RESUMO
OBJETIVO Investigar os fatores associados ao óbito domiciliar entre idosos que morreram por câncer em uma cidade de grande porte.
MÉTODOS Estudo descritivo, incluindo todos os óbitos por câncer (CID C00-C97) ocorridos entre 2006 e 2012, entre residentes do município de São Paulo com 60 anos de idade ou mais. A fonte de dados foi o Sistema de Informações de Mortalidade e a proporção de óbitos foi estimada segundo local, sexo, faixa etária, raça/cor, escolaridade, estado civil, tipo de câncer, disponibilidade de leitos hospitalares e ano do óbito. O teste qui-quadrado foi utilizado para investigar as associações entre o local do óbito e as variáveis sociodemográficas e clínicas. A regressão logística foi empregada para identificar fatores associados à morte domiciliar. Foram estimadas as razões de chance brutas e ajustadas e os intervalos de confiança de 95%.
RESULTADOS A maioria dos óbitos ocorreu em hospitais (88,2%). Houve associação significativa entre o local de óbito e as seguintes variáveis: sexo, raça/cor, escolaridade, faixa etária, estado civil, tipo de câncer, disponibilidade de leitos hospitalares e ano do óbito. Na análise multivariada, todas as variáveis, exceto a disponibilidade de leitos hospitalares, permaneceram como preditores independentes de óbito domiciliar.
CONCLUSÕES Houve predomínio de óbitos hospitalares, com aumento na frequência no período. O sexo feminino, maior escolaridade, o status de casado ou viúvo e a raça negra foram associados à menor chance de óbito domiciliar, enquanto o aumento da idade, a raça/cor amarela e as neoplasias sólidas estiveram associados à maior chance de morrer em casa.
Idoso; Neoplasias, mortalidade; Mortalidade Hospitalar; Assistência Terminal; Cuidados Paliativos; Assistência Domiciliar; Tempo de Internação
ABSTRACT
OBJECTIVE Investigate factors associated with death at home among older adults who died of cancer in a large city.
METHODS This is a descriptive study, including all cancer deaths (ICD C00-C97) occurring between 2006 and 2012, among residents of the city of São Paulo, 60 years of age or older. The data source was the Mortality Information System, and the proportion of deaths was calculated according to place of occurrence, gender, age, race/skin color, education, marital status, cancer type, hospital bed availability, and year of death. The chi-squared test was used to examine the associations between the place of death and sociodemographic and clinical variables. Logistic regression was used to identify factors associated with home death. Crude and adjusted odds ratios and the corresponding 95% confidence intervals were estimated.
RESULTS Most of the deaths occurred in hospitals (88.2%). There was a significant association between the place of death and the following variables: gender, race/skin color, education, age, marital status, cancer type, hospital bed availability, and year of death. In the multivariate analysis, all variables, except the availability of hospital beds, remained as independent predictors of death at home.
CONCLUSIONS There was a predominance of hospital deaths, with an increase in frequency in the period. Female gender, higher education, married or widowed status, and black race were associated with a decreased risk of death at home, while increasing age, Asian race, and solid neoplasms were associated with higher risk of dying at home.
Aged; Neoplasms, mortality; Hospital Mortality Terminal Care; Palliative Care; Home Nursing; Length of Stay
INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial, que vem ocorrendo não só nos países desenvolvidos como também naqueles em desenvolvimento. Uma das suas consequências é o aumento da ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, particularmente das doenças cardiovasculares, câncer e diabetes, que serão responsáveis por mais de 75% de todos os óbitos no mundo1.
No Brasil, ocorreu uma rápida transição demográfica e no município de São Paulo, entre 1980 e 2012, a proporção de idosos na população praticamente dobrou, passando de 6,3% para 11,9%2.
No Brasil, para o ano de 2016, estimou-se a ocorrência de aproximadamente 600 mil casos novos de câncer em ambos os sexos3 e 196.954 óbitos pela doença foram registrados em 20134. Enquanto cerca de 59% dos casos novos registrados no Brasil afetam indivíduos com mais de 60 anos de idade5, mais de dois terços dos óbitos são registrados em idosos4. O município de São Paulo tem altas taxas de incidência de câncer (293,2 e 208,3/100.000 habitantes, taxas ajustadas para a população mundial, todas as neoplasias exceto pele)5 e as neoplasias foram a segunda causa de óbito entre idosos residentes no município (20,7%), superadas apenas pelas doenças do aparelho circulatório4.
Devido ao aumento da incidência e mortalidade por câncer nessa faixa etária da população, muitos estudos têm abordado a questão do local de ocorrência do óbito, para todas as faixas etárias6–15. Todavia, a literatura sobre esse assunto ainda é bastante controversa no que diz respeito aos idosos. Enquanto alguns estudos indicam para esse grupo populacional uma maior frequência de óbitos domiciliares8,9, outros indicam maior frequência de óbitos hospitalares6,7,14.
O município de São Paulo é uma das maiores cidades do mundo e a população idosa quase dobrou no período de 1980 a 20122. Com o avanço tecnológico, os gastos com medicalização ficaram cada vez mais altos e muitos recursos têm sido gastos com os pacientes no fim da vida16. A identificação dos fatores associados aos locais de óbito na população de idosos com câncer da maior cidade do país, bem como o monitoramento de mudanças nesses padrões, pode auxiliar na formulação de políticas públicas e na alocação de recursos relacionados a cuidados paliativos11.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo, que utilizou dados secundários. Foram incluídos todos os óbitos por câncer (como causa básica, CID-10 C00-C97) ocorridos em indivíduos com idade ≥ 60 anos, residentes no município de São Paulo, nos anos de 2006 a 2012. A fonte de dados é o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Considera-se que os dados de mortalidade no município de São Paulo têm boa qualidade, uma vez que, no período do estudo (2006–2012), o percentual de dados ignorados nas variáveis sexo (0,01%), idade (0,3%) e raça/cor (4,1%) é baixo; a porcentagem de óbitos por causas mal definidas também é pequena, correspondendo a somente 1,5% de todos os óbitos4.
As seguintes variáveis foram obtidas dos bancos de dados do SIM: local do óbito (hospital, domicílio, outros estabelecimentos de saúde, via pública, outros, ignorado); ano do óbito; distrito administrativo de residência; causa do óbito (tipo de câncer): classificado segundo a CID-10 (hematológicos = códigos CID-10 (Leucemias e Linfomas = C81 a C97) e sólidos = códigos CID-10 (C00 a C79); faixa etária, categorizada em: 60–69 anos, 70–79 anos, 80–89 anos, 90 anos ou mais; sexo (masculino, feminino); raça/cor (branca, preta, amarela, parda, indígena, ignorada); escolaridade (anos de estudo concluídos) (nenhum, 1 a 3, 4 a 7, 8 a 11, 12 e mais, ignorado); estado civil (solteiro, casado, viúvo, separado ou divorciado, ignorado); e número de leitos/1.000 habitantes por distrito de residência (para o ano de 2012) (os pontos de corte das categorias desta variável foram estabelecidos com base nos quartis da distribuição)17.
As análises de associação restringiram-se aos óbitos ocorridos em hospitais e domicílios (n = 61.573, correspondendo a 97,2% de todos os óbitos por câncer em idosos no período) e, em todas as análises, os valores ignorados foram excluídos (para cada variável).
A associação entre as variáveis independentes e o local do óbito foi avaliada na análise bivariada pelo teste de associação do qui-quadrado. Foram estimadas as odds ratios brutas e os respectivos intervalos de confiança de 95%. A regressão logística múltipla foi utilizada para identificação dos fatores independentes associados ao óbito domiciliar e cálculo das odds ratios ajustadas. No modelo múltiplo, foram incluídas as variáveis que tiveram p < 0,25 na análise bivariada e permaneceram no modelo final apenas aquelas com p < 0,05. A adequação final do modelo foi avaliada pelo resultado do teste de Hosmer e Lemeshow.
Foi calculada a variação percentual anual (Annual Percent Change – APC) na proporção de óbitos domiciliares no período de 2006 a 2012 por meio da modelagem pelo método Joinpoint, usando o ano calendário como variável regressora.
As análises estatísticas foram realizadas com o auxílio dos softwares Stata for Mac versão 13.0 e Joinpoint Regression Program versão 3.3. Para todos os testes estatísticos foi estabelecido um erro alfa = 5%.
RESULTADOS
No período de 2006–2012 foram registrados 63.343 óbitos por câncer entre idosos residentes no município de São Paulo. A idade dos indivíduos variou entre 60 e 104 anos (mediana = 74 anos) e houve predomínio do sexo masculino (51,3%), cor branca (75,7%) e de indivíduos casados (47,4%), com um a três anos completos de estudo (25,1%) (Tabela 1). A maioria dos óbitos ocorreu em hospitais (88,2%).
Número e porcentagem de idosos que morreram por câncer segundo variáveis sociodemográficas. Município de São Paulo, 2006–2012.
O câncer de pulmão foi responsável por 14% dos óbitos por câncer entre idosos. Entre os homens, as maiores frequências foram observadas para óbitos por câncer de pulmão (16,2%), próstata (15,1%), cólon ou reto (10,9%), estômago (9,8%) e pâncreas (5,0%). No sexo feminino, houve predomínio dos óbitos por câncer de mama (15,2%), seguido pelas neoplasias malignas de cólon ou reto (13,1%) e pulmão (10,9%) (Tabela 2).
Número e porcentagem de idosos que morreram por câncer segundo tipo de neoplasia maligna (10 neoplasias mais frequentes) e sexo. Município de São Paulo, 2006–2012.
Houve associação significativa entre o sexo e o local de óbito (p < 0,001), com menor frequência de mulheres que morreram no domicílio (8,8%) (OR = 0,89; IC95% 0,85–0,95). Também houve associação significativa entre o estado civil e o local do óbito, sendo os solteiros (10,0%) e os viúvos (10,0%) os que mais morreram em casa, em relação aos demais idosos (p < 0,001). A variável escolaridade também esteve associada ao local de óbito, sendo os idosos com 12 anos ou mais de estudos os que mais foram a óbito no domicílio (9,2%). Em relação à faixa etária, observou-se que, com o aumento da idade, houve aumento do número de idosos que morrem no domicílio (16,1% para o grupo de idosos com 90 anos ou mais) (p < 0,001). Também se observou associação significativa entre raça/cor da pele e o local de óbito, sendo os idosos de cor amarela (13,8%) os que mais morreram em casa (OR = 1,55; IC95% 1,36–1,78, comparados aos brancos), enquanto aqueles pretos ou pardos apresentavam menor frequência de óbito no domicílio (8,0%), comparados aos brancos (9,8%) (OR = 0,84; IC95% 0,78–0,91). Além disso, houve associação significativa entre o tipo de neoplasia e o local do óbito, sendo maior a frequência de idosos que morreram em domicílios entre aqueles que apresentavam tumores sólidos (9,5%), em comparação aos idosos com neoplasias hematológicas (4,8%) (OR = 2,09; IC95% 1,83–2,41). Por fim, observamos uma associação estatisticamente significativa entre a disponibilidade de leitos hospitalares no distrito de residência e o local de óbito. As categorias extremas, isto é, aquela com a menor (zero leito/1.000 habitantes) e a maior disponibilidade de leitos (≥ 3,82 leitos/1.000 habitantes), foram as que apresentaram as maiores porcentagens de óbitos domiciliares (9,7% e 9,6%, respectivamente) (Tabela 3).
Na análise multivariada, à exceção da disponibilidade de leitos hospitalares, todas as demais variáveis (sexo, faixa etária, estado civil, raça/cor, escolaridade, ano do óbito e tipo de neoplasia) permaneceram como fatores preditivos do óbito domiciliar (Tabela 4).
Observou-se ainda que, em relação ao ano do óbito, os óbitos de idosos com câncer no domicílio foram diminuindo significativamente com o passar do tempo, de 10,3%, em 2006 para 8,1% em 2012 (APC = -4,38%, p < 0,001) (Figura 1).
Tendência temporal da porcentagem de óbitos domiciliares entre idosos com câncer. Município de São Paulo, 2006–2012.
DISCUSSÃO
Este estudo de base populacional demonstrou que, entre idosos com câncer residentes na cidade de São Paulo, a maioria dos óbitos ocorreu nos hospitais e que somente 9% dos óbitos ocorreram no domicílio. Trata-se do primeiro estudo que analisa o local de óbito entre indivíduos com câncer, analisando exclusivamente a população idosa residente em uma grande metrópole brasileira.
Nossos resultados corroboram achados de outros estudos. Uma pesquisa realizada na Inglaterra, que incluiu todos os óbitos por câncer registrados no período de 1993 a 2010, também descreveu um predomínio de óbitos em hospitais entre adultos com mais de 24 anos de idade (48%)14. Todavia, nossos resultados são discordantes dos achados de estudos realizados na Cidade do México e na Itália, onde houve predomínio de óbitos domiciliares (54% e 57,9%, respectivamente)8,9. Ainda que, à exceção do estudo mexicano e do italiano, tenha se observado um predomínio de óbitos hospitalares, a magnitude da diferença entre a proporção de óbitos hospitalares e domiciliares em nosso estudo foi significativamente maior. Todavia, vale ressaltar que nenhum dos estudos anteriormente citados incluiu somente a população idosa.
Os resultados do nosso estudo mostraram que, na cidade de São Paulo, as mulheres idosas que morreram por câncer tiveram 11% menor chance de morrerem no domicílio quando comparadas aos homens. Esses achados são similares aos de um estudo europeu que relatou que as mulheres residentes na Holanda, Noruega, Inglaterra e País de Gales tinham menor chance de morrer em casa comparadas aos homens10. Todavia, nossos achados são distintos daqueles observados em estudos realizados no Canadá7 e no Reino Unido14, que registraram maior porcentagem de óbitos domiciliares entre as mulheres. Uma possível explicação para a menor frequência de óbito domiciliar entre as mulheres com câncer seria a falta de um esposo ou companheiro para cuidar delas em casa, visto que a expectativa de vida é maior para as mulheres15. Também se cogita a presença de uma questão de gênero, visto que os estudos na população em geral mostram uma maior probabilidade de óbito domiciliar quando o principal cuidador é uma mulher e que mulheres são mais frequentemente colocadas na posição de cuidadoras do que na posição de recebedoras de cuidado. Todavia, é importante considerar que não se trata apenas de uma questão ligada ao gênero, sendo necessário levar em conta o contexto cultural e familiar dessas mulheres18.
Este estudo demonstrou que os idosos com câncer casados ou separados/divorciados tiveram menor chance de morrer em casa, quando comparados aos solteiros. Esses achados são opostos aos resultados de um estudo realizado em Londres, onde foi observado que os indivíduos casados tinham maior chance de óbito domiciliar do que os solteiros19. Cohen et al.10 também descreveram que pessoas com câncer casadas residentes na Bélgica, Holanda e Noruega tinham maior chance de óbito domiciliar e o mesmo foi observado para os viúvos residentes na Holanda e na Noruega. Todavia, é importante ressaltar que, naquele estudo, os autores usaram como categoria de referência os indivíduos separados ou divorciados10. Aparentemente, o estado marital é um mediador das diferenças de gênero no cuidado de pacientes terminais. As diferenças no local do óbito podem ser explicadas pelas discrepâncias na disponibilidade de cuidadores informais e a literatura tem demonstrado que as mulheres desempenham mais frequentemente o papel de cuidadoras20.
Nossos resultados apontaram uma associação significativa entre local do óbito e escolaridade, com maior frequência de óbitos domiciliares entre idosos com maior escolaridade. Dessa forma, nossos dados são similares aos descritos na Bélgica, Itália e Noruega, onde indivíduos com câncer e maior escolaridade apresentaram até 98% maior chance de morrerem em casa, comparados aos indivíduos com nível de escolaridade igual ou menor ao ensino fundamental10. No estudo internacional que avaliou o local de óbito para indivíduos com câncer residentes em 14 países e quatro continentes, um maior nível de escolaridade associou-se a uma maior chance de óbito domiciliar nos países europeus (Itália, Espanha, Bélgica e República Tcheca), enquanto o contrário foi observado no México, Estados Unidos e Coreia do Sul11. Acreditamos que a observação do aumento da frequência de óbitos domiciliares concomitante ao aumento da escolaridade pode ser vista como um indicador da possibilidade (ou não) de pagamento por assistência domiciliar privada.
Em nosso estudo, houve aumento dos óbitos em domicílio concomitante com o aumento da idade. Estes achados são similares aos descritos no estudo mexicano, onde idosos com câncer morriam mais frequentemente nos domicílios9. Contrastando com esses achados, um estudo europeu registrou aumento na frequência de óbito domiciliar concomitantemente ao aumento da idade somente na Itália10, atribuindo esse fato ao número insuficiente de instituições de longa permanência para idosos naquele país, sendo o cuidado dos idosos ainda uma atribuição quase exclusiva das famílias21.
No Brasil, a legislação estabelece que o cuidado dos membros dependentes deve ser responsabilidade das famílias. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as instituições de longa permanência para idosos são instituições públicas ou privadas, destinadas a servirem como domicílio coletivo para pessoas com 60 anos de idade ou mais, com ou sem suporte familiar, em condição de liberdade, dignidade e cidadania. Apesar dessa definição oficial, não existe ainda um consenso sobre o que é realmente uma instituição de longa permanência para idosos e, como sua origem está ligada aos asilos (instituições inicialmente criadas pela caridade cristã para a população carente), existe um certo preconceito contra essa modalidade de atendimento22. A relação entre idade e óbitos domiciliares encontrada em nosso estudo poderia ser explicada por esse contexto.
Nosso estudo revelou que os idosos de cor amarela foram os que mais morreram em domicílios, se comparados às outras raças (brancos, pretos/pardos e indígenas). Diferenças étnicas no local de óbito entre idosos com câncer têm sido descritas em diversos estudos. Nos Estados Unidos, segundo os resultados de um estudo realizado na área de Houston, a chance de óbito hospitalar foi maior entre indivíduos negros (OR = 1,51; IC95% 1,37–1,66) comparados aos brancos, hispânicos e asiáticos6. No Japão, dados de um inquérito nacional publicados em 2000 revelaram que aproximadamente dois terços dos japoneses, quando diagnosticados com uma doença terminal, preferem morrer nas suas casas. Além disso, a maioria dos japoneses se identifica como budistas e xintoístas, religiões cujos ensinamentos afirmam que a morte é parte de um processo natural e que a pessoa que morre permanecerá presente na família como um espírito23,24. No último censo demográfico (2010), 2,2% dos habitantes do município de São Paulo se declararam amarelos e, entre os idosos, esse percentual aumenta para 4,4%. A cidade de São Paulo tem cerca de um milhão de japoneses e descendentes e nossos resultados podem estar refletindo os padrões culturais dessa população25.
Nossos achados corroboraram a literatura em relação ao tipo de neoplasia. Há quase um consenso na literatura relativo à maior frequência de óbitos domiciliares entre aqueles indivíduos com tumores sólidos comparados aos portadores de neoplasias hematológicas. Sabe-se que, entre indivíduos com neoplasias hematológicas, os óbitos hospitalares são bem mais frequentes por causa do risco de intercorrências (sangramentos, eventos tromoboembólicos, neutropenia febril) e da consequente necessidade de antibióticos, intervenções mais agressivas e hospitalização após os procedimentos clínicos realizados6.
Nossos resultados em relação à ausência de associação entre o local do óbito e a disponibilidade de óbitos hospitalares não são concordantes com os resultados no estudo mexicano, onde foi registrada uma associação significativa entre a densidade de leitos hospitalares públicos e o local do óbito, relatando-se uma maior chance de óbito hospitalar para aqueles indivíduos residindo em locais com maior disponibilidade de leitos9. Por outro lado, no estudo que analisou os fatores preditivos de óbito domiciliar na Europa, não se observou influência da disponibilidade de leitos hospitalares nesse desfecho em três países (Holanda, Noruega e Inglaterra)10. Os autores ressaltaram que a relação entre disponibilidade de leitos hospitalares e local do óbito poderia não ser tão linear e confundida por outros fatores, tais como a disponibilidade de cuidados domiciliares, questões culturais, religiosas e até mesmo a comunicação entre os familiares10.
Observamos que a frequência de óbitos domiciliares entre idosos com câncer diminuiu significativamente com o passar do tempo, passando de 10,3%, em 2006 para 8,1% em 2012. Este resultado diverge da maioria dos relatos da literatura, que descreve redução das mortes hospitalares com o passar do tempo7,14. Ainda que já se tenha demonstrado que a preferência dos pacientes com câncer é morrer em casa26, nem sempre as preferências são respeitadas e podem refletir muito mais as práticas e as características do sistema de saúde local. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a oferta de cuidados paliativos no Brasil ainda é isolada e desproporcional ao tamanho da população, havendo também uma limitação na disponibilidade de morfina27. Ressalta-se que a situação observada reflete o perfil da maior e mais desenvolvida cidade do país. No Brasil, no mesmo período, o percentual de óbitos domiciliares para esse mesmo grupo de idosos com câncer variou de 10,5% (Distrito Federal) a 52,0% (Piauí)4. Essa grande variação suscita a hipótese de que os fatores associados ao óbito domiciliar entre idosos com câncer possam ser bastante distintos nas diferentes regiões do país.
Como limitações de nosso estudo, citamos o possível viés decorrente dos dados ignorados na declaração de óbito e dos possíveis óbitos por câncer não registrados como tal. Todavia, a qualidade dos dados de mortalidade no município de São Paulo é boa e não acreditamos que os resultados do estudo possam ter sido substancialmente distorcidos.
Nossos resultados trazem à tona a necessidade de um olhar mais voltado à qualidade do fim da vida das pessoas com câncer. Espera-se que as informações geradas nesta pesquisa possam ser utilizadas para embasar políticas públicas que visem a melhorar a oferta de cuidados paliativos para idosos com câncer, beneficiando com qualidade de vida tanto os próprios pacientes como os seus familiares.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jul 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
-
Recebido
12 Dez 2016 -
Aceito
27 Set 2017