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VOCÊ É SOCIÓLOGO DO TEATRO, NÃO É? CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIOLOGIA DA LITERATURA DRAMÁTICA DE RAYMOND WILLIAMS

YOU’RE A THEATRE SOCIOLOGIST, AREN’T YOU? CONSIDERATIONS ON RAYMOND WILLIAMS’S SOCIOLOGY OF DRAMATIC LITERATURE

Resumo

O presente artigo tem por objetivo reivindicar a centralidade da análise da literatura dramática, para a formulação da noção de estrutura de sentimento e, consequentemente, para o materialismo cultural de Raymond Williams. Para tanto, analisaremos parte da vasta produção do autor, com especial atenção às apresentações e considerações conclusivas de seus livros sobre drama (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus., 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press., 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .). Estes, por terem sido totalmente reescritos ao longo de sua carreira, constituem produções privilegiadas para flagrar as transformações teóricas e conceituais de Williams.

Palavras-chave:
Raymond Williams; Sociologia do teatro; Dramaturgia; Estrutura de sentimentos; Materialismo cultural

Abstract

This article aims to sustain the centrality of dramatic literature to the genesis of the notion of structure of feeling and, consequently, for Raymond Williams’s cultural materialism. Therefore, we will analyze part of his vast body of work, being especially attentive to the introductory and conclusive argumentations of his books on drama (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus., 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press., 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .). These, since they have been totally rewritten through his career, are seen as privileged productions to grasp Williams’s theoretical and conceptual transformations.

Keywords:
Raymond Williams; Sociology of theatre; Dramaturgy; Structure of feeling; Cultural materialism

Nas entrevistas concedidas a Perry Anderson, Anthony Barnett e Francis Mulhern para a New Left Review, publicadas em 1979, sob o título “A política e as letras”, Raymond Williams (1921-1988) revela que o drama desde cedo foi parte importante de seus interesses. Aos dezesseis anos, escrevia peças com um colega que eram encenadas no salão do vilarejo de Pandy, no país de Gales, despertando certa mobilização local (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .). Durante a graduação em Cambridge, as obras de Henrik Ibsen cativaram a atenção do jovem que, mesmo após formado, diz ter continuado “a estudar o tema de forma razoavelmente consciente como um projeto acadêmico” (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 185), consistindo no drama o tema de seus trabalhos de pós-graduação (Costa, 2002Costa, Iná Camargo da. (2002). Tragédia no século XX. In: Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, p. 7-22.).

Em 1946, antes mesmo de se formar, Williams tornou-se tutor da Extra-Mural Delegacy da Universidade de Oxford, em Sussex. Alexandro Paixão (2018Paixão, Alexandro Henrique. (2018). Raymond Williams e a educação democrática. Educação e Sociedade, 39/145, p. 1004-1022.) explana que essa iniciativa, vigente desde 1908, vinculava a Universidade de Oxford à Workers’ Educational Association (WEA). Essa parceria fomentava intenso trabalho voluntário voltado à educação de trabalhadores na Inglaterra, por meio da qual todo tutor de adultos (majoritariamente estudantes de língua inglesa) “deveria ensinar literatura para encorajar os estudantes trabalhadores a ter tanto uma ampla visão racional das coisas quanto um alcance ‘saudável’ dos valores sociais do momento” (Paixão, 2018Paixão, Alexandro Henrique. (2018). Raymond Williams e a educação democrática. Educação e Sociedade, 39/145, p. 1004-1022.: 1008). Williams atuou na educação de adultos de 1946 a 1961, em uma experiência fundamental para sua carreira. Além da remuneração interessante e estável, o trabalho permitiu que o intelectual implementasse seu sentido particular ao processo educativo. Dele derivaram obras decisivas e “ações teórico-práticas, fundadas na educação” (Paixão, 2018Paixão, Alexandro Henrique. (2018). Raymond Williams e a educação democrática. Educação e Sociedade, 39/145, p. 1004-1022.: 1008) que balizaram, como veremos,a transformação de orientações intelectuais conservadoras na proposta inspiradora e original do materialismo cultural de Williams.

Em 1960, já com o doutorado concluído e com publicações consagradas no currículo, Williams recebeu a posição de tutor residente em Oxford e, logo após, um convite para lecionar em Cambridge como bolsista. Posteriormente tornou-se professor de inglês e, finalmente, de drama na prestigiosa instituição, de 1974 até 1983. No final da década de 1970 sentenciou: “sempre acontece de o drama ser a matéria que mais sou convidado a ministrar” (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 185).

Ao prefaciar a edição brasileira de Tragédia moderna, a teatróloga Iná Camargo da Costa sumariza os cinco livros sobre dramaturgia de Williams:

O primeiro, desenvolvimento do seu doutorado sobre Ibsen, de 1947 a 1949 em Cambridge, foi publicado em 1952, com o título Drama from Ibsen to Eliot. O segundo, uma espécie de antologia de história do teatro, é Drama in Performance, de 1954. Tragédia moderna é de 1966, ao qual se seguiram em 1968 Drama from Ibsen to Brecht e a edição revista, com acréscimos fundamentais, de Drama in Performance. O título do quarto sugere também tratar-se de edição revista do primeiro, mas deve ser considerado um outro livro, uma vez que o argumento central ali se encontra totalmente modificado (Costa, 2002Costa, Iná Camargo da. (2002). Tragédia no século XX. In: Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, p. 7-22.: 7).

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, o teatro não “protagonizou” suas obras subsequentes, mas esteve certamente nos “bastidores”. O livro de entrevistas A política e as letras, publicado em 1979, tem “Drama” como seção autônoma (com dois capítulos), junto com “Literatura”, “Política”, “Cultura” e “Biografia”. Pode-se ainda enumerar “O ambiente social e o ambiente teatral: o caso do naturalismo inglês”, em Cultura e materialismo, de 1980; “Identificações” e “Formas”, capítulos do livro Cultura, de 1983, em que a centralidade do tema teatral é notável; “Drama em uma sociedade dramatizada”, “Forma e Significado: Hipólito e Fedra” e “Sobre o diálogo dramático e o monólogo (particularmente em Shakespeare)”, do livro A produção social da escrita, também de 1983; e “O teatro como fórum político” de Política do modernismo: contra os novos conformistas, publicado em 1989.

É, portanto, digno de nota que essa prolífica produção tenha ficado obscurecida pelas demais obras de maior reconhecimento, como Culture and Society, The Long Revolution ou Keywords. Sobretudo pelo fato da noção de estrutura de sentimento, vital para o arcabouço teórico de Williams, ter emergido em meio à análise de filmes e da dramaturgia moderna (Falasca-Zamponi, 2020Falasca-Zamponi, Simonetta. (2020). History, Ordinary Culture, and “Structure of Feeling”: Revisiting Raymond Williams. Il Pensiero Storico: Rivista internazionale di storia delle idee, 5/7, p. 99-118.; Paixão & Trevisan, 2019Paixão, Alexandro Henrique & Trevisan, Anderson Ricardo. (2020). Raymond Williams, cultura e extensão universitária. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, 28, p. 1-23.). Seria essa separação mero efeito da tensão entre as áreas da literatura e do drama? Ou entre a crítica literária e a sociologia? Seria ainda elemento associado ao sintoma de pensamento mais amplo que, à revelia do legado do autor, promove desconexão entre a infraestrutura e a superestrutura?

Na introdução à edição inglesa de Drama in Performance, Graham Holderness salienta a continuidade e a preocupação perene de Williams com a análise teórica do drama, questionando a leitura cronológica tradicional de sua carreira. Afirma ser mais apropriado “considerar as obras recentes sobre mídia como decorrentes dos primeiros estudos sobre o drama, em vez de resultados de um movimento lógico em direção aos ‘estudos culturais’” (Holderness, 2010Holderness, Graham. (2010). Introdução à edição inglesa de 1991. In: Williams, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify , p. 17-34.: 18).

Tomando semelhante orientação, o presente artigo tem por objetivo sublinhar a centralidade da literatura dramática para a formulação da noção de estrutura de sentimento, elemento-chave para o materialismo cultural de Williams. Para tanto, analisaremos parte do material bibliográfico disponível, com especial atenção às apresentações e análises conclusivas de seus livros sobre drama (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus., 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press., 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .). Estes, por terem sido totalmente reescritos ao longo de sua carreira, constituem produções privilegiadas para flagrar as transformações teóricas e conceituais do autor.

SENTINDO O DRAMA

A introdução de Drama from Ibsen to Brecht1 1 A tradução desta e das demais citações de obras sem versão em português foram realizadas por mim. contém relato revelador do contexto de vida de Williams:

Quando retornei do exército e da Alemanha, em 1945, comecei a ler Ibsen e progredi até que, por algumas semanas, tive de ser impedido, para completar o resto de um curso universitário. Retornei às peças assim que pude, e venho lendo e assistindo às representações, centenas de peças que se sucederam, com grande interesse desde então. Os estudos desse livro vêm principalmente dessa experiência: fui tocado pelas peças antes mesmo de ver seus problemas críticos. E uma vez que a experiência continuou, como passei a ler análises das peças, passei a ver problemas que ainda apresentam dificuldades extremas: problemas que se desdobram como teóricos e que levantam várias questões radicais em outros campos que não o do drama. Eu permaneci trabalhando continuamente no tema e, de fato, redefinindo e trocando as ênfases de minhas conclusões. Imagino e espero que isso ainda deva continuar, mas nos últimos anos, ao menos uma fase daquele impulso original aparenta ter se completado, e eu me senti capaz de retornar novamente ao tema e apresentar uma visão geral de suas experiências particulares (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 11-12).

A passagem demonstra o permanente interesse acadêmico de Williams sobre o drama, revelando a consciência do intelectual em extrair, da reanálise desse material literário, muito mais do que havia conseguido em seu primeiro estudo. Também aponta o momento de transição vivido pelo intelectual galês, atraído pela estrutura de sentimento emergente em obras como as de Ibsen. Para Costa (2002Costa, Iná Camargo da. (2002). Tragédia no século XX. In: Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, p. 7-22.: 11), o dramaturgo norueguês tinha como especialidade “explorar os modos pelos quais a sociedade burguesa, que promete a liberação individual, apresenta fortes obstáculos ao cumprimento dessa mesma promessa”. Pode-se dizer que Williams também se envolveu “em uma luta do desejo individual, em uma situação falsa e permeada de concessões, para se libertar e conhecer a si mesmo” (Williams, 2002Williams, Raymond. (2002). Tragédia moderna . São Paulo: Cosac Naify .: 135), como sentenciou sobre a obra de Ibsen.

Além dos efeitos da Segunda Guerra Mundial, o conflito mais imediato de Williams foi composto por uma confluência de fatores. De um lado, a instigante iniciativa de editar a revista Politics and Letters, com seus colegas Wolf Mankowitz e Clifford Collins, segundo política editorial aberta e um tanto ambígua (pois visava articular influências teóricas conservadoras de Leavis e da crítica prática às orientações de socialistas e críticas de esquerda), colapsou no ano de 1948. De outro, o roteiro que escreveria para um documentário sobre a revolução agrícola e industrial, para o importante cineasta britânico Paul Rotha, tampouco teve continuidade (Paixão & Trevisan, 2019Paixão, Alexandro Henrique & Trevisan, Anderson Ricardo. (2020). Raymond Williams, cultura e extensão universitária. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, 28, p. 1-23.). A isso se somou a sua visão crítica ao andamento do governo trabalhista na Inglaterra (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp ., 2015Williams, Raymond. (2015). Você é marxista, não é? In: Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. São Paulo: Editora Unesp , p. 97-113.), configurando contexto turbulento na vida do intelectual galês:

A experiência confirmou o padrão de sentimento que eu encontrara em Ibsen. Por um tempo, eu estava em tal estado de fadiga e de recuo que parei de ler os jornais e ouvir as notícias. Naquele momento, afora continuando com o ensino na educação para adultos, senti que eu só poderia sair desse nó de uma forma não colaborativa. Recuei para fazer meu próprio trabalho. Nos dez anos que se seguiram, escrevi num isolamento quase completo. (Williams, 2013Williams, Raymond. (2013c). Brecht e além. In: A política e as letras: entrevistas da New Left Review . São Paulo: Editora Unesp , p. 211-232.a: 66).

Foi nesse período de trabalho que Williams pôde lentamente construir uma interpretação particular dos fenômenos da cultura, arte, indústria e democracia, que seriam responsáveis pela futura consagração acadêmica do intelectual galês, sobretudo por ter conseguido, com sucesso, articular estudos literários, históricos e sociológicos, dando origem a seu materialismo cultural (Williams, 2011Williams, Raymond. (2011a). O ambiente social e o ambiente teatral: o caso do naturalismo inglês. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, p. 169-200., 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .).

Reading and Criticism, publicado em 1950, é a primeira obra de Williams em seu período “de isolamento”, resultado matizado dos artigos, da crítica e do processo editorial da revista. A influência de intelectuais conservadores sobre Williams é fato notório, especialmente no início de sua carreira (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.; Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus., 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .). Entre elas, ganha destaque Frank Raymond Leavis, criador da disciplina Cambridge English.

Na obra referencial Para ler Raymond Williams, Maria Elisa Cevasco demonstra que Leavis partiu do método da crítica [practical criticism] e de leitura [close reading] vigente. Criado por Ivor Armstrong Richards, essa metodologia visava gerar um padrão comum de julgamento literário formal, independentemente de qualquer processo de contextualização ou de análise sobre a autoria. Teve como principal mérito “aliar esse método de leitura a uma combatividade genuína que levará o Inglês a carro-chefe das humanidades” (Cevasco, 2003Cevasco, Maria Elisa. (2003). Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo.: 34). Nessas bases fundou e dirigiu (com sua esposa) a influente revista Scrutiny e desenvolveu um modo de fazer crítica literária que gozou de ampla repercussão.

O projeto de Leavis era formar grande número de leitores que partilhassem de valores e iniciativas para combater a desintegração social e os males da civilização moderna, cujo progresso sufoca a cultura (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.). Nessa perspectiva, a literatura configura refúgio, conceito fixo e domínio ideal, baseado em padrões nobres e distintivos, segundo tradição não problematizada, definida e controlada pela elite, que também teria o papel redentor de disseminá-la. Segundo Cevasco, essa proposta visava forjar uma intelectualidade autônoma, de conservadorismo nostálgico e que acreditasse que a crítica de manifestações culturais possibilitaria uma análise da totalidade de significados de determinada sociedade. Nas páginas da Scrutiny “se constituía uma posição antiestablishment, a partir da qual se criticava não apenas literatura, mas toda a organização social da Inglaterra de então” (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 93). Cevasco já havia indagado, a respeito de Leavis: “por que alguém como Williams ressalta a figura de um pensador nostálgico, elitista e idealista?” (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 77). A autora aponta duas principais razões: a primeira é que

Leavis, Richards e Williams estavam todos interessados em resgatar o conceito de cultura de sua especialização “estetizante” e expandi-lo para se constituir em um modo de compreensão do funcionamento de uma sociedade e, a partir dessa compreensão, intervir para modificá-la (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 79).

A segunda repousa “no reconhecimento da função social da educação humanística - o English lecionado em Cambridge - como uma das formas de transmissão de um nexo social […]” (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 79). Assim, a emergência do inglês como disciplina prestigiosa, de teor crítico, baseada em um método e portadora de sentimento de missão social da crítica justificam a influência determinante deste autor sobre os intelectuais britânicos do período.

Em Doze lições sobre os Estudos Culturais, Cevasco demonstra ambiguidades da emergência da disciplina de literatura inglesa: se, por um lado ela incutiu orgulho pátrio, difundia valores comuns, “humanizando” e “civilizando” sobretudo os desfavorecidos, isto é, reforçando o caráter elitista e visando pacificar conflitos sociais; por outro, havia a expectativa de que os estudos ocorressem em relação ao contexto e à experiência do vivido. Assim “essa exigência de discutir literatura e vida real abriu espaço para a articulação de um ponto de vista a partir do qual a totalidade da vida social pode ser avaliada. Esta é a principal realização da disciplina como prática oposicionista” (Cevasco, 2003Cevasco, Maria Elisa. (2003). Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo.: 30-31).

Em “A política e as letras”, Williams afirma:

A prática usual da Scrutiny na crítica da ficção era julgar a qualidade do romance ou do romancista pela análise de um exemplo da prosa que se assumia ser um padrão representativo da obra como um todo. Esse método foi desenvolvido essencialmente para a análise de um poema curto. Não achei que ele funcionasse no romance […]. Mais tarde, obviamente, eu viria a dizer que a seleção da passagem para análise cuidadosa usualmente pressupõe um julgamento não examinado da obra da qual ela é tomada (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 235)

Williams, no desenvolvimento de seu projeto intelectual, historiciza toda essa pretensa imutabilidade e demonstra como a ideia de uma minoria cultural, voltada a preservar os valores mais altos da humanidade (a cultura), frente à marcha destrutiva e bárbara do mundo material (civilização) é uma visão elitista, limitada, arbitrária, regressiva e nostálgica (Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.). Essa proposição está em associação com a crítica da tradição realizada pelo autor. Ao invés de um segmento historicamente inerte, como queriam os conservadores, o crítico galês salienta como a elite controla a tradição por meio do poder de seleção e da capacidade de comprimir e unificar variadas interpretações do passado em uma única, tida como legítima. Portanto, a tradição não é o passado, mas uma interpretação do passado, uma tradição seletiva: “uma versão intencionalmente seletiva de um passado moldado e de um presente pré-moldado, que é, então, poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural.” (Williams, 1977: 115).

Propomos, nas páginas seguintes, demonstrar como a análise do drama figurou-se como ambiente experimental singular para a transformação da análise de Williams, desse viés conservador para a abordagem progressista do materialismo cultural.

LEAVING LEAVIS?

A pesquisadora argentina Cecília Lasa, em artigo que analisa o estatuto de Shakespeare na primeira publicação de Williams, Reading and Criticism, promove breve, mas interessante contextualização do livro e salienta a distância dele para a obra posterior do crítico marxista. Ainda comprometido com influências conservadoras, Williams não confere importância às teorias de análise literária no trabalho do crítico, concebendo a maior parte delas como meras distrações da literatura (Lasa, 2018Lasa, Cecilia. (2018). Reading and Crisicism, de Raymond Williams: la construcción del crítico y la relevancia de William Shakespeare. Revista Cerrados, 27/47, p. 80-97.). Também demonstra aversão às perspectivas psicanalíticas e marxistas, julgando-as reducionistas por desconsiderarem a especificidade literária.

Lasa avalia que Williams, ciente de seu contexto pedagógico do ensino de adultos e da condição sócio-histórica de seus estudantes-leitores, defende a aquisição de certas noções e práticas para que o público seja capaz de desenvolver análise literária adequada. Para ele, a transformação do good reading (que é tarefa individual) em crítica (que é tarefa coletiva) “pode ser atingida pelo processo de discussão e análise de grupo, para o qual a análise crítica padrão é pré-requisito essencial” (Williams apud Lasa, 2018Lasa, Cecilia. (2018). Reading and Crisicism, de Raymond Williams: la construcción del crítico y la relevancia de William Shakespeare. Revista Cerrados, 27/47, p. 80-97.: 89). Desta maneira, embora a orientação política e pedagógica esteja adequada, a forma de implementação dessa prática é antagônica à proposta, pois o objeto a ser lido, a metodologia seguida e a visão do papel do crítico se apresentam como instâncias a-históricas (Lasa, 2018Lasa, Cecilia. (2018). Reading and Crisicism, de Raymond Williams: la construcción del crítico y la relevancia de William Shakespeare. Revista Cerrados, 27/47, p. 80-97.).

Essa fragilidade, evidentemente, também contagia a leitura de Shakespeare. Os aspectos estilísticos próprios do texto do dramaturgo são ofuscados pelo método de análise universalista. Este obstrui tanto o objetivo de democratizar a leitura, quanto a proposta de formar leitores críticos e autônomos, dada a concepção de literatura como produto cristalizado, despojado de controvérsias ideológicas e de perspectiva histórica (Lasa, 2018Lasa, Cecilia. (2018). Reading and Crisicism, de Raymond Williams: la construcción del crítico y la relevancia de William Shakespeare. Revista Cerrados, 27/47, p. 80-97.). Deste modo, embora a literatura apareça, no referido volume, como objeto de estudo específico que requer abordagem particular, a filiação teórica ao close reading ainda não subsidia a atividade de um crítico comprometido com a transformação social (Lasa, 2018Lasa, Cecilia. (2018). Reading and Crisicism, de Raymond Williams: la construcción del crítico y la relevancia de William Shakespeare. Revista Cerrados, 27/47, p. 80-97.). O emprego que Williams faz de Shakespeare evidencia, assim, as limitações próprias da crítica prática.

O primeiro livro de Williams, Drama From Ibsen to Eliot, fruto de sua pesquisa de doutorado concluída três anos antes, foi publicado apenas em 1952 (após Reading and Criticism). A influência de Leavis se apresenta no objetivo de constituir “um experimento de aplicação dos métodos da crítica prática à literatura dramática moderna” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 12), bem como no tom da análise.

[…] Em qualquer tempo, os aspectos comuns entre o artista e seu público que mais importam são aqueles referentes à sensibilidade. A sensibilidade do artista, sua capacidade para a experiência, seus modos de pensar, sentir e interagir - serão sempre mais finos e mais desenvolvidos do que os da média de seu público. Mas se a sensibilidade for ao menos do mesmo tipo, a comunicação será possível […] sua linguagem e a linguagem de seu público serão próxima e organicamente ligadas; a linguagem comum será expressão da sensibilidade comum. Não há tal sensibilidade comum hoje em dia. A pressão de um ambiente mecânico ditou formas de pensamento, sentimento e interações também mecânicas, às quais os artistas e alguns poucos de feitio semelhante rejeitam, com grande esforço e resistência consciente. É por isso que toda literatura séria, em nosso período, tende a tornar-se literatura de minoria (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 27).

A perspectiva nostálgica, pessimista e elitista é clara na passagem acima. Por outro lado, a referida obra materializa interessantes desenvolvimentos analíticos e distanciamentos de Leavis e demais influências conservadoras. Tomar o drama como tema central é, de saída, uma perspectiva inovadora, à qual se soma a proposta de resgatar a crítica literária nas obras teatrais, em detrimento da crítica dramática, centrada na performance; a defesa da indissociabilidade entre drama e literatura; a ênfase na comunidade e na sensibilidade; o tratamento histórico e, portanto, dinâmico do drama e o esforço em desenvolver uma teoria do naturalismo (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .).

Já no primeiro parágrafo da introdução, as amplas transformações do teatro no período que compreende a metade do século XIX até a metade do XX são mencionadas. O autor descreve como, emergindo em um cenário de desimportância do fenômeno teatral, o drama naturalista em prosa, proveniente sobretudo da França, se consolidou e se difundiu na Grã-Bretanha. Esse modelo trouxe consigo obras de importantes dramaturgos como Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Pirandello e Hauptmann, além de promover as criações do principal dramaturgo britânico, Shaw.

O referido livro não pretendia ser análise histórica detalhada, mas apreciação crítica de algumas das fases dessa longa e variada história do drama (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.). A dimensão social da prática teatral está evidente para o autor, que narra as tensões entre texto e cena, articulação que influencia, necessariamente, a análise teórica. Argumenta ser impossível “alcançar compreensão crítica do drama dos últimos cem anos sem a compreensão dos métodos do teatro no mesmo período” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 12). Além disso, Williams evita definir, de maneira esquemática, o conceito de drama, optando por uma análise mais ampla, centrada na noção de convenção. Segundo ele,

[o] drama, como forma literária, é um arranjo de palavras para a representação falada, feita por um grupo de atores. Onde a fala pretendida pelo dramaturgo é de caráter naturalista e cotidiano, é muito fácil […] esquecer do autor e esquecer até que as palavras faladas pelos atores foram arranjadas por ele segundo uma forma literária deliberada. No entanto, a diferença entre o naturalismo e o drama mais convencional, nesse respeito, é apenas uma questão de grau. Mesmo onde o dramaturgo tem sucesso em criar uma ilusão perfeita de uma conversa ex tempore [no tempo presente], ele está ainda engajado no arranjo de palavras em formas literárias particulares e convencionais para a comunicação de um tipo de experiência particular. É, afinal, fato igualmente digno de consciência, que é uma convenção que rege aquelas pessoas que se movem no palco, em frente a uma audiência, e que falam intimamente e pessoalmente como se não estivessem sendo ouvidas pelos demais (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 21, grifo do original).

Mais relevante do que a definição genérica de drama acima é o esforço em assinalar as convenções teatrais e enfatizar sua multiplicidade e variabilidade, mesmo dentro do gênero dramático. Há, aqui, uma orientação histórica e relativista, voltada a questionar a perspectiva do espectador médio de assumir que as atitudes e práticas do teatro de seu tempo sejam elementos necessários, permanentes ou definidores do drama em si mesmo (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.). Um exemplo disso, na citação, é a menção à fala em prosa, de linguagem cotidiana, ao cômodo fechado e à quarta parede, convenções que muitas vezes são tidas como elementos universais do drama. Termos abstratos - como enredo, ação, situação e personagem - são importantes à análise, mas não devem ser tratados de modo independente para não resultarem em análises enganosas (Williams, 1968). Esquivando-se do mero formalismo, Williams adota perspectiva social ampla e foca nos aspectos relevantes da experiência partilhada, expressos por meio de convenções, formas e linguagens específicas.

Partindo da noção geral de literatura como “uma forma de comunicação de experiência imaginativa por meio de certa organização de palavras escritas” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 14), o autor concebe o drama como gênero essencialmente literário que “requer, para sua comunicação, todos os elementos teatrais da performance” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 37) e isso o torna um fenômeno plural. Essa imbricação entre texto e cena, inerente ao drama, envolve múltiplos sujeitos e meios de comunicação: a cenografia, o figurino, o design cênico, a iluminação, a música, a dança e a gestualidade dos atores, fundamentais à riqueza do drama e, até então, negligenciados como linguagem. Apesar de incorporar a cena na crítica literária, o autor não questiona a longa tradição do “textocentrismo”. Pelo contrário, sustenta que o pleno poder do drama só pode ser efetivado se todos os elementos da cena estiverem à serviço do dramaturgo.

Em importante análise da emergência do naturalismo no teatro, Williams (1968) destaca o papel central de Ibsen como articulador da tendência romântica alemã e da influência francesa no teatro. Em A política e as letras detalha algumas etapas desse processo, salientando que, no referido período, compreendia o naturalismo de forma simplória, como mera reprodução da vida contemporânea real no palco. Isso apresentava uma série de dificuldades posteriormente percebidas pelo autor: a limitação de temas da subjetividade e do pensamento apenas àqueles plausíveis em uma conversa; a restrição das situações cênicas ao “cômodo fechado” da individualidade e da vida burguesa, incapaz de “mover-se para fora, em direção à sociedade e à história” (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 200). Sintetizou, ainda, no referido livro, as duas formas que extrapolaram o naturalismo: o expressionismo subjetivo “que reconstruiu o lugar da ação dramática como consciência, não como ação ou comportamento; e o movimento em direção ao expressionismo social, que reconstruiu um lugar na sociedade em uma forma bastante generalizada” (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 200-201)2 2 Para maiores detalhes dessa análise, ver Williams (1969, 2002, 2011a). .

Em textos posteriores, o autor retratou sua visão do naturalismo, compreendendo-o como parte de um movimento de liberação que enfatizava o âmbito secular (em detrimento do metafísico), o tempo presente (rompendo com o drama histórico) e tinha por base procedimentos científicos da história natural (Williams, 2011aWilliams, Raymond. (2011a). O ambiente social e o ambiente teatral: o caso do naturalismo inglês. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, p. 169-200., 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .). Esse novo olhar permitiu que Williams percebesse, inicialmente, o personagem como inseparável do ambiente e, posteriormente, como determinado pelo ambiente. Assim, os cenários precisos e os cômodos imitando a realidade não respondem apenas à verossimilhança ou ilusão teatral.

O seu impulso real foi que o ambiente deveria ser fisicamente apresentado por ser um aspecto decisivo da ação. Não se trata de um cenário. Não há algo como um cenário naturalista, como fica evidente nas peças naturalistas de Ibsen, nas quais os personagens produzem o ambiente ao viverem nesses cômodos, que são sempre o centro físico da atenção. Eles estão mergulhados neste ambiente que, em certo sentido, espelha materialmente suas vidas. Contudo, ao mesmo tempo, o ambiente é decisivamente ativo em suas vidas, com as restrições físicas reais do cômodo e o sentido de um tipo particular de paisagem fixa […]. O propósito era a criação de um ambiente físico como uma agência e não como um cenário. Ao mesmo tempo, esse foi um movimento da sociedade burguesa e, dessa forma, o ambiente que foi criado definia o centro da sociedade como a família e a vida privada. Em oposição ao drama anterior, o ambiente não apenas rejeitou a dimensão religiosa metafísica, mas também estreitou a esfera da ação pública da corte, do fórum e da rua para o cômodo em uma casa de família. Era lá que as coisas importantes aconteciam entre poucas pessoas. O resultado foi que a proposição de uma relação determinante entre o personagem e o ambiente sofreu uma qualificação peculiar, que não era inerente ao projeto original, na medida em que o ambiente se tornou socialmente limitado e, em seus desenvolvimentos extremos, estático (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .: 201-202).

De forma semelhante, Williams percebia a prosa adotada no teatro naturalista como um registro verbal fraco, de baixa intensidade, limitado pela verossimilhança do diálogo conversacional “representável”. Defendeu, então, a ressurreição do drama em verso (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.), forma minoritária de drama poético que poderia figurar como uma convenção alternativa à escrita para a fala, capaz de prover maior intensidade de expressão. Não se tratava de propor abstratamente um gênero ou um critério formal de caráter universalista (uma forma versificada geral), mas de admitir a possibilidade de empregar certos recursos de ritmo para intensificar tipos de fala particulares (Williams, 2013aWilliams, Raymond. (2013a). A política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp .).

O autor sustentou aqui perspectiva dialética acerca das convenções e elementos do drama, especialmente na relação entre texto e cena, em decorrência da tensão entre o dramaturgo e o diretor de teatro ou encenador, desde sua gênese no final do século XIX. Neste período, a riqueza da fala no teatro declinou e os elementos visuais se tornaram cada vez mais elaborados. De maneira semelhante, a atuação tornou-se cada vez mais pessoal à medida que a capacidade em comunicar a experiência na linguagem diminuiu. A elaboração visual do drama, assim “está relacionada, de fato, não apenas ao empobrecimento da linguagem, mas a mudanças de sentimento” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 28).

A conclusão do livro não revela posicionamento claro acerca das recentes tensões e transformações do drama. Ressalta apenas a importância da análise crítica, indispensável ao desenvolvimento do “melhor teatro” e do “melhor drama” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.). Por outro lado, o arranjo de tensões entre texto e cena, além da emergência de novos padrões e formas, sem que as antigas sejam imediatamente descartadas, implica a aceitação de convenções dramáticas entre escritor, atores e audiência, de caráter “total”. Isto é, envolvendo tanto o intelecto quanto as emoções, sendo provável que o drama viceje com maior intensidade “quando essa aceitação é virtualmente inconsciente” (Williams, 1965Williams, Raymond. (1965). Drama from Ibsen to Eliot. London: Chatto and Windus.: 274). O rudimento de seu conceito de estrutura de sentimento, central para a reescrita do referido livro e prumo da produção ulterior do intelectual galês, pode ser visto aqui, em desenvolvimento3 3 Em um interessante paper, apresentado no 41º Encontro Anual da ANPOCS, Alexandro Paixão (2017) registra que o sociólogo alemão, Levin Ludwig Schücking, empregou em 1929 o termo “estrutura de sentimento” para referir-se a características, ideias, sentimentos e hábitos da família puritana. Porém, foi Raymond Williams, leitor de Schücking, quem agiu decisivamente para tornar essa noção operativa e reconhecida na sociologia. .

A terceira publicação de Williams, Drama in Performance, realizada em 1954, revisada e ampliada em 1968, mantém a tendência de projetar, como interlocutores preferenciais, os estudantes e tutores do WEA. Pois, “o livro é uma antologia de textos básicos organizada na intenção de apresentar a história do teatro ocidental a estudantes que, de um modo geral, tinham sido excluídos, por razões políticas e econômicas, dessa experiência cultural” (Costa, 2002Costa, Iná Camargo da. (2002). Tragédia no século XX. In: Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, p. 7-22.: 10). Iná Camargo da Costa registra que o livro se apresenta, agora, como experimento crítico ao método do close reading que vicejava em Cambridge.

Como realizado com tutoriais de filmes no contexto da WEA (Paixão & Trevisan, 2020Paixão, Alexandro Henrique & Trevisan, Anderson Ricardo. (2020). Raymond Williams, cultura e extensão universitária. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, 28, p. 1-23.), o livro propõe um método de análise dramática centrado na “discussão de certas ideias gerais nas relações entre texto e cena no teatro” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 35), a partir de exemplos de peças teatrais que demonstram a ampla “variedade histórica das possibilidades cênicas” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 35). A relação entre um texto dramático e sua representação, questão fundamental da teoria do teatro, é enunciada aqui de maneira ainda mais explícita.

Também Luiz Fernando Ramos, no prefácio à edição brasileira, considera que Drama em Cena, embora tenha pretensões modestas, é resposta mais desenvolvida do que os estudos anteriores de Williams, apontando “a dialética entre convenções estáveis e as novas formas que a modificam” (Ramos, 2010Ramos, Luiz Fernando. (2010). Prefácio. In: Williams, Raymond. Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify , p. 7-16.: 9). Ramos argumenta que a tensão entre o texto e a cena reapresenta (em nova perspectiva) a oposição aristotélica entre mythos (a trama ou ação, com outros elementos associados) e opsis (espetáculo). De fato, no final de sua introdução ao livro, Williams recrimina a tendência majoritária dos estudos que tendem a separar texto e cena. Embora drama possa ser um termo referente tanto à literatura quanto à cena, ele é “não um em sacrifício do outro, mas um por causa do outro” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 38).

Para o autor, dominar as circunstâncias cênicas apenas em linhas gerais revela-se insuficiente: “[…] também precisamos conhecer, tão detalhadamente quanto pudermos, a prática possibilitada por essas condições: a representação teatral como uma realidade, não como uma explicação generalizada” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 36). Isso significa levar em consideração também as condições físicas, culturais e políticas específicas da prática teatral, exercício fundamental à premissa do materialismo cultural de Williams.

Na introdução à edição inglesa de 1991, Graham Holderness destaca que cada capítulo do livro examina uma configuração particular das circunstâncias cênicas e não um dramaturgo individualizado ou texto em específico. Diferentemente da publicação anterior, aqui “[p]raticamente não há foco no dramaturgo, e não se projeta aí nenhuma visão ideológica da totalidade de uma cultura” (Holderness, 2010Holderness, Graham. (2010). Introdução à edição inglesa de 1991. In: Williams, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify , p. 17-34.: 21-22). A relação entre texto e encenação articula a convenção social, a crença, a ideologia e as condições materiais de produção teatral, servindo de mediadora entre essas categorias. A análise do texto e das formas históricas de organização teatral e dramática em seu contexto (isto é, dentro de certas condições materiais de representação), significa enfim compreender o drama como um processo material de produção cultural.

É apenas na conclusão da referida obra que o intelectual galês se ocupa de fornecer alguma definição de “drama”. Ele registra que a origem grega da palavra, em afinidade com um dos sentidos do termo na língua inglesa, pode ser definida como ação. Embora isso seja verdade, recomenda expressamente que a ação não deve ser usada como uma essência dramática ou sinônimo de determinado tipo de representação teatral. A ação é concepção literária, modo de criação literária e forma de comunicação que, por causa da grande diversidade dentro da tradição dramática, “se refere, em diferentes épocas e lugares, a métodos diferentes e que devem ser distinguidos” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 216). Para ele,

o teatro é comumente feito de quatro elementos: fala (em seu sentido mais geral, englobando, por vezes, o canto e o recitativo, bem como o diálogo e a conversação); movimento (abarcando o gesto, dança, representação física e evento encenado); espaço cênico (englobando cena, cenário, figurino e efeitos de luz); e som (diferente do uso da voz humana - música, “efeitos sonoros”, por exemplo). Todos esses elementos podem aparecer na representação; mas a variação acontece na relação desses elementos com a obra literária, o texto (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 218).

As peças analisadas no livro ilustram essa perspectiva, pois demonstram a existência de quatro tipos distintos de ação dramática: “fala encenada”; “encenação visual”; “atividade” e “comportamento”. Na “fala encenada”, a forma literária determina a ação exata, os diálogos, o movimento, o espaço cênico e o som, de acordo com as convenções estabelecidas, de modo que a “ação é necessariamente a unidade de fala em movimento” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 216). Assim, “[…] o dramaturgo não só está escrevendo uma obra literária, mas também, pelo uso de convenções precisas, escrevendo a representação cênica, que, aqui, é a comunicação física de uma obra que, já no texto, é teatralmente completa” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 218).

Na “representação visual”, há uma ação prescrita com exatidão pela forma literária, que ocorre separadamente e não diretamente acompanhada pela fala. Pode também preceder todo o espetáculo, acompanhar a fala do narrador ou ainda orientar uma performance já definida por fala anterior. Há, aqui, ampla possibilidade de relação entre texto e cena, segundo as convenções escolhidas, que podem oscilar entre a prescrição exata da cena, feita pelo texto, à descrição geral de um efeito desejado cuja realização cabe à encenação (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .).

A “atividade” é o tipo de ação dramática preponderante no contexto da publicação de Williams, em que não há unidade clara entre fala e movimento, mas precedência do último sobre o primeiro. A ação física assume assim o interesse central e o controle do espetáculo, subordinando as palavras que existem principalmente para gerar, explicar ou pontuar tais acontecimentos. Nessa configuração o dramaturgo não antevê o desenvolvimento cênico e cada versão da peça pode apresentar variações significativas.

Por fim, “comportamento” é o tipo de ação “em que as palavras e o movimento não têm nenhuma relação necessária, mas derivam, como se fossem separados, de uma ideia de ‘comportamento provável’ nas circunstâncias apresentadas” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 217). Embora palavras e movimento frequentemente transmitam com o mesmo peso a ideia dramática, há separação entre fala e gestual. Nas palavras de Williams “[a] fala é prescrita, mas o movimento dos atores em cena, o ‘cenário’ e, portanto, a ação como um todo devem ser deduzidos, mesmo quando as circunstâncias de montagem são conhecidas” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 217). Dada a inexistência de orientação precisa sobre as palavras do texto e o método de dizê-las a “encenação será, inevitavelmente, uma ‘interpretação’ do texto, e por essa razão estará sujeita a uma grande variação” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 219). De forma semelhante, os movimentos e espaços são caracterizados com generalidade, o que confere liberdade à encenação, que “[…] é baseada menos no texto do que na reação ao texto” (Williams, 2010Williams, Raymond. (2010). Drama em cena . São Paulo: Cosac Naify .: 219).

Nessa breve retrospectiva das primeiras análises de Williams sobre o drama, foi possível perceber a grande transformação dos argumentos do autor. As influências conservadoras, estáticas e universalistas iniciais deram lugar a orientações críticas e dialéticas sobre convenções e a relação entre texto, cena e contexto da produção teatral (as condições materiais de representação), tratados com semelhante importância. Essa orientação será mantida nas publicações subsequentes, como poderemos acompanhar na próxima seção.

SOBRE CONVENÇÕES E SENTIMENTOS

Em interessante artigo, Paul Filmer (2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.) afirma que estrutura de sentimento “continua a ser a chave metodológica mais apropriada para a elucidação crítica das práticas artísticas através das quais as obras de arte se relacionam sociologicamente aos processos sociais gerais” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 374). O termo, criado para se opor ao cientificismo redutor da sociologia normativa e ao determinismo simplista da relação base e superestrutura4 4 Em uma das mais concisas explanações dessa orientação, argumenta o autor: “Temos que reavaliar a ‘determinação’ para a fixação de limites e o exercício de pressões, afastando-a de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Temos de reavaliar a ‘superestrutura’ em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar a ‘base’, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico” (Williams, 2011b: 47). , forneceu um caminho alternativo às dicotomias redutoras dos discursos sobre cultura. Com isso, permitiu enunciar oposições como “teoria e empirismo, materialismo e idealismo, determinismo e autonomia, estrutura e ação, objetivismo e subjetivismo, estruturalismo e culturalismo, cultura popular e de minorias” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 374), sem se enredar nelas.

Filmer identifica três momentos na história da estrutura de sentimento: o primeiro, de formulações iniciais e aplicações “prematuras”, em Preface to Film (em coautoria com Michael Orrom), de 1954, e em The Long Revolution (1961), que revelavam aspectos experimentais e de hesitação (apropriadas para captar o caráter emergente das estruturas de sentimento, em nível preliminar de consciência). O segundo momento, de refinamento e fortalecimento, tem especial atenção à literatura, em contraste com o estruturalismo genético da sociologia, da literatura de Lucien Goldmann. Por fim, o terceiro momento é o de “consolidação e revisão do projeto, particularmente em relação ao conceito de hegemonia de Gramsci” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 374).

Em um dos textos em que trata diretamente do tema, Williams (2011bWilliams, Raymond. (2011b). Base e Superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e materialismo . São Paulo: Editora Unesp , p. 43-68.) reconhece a influência de Gramsci para seu pensamento e destaca a relevância fundamental da noção de hegemonia, pela atenção à experiência social vivida, pela dimensão totalizante e não dicotômica e pela ênfase no processo de dominação. Temeroso de que o conceito caísse em emprego estático e determinista, o intelectual galês propôs um modelo alternativo. Este é mais próximo de sua noção de estrutura de sentimento, que salienta a complexidade e dinâmica entre a cultura dominante e as formas alternativas, opositoras, residuais e emergentes5 5 Williams considera que nenhuma cultura dominante poderá esgotar as possibilidades humanas. Desta constatação derivam suas noções de culturas “alternativas” (novas formas de estruturação do vivido) e “opositoras” (com intenção de transformação do status quo), bem como de cultura “residual” (proveniente de formações sociais anteriores) e “emergente” (com base em significados, valores, práticas, sentidos e experiências inovadoras) (Williams, 2011b). .

A retrospectiva de Filmer obscurece, novamente, a importância dos estudos dramáticos de Williams, em pleno vigor nos períodos apontados pelo pesquisador. Na introdução da obra revista Drama From Ibsen to Brecht6 6 Por questões de espaço não será possível incluir aqui uma apreciação de Tragédia moderna, importante obra de Williams, publicada em 1966. Derivada de suas aulas em Cambridge, que resultaram na reescrita de seu primeiro livro, com enfoque predominantemente ideológico (Costa, 2002). , publicada em 1968, Williams se ocupa justamente de apresentar as noções de convenção e de estrutura de sentimento. Do primeiro termo destaca a ambiguidade, visto que convenção significa tanto um consentimento tácito, quanto padrões e regras formais aceitos (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.). O sentido crítico do termo, associado à legitimidade do artista de desrespeitar, em favor de sua plena expressão pessoal, as regras impostas por outros, emergiu, segundo Williams, em meio ao movimento romântico. Porém, sobrevive ainda hoje quando o termo é empregado para explicitar algo antiquado, limitante ou meramente formal. Ciente de que um artista abandona ou rompe uma convenção para, inevitavelmente, propor outra, Williams atentou para a tensão na relação entre tradição (convenção como consentimento tácito) e convenção como método dramático, forma nova ou redescoberta de meios técnicos (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.). É nesse sentido que o autor definiu convenção como “os termos em que autor, ator e público concordam em partilhar, para que a performance possa se desenrolar” (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 13).

O caráter dinâmico dos gêneros artísticos e a constante transformação dos métodos e convenções foram, evidentemente, enfatizados na obra, com a sensibilidade de deixar claro que essa percepção não implica, necessariamente, em uma análise unilinear evolutiva: “seria absurdo imaginar que nosso segmento contemporâneo do grande arco das possibilidades dramáticas, dado que o último, seria necessariamente o melhor” (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 16). Ainda assim, a tensão entre o “velho” e o “novo” aparece como dialética inerente à expressão artística e como o ponto exato em que as convenções tangenciam as estruturas de sentimento.

A primeira definição do conceito na referida obra é a seguinte:

É para explorar esse relacionamento essencial que eu uso o termo estrutura de sentimento. O que eu estou tentando descrever é a continuidade da experiência de uma obra em particular, através de sua forma particular, até o reconhecimento como uma forma geral e então a relação dessa forma geral com um período. Nós podemos olhar para essa continuidade primeiro de um modo mais geral. Tudo o que é vivo e produzido por uma dada comunidade em certo período é, nós hoje costumamos acreditar, essencialmente relacionado ainda que na prática, nos detalhes, isso não seja sempre fácil de perceber […] Relacionar uma obra de arte com qualquer parte deste todo pode, em graus variados, ser útil; mas é uma experiência comum na análise perceber que, quando se mede a obra em contraste com suas partes separadas ainda permanecem alguns elementos para os quais não existe contrapartida externa. É a isso, em primeiro lugar, que eu nomeio estrutura de sentimento. É firme e definido como “estrutura” sugere, ao mesmo tempo que está afundado nos mais profundos e menos tangíveis elementos de nossa experiência. É um modo de responder a um mundo particular que na prática não é sentido como modo entre outros - um “modo” consciente - mas é, na experiência, o único modo possível. Seus meios, seus elementos, não são proposições ou técnicas, eles estão incorporados, são sentimentos relacionados (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 17-18).

Williams argumenta que as estruturas de sentimento são mais perceptíveis na arte e no pensamento de períodos passados, pois no momento de sua emergência, tais convenções, valores e sentidos são mais difíceis de serem precisados e compreendidos. Quando a estrutura de sentimento for absorvida, suas características saltam aos olhos e o que antes constituía “uma estrutura viva, ainda não conhecida para ser partilhada, é agora uma estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e até generalizada” (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 18). Segundo o crítico galês, antes desse processo ocorrer, aqueles criadores, em que essa estrutura se encontrava em formação, tenderão a perceber essa experiência como muito singulares e como aquilo que os separa de outras pessoas, “embora o que realmente os separe seja o conjunto de formações, convenções e instituições recebidas, que já não satisfazem ou expressam seu mais profundo sentido da vida” (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 18). Assim, o que aparenta ser uma descoberta pessoal logo se torna “uma dispersão de descobertas pessoais na forma de trabalho de uma geração. O que isso significa, na prática, é a criação de novas convenções, novas formas” (Williams, 1968: 19).

A noção teórica almejada pelo autor visava superar a lógica determinista da relação de base-superestrutura e do reflexo, captar os processos dinâmicos e contraditórios da dimensão material e, ao mesmo tempo, questionar os usos reificados da cultura como algo “posterior”, “menos importante” ou desconectada das formas produtivas. Seu famoso artigo, “Culture is Ordinary”, de 1958, já salientava os aspectos conhecidos e “tradicionais” da cultura, bem como sua dimensão inovadora: “[u]samos a palavra cultura nesses dois sentidos: para designar todo um modo de vida - os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado - os processos especiais de descoberta e esforço criativo” (Williams, 1989Williams, Raymond. (1989). Resources of Hope. London: Verso.: 4), insistindo na conjunção dessas noções. A cultura é, portanto, um local de luta política, simbólica, sensível e material, que permite a manifestação de fenômenos emergentes, residuais e hegemônicos sem deixar de ser “comum”.

Em afinidade com essa orientação, o conceito de estrutura de sentimento articula a relação dinâmica entre experiência, consciência e linguagem, como formalizada e formante na arte, nas instituições e nas tradições (Williams, 1977). Na definição de Cevasco, o conceito descreve “como nossas práticas sociais e hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e organização socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido” (Cevasco 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 97).

Para Williams,

é nesse aspecto, finalmente, que vejo a utilidade da estrutura de sentimento como um termo crítico. Ele dirige nossa atenção, de maneira prática, para um tipo de análise que está diretamente preocupada com formas particulares e com elementos de formas gerais. Podemos começar, localmente, com a análise direta do que é ainda chamada de crítica prática: para descobrir uma estrutura de sentimento de uma peça em particular. Essa estrutura é sempre uma experiência à qual nós podemos responder diretamente. Mas é também uma experiência comunicada de forma particular, por meio de convenções particulares […] não se trata de aplicar uma forma externa, e suas regras, a uma peça particular; trata-se de como uma experiência e suas formas de comunicação se relacionam, por um critério primário interno […] Lentamente, o que emerge é muito mais amplo do que uma obra particular: é um problema da forma, mas também e crucialmente um problema de experiência, para muitos dramaturgos, para um período e para períodos posteriores. Em qualquer análise real as relações são sempre muito difíceis de sustentar, mas há a possibilidade, a que estou especialmente testando nesse estudo do drama moderno, de conexões substanciais entre as formas mais particulares e as mais gerais. O que a análise frequentemente mostra é uma mudança no método dramático, mas o ponto de meu argumento, por meio da relação das convenções e estruturas de sentimento, é que nós podemos olhar para métodos dramáticos por meio de uma definição técnica e ainda assim saber, em detalhe, que o que está sendo definido é mais que técnica: é, efetivamente, a forma prática de descrever essas mudanças na experiência - as respostas e sua comunicação; os temas e as formas - que fazem o drama, em si e como história, importante (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.: 20).

A análise madura do intelectual galês sempre considerou a arte como uma atividade na sociedade, que não deve ser separada de outras práticas e do processo social geral. Isso significa tratar a relação entre a produção artística e sua recepção como processo ativo e sujeito a convenções “elas mesmas, formas (em transformação) de organização social e de relacionamento, algo radicalmente distinto da produção e consumo de um objeto” (Williams, 2011bWilliams, Raymond. (2011b). Base e Superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e materialismo . São Paulo: Editora Unesp , p. 43-68.: 66).

CONCLUSÃO: ALTERIDADE E TRANSFORMAÇÃO

Em “Drama em uma sociedade dramatizada” pode-se ler a seguinte passagem:

As pessoas me perguntam com frequência por que, sendo especializado em literatura, especificamente em drama, construindo uma carreira comum escrevendo e ensinando história e análise do drama, eu me voltei - me voltei - para o que elas chamariam de sociologia […]. Aprendi com a análise do drama algo que me pareceu eficaz não apenas como uma maneira de ver certos aspectos da sociedade, mas também como uma forma de chegar a algumas das convenções fundamentais que reunimos como a própria sociedade. Estas, por sua vez, tornam novamente bastante ativos alguns dos problemas do drama. Foi olhando para ambos os lados, para o palco e para o texto, e para uma sociedade ativa e encenada neles, que pensei ter vislumbrado o significado do cômodo fechado - o cômodo no palco, e a nova metáfora da quarta parede - como um fato dramático e ao mesmo tempo social (Williams, 2014aWilliams, Raymond. (2014a). Drama em uma sociedade dramatizada. In: A produção social da escrita. São Paulo: Editora Unesp , p. 13-26.: 24-25, grifos do original).

Embora desembocando em uma estrutura de sentimento específica, do naturalismo no teatro, a citação acima ilustra bem o modus operandi da sociologia dramática de Williams. Se relembramos aqui que a proposta do materialismo cultural de Williams tem por base uma teoria da cultura como processo produtivo tanto material quanto social, incluindo as práticas específicas, “as artes”, e os usos sociais de meios materiais de produção “da linguagem como consciência prática às tecnologias específicas da escrita e da forma da escrita, passando pelos sistemas eletrônicos e mecânicos de comunicação” (Williams apud Cevasco, 2001Cevasco, Maria Elisa. (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra.: 116-17), torna-se fácil perceber a contribuição da longa tradição do drama para a teoria de Williams.

Como se vê o mérito principal dessa abordagem está em sustentar a relação inextirpável entre linguagem, contexto social e condições materiais de possibilidade. Texto, cena, suas relações, convenções e condições materiais de produção constituíram elementos centrais para o desenvolvimento do materialismo cultural de Williams, capaz de articular dicotomias e apresentar abertura às tensões e sensibilidades dominantes, residuais e emergentes. Nesse ponto o estudo do drama apresenta peculiar complexidade, seja pela notável transformação das convenções e notações, pela convivência, em um mesmo período e sociedade, de estruturas de sentimento alternativas (Williams, 1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press.). Ou mesmo pela tensão singular entre texto e cena, e respectivamente, entre todo o conjunto de linguagens, recursos e sujeitos, derivado das condições e realidades de cada configuração teatral específica.

Nos propusemos aqui, por meio da revisão de alguns dos textos do autor sobre teatro, demonstrar como o estudo do drama consistiu num ambiente peculiar para o desenvolvimento e amadurecimento da noção de estrutura de sentimento e, em decorrência, para a própria sociologia de Williams. Cabe agora, por fim, apenas salientar a relevância do conceito para captar os elementos culturais emergentes e seu potencial crítico.

No artigo já mencionado, Paul Filmer salienta a característica de Williams em conferir “atenção aos detalhes das obras de arte em si, tanto quanto às suas relações reflexivas com os contextos socioculturais em que são produzidas e respondidas” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 374). O estudioso destaca dois critérios da noção de estrutura de sentimento que julga centrais: a alteridade e a possibilidade. Segundo ele, a alteridade é uma experiência de grupos sociais e culturais que é desarticulada através da exclusão realizada pelas estruturas e instituições dominantes. Já a possibilidade “é o sentido de futuro como a mudança na ordem das relações sociais existentes […] é uma possibilidade por causa da experiência social reflexiva” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 375). Filmer sustenta que o conceito de estruturas de sentimento é evidência “de que essas reflexões estão se encaminhando para a mudança e são a possibilidade de desenvolver condições para a legitimidade e significado das alteridades da ordem estabelecida” (Filmer, 2009Filmer, Paul. (2009). A estrutura do sentimento e das formas socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de Sociologia, 14/27, p. 371-396.: 375).

No final do conhecido artigo “Você é marxista, não é?”, Williams (2015Williams, Raymond. (2015). Você é marxista, não é? In: Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. São Paulo: Editora Unesp , p. 97-113.), após promover análise da conjuntura história do momento e enfatizar a importância da cultura para a transformação da sociedade capitalista, frisa ser fundamental captar e demonstrar as conexões entre as formações econômicas e políticas, culturais e educacionais. Especialmente, entre as formações de sentimento e relacionamento que se apresentam como recursos imediatos em qualquer luta pelo sentido da vida. Se em nossa sociedade dramatizada (Williams, 2014Williams, Raymond. (2014a). Drama em uma sociedade dramatizada. In: A produção social da escrita. São Paulo: Editora Unesp , p. 13-26.) o drama, cada vez mais complexo, já não se limita ao palco (e, possivelmente se apresente, como sinalizou o autor, com maior vigor fora dele), é fundamental que possamos contribuir para tornar tais elementos de alteridade e de transformação, emergentes nessas diversas expressões culturais, de formações sentidas em relacionamentos socialmente transformadores. Ser um “sociólogo do teatro”, como o título do presente artigo provocativamente questiona, agora aparece não como uma especialidade redutora, mas como processo revitalizador da sociologia.

REFERÊNCIAS

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  • Williams, Raymond. (2015). Você é marxista, não é? In: Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. São Paulo: Editora Unesp , p. 97-113.
  • 1
    A tradução desta e das demais citações de obras sem versão em português foram realizadas por mim.
  • 2
    Para maiores detalhes dessa análise, ver Williams (1969Williams, Raymond. (1969). Drama from Ibsen to Brecht. New York: Oxford University Press., 2002Williams, Raymond. (2002). Tragédia moderna . São Paulo: Cosac Naify ., 2011aWilliams, Raymond. (2011a). O ambiente social e o ambiente teatral: o caso do naturalismo inglês. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, p. 169-200.).
  • 3
    Em um interessante paper, apresentado no 41º Encontro Anual da ANPOCS, Alexandro Paixão (2017Paixão, Alexandro Henrique. (2017). Raymond Williams: história intelectual inglesa, cultura e educação de adultos no pós-guerra. In: Encontro Anual da ANPOCS, 41, Caxambu. Anais […]. Caxambu, 2017, p. 1-30. GT15: Intelectuais, democracia e dilemas contemporâneos.) registra que o sociólogo alemão, Levin Ludwig Schücking, empregou em 1929 o termo “estrutura de sentimento” para referir-se a características, ideias, sentimentos e hábitos da família puritana. Porém, foi Raymond Williams, leitor de Schücking, quem agiu decisivamente para tornar essa noção operativa e reconhecida na sociologia.
  • 4
    Em uma das mais concisas explanações dessa orientação, argumenta o autor: “Temos que reavaliar a ‘determinação’ para a fixação de limites e o exercício de pressões, afastando-a de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Temos de reavaliar a ‘superestrutura’ em direção a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido, reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar a ‘base’, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico” (Williams, 2011bWilliams, Raymond. (2011b). Base e Superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e materialismo . São Paulo: Editora Unesp , p. 43-68.: 47).
  • 5
    Williams considera que nenhuma cultura dominante poderá esgotar as possibilidades humanas. Desta constatação derivam suas noções de culturas “alternativas” (novas formas de estruturação do vivido) e “opositoras” (com intenção de transformação do status quo), bem como de cultura “residual” (proveniente de formações sociais anteriores) e “emergente” (com base em significados, valores, práticas, sentidos e experiências inovadoras) (Williams, 2011bWilliams, Raymond. (2011b). Base e Superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e materialismo . São Paulo: Editora Unesp , p. 43-68.).
  • 6
    Por questões de espaço não será possível incluir aqui uma apreciação de Tragédia moderna, importante obra de Williams, publicada em 1966. Derivada de suas aulas em Cambridge, que resultaram na reescrita de seu primeiro livro, com enfoque predominantemente ideológico (Costa, 2002Costa, Iná Camargo da. (2002). Tragédia no século XX. In: Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, p. 7-22.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2022
  • Revisado
    22 Ago 2022
  • Aceito
    22 Set 2022
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