local ou serviço havia freqüentado.

A variável local de consulta foi coletada em diversas categorias e, posteriormente agrupada quanto à modalidade do financiamento e intenção de lucro do serviço. A partir deste critério, foram organizadas 4 categorias:

Sistema Público: integrado pelos postos de saúde do bairro do entrevistado, outros postos de saúde, ambulatório da Faculdade de Medicina e ambulatório do INAMPS.

Serviços Filantrópicos: constituído pelos ambulatórios de hospitais e serviços de pronto-socorro.

Serviços Credenciados e Conveniados: formados pelos ambulatórios de sindicatos ou empresas, medicina de grupo, conveniados pelo INAMPS e outros convênios.

Sistema Privado: constituído, exclusivamente, pelos médicos particulares.

Como a variável dependente local de atendimento continha mais do que duas categorias, foi impossível submetê-las, desta forma, à regressão logística para análise multivariada. Portanto, foi necessário transformar essa variável, tornando-a dicotômica. Assim, comparou-se o sistema público com todos os outros serviços agrupados (sistema privado, serviços filantrópicos e serviços credenciados e conveniados). A justificativa teórica para esta transformação apoiou-se na intenção do projeto de Reforma Sanitária brasileira em fortalecer e qualificar o sistema público12 e na impossibilidade de unificar esta categoria com qualquer outra. Os questionários foram codificados e, posteriormente, submetidos a duas revisões. A entrada e edição dos dados foram realizadas através do programa Epi Info. Os dados foram analisados através dos programas SPSS, Epi Info e Egret.

A análise foi realizada de acordo com a natureza das variáveis dependentes.

A associação da freqüência anual de consultas com às demais variáveis foi estudada através da diferença de médias. A partir do erro-padrão calculou-se os intervalos de confiança.

Através da regressão de Poisson7, no programa Egret, analisou-se a associação entre classe social e freqüência de consultas, controlando-se os possíveis fatores de confusão, a partir do modelo teórico proposto (Fig.).

A associação do local de consulta às demais variáveis foi estudada através da razão de produtos cruzados. A partir do erro-padrão calculou-se os intervalos de confiança.

Através da regressão logística, no programa Egret, analisou-se a associação entre classe social e local de consultas, controlando-se os possíveis fatores de confusão, também, a partir do modelo teórico proposto (Fig.).

RESULTADOS

Com que Freqüência a População Adulta Consulta?

No período de um ano, 70% da população amostrada (1.157 pessoas) consultou-se, uma ou mais vezes, em algum serviço de saúde na cidade. Desta forma, a distribuição foi fortemente assimétrica, tipo Poisson, encontrando-se uma média anual de 3 consultas por pessoa (com desvio-padrão de 4,7); embora metade da população tenha consultado 2 vezes ou menos.

Através do cálculo do intervalo de confiança, observou-se que a média anual de consultas de adultos em Pelotas variou entre 2,9 e 3,3.

Na análise bruta, a média anual de consultas foi significativamente maior entre as pessoas do sexo feminino, que não consumiam álcool, hipertensas ou portadoras de problemas crônicos e que haviam sido hospitalizadas no último ano (Tabela 1).

Esta mesma análise não mostrou freqüências diferentes de consultas em relação à classe social. Entretanto, a análise multivariada, através da regressão de Poisson, evidenciou que as pessoas das classe A e B (ABIPEME) consultaram significativamente mais que as de outras classes (Tabela 2).

A análise multivariada, demonstrada na Tabela 2, ajustada por classe social, confirmou uma freqüência significativamente maior de consultas entre mulheres, também revelando aumento significativo na média a partir dos 50 anos de idade. Da mesma forma, confirmou-se a tendência de diminuição na média de consultas na medida em que aumentava a freqüência de consumo de álcool.

As pessoas que ignoravam a presença de hipertensão arterial consultava cerca de 25% a menos do que aquelas, as quais não relatavam o problema, enquanto as que referiram a doença procuravam 40% mais os serviços médicos.

A variável internação hospitalar, ajustada por todas as outras, mostrou ser a maior medida de efeito, para a freqüência de consultas. As pessoas hospitalizadas no último ano consultavam cerca de três vezes mais do que as não-internadas. Também, ajustando-se para as demais variáveis, verificou-se que as pessoas com doenças agudas ou que procuraram os serviços por motivos administrativos consultaram significativamente menos do que as pessoas que consultaram por outros problemas. Em contraste, as pessoas que referiram doenças crônicas ou consultaram por motivos preventivos tiveram uma média de consultas significativamente maior.

Os totais de pessoas não coincidem, pois 5,2% da amostra não pôde ser enquadrada na classificação de Bronfman et al.2.

Onde a População Consulta?

Entre os que consultaram nos últimos três meses, verificou-se que 30% recorriam aos serviços credenciados e conveniados, 29% foram atendidos pelo sistema público, 22% pelos filantrópicos e 19% pelo sistema privado (Tabela 3).

Tipo de Serviço Segundo Classe Social

As pessoas inseridas na burguesia e nova pequena burguesia utilizaram predominantemente os serviços privados. A pequena burguesia tradicional serviu-se, preferencialmente, do sistema público, mas, também, utilizou os demais serviços. O proletariado utilizou, basicamente, o sistema público e os serviços credenciados e conveniados. Finalmente, o subproletariado recorreu ao sistema público e aos serviços filantrópicos (Tabela 3).

A análise multivariada também confirmou que quanto mais pobre a classe na qual o indivíduo está inscrito, maior a utilização do sistema público. Esta diferença pode chegar a quase seis vezes, ao se comparar o subproletariado com a burguesia e nova pequena burguesia (Tabela 4).

Ao analisar a classificação da ABIPEME, verificou-se que as pessoas pertencentes às classes A e B utilizaram, primordialmente, o sistema privado. A classe C recorreu aos serviços credenciados e conveniados e ao sistema privado. A classe D utilizou os serviços credenciados e conveniados e o sistema público. A classe E freqüentou, preferencialmente, o sistema público e os serviços filantrópicos (Tabela 3). Esses achados da análise bivariada também foram confirmados pela regressão logística (Tabela 4). Desta forma, quanto mais afastados das classes A e B, mais os indivíduos procuravam os serviços públicos. Neste caso, os intervalos de confiança foram pouco precisos pelo fato de na categoria de base (Classes A e B) apenas duas pessoas procuraram o sistema público.

Tipo de Serviço Segundo Outras Características dos Usuários

Além da inserção de classe, também procurou-se traçar o perfil dos usuários de cada tipo de serviço, a partir dos riscos relativos e de seus intervalos de confiança.

Na análise bivariada não foram encontradas diferenças entre sexo, idade, tabagismo, motivos de consulta e hospitalizações no último ano em relação ao local de consulta.

Quanto ao nível de escolaridade constatou-se que os analfabetos consultaram mais os serviços filantrópicos. As pessoas que ingressaram no primeiro grau consultaram, predominantemente, o sistema público, enquanto aquelas que cursaram o segundo grau utilizaram mais os serviços credenciados e conveniados. As pessoas que freqüentaram o nível superior majoritariamente optaram pelo sistema privado. A regressão logística também confirmou o maior uso do sistema público pela população com menor nível de escolaridade.

Considerando o bairro de moradia, observou-se que os usuários dos bairros populares (Baixada, Fragata e Areal) consultaram mais o sistema público, enquanto os residentes nas Três Vendas consultaram mais os serviços filantrópicos e os moradores do Centro, serviços privados. Na análise multivariada confirmou-se esta tendência com os moradores dos bairros utilizando mais o sistema público do que os residentes no centro da cidade, mesmo após ajuste para classe social.

Em relação à distância do domicílio ao posto de saúde mais próximo observou-se que as pessoas residentes a distâncias inferiores de 1 km efetivamente consultaram mais o sistema público. As pessoas cujas residências distavam mais de 1 km do posto consultaram, predominantemente, os serviços credenciados e conveniados, enquanto aquelas que ignoravam a distância de sua moradia ao serviço procuravam mais o sistema privado.

Na medida em que aumentava o consumo de álcool pela população, diminuía o uso do sistema público, aumentando o uso do sistema privado.

Verificou-se também que as pessoas que ignoravam a presença de hipertensão arterial sistêmica consultavam mais os serviços credenciados e conveniados.

Finalmente, a regressão logística não mostrou diferenças na utilização dos dois tipos de sistema para as variáveis sexo, presença de hipertensão e distância do posto de saúde mais próximo, quando ajustadas para outras variáveis, obedecendo a hierarquia do modelo teórico.

DISCUSSÃO

Estudos de base populacional têm a capacidade de identificar as pessoas que não utilizam serviços de saúde ou que procuram assistência em modalidades não cobertas pelos sistemas tradicionais de informações3. Assim, a partir dos resultados encontrados pode-se definir prioridades administrativas para a provisão de infra-estrutura para o atendimento adequado à população.

A concentração de consultas, incluindo apenas a população adulta, encontrada em Pelotas foi superior ao parâmetro preconizado no Brasil de duas consultas/habitante/ano12. No Distrito Sanitário de Pau de Lima, na Bahia, em 1991, foi encontrada uma concentração de consultas de 1,3/habitante/ano19.

Ainda, em relação à freqüência de consultas no último ano, mesmo sem discutir a concentração ideal para Pelotas, constatou-se, a partir da média encontrada no presente estudo, que a cada 4 meses um volume semelhante a toda população adulta da cidade freqüentou os serviços médicos. Na realidade, esta concentração de consultas como um todo devia ser bem maior na medida em que não foram incluídas as crianças cuja média de consultas por motivos preventivos atingiu a 10,4 nos menores de um ano, em estudo realizado em Pelotas, em 198324.

Mesmo quando não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre a média de consultas e certas categorias, poder-se-ia, a partir dos resultados, estimar grupos de maior demanda em função do tamanho populacional. Por exemplo, embora a amostra da população residente na Baixada tivesse uma média de consultas maior do que a do Fragata, a estimativa de demanda, neste último bairro, seria 4 vezes maior devido à sua grande população.

Da mesma forma, embora não se tenha observado diferenças nas médias entre as classes sociais, constatou-se que a projeção do número de consultas necessárias para o atendimento do proletariado (típico e não típico) seria, aproximadamente, 5,7 vezes maior do que a necessidade da burguesia e nova pequena burguesia. Assim, como se sabe onde as diferentes classes sociais consultaram e qual a projeção de consultas necessárias, seria perfeitamente possível alocar recursos, proporcionalmente, entre os serviços mais procurados de modo a atender de forma mais adequada à população. O mesmo raciocínio poderia ser empregado na compreensão dos resultados de quantidade de consultas segundo a classificação de classe social adotadas pela ABIPEME. Mesmo verificando-se que as pessoas pertencentes às classes A e B atingiram uma média de consultas maior do que as outras, a estimativa de demanda da classe E, por exemplo, por serviços médicos seria, aproximadamente, 2,5 vezes maior.

Destaca-se, ainda que, embora a média de consultas da população acima de 50 anos seja levemente superior a das demais faixas etárias, a demanda projetada para as pessoas de 20 a 39 anos foi, aproximadamente, 1,5 vezes maior que a daquele grupo. Este achado sugere uma transição na demanda aos serviços de saúde, apontando para uma heterogeneidade entre a população economicamente ativa e os idosos. Desta forma, a população mais jovem ainda predomina nos serviços de saúde, mas tem aumentado a freqüência do grupo mais idoso suscitando a adaptação e reaparelhamento do sistema. Esta transição acompanhou o efeito demográfico de envelhecimento da população brasileira sem que ocorresse a organização de um aparelho de assistência correspondente23.

A distribuição entre as diferentes modalidades de atendimento mostrou percentuais de utilização semelhantes entre os diversos serviços, fossem eles credenciados, públicos, filantrópicos ou privados. Este fato talvez possa ser explicado pela grande quantidade de serviços ofertados em todas as modalidades na Cidade de Pelotas. Em outro estudo transversal de base populacional, realizado no Brasil, encontrou-se procura por serviços públicos ao redor de 55%19.

Entretanto, apesar das semelhanças, a estimativa de demanda dos serviços públicos e filantrópicos — calculada a partir do tamanho da população e média de consultas — foi, aproximadamente, duas vezes maior que a do privado. Esta evidência pode contribuir na indicação da modalidade de serviço a ser priorizada e financiada. Em todas as comparações com o sistema privado observou-se uma tendência positiva e significativa para as variáveis zona da cidade, escolaridade e classe social. Isto significa que quanto mais pobre o bairro, mais baixa a escolaridade ou a inserção de classe menos as pessoas consultaram no sistema privado. Este fato poderia ser explicado, em parte, a partir de dois aspectos. Por um lado, identificou-se a disponibilidade de uma rede pública quantitativamente razoável, constituída basicamente de postos de saúde, na periferia urbana. Por outro, destacou-se a forma diferenciada de participação das classes sociais na riqueza produzida, indicada por seus níveis de renda. Foram estes níveis que determinaram, concretamente, os padrões de consumo dos diferentes bens materiais de vida nas classes sociais. Assim, independente da ampla disponibilidade de serviços públicos de saúde na cidade, não se observou sua utilização pelos integrantes da burguesia e nova pequena burguesia, que consumiram predominantemente serviços privados de saúde.

Em outro estudo sobre uso de serviços realizados no Brasil20, verificou-se que na região Sul quanto mais baixo o grupo de renda maior a morbidade e menor a taxa de utilização de serviços de saúde, padronizadas por idade e sexo. Também nos países desenvolvidos tem havido discussões sobre as diferenças entre as classes sociais e acessos aos serviços de saúde21.

Desta forma, concluiu-se que na escolha de serviços ambulatoriais em Pelotas as diferenças foram marcadas pela estrutura de classe e não pela quantidade ou pelos motivos de consultas. Estas informações poderiam auxiliar na redistribuição de recursos financeiros por parte do Estado, tradicionalmente o agente mantenedor de quase todas as modalidades incluídas no presente estudo, pois o aparelhamento do sistema público de saúde poderia atenuar, pelo menos setorialmente, as diferenças tão profundas e graves na sociedade brasileira.

Encontrou-se 12% de indivíduos ignorando apresentar ou não hipertensão arterial sistêmica, mesmo realizando mais de 3 consultas anuais. Este achado sugeriu a falta de atendimento ambulatorial integralizado e indicou a necessidade de aferição da tensão arterial da população adulta nos serviços de saúde, como procedimento de rotina5. Além disso, 18% das pessoas referiram apresentar hipertensão arterial sistêmica, informação bastante confiável, uma vez que foi muito semelhante à prevalência encontrada na mesma população, ou seja, 19,8%15. Levando-se em conta esta prevalência e a proporção da população adulta na cidade estimou-se um total de, aproximadamente, 25.000 hipertensos em Pelotas. Esta projeção suscitou a necessidade do estabelecimento de programas específicos visando ao investimento em recursos diagnósticos e terapêuticos apropriados, assim como de avaliações periódicas dos resultados.

As questões referentes ao consumo de álcool apresentavam algumas restrições, uma vez que eram relativas à freqüência de exposição. Mesmo assim verificou-se nas pessoas que ingeriam bebidas alcoólicas, mais assiduamente, freqüência menor às consultas, sugerindo, talvez, resultados pouco efetivos no manejo deste problema ou a necessidade de programas especiais para aumentar sua captação.

Encontrou-se 74% da população do estudo residindo a menos de 1 km de algum posto de saúde. Esse achado poderia contribuir para o direcionamento de investimentos que procurassem qualificar esses serviços, já existentes e próximos da maioria da população. Ao se estimar as quantidades anuais de consultas segundo as médias dos motivos, verificou-se que 47% da demanda seria motivada por doenças crônicas e, apenas, 18% por motivos preventivos. Esse achado indicou que os serviços de saúde, na relação entre oferta e demanda, foram locais de atividades predominantemente curativas ou paliativas. Em decorrência, evidenciou-se a necessidade tanto da organização de políticas e programas preventivos, como do reaparelhamento e instrumentalização dos serviços para as doenças crônicas, de modo a alcançar a desejável integralidade do atendimento.

Entre a população estudada encontram-se 9% de internações hospitalares, indicando um nível de resolução aceitável por parte do setor ambulatorial. Entretanto, constatou-se que esse grupo tinha uma média anual de consultas muito elevada. Esse achado poderia ser devido a contatos prévios à hospitalização ou a consultas posteriores para seguimento ambulatorial. De qualquer maneira, indicou a necessidade da elaboração de programas para pacientes egressos de hospitais, assim como, uma maior articulação entre o nível hospitalar e ambulatorial.

Os achados destacados nesta discussão, assim como, os diversos dados ainda não analisados, incluídos no Projeto "Utilização dos Serviços de Saúde Pela População Adulta da Cidade de Pelotas" apontam para a necessidade de integrar a epidemiologia ao planejamento em saúde.

Correspondência para/Correspondence to: Juvenal Soares Dias da Costa - Av. Duque de Caxias, 250 - Fragata - 96030-002 Pelotas, RS - Brasil.

Recebido em 23.10.96. Reapresentado em 28.1.1997. Aprovado em 19.4.1997.

  • 1. ABRAMSON, J.H. Survey methods in community medicine. Edinburgh, Churchill Livingstone, 1990.
  • 2. BRONFMAN, M. et al. Operacionalizaçăo do conceito de classe social em estudos epidemiológicos. Rev. Saúde Pública, 22:253-65, 1988.
  • 3. CAMPOS, C.E.A. Os inquéritos de saúde sob a perspectiva do planejamento. Cad. Saúde Pública, 9:190-200, 1993.
  • 4. CASTIEL, L.D. & URIBE RIVERA, F.J. Planejamento em saúde e epidemiologia no Brasil: casamento ou divórcio? Cad. Saúde Pública, 1:447-56, 1985.
  • 5. FUCHS, F.D. Hipertensăo arterial sistęmica. In: Duncan, B.B. et al. org. Medicina ambulatorial: condutas clínicas em atençăo primária Porto Alegre, Ed. Artes Médicas, 1995. p. 433-43.
  • 6. Fundaçăo IBGE. Censo demográfico: dados distritais, Rio Grande do Sul Rio de Janeiro, 1980. v. 1, t. 3, nş 20 (9ş Recenseamento Geral do Brasil).
  • 7. KIRKWOOD, B. Essentials of medical statistics Oxford, Blackwell Scientific Publications, 1988.
  • 8. KLEINBAUN, D.G. et al. Epidemiological research principles and quantitative methods. Blemont, Life Learning Publications, 1982.
  • 9. KROEGER, A. Health interview surveys in developing countries: review of the methods and results. Int. J. Epidemiol., 12:465-81, 1983.
  • 10. MAZZAFERO, V.E. Uso de la epidemiología en la planificación de los servicios de salud. In: Organizacion Panamericana de la Salud. Usos y Perspectivas de la epidemiología Washington, 1984. (OPAS-PNSP, 84-47).
  • 11. MEDICI, A.C. Economia e financiamento do setor saúde no Brasil. Săo Paulo, Faculdade de Saúde Pública/USP, 1994.
  • 12
    MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL (MPAS); CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DE SAÚDE PREVIDENCIÁRIA (CONASP). Parâmetros para planejamento assistencial a serem utilizados no INAMPS. Anexo à Portaria nº 3046 de 20 de julho de 1982, 1982. (Documento interno).
  • 13. NOBRE, L.C. et al. Avaliaçăo da qualidade da informaçăo sobre a causa básica de óbitos infantis no Rio Grande do Sul (Brasil). Rev. Saúde Pública, 23:207-13, 1989.
  • 14. NORDBERG, E. Household health surveys in developing countries: could more use be made of them in planning? Health Policy Plan., 3:32-9, 1988.
  • 15. PICCINI, R.X. & VICTORA, C.G. Hipertensăo arterial sistęmica em área urbana no Sul do Brasil: prevalęncia e fatores de risco. Rev. Saúde Pública, 28:261-7, 1994.
  • 16. ROSS, D.A. & VAUGHAN, J.P. Health interview surveys in developing countries: a methodological review with recommendations for future survey London, School of Hygiene and Tropical Medicine, 1984. (EPS Publ. 4).
  • 17. ROTHMAN, J.K. Modern epidemiology Boston, Little Brown and Company, 1986.
  • 18. RUTTER, M. Pesquisa de mercado Săo Paulo, Ed. Ática, 1988.
  • 19. SILVA, L.M.V. et al. O processo de distritalizaçăo e a utilizaçăo de serviços de saúde - Avaliaçăo do caso de Pau da Lima, Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, 11:72-84, 1995.
  • 20. TRAVASSOS, C. et al. Desigualdade social, morbidade e uso de serviços de saúde no Brasil. Série estudos. Política, Plan. Gestăo em Saúde, nş 4, 1995.
  • 21. The UNEQUAL, the achievable, and the champion [Editorial] Lancet, 345:1061-2, 1995.
  • 22. VAUGHAN, J.P. & MORROW, R.H. Epidemiologia para os municípios: manual para gerenciamento dos distritos sanitários. Săo Paulo, HUCITEC, 1992.
  • 23. VERAS, R.P. et al. Crescimento da populaçăo idosa no Brasil: transformaçőes e conseqüęncias na sociedade. Rev. Saúde Pública, 21:225-33, 1987.
  • 24. VICTORA, C.G. et al. Epidemiologia da desigualdade: um estudo longitudinal de 6000 crianças brasileiras Săo Paulo, CEBES/Hucitex, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br