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Investigação epidemiológica e entrevistas domiciliarias

Epidemiological research and household interview surveys

Resumos

Partindo da idéia de que é necessário estabelecer um processo capaz de permitir a investigação epidemiológica contínua na população, e considerando que um processo dessa natureza deve ter respaldo oficial, sem o qual torna-se difícil promover, sob a forma de ações concretas, o retorno das informações cientificamente trabalhadas à população, propõe-se a criação de um "Levantamento Contínuo de Condições de Saúde por Entrevistas Domiciliárias", ligado à estrutura oficial de saúde e coordenado pela Universidade. Na análise, que resulta de uma experiência levada a efeito em Ribeirão Preto entre 1972 e 1978, fazem-se considerações acerca das vantagens do procedimento e apontam-se soluções para alguns problemas surgidos, especialmente o da codificação de morbidade referida por leigos.

Epidemiologia; Amostragem; Inquéritos sanitários


In order to perform constant epidemiological research it is proposed that continuous household interview survey be carried out in conjunction with the public health service, coordenated by the University. A previous field experiment, carried out in the city of Ribeirão Preto, S. Paulo State, Brazil, between 1972 and 1978, is discussed and some problems and their proposed solutions are presented. The problem of lay reporting of morbidity classification is analysed.

Epidemiologic methods; Sampling studies; Health surveys


ATUALIZAÇÃO/CURRENT COMMENTS

Investigação epidemiológica e entrevistas domiciliarias

Epidemiological research and household interview surveys

José da Rocha Carvalheiro

Do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP – "Campus" de Ribeirão Preto – 14100 – Ribeirão Preto, SP – Brasil

RESUMO

Partindo da idéia de que é necessário estabelecer um processo capaz de permitir a investigação epidemiológica contínua na população, e considerando que um processo dessa natureza deve ter respaldo oficial, sem o qual torna-se difícil promover, sob a forma de ações concretas, o retorno das informações cientificamente trabalhadas à população, propõe-se a criação de um "Levantamento Contínuo de Condições de Saúde por Entrevistas Domiciliárias", ligado à estrutura oficial de saúde e coordenado pela Universidade. Na análise, que resulta de uma experiência levada a efeito em Ribeirão Preto entre 1972 e 1978, fazem-se considerações acerca das vantagens do procedimento e apontam-se soluções para alguns problemas surgidos, especialmente o da codificação de morbidade referida por leigos.

Unitermos: Epidemiologia, métodos. Amostragem. Inquéritos sanitários.

ABSTRACT

In order to perform constant epidemiological research it is proposed that continuous household interview survey be carried out in conjunction with the public health service, coordenated by the University. A previous field experiment, carried out in the city of Ribeirão Preto, S. Paulo State, Brazil, between 1972 and 1978, is discussed and some problems and their proposed solutions are presented. The problem of lay reporting of morbidity classification is analysed.

Uniterms: Epidemiologic methods. Sampling studies. Health surveys.

INTRODUÇÃO

As investigações clínicas e epidemiológicas apresentam características aparentemente similares na medida em que ambas obtêm as suas informações em grupos de pessoas (Fletcher10, 1963), Na realidade, embora aparentem tal similaridade, as motivações são intrinsecamente diversas. A investigação clínica visa a uma descrição tão boa quanto possível do que se passa ao nível do indivíduo. Dada a variabilidade característica dos fenômenos biológicos, torna-se necessário o estudo de grupos de invidíduos para chegar ao conhecimento do que, em média, deve ocorrer num indivíduo. Já a investigação epidemiológica adota, como unidade de estudo, o conjunto de indivíduos e procura analisar como os fenômenos que são motivo da sua preocupação se distribuem nesse conjunto.

Não se deve, no entanto, entender que haja incompatibilidade entre estudos clínicos e estudos epidemiológicos. Ao contrário, pode-se evidenciar a complementaridade das investigações clínicas, epidemiológicas e laboratoriais no melhor delineamento da história natural das doenças (Morris19, 1970).

A investigação epidemiológica obtém suas informações e processa-as por meio de metodologia própria que tem sido extensamente difundida e analisada (Morris19, 1970; MacMahon e Pugh18, 1970; Holland 15, 1970, entre outros). O fato fundamental é que os fenômenos (doenças, condições fisiológicas, consumo de serviços médicos) não se distribuem uniformemente pelas populações. Evidenciadas estas "não uniformidades", não basta descrevê-las. Trata-se geralmente de buscar suas causas. Na tentativa de encontrar as causas da distribuição não uniforme dos eventos, a epidemiologia lança mão de diversos modelos de delineamentos.

A estratégia adotada pela investigação epidemiológica tradicional implica consulta às fontes pré-existentes de informações. Há uma série enorme de informações que são motivo de registros contínuos ou periódicos (Swaroop 28, 1960; Holland15, 1970; Mac-Mahon e Pugh18, 1970). Em nosso meio merecem destaque as publicações da Fundação IBGE (censos, anuários, resultados das PNADs (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), entre outros) das Secretarias de Saúde, das Secretarias de Planejamento dos Estados, dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social.

Uma vez consultados os registros e formulada a hipótese propõe-se um delineamento para testá-la. Este teste é geralmente feito mediante um estudo "ad hoc" que exige a elaboração de um sistema próprio de coleta de informações (Holland15, 1970).

Seja qual for o instrumento utilizado para obter as informações de interesse da investigação epidemiológica ele deve apresentar certas características favoráveis. Entre elas convém destacar a precisão e a validade. No âmbito da investigação epidemiológica, a precisão é medida pelo grau de concordância diagnostica entre diversos observadores e intra-observador (concordância consigo próprio). Esta medida é muitas vezes chamada reprodutilidade e apresenta dois componentes, dependentes da variabilidade biológica do objeto e do erro do observador. A validade refere-se à extensão com que o procedimento diagnóstico realmente mede o que o investigador deseja medir. Da mesma maneira que em outros campos de investigação, também em epidemiologia temos necessidade de adotar padrões que permitam efetuar essa validação. Os padrões geralmente correspondem a definições das doenças e são representados por métodos diagnósticos (clínicos ou laboratoriais) já bem estabelecidos. O epidemiologista valida seu método, que corresponde a uma definição operacional da doença, confrontando-o com o padrão através das medidas de sensibilidade (ou co-posividade) e especificidade (ou co-negatividade). Determinadas estas, podem-se calcular os valores predictivos, positivo e negativo, do teste diagnóstico quando aplicado a uma população em que a doença revelada por esse teste tem uma prevalência conhecida (Buck e Gart5, 1966; Gart e Buck11, 1966; Waters e Elwood29, 1970).

De uma maneira geral pode-se dizer que tradicionalmente a investigação epidemiológica utilizou a entrevista médica como fonte original dos dados que lhe interessavam. É a anamnese feita pelo médico, seguida de um exame físico e complementada por exames laboratoriais de natureza mais ou menos complexa que se tem constituído na mais importante fonte de informações para o epidemiologista. O próprio atestado médico de óbito, exigido pela maioria dos países, constitui-se numa das entrevistas médicas (geralmente a última) mais prestigiadas pelo epidemiologista.

O reconhecimento da similaridade dos campos de investigação da epidemiologia e da sociologia (Bice e Kalimo4, 1973) fez com que os epidemiologistas buscassem nas ciências sociais novas fontes de inspiração na elaboração dos seus métodos de estudo. Um dos principais avanços recentes da investigação epidemiológica em vários lugares é, sem dúvida, representado pela substituição da entrevista médica por uma entrevista leiga ou pela aplicação de questionários preenchidos pelo próprio indivíduo objeto da investigação. Este passo importante capitalizou procedimentos tradicionalmente empregados pelas ciências sociais.

ENTREVISTAS DOMICILIARIAS REALIZADAS POR LEIGOS E SUA IMPORTÂNCIA PARA A EPIDEMIOLOGIA

Seria fastidioso analisar aqui os diferentes tipos de entrevista com seus instrumentos e métodos próprios. Informações obtidas através de entrevistas realizadas por leigos, bem como por meio do preenchimento dos questionários por parte dos indivíduos investagados, podem ser submetidas aos mesmos procedimentos gerais de validação que freqüentemente se empregam para exames de laboratório. Desta forma, o método das entrevistas para evidenciação de um fenômeno qualquer terá uma sensibilidade e uma especificidade que devem ser levadas em conta na análise da distribuição do evento em estudo. É indispensável testar a sua reprodutibilidade, sem a qual os resultados serão aleatórios e carentes de valor.

As entrevistas são geralmente registradas por meio de questionário que se constitui no documento legítimo dos resultados obtidos. A estrutura dos questionários, o modo de preenchê-los, a maneira de formular as questões e a análise das informações neles contidas têm sido objeto de inúmeras discussões (Cobb e Rosenbaum 8, 1956; Hanson e Marks13, 1958; Feldman 9, 1960). Limitar-nos-emos a assinalar que uma investigação epidemiológica se confunde com o seu questionário (Waters e Elwood 29, 1970) e que um cuidado especial deve ser dispensado à sua elaboração e validação. Uma vez vencida esta etapa trata-se de padronizar a sua aplicação e elaborar os processos de análise. Neste último passo pode-se proceder a uma análise simplificada ou chegar a uma "análise matemática" do questionário (Levine e col.16, 1972). Logicamente todas estas atividades serão sempre informadas pelo objetivo do estudo que se está realizando, podendo ser o método de grande utilidade para a detecção de associações (Rubin e col.24, 1956).

O desenvolvimento dessas idéias levou inúmeros investigadores, em todo o mundo, a elaborar sistemas sofisticados através dos quais se poderia obter, rotineiramente, informações no campo da saúde por meio de entrevistas realizadas por leigos. As tentativas mais conhecidas, pelo êxito alcançado, são as dos EUA, Japão, Inglaterra, Dinamarca e Canadá (Linder17, 1965).

Reconhece-se uma urgente necessidade de maior difusão do sistema de entrevistas domiciliárias para obtenção direta de informações sobre saúde (Sievers 26, 1968; WHO31, 1971; White e Sagen 30, 1973). Este reconhecimento decorre do fato de existirem dois polos de onde podem ser obtidas informações no campo da saúde: os estabelecimentos onde as pessoas vão buscar assistência médica e a própria comunidade. O estudo dos fenômenos a nível dos estabelecimentos produz conclusões sistematicamente distorcidas pelo fato de focalizar a "demanda" pelos serviços e não a comunidade. São deixados de lado não apenas o contingente que compõe a "demanda não satisfeita", como especialmente, o que compõe o grupo da "necessidade não sentida" (Härö14, 1973; Anderson1, 1973). Considera-se que, no processo que leva um indivíduo de um "estado de saúde" para um "estado de doença", jogam inúmeras forças físicas, biológicas, culturais, econômicas, políticas. O reconhecimento da mudança de estado pode ser feito pelo próprio indivíduo ou por outra pessoa, capacitada profissionalmente ou não. Existem, em cada sociedade, mecanismos que permitem que se faça o reconhecimento dessas mudanças de estado. Uma vez feito este reconhecimento começa um novo processo que pode levar, ou não, o indivíduo a buscar socorro. Quando o faz, pode recorrer a um sistema institucionalizado ou preferir os sistemas paralelos sancionados pelos usos e costumes. Desta forma os estudos feitos ao nível dos estabelecimentos legalmente hábeis para prestar assistência médica investigarão exclusivamente as pessoas que, reconhecendo seu novo estado de doentes, resolveram buscar assistência médica. Todos os demais estarão excluídos.

Talvez as entrevistas domiciliárias não sejam a única maneira de atingir a comunidade para investigar os fenômenos na área de saúde. Mas são indiscutivelmente um bom procedimento.

Uma vez conseguido o estabelecimento de um sistema de obtenção de informações por entrevistas domiciliarias ele poderá mostrar-se extremamente versátil. Basta para isso que possa atender às necessidades de uma série de profissionais, entre os quais convém destacar o plenejador em saúde aa comunidade e o investigador epidemiológico. Estes dois profissionais poderão ter objetivos quase diametralmente opostos. Um com necessidade de conhecer para atuar. Não lhe interessa, talvez, nada de novo que não esteja já dentro das suas previsões. Já o outro exerce uma atividade quase lúdica. Motiva-o fundamentalmente desvelar o mistério, descobrir o novo. Bastaria a citação destes dois profissionais para que se intuisse que o sistema deve obter informações de grande generalidade, sem cair em minúcias que possam interessar num momento dado, mas não num momento posterior. Por outro lado deve ser versátil de maneira a permitir, quando necessário, esse esmiuçamento.

Como principal utilidade do sistema, do ponto de vista do planejador de saúde, reconhece-se essa capacidade de obter informações fidedignas a respeito de fatos básicos em saúde, desde que haja continuidade no processo. E aqui surge a figura da continuidade que pode ser tomada ao pé da letra ou como uma repetição a intervalos de curta duração. Baseando-se nestas e noutras informações o planejador pode atingir a comunidade e não se restringir à atenção à "demanda" do "seu serviço".

Do ponto de vista do investigador epidemiológico, o sistema, contínuo ou não, apresentará outras vantagens desde que lhe seja permitido propor, quando lhe convier, procedimentos específicos para investigar determinadas hipóteses. Neste sentido o sistema será aproveitado em sua estrutura para produzir respostas a indagações definidas.

O sistema ideal será portanto capaz de atuar em dois planos distintos. Num deles será um gerador de informações registradas rotineiramente, quer este registro seja contínuo ou descontínuo. Essas informações terão grande generalidade e podem, inclusive, ser usadas para a investigação da estrutura epidemiológica e a formulação de hipóteses -relacionadas com alterações das características epidemiológicas da comunidade. No outro plano permitirá a execução de investigações "ad hoc" nas quais é formulada uma indagação específica e utilizado o sistema para a sua investigação.

ALGUMAS EXPERIÊNCIAS EXISTENTES

Um levantamento de condições de saúde por entrevistas domiciliárias representa um método largamente empregado tanto para a investigação epidemiológica exclusiva (Bennett e Kasap3, 1970) quanto para o levantamento contínuo das condições de saúde da comunidade (National Center for Health Statistics 20, 21, 22, 1963, 1954 e 1970; Linder17, 1965).

Em nosso meio sempre houve investigadores preocupados em estabelecer sistemas de amostragem para a obtenção de informações acerca de condições de saúde da população (Haddad12, 1967; Silva27, 1961; Salomon25, 1969, entre outros). Essas amostragens, no geral, serviam exclusivamente ao investigador durante o seu trabalho e, terminado este, pura e simplesmente eram deixadas de lado.

A experiência de inúmeros investigadores, em várias partes do mundo, mostrou que no campo da epidemiologia um dos métodos mais promissores consiste exatamente em realizar a investigação nos domicílios, utilizando entrevistadores leigos. Esta tendência visa a ampliar suficientemente o tamanho das amostras sem encarecer em demasia o custo operacional, o que ocorreria se fossem utilizados investigadores médicos para a obtenção das informações. Entre outros, podem ser citados os trabalhos de investigadores ingleses, do porte de Reid, Colley, Rose, Cockrane e, especialmente, Holland. O grupo dirigido por este último criou, através de um censo privado (Bennett e Kasap3, 1970), uma "amostra mestra" no bairro londrino de "Lambeth North" e utiliza sub-amostras estratificadas por idade, sexo e condição sócio-econômica para a investigação epidemiológica de doenças crônicas.

Por outro lado, alguns serviços existem, em vários países (Linder17, 1965), que procuram utilizar o sistema de entrevistas domiciliárias para avaliar continuamente o estado de saúde e a utilização dos serviços de saúde por parte da população. Destes, o mais conhecido e melhor desenvolvido parece ser o implantado nos EUA pelo "National Institute of Health" que tem publicações acerca dos resultados desse trabalho em várias séries do Vital and Health Statistics, desde 1963. Acreditam inúmeros autores, entre outros WHO31 (1971), que determinadas variáveis de importância no planejamento dos programas de saúde, como as necessidades sentidas pela população, só podem a rigor ser obtidas por este procedimento. Sugerem mesmo o desenvolvimento deste método em diversas áreas, inclusive em países subdesenvolvidos, como maneira de obviar a deficiência dos processos usuais de obtenção de informações em saúde.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXPERIÊNCIA DE RIBEIRÃO PRETO

Sentindo a necessidade de estabelecer um sistema capaz de propiciar a investigação epidemiológica a nível domiciliar, realizamos duas experiências sucessivas em escala reduzida nos anos de 1972 (Vila Guatapará, sede do Distrito de Guatapará) e 1973 (Vila Lobato, bairro da cidade de Ribeirão Preto). Em 1974 surgiu a oportunidade de estruturar um sistema mais ambicioso, abrangendo a população civil não institucionalizada da cidade de Ribeirão Preto, que contava na época com uma população de cerca de 250.000 habitantes. Esse sistema encontra-se descrito em publicações anteriores (Carvalheiro6, 1975 e Carvalheiro e Sanches7, 1979). As reflexões e conclusões incluídas neste item resultam da vivência dessa experiência, que se estendeu até 1978, período no qual foram realizadas mais de 20.000 entrevistas (Carvalheiro e Sanches 7, 1979). Procurou-se manter, sem grandes modificações, a visão que o grupo de trabalho tinha da utilidade do processo à época de sua formulação. Os comentários críticos que, em relação a isso, o próprio grupo atualmente formula, serão deixados de lado e analisados em outra publicação.

Existe um projeto brasileiro de amostragem de domicílios, desenvolvidos pela Fundação IBGE, e descrito por Barbosa e Lindquist2 (1971), a PNAD, que tem por objetivo a obtenção periódica de dados a respeito de migração e mão-de-obra na população brasileira. Este projeto prevê a progressiva expansão a outros setores, em particular ao Setor Saúde. O sucesso desta experiência mostra que é tempo de tentar algo mais concreto no setor saúde, que não fique apenas nas tradicionais "campanhas estatísticas" promovidas anualmente.

O sistema de amostragem que viabiliza, em escala microrregional, estadual, macrorregional ou nacional, um tal projeto é complexo e necessita uma estrutura do tipo daquela montada pela Fundação IBGE. Em escala municipal, no entanto, acreditamos que o sistema possa ser mantido por uma entidade como a Universidade. Neste caso a escolha de um painel, ou amostra mestra, permitirá criar as condições indispensáveis à investigação epidemiológica. Com a desvantagem de que a população investigada não receberá os retornos imediatos que garantam a sua contínua colaboração. É relativamente pouco dar à população a satisfação de "contribuir para o avanço científico". Algo mais concreto, como a adoção de medidas baseadas nas informações obtidas, é incomparavelmente mais gratificante. Algo que faça com que a população tenha pleno conhecimento de que está prestando informações que vão motivar uma ação que lhe será benéfica ou algo que corresponda a uma devolução do conhecimento, trabalhado cientificamente, a essa mesma população.

A manutenção do sistema, sem esta retroalimentação, não parece viável e será fadada ao fracasso, a menos que se tenha um painel de amostragem suficientemente grande, ou permanentemente renovado, de molde a não "cansar" a população alvo.

Acreditam muitos profissionais ligados ao tema que, em nosso meio, é importante criar um sistema desse tipo em escala nacional, vinculado à PNAD, da Fundação IBGE. Só esta tem condições de desenvolver em escala nacional um tal projeto. Isto não impede, no entanto, que em escala microrregional ou municipal uma instituição como a universidade, motivada pela perspectiva de usar o sistema para a investigação científica, tome a seu encargo a tarefa, desde que esteja em conexão com as estruturas oficiais de saúde.

Existem problemas técnicos, associados a uma proposta desta natureza, que exigem solução. Alguns dizem respeito ao sistema de amostragem e aos estimadores dos parâmetros de interesse, e são de solução relativamente fácil após o acúmulo de alguma experiência preliminar.

Outros, no entanto, são de solução mais difícil, embora permaneçam ainda na esfera técnica. Referimo-nos especialmente ao treinametnto do pessoal leigo envolvido no levantamento. Dois sentidos podem ser encarados neste processo de treinamento, como de resto nas intenções do próprio levantamento. Se a intenção é meramente de investigação epidemiológica o procedimento usual é a elaboração de um questionário padronizado que será validado utilizando entrevistadores leigos que o apliquem a um grupo de doentes e outro grupo controle, às cegas. Para este treinamento existem procedimentos perfeitamente estabelecidos e as dificuldades não são tão grandes. No outro sentido, o da avaliação contínua das condições de saúde da comunidade, o treinamento é bem mais complexo. Trata-se aqui de anotar, sem auxílio de um questionário padrão, as informações sobre doença prestadas por um leigo a outro. As perguntas adicionais que podem ser sugeridas aos entrevistadores, só complicarão o processo. Trata-se, a nosso ver, de uma questão de definição de "condição mórbida" ou "doença". Se pretendermos uma definição técnica, médica, dificilmente poderemos prescindir do profissional mais adequado, o médico, e do procedimento adequado, a entrevista médica eventualmente complementada por exame auxiliar. Trabalhando com entrevistadores leigos não é fácil chegar a uma definição operacional de doença porque os entrevistados muitas vezes indicam um conjunto de sintomas de pouca coerência, mesmo se analisado pelo médico. Este problema foi também sentido por Sievers 26 (1968) e por outros autores. A solução, a que chegamos independentemente, foi a mesma: aceitar as informações do entrevistado como "doença" desde que se trate de um "não sintoma". Caso contrário, sendo referido um "sintoma", deve-se investigar, como sugere o National Center for Health Statistics 23 (1972), se o informante suspeita de algo a que esse sintoma esteja ligado. Vão-se formulando perguntas, sem sugerir respostas, até chegar a um "não sintoma". Caso não se chegue, anota-se simplesmente o sintoma, ou conjunto de sintomas, referido. Isto implica num treinamento contínuo dos entrevistadores. Foi esta a nossa opção. Nas primeiras semanas do levantamento havia grande dificuldade de codificação das informações anotadas pelos entrevistadores. Promoveram-se reuniões entre médicos, codificadores de doenças e entrevistadores de tal maneira que as dificuldades foram se reduzindo progressivamente. Criou-se um elenco de "histórias" às quais se convencionou atribuir sempre o mesmo código. Esta é a tarefa mais difícil e, acreditamos, mais importante do processo. Na medida em que se consiga reduzir o subjetivismo da anotação e da codificação chegaremos bem mais próximo do pretendido.

Há, no entanto, o problema fundamental que, a rigor, escapa à esfera técnica. Diz respeito à utilização da informação obtida. Enquanto não se puder claramente empregar os resultados obtidos em favor da população o sistema está sujeito a encerrar suas atividades por absoluta falta de colaboração desta.

CONCLUSÕES

A experiência conduzida em Ribeirão Preto, desde 1972, permite afirmar em conclusão que:

a) existem procedimentos básicos, já descritos, para a realização de levantamentos de condições de saúde por entrevista domiciliar. A sua adaptação a condições específicas, embora trabalhosa, é viável;

b) mesmo sem contar com um grupo profissionalizado para o desenvolvimento das tarefas específicas o trabalho pode ser desenvolvido, mas esta não é seguramente a melhor maneira de o conseguir;

c) é perfeitamente exequível estabelecer um núcleo profissionalizado que realize, continuamente, um trabalho de levantamento de condições de saúde ao nível dos domicílios;

d) esse grupo pode perfeitamente ser composto por entrevistadores leigos, especialmente treinados para a obtenção de informações acerca de ocorrência de doenças, acidentes e utilização dos serviços de saúde;

e) deve ser buscada a participação efetiva das estruturas oficiais de saúde, de maneira tal que a devolução das informações à população, sob a forma de ações concretas, seja possível;

f) deve ser buscada ativamente a introdução de projetos específicos de investigação epidemiológica, em sub-amostras da amostra total, de maneira a envolver profissionais da Universidade.

Recebido para publicação em 30/03/1981

Aprovado para publicação em 21/07/1981

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Out 1981

Histórico

  • Aceito
    21 Jul 1981
  • Recebido
    30 Mar 1981
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