Acessibilidade / Reportar erro

O MATERIALISMO CULTURAL DE RAYMOND WILLIAMS:A PROPÓSITO DA PUBLICAÇÃO DE CULTURA E MATERIALISMO NA FRANÇA* * Este artigo foi traduzido por Rodrigo Czajka, graduado em Filosofia (2001) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre (2003) e doutor (2009) em Sociolo gia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 2009 e 2011 foi professor adjunto de Sociologia vinculado à Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal dos Vales do Jequitin honha e Mucuri (UFVJM), campus Diamantina (MG). Entre os anos de 2011 e 2015 foi professor adjunto do Departamento de Sociolo gia e Antropologia e docente/pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus Marília (SP). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Sociologia da Cultura, Pensamento Social Brasileiro e Sociologia dos Intelectuais. Atua nos seguintes temas: cultura e sociedade, indústria cultural, intelectuais, esquerdas, teoria social marxista, resistência cultural, ditadura militar e redemocratização no Brasil.

RAYMOND WILLIAMS’ CULTURAL MATERIALISM: APROPOS THE PUBLICATION OF CULTURE AND MATERIALISM IN FRANCE

Resumo

No ano de 2009, a editora Les Prairies Ordinaires publicou uma coletânea de ensaios de Raymond Williams intitulada Culture et matérialisme, dois anos depois de a Éditions Amsterdam publicar Identités et cultures : politiques des cultural studies, de autoria de Stuart Hall. Foi a oportunidade de Williams, outro “pai fundador” dos cultural studies, ser traduzido para a língua francesa. Na apresentação da vida e obra desse importante intelectual do pensamento crítico do século XX, insisto na articulação realizada por Raymond Williams entre certa tradição marxista continental historicista e a tradição romântica de crítica à modernidade industrial. Essa é, sem dúvida, a forma mais segura de demonstrar a atualidade do pensamento do crítico galês - algo realmente significativo, num momento em que uma crítica radical ao capitalismo e os temas da ecologia política se reafirmam mais uma vez na arena pública, cuja relevância e urgência são óbvias. Por esse feito, é que eu saudava a iniciativa editorial de Les Prairies Ordinaires, há 13 anos.

Palavras-chave:
Materialismo cultural; Romantismo revolucionário; Anticapitalismo; Marxismo; Crítica cultural

Abstract

In 2009, the publishing house Les Prairies Ordinaires published a collection of essays by Raymond Williams entitled Culture et matérialisme, two years after Éditions Amsterdam published Stuart Hall’s Identités et Cultures : Politiques des Cultural Studies. It was the opportunity for Williams, another “founding father” of cultural studies, to be translated into French. When presenting the life and work of this important intellectual of 20th century critical thought, I emphasize the articulation Raymond Williams made between a certain historicist continental Marxist tradition and the Romantic criticism to industrial modernity. There is no surest way to demonstrate the actuality of the Welsh critic’s thought-something quite significant at a time when a radical critique of capitalism and the themes of political ecology are once again emerging in the public arena, the relevance and urgency of which are obvious. This is why I welcomed the editorial initiative of Les Prairies Ordinaires 13 years ago.

Keywords:
Cultural materialism; Revolutionary romanticism; Anti-capitalism; Marxism; Cultural criticism

Praticamente desconhecido na França, senão por meio de alguns raros artigos publicados em revistas de circulação restrita, o fundador dos cultural studies e da New Left Review, Raymond Williams (1921-1988), foi uma das figuras mais influentes e inovadoras da cultura crítica inglesa do século XX. Demorou meio século após a publicação de seus primeiros livros de maior repercussão para que ele, finalmente, fosse traduzido para o francês. A que se deve tanto atraso? Porventura o Canal da Mancha é um abismo intransponível? É uma tendência a França se enclausurar em esplêndido isolamento? Esse retardo, assim como outros tantos que ainda hoje testemunhamos, certamente mereceria uma pesquisa em conformidade com os métodos crítico-analíticos dos estudos culturais. Portanto, só temos a agradecer à Les Prairies Ordinaires e aos dois diretores da coleção Penser/Croiser, François Cusset e Rémy Toulouse, por terem tomado a iniciativa de publicar essa primeira coleção de ensaios de Williams e por permitirem ao público de língua francesa descobrir um dos mais importantes intelectuais da esquerda inglesa, cujas obras há muito são lidas e discutidas, notadamente nos Estados Unidos e na América Latina.

Filho de um ferroviário no País de Gales, Raymond Williams sempre foi, assim como seu colega Pierre Bourdieu (1930-2002) na França, uma espécie de outsider em meio à elite acadêmica inglesa. Sua dupla lealdade, a de classe (filho de uma família da classe trabalhadora) e a cultural (de origem galesa), foi o fio condutor de sua trajetória intelectual. Apesar de Williams ter sido estudante na prestigiosa Universidade de Cambridge, quando aderiu ao partido comunista inglês, no fim da década de 1930, ele já estava à margem do establishment universitário. Nessa época, seus estudos foram interrompidos em virtude da irrupção da Segunda Guerra Mundial, para a qual foi arregimentado pelo exército inglês como piloto de tanque militar. Com o fim da guerra e de volta à atividade acadêmica, optou por deixar Cambridge - bem como o partido comunista - para lecionar com seu amigo Edward Palmer Thompson (1924-1993) na Worker´s Educational Association, uma rede de extensão universitária de educação de adultos ligada ao movimento trabalhista inglês. Retornou a Cambridge como docente muitos anos depois, mais precisamente em 1961.

Podemos considerar Raymond Williams, assim como Stuart Hall (1932-2014) e outros colegas do Center for Contemporary Cultural Studies, sediado em Birmingham, o fundador dos estudos culturais na universidade de língua inglesa. Especialmente com seu livro Culture and Society, de 1958, Williams se tornou um dos expoentes nesse campo de pesquisa e conquistou importância política em virtude do seu inovador método de análise. Inspirados sobretudo no marxismo e na crítica social, os cultural studies analisam de forma integrada (e de maneira muito particularmente rica) a dimensão de classe e o fenômeno cultural, em sentido amplo do termo.

Assim como E. P. Thompson, John Saville (1916-2009), Raphael Samuel (1934-1996), entre outros intelectuais marxistas do fim da década de 1950, Williams rompeu com o Partido Comunista Inglês para, no início da década seguinte, com eles fundar a New Left Review - cuja redação foi pouco mais tarde chefiada pelo jovem marxista Perry Anderson (1938-). No decorrer da década de 1960, Williams descobriu e estudou com grande tenacidade o chamado “marxismo ocidental” de tendência historicista, em especial as obras de Antonio Gramsci (1891-1937), Georg Lukács (1885-1971) e Lucien Goldmann (1913-1970). Com exceção de Louis Althusser (1918-1990), cuja abordagem lhe parecia oposta a sua própria, sua obra se tornou a partir desse momento um elo entre a tradição da crítica cultural inglesa (romântica) e o chamado marxismo continental. Como um intelectual engajado, não ocultou suas convicções socialistas, tanto que em colaboração com E. P. Thompson publicou um documento anticapitalista de grande ressonância, o May Day Manifesto (1968), que denunciava de modo categórico os mitos da modernização capitalista no fim daquela década:

Como modelo de mudança social, a modernização abrevia de forma brutal o desenvolvimento histórico da sociedade. Todo passado é compreendido como parte da sociedade “tradicional” e a modernização é um meio técnico para romper com o passado, mas sem criar um futuro. […] É um modelo tecnocrático de sociedade, não-conflitual e politicamente neutro, que dissolve problemas e conflitos sociais autênticos em abstrações da “revolução científica”, do “consenso” e da “produtividade (Williams, 1968Williams, Raymond. (1968). May day manifesto. London: Penguin.: 45).

Autor de romances, obras sociológicas, estudos marxistas de literatura, análises dos meios de comunicação e ensaios políticos, publicados ora pela Oxford University Press, ora pela New Left Review (que se tornou mais tarde a Edições Verso), Williams foi também um dos articuladores da Campanha pelo Desarmamento Nuclear (CND). Algumas de suas obras como Keywords: a vocabulary of culture and society (1976) e Marxism and literature (1977) fundamentaram a reflexão de várias gerações de intelectuais críticos, em ambos os lados do Atlântico. Sua influência foi considerável: basta recordar que no fim da década de 1970 haviam sido comercializados aproximadamente 750 mil exemplares de suas obras1 1 A respeito da recepção e da circulação das obras de Williams, consultar o interessante artigo de Labica (2010). . Como sublinha Jean-Jacques Lecercle em seu belo prefácio à edição francesa, Williams, ao contrário de muitos outros, nunca virou as costas e nunca negou seu compromisso socialista em defender os espoliados. Essa dimensão do compromisso político foi perdida de vista por parte dos cultural studies, que interpretou a contribuição marxista de Williams nos termos da “virada linguística”, pós-moderna ou pós-marxista, muitas vezes decantando a perspectiva crítica e anticapitalista de seus escritos.

A sensibilidade sociocultural de Williams também se reflete em seus romances, a maior parte deles ambientados no País de Gales, representando a classe trabalhadora. Esse é o caso dos três livros que compõem a trilogia galesa: Border country (1960), Second generation (1964) e The fight for Manod (1974). A dimensão romântica está particularmente presente em People of the black mountains (1989-1990), romance inacabado publicado em dois volumes pouco depois de seu falecimento e que narra episódios da vida do povo galês de sua região natal, as “montanhas negras”, desde o período Neolítico até o fim da Idade Média.

MATERIALISMO CULTURAL: UM “MEIO TERMO” ENTRE A TRADIÇÃO INGLESA DE CRÍTICA CULTURAL ROMÂNTICA E O MARXISMO?

O grande livro “inaugural” de Raymond Williams, Culture and society 1780-1950 (The Hogarth Press, 1958), é uma tentativa ambiciosa de resgate e reavaliação, numa perspectiva linear, da grande tradição inglesa de crítica cultural - romântica - da civilização capitalista/industrial, que se inicia em Coleridge e Wordsworth e segue até T. S. Eliot e F. R. Leavis, passando por William Cobbett, Thomas Carlyle, Matthew Arnold e William Morris. Esses escritores são muito diversos entre si, no entanto, partilham uma espécie de nostalgia de um passado sociocultural perdido da “velha Inglaterra” e uma feroz crítica da modernidade industrial burguesa e sua maquinaria comercial. Alguns desses autores eram profundamente conservadores, como Edmund Burke; outros se empenharam na luta pela defesa dos interesses dos trabalhadores, como foi o caso de Cobbett. E ainda havia aqueles que se colocavam na condição de verdadeiros revolucionários socialistas, tal qual William Morris. Entretanto, sem ignorar essas diferenças, o autor de Culture and society concentrou-se naquilo que eles tinham em comum, ou seja, a oposição radical à nova sociedade que havia emergido da revolução industrial.

Conforme observou com razão Jean-Jacques Lecercle, Williams nunca abandonou essas posições, ainda que ele próprio tenha modificado sua orientação e oferecido outras nuances em sua análise. Um exemplo dessa continuidade é a monografia que ele dedicou ao publicista romântico e democrata William Cobbett2 2 William Cobbett (1763-1835), jornalista e ensaísta, foi célebre polemista em seu tempo. Inicialmente um conservador, tornou-se por volta de 1804 - e se manterá assim até o fim de sua vida - um democrata radical e defensor da causa dos trabalhadores. : “se ele é a voz daquilo que se pode denominar de velha Inglaterra, ele é também, e concomitantemente, a voz de protesto contra o capital financeiro, o imperialismo e o Estado aristocrático. Ele é a voz de encorajamento à organização da classe operária” (Williams, 1983Williams, Raymond. (1983). Cobbett. London: Oxford University Press.: 56).

Em Culture and society, Williams aposta numa crítica abrangente do marxismo inglês, notadamente reducionista, dos anos 1930, do qual Christopher Caudwell foi uma das principais figuras. Entretanto, ele ainda aspira a “interação entre o romantismo e Marx, entre a ideia da cultura, que é a principal tradição inglesa, e a brilhante reavaliação dessa ideia de Marx”, um objetivo que lhe aparece como uma tarefa destinada ao futuro: “somos obrigados a concluir que a interação está até o presente momento longe de estar concluída” (Williams, 1971Williams, Raymond. (1971). Culture and society: 1870-1950. London: Penguin Books.: 280).

Na década de 1930, essa tradição inglesa de crítica à civilização mecanicista e ao seu espírito comercial mesquinho - em nome da comunidade orgânica do passado e da tradição cultural - foi representada por Frank Raymond Leavis (1895-1978), autor de Mass civilisation and minority culture (1930), e por sua influente revista de crítica literária, a Scrutiny. Embora rejeitando o conservadorismo e o elitismo cultural dessa corrente, Raymond Williams interessava-se pela sua dimensão crítica e pelo movimento de oposição à degradação mercantil da cultura. No entanto, pode-se definir sua posição político-cultural como um “leavisismo de esquerda”, como propõe Lecercle em seu prefácio? Em certa medida, isso não está totalmente errado, mas a referência parece um tanto limitada. Afinal, por que não defini-lo também como um discípulo de William Morris ou um “neocobbettista”? A fórmula proposta por Lecercle é ainda mais problemática à medida que Williams se distancia explicitamente das posturas elitistas de Leavis e da Scrutiny.

Lecercle utiliza outra expressão questionável para explicar a singularidade da obra de Williams: seria ela “um meio termo” entre o Cambridge English (a doutrina do departamento inglês da Universidade de Cambridge, associada aos nomes de F. R. Leavis e I. A. Richards) e o marxismo ortodoxo (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 17). Parece-me que o materialismo cultural de Williams não se constitui num “meio termo”, mas sim uma superação dialética dessa contradição, no sentido da Aufhebung marxo-hegeliana. Noutras palavras, uma negação/conservação dos dois termos e a passagem a um nível ulterior de análise. De fato, Williams não está ligado exclusivamente a Leavis ou a qualquer outro autor dessa corrente, mas vinculado, assim como E.P. Thompson, ao que se poderia chamar “marxismo romântico”. Evidentemente que essa classificação não aparece sob essa designação no conjunto de seus escritos, mas constatamos que a partir de 1958 uma necessidade de interação entre os dois termos foi suscitada3 3 Para uma discussão mais detalhada sobre a dimensão “romântica” de Raymond Williams, consultar o ensaio “Le courant romantique dans les sciences sociales en Angleterre: Edward P. Thompson et Raymond Williams” que redigi em coautoria com Robert Sayre, publicado em Löwy e Sayre (2010). Nota do tradutor: o ensaio tem uma primeira versão em português publicada pela Revista Crítica Marxista da Unicamp, n. 08, lançada em 1999. .

É interessante notar que tanto Thompson como Williams distanciaram-se da New Left Review no curso da década de 1960 e deixaram de partilhar das opções intelectuais e políticas dos seus novos editores, nesse caso, Perry Anderson e seus amigos. Um deles, Terry Eagleton (1943-), chegou a publicar um artigo em 1976 colocando em questão o marxismo de Williams, cujo método lhe pareceu “idealista”, porque, segundo próprio Eagleton, era demasiadamente influenciado por Leavis. Todavia, alguns anos mais tarde, ainda houve uma reaproximação de Williams com a revista New Left e o resultado do restabelecimento dos laços foi o projeto Politics and Letters (New Left Books, 1979), um livro de entrevistas com Williams, conduzidas por Perry Anderson e dois outros editores da revista, Anthony Barnett e Francis Mulhern. É a partir desse momento que Williams tornou-se, por assim dizer, uma ponte intelectual e política entre a “velha” e a “nova” New Left.

MARXISMO E ROMANTISMO

Um exemplo surpreendente da sua convicção, segundo aquela de que o marxismo deve ser capaz de incorporar a contribuição da crítica romântica, a meu ver, é um pequeno texto de sua autoria em 1980. Na verdade, um comentário de Williams sobre a tradução inglesa do meu livro sobre Lukács4 4 Nota do tradutor: Trata-se do livro Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires, publicado pela Presses Universitaires de France, no ano de 1979. A edição britânica, lançada no mesmo ano, teve a tradução de Patrick Camiller sob o título Georg Lukács: from romanticism to bolshevism e publicada pela New Left Books (hoje denominada Verso Books), de Londres. No Brasil o livro teve uma primeira edição em 1979, pela Livraria Editora Ciências Humanas (LECH), sob o título Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: a evolução política de Lucács (sic): 1909-1929, com tradução de Heloísa Helena Mello, Agostinho Ferreira Martins e Gildo Marçal Brandão. Em 1998, uma edição revisada foi produzida pela editora Cortez, tendo por base o texto da LECH, mas com novo título: A evolução política de Lukács: 1909-1929. . Embora seu julgamento seja bastante favorável - especialmente no que concerne à primeira seção do livro, que tenta analisar as origens românticas do jovem Lukács -, ele não esconde sua irritação diante do título da obra: Georg Lukács: From Romanticism to Bolshevism. Na verdade, o título não é o da edição original francesa, mas foi escolhido pelos meus amigos da New Left Books - seguramente, com o meu aceite. Esse título parece não levar em consideração o romantismo anticapitalista difuso do jovem Lukács como uma simples etapa preparatória e uma fase necessária de um caminho do intelectual húngaro até o marxismo e, posteriormente, o comunismo. No entanto, como salienta Williams, se os românticos na sua época denunciavam a burocracia estatal, a ligação entre o industrialismo e a “quantificação do pensamento”, bem como a falta de senso de comunidade na sociedade moderna, é pouco provável “no final da década de 1970 concluir que estes românticos estavam perdendo o seu tempo ou que não conseguiam apreender uma verdade simples e fundamental”. Ora, o socialismo moderno não pode ignorar as críticas “contra o Estado centralizado, o industrialismo e a ordem social que, de modo informal, podem ser denominadas de românticas”. A recusa dessas questões - e de outras análogas sobre a economia do “crescimento, sobre as liberdades individuais, sobre a democracia como processo social - concebendo o “romântico” (Williams, 1980Williams, Raymond. (1980). What is anticapitalism? Review of Georg Lukács: from Romanticism to Bolshevism, by Michael Löwy. New Society, 24 jan.: 189-190) no sentido depreciativo de irrealista, vago, impraticável, é uma das causas da degradação da teoria e da prática do socialismo no século XX. Ora, a principal obra de Lukács, História e consciência de classe (1923), e o seu conceito de reificação não foram o resultado da integração pelo marxismo à chamada crítica “romântica” da consciência quantitativa e instrumental? Essa questão estava no centro da “batalha dos marxismos” (struggle of marxisms), que se desdobrou com o fim da era estalinista e que alguns tentaram rejeitá-la como idealista e romântica, ou ainda - segundo uma nova fraseologia depreciativa - como humanista e moralista5 5 Para mais detalhes, consultar Williams (1980). De todo modo, a conclusão da crítica de Williams a respeito do meu livro é que ele tem muitas qualidades, sendo a principal “que pode ser lido contra algumas das suas formulações imediatas” (Williams, 1980: 189-190). Também porque a crítica de Williams me obrigou a pensar, em novos termos, sobre a relação entre o marxismo e o romantismo a partir de então. .

A coletânea de ensaios de Williams publicada em língua francesa sob o título Culture et matérialisme não é uma tradução integral do livro homônimo publicado em Londres. Vários ensaios da edição britânica, incluindo um estudo fascinante de Lucien Goldmann, não estão aqui incluídos. Trata-se antes de uma coleção de publicações de várias fontes, extraídas, sobretudo, de Culture and materialism (1980) e Politics of Modernism: against the new conformists (1989), dois livros publicados pela editora Verso, em Londres. A seleção e a omissão dos ensaios publicados agora na França podem ser criticadas, mas como um todo dá ao menos uma ideia parcial da riqueza da obra e das reflexões de Raymond Williams. As questões analisadas vão desde a teoria marxista das superestruturas até o papel prejudicial da publicidade, passando pelas vanguardas artísticas, o darwinismo social e a análise dos meios de comunicação. Como sublinha Lecercle no seu interessante prefácio, esses ensaios, manifestações de um marxismo vivo, não envelheceram nem um pouco e nos falam sobre nossa própria conjuntura. Pode-se dizer que o conceito mais inovador de Williams, estrutura de sentimento (structure of feelings) - que pode ser definida como um conjunto de sensibilidades e valores ativa e materialmente vividos num processo de transformação permanente - transcende dialeticamente a oposição entre experiência individual e apreensão coletiva do mundo. Um exemplo é o impressionante método do autor: “hibridação esplendorosa da crítica literária e da análise cultural marxista” (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 24).

POLÍTICA DA VANGUARDA E O RETORNO NO SENTIDO ALÉM DA ORDEM SOCIAL EXISTENTE

Alguns dos textos publicados na coletânea atestam, de forma modificada, a permanência e a simpatia do autor pela crítica romântica, notadamente em suas manifestações modernas. O problema é abordado num artigo de 1985 sobre as origens do modernismo, em que ele compara o protesto romântico contra a solidão da multidão nas grandes cidades modernas - de Wordsworth a Elizabeth Gaskell e Charles Dickens - à crítica feroz de Engels, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1844), sobretudo no que tange à indiferença brutal, ao egoísmo mesquinho e à desintegração da humanidade em mônadas isoladas, princípio fundamental das relações sociais do mundo burguês. Williams, por outro lado, identifica essa mesma desolação e inquietude em escritores e poetas modernistas, como T. S. Eliot, um dos seus autores favoritos, que faz menção a culturas passadas ou não ocidentais contra o mundo moderno, isto é, contra a sociedade burguesa.

Esse problema foi abordado, de forma muito mais precisa, num brilhante ensaio de 1988 - um de seus últimos escritos, redigidos pouco antes de seu falecimento - sobre “a política das vanguardas”. Williams diferencia na corrente modernista, em geral, e nas vanguardas político-artísticas, em particular, duas tendências opostas que vão além da denúncia da ideologia burguesa, do academicismo e da religião: (i) aqueles que como os futuristas celebram a velocidade, a máquina, os centros urbanos, a guerra e (ii) aqueles que, como os simbolistas, expressionistas ou surrealistas, são herdeiros do medievalismo romântico e nutrem interesse pelas artes primitivas e não ocidentais, realizando uma espécie de retorno no sentido além da ordem social existente. Enquanto os primeiros - salvo Maiakovski na Rússia - se aliaram ao fascismo, os segundos fizeram escolhas políticas muito diversas. Um misto de crítica aristocrática (a exemplo do culto ao gênio artístico com verdadeira nobreza) e crítica socialista à burguesia (como a oposição que fizeram à produção artística submetida unicamente ao comércio e aos lucros com as obras), a variante “neorromântica” da vanguarda valoriza o reino indomado do irracional e do inconsciente. Os resultados políticos dessa postura são múltiplos, mas na grande maioria dos casos acabam se aproximando das tendências anarquistas, do socialismo revolucionário ou do comunismo. É caso exemplar dos simbolistas, dos dadaístas, dos surrealistas e de uma parte dos expressionistas - ou ainda alguns casos mais particulares, como Gottfried Benn, que acabam cerrando as fileiras do nazismo. Por outro lado, sabemos que o Terceiro Reich condenou em blocos diferentes correntes modernistas, acusando-as de Kulturbolchevismus, e que os bolcheviques na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), por sua vez, também os desertaram.

Williams estava interessado também, evidentemente, nas manifestações da vanguarda literária na Grã-Bretanha, sobretudo na forma como um tipo de expressionismo foi representado na produção de Auden e Isherwood. Um modernismo de direita, por vezes com conotação fascista, representado, segundo Williams, por Yeats, Wyndham Levis e Ezra Pound. O caso de T. S. Eliot, o principal e mais influente desses poetas modernistas, é mais complexo: por um lado, exibia traços de elitismo e tradicionalismo, por outro, mostrava-se “efetivamente subversivo em relação a uma intolerável ordem cultural e social burguesas” (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 157).

Esse ensaio apaixonante, ainda que com lacunas e incompleto - Williams não parece ter um conhecimento detalhado sobre o engajamento político radical dos surrealistas do qual ele apenas retém a “resistência ativa e desintegradora contra o fascismo” (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 158) -, pode ser considerado uma continuação da análise sobre as vanguardas iniciada com Culture and society, sobretudo no que concerne à riqueza e às ambiguidades da crítica cultural antiburguesa de inspiração romântica. Algumas de suas formulações, tal como a que descreve no coração dessa corrente cultural, demonstram um movimento de “retorno a um sentido além da ordem social existente” (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 158-159) que catalisam, com extraordinária intuição, a dinâmica singular desses fenômenos artísticos.

A ANÁLISE CONCRETA DA SOCIEDADE BURGUESA MODERNA

Entre as manifestações mais inquietantes da sociedade burguesa, duas foram objetos de análises concretas em Culture et matérialisme: a publicidade e o social-darwinismo. Mencionando com certa aprovação uma obra coletiva contra a publicidade, em particular contra sua manipulação cínica das mentes infantis, redigida por Huxley, Russell Leavis e Thompson - com textos reunidos numa curiosa mistura de diferentes tendências da crítica cultural do capitalismo -, Williams insiste na necessidade de ultrapassar as críticas superficiais ao fenômeno publicitário, ou seja, sua característica vulgar, enganosa e invasiva, a fim de alcançar a raiz do problema: a publicidade como “arte oficial da sociedade capitalista” e como um sistema altamente organizado de satisfações “mágicas”, que utiliza o progresso das ciências humanas para travar uma guerra psicológica contra os indivíduos, com efeito destrutivo sobre os objetivos globais da sociedade. Quanto ao darwinismo social, sua defesa e ilustração do individualismo competitivo implacável da civilização industrial/capitalista em nome da doutrina da “sobrevivência dos mais aptos” não representam somente um fenômeno do fim do século XIX, de Herbert Spencer a Theodore Roosevelt, sem esquecer de John D. Rockefeller. Esse argumento serve ainda hoje de legitimação às versões mais brutais da economia de mercado e da ordem hierárquica burguesa. Os dois estudos ilustram um aspecto essencial do materialismo cultural de Williams: a análise sociopolítica não deve somente dar ênfase à literatura, à poesia e à “alta cultura”, mas a todas as produções culturais de dada sociedade e, em particular, àquelas que servem para assegurar a hegemonia política das classes dominantes. Isso não quer dizer que ele partilhe do relativismo pós-moderno, em que atribui valor de análise à mera opinião - até porque, para Williams, todos os produtos da cultura não constituem, em sua análise fundada no princípio das formações culturais heterogêneas, um único valor.

Com o propósito de definir a abordagem que faz desses fenômenos artístico-culturais, Raymond Williams define seu método de análise como materialismo cultural, ou seja, uma abordagem dos fatos culturais não como figuras produzidas pelo “espírito” ou como meros objetos produtos de “gênio artístico”, mas como um conjunto de práticas e instituições, intimamente relacionadas com as classes sociais e seus agentes políticos. Para compreender melhor essa abordagem, o ensaio mais importante do ponto de vista metodológico nessa coletânea francesa, não por acaso o texto mais lido e discutido, é o Base et superstructure dans la théorie marxiste de la culture, publicado em 1973. Como veremos, os ecos de Culture and society também se fazem presentes nesse ensaio, ainda que não constituam a trama principal do argumento. Rejeitando as leituras economicistas, reducionistas e deterministas do marxismo, que concebem as referidas “superestruturas” como um simples “reflexo” da base econômica, Williams propõe abordar as relações entre produções culturais e processos socioeconômicos por meio da categoria lukácsiana totalidade ou mesmo do conceito, emprestado de Lucien Goldmann, de homologia estrutural, sem contudo esquecer do papel das ideologias na construção da hegemonia - no sentido gramsciano - das classes dominantes. Vale acrescentar que essa abordagem apresentada por Williams há muito faz parte de uma tradição marxista inglesa, partilhada por historiadores como Edward Palmer Thompson ou Eric Hobsbawm, que recusa o estruturalismo e reforça a importância do sujeito histórico e da sua agência, bem como do seu poder para agir individual e coletivamente.

Entretanto, para além dessa importante revisão crítica do materialismo histórico “ortodoxo” apoiado sobre o marxismo historicista europeu, a contribuição inovadora de Williams nesse ensaio consiste em distinguir três tipos de sistemas culturais: (i) as culturas residuais, constituídas de valores de formações sociais anteriores e que resistem à cultura dominante; (ii) a cultura dominante, que impõe à sociedade um sistema de valores e de significações hegemônicas; e (iii) as culturas emergentes, que se referem aos novos valores, opondo-se às significações estabelecidas. Contrariamente ao que sua denominação parece sugerir, os valores residuais podem ter uma importante função crítica e de oposição, na medida em que eles representam os domínios da experiência, das aspirações e das realizações humanas que a cultura dominante negligencia. Conforme Williams, grande parte da literatura inglesa dessa última metade de século se refere a esses valores residuais. Certamente e em virtude do processo de incorporação, a cultura dominante consegue frequentemente integrar e absorver os valores residuais ou emergentes, mas é a partir de ambos os sistemas de valores que surgem formas verdadeiramente opostas à ordem social estabelecida.

PARA ALÉM DA CRÍTICA CULTURAL ROMÂNTICA

Até aqui temos enfatizado as afinidades de Raymond Williams com a crítica cultural romântica da civilização capitalista. Todavia, é também necessário considerar os argumentos pelos quais o seu materialismo cultural difere, de forma bastante acentuada, dessa tradição. É o caso, por exemplo, de seus trabalhos sobre “cultura e tecnologia” e sobre os meios de comunicação, nessa coletânea representados por dois ensaios com esse tema. Criticando o que ele chama de “a aliança antinatural entre o determinismo tecnológico e o pessimismo cultural” (Williams, 2009Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.: 184), Williams dissocia-se das sinistras previsões que denunciavam, em nome de uma concepção elitista da cultura, os meios de comunicação de massa: rádio, cinema, indústria fonográfica e, finalmente, a verdadeira Hydra, a televisão. Evidentemente, observa o crítico, as mudanças tecnológicas na esfera cultural se desenvolvem no âmbito das relações sociais e econômicas existentes, consequentemente, as inovações técnicas decorrem de propósitos industriais e comerciais, e não de intenções estritamente culturais. O imenso poder do dinheiro, ligado à indústria da publicidade, utiliza os novos meios de comunicação para homogeneizar e uniformizar as produções culturais a serviço do comércio transnacional. Contudo, os defensores do pessimismo cultural iludem-se ao tornarem as tecnologias culpadas pelos conteúdos medíocres que produzem e reproduzem em suas transmissões. Ora, outros usos das novas tecnologias são possíveis: afinal, por que não poderia a televisão por cabo e por satélite, sob concessão pública, estar disponível a uma vasta rede autogerida de produtores? Não poderiam os movimentos sociais revolucionários apropriar-se coletivamente dos meios de produção relacionados à comunicação, como as estações locais de rádio? Num outro sistema econômico e social, as novas tecnologias poderiam favorecer novos e interativos modelos de relações sociais e culturais, permitindo o florescimento de formas de democracia direta. Williams pode até ser interpretado como um teórico excessivamente otimista, mas seus escritos sobre televisão e sobre mídias de massa social são, sem dúvida, uma contribuição original e nada convencional à reflexão crítica sobre os meios de comunicação.

Em todo o caso, é de se esperar que a publicação de Culture et matérialisme seja apenas um primeiro passo, uma brecha que favoreça a publicação de outras obras por um teórico que renovou profundamente o pensamento marxista sobre a cultura e cuja “esplêndida hibridização” entre um materialismo cultural sutil e a crítica romântica da civilização burguesa em nada perdeu de sua perspicácia e poder.

RAYMOND WILLIAMS NO BRASIL

Um fenômeno surpreendente contrasta com o “atraso” inexplicável ocorrido com a tradução francesa ora publicada: Raymond Williams foi traduzido no Brasil há quarenta anos! Culture and society foi publicado em São Paulo no ano de 1969 e The country and the city, em 19896 6 Nota do tradutor: Em 1969, a Companhia Editora Nacional, de São Paulo, lançou a primeira edição de Cultura e sociedade, 1780-1950, traduzida para português por Leônidas H. B. Hegenberg, Octanny Silveira da Mota e Anísio Teixeira. Vinte anos depois (em 1989), outra editora de São Paulo, a Companhia das Letras, editou O campo e a cidade: na história e na literatura, com tradução de Paulo Henriques Britto. Em 1991, também pela Companhia das Letras, foi lançado o romance de Williams intitulado O povo das montanhas negras: o começo, com tradução de Sergio Flaksman. O autor não menciona, mas a editora Paz e Terra (São Paulo) lançou o livro Cultura, em 1992, com tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, a partir da obra original intitulada Culture, editada por Fontana Paperbacks, em 1981. . No entanto, é verdade que os brasileiros não continuaram nessa direção e os escritos posteriores de Williams ainda não foram traduzidos para português7 7 Nota do tradutor: Cumpre ressaltar que depois de 2009 outras iniciativas de ampliação da bibliografia de e sobre Raymond Williams no Brasil resultaram numa nova série de trabalhos de pesquisas e traduções. Entre as traduções devemos destacar os cinco lançamentos da Editora da Universidade Estadual Paulista (Editora da Unesp). Entre eles, Cultura e materialismo (2011), Políticas do modernismo: contra os novos conformistas (2011), A política e as letras: entrevistas da New Left Review (2013) e Produção social da escrita (2014). Esses quatro foram traduzidos por André Glaser. Em 2015, com tradução de Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski, a Editora da Unesp publicou Recursos da esperança: cultura, democracia e socialismo. .

Essa lacuna foi, nos últimos anos, compensada pela publicação do livro Dez lições sobre estudos culturais (Editora Boitempo, 2003), de autoria de Maria Elisa Cevasco (2003Cevasco, Maria Elisa. (2003). Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo.), professora da Universidade de São Paulo (USP). Trata-se de uma excelente apresentação do trabalho de Raymond Williams no contexto sócio-histórico inglês na relação direta com a criação dos cultural studies e a fundação da New Left Review. Analisando o materialismo cultural de Raymond Williams, Cevasco demonstra que esse conceito se fundamenta numa percepção muito mais rica da cultura e que inclui não apenas “grandes obras”, mas também o modo de vida comum a toda uma sociedade. Segundo Cevasco, Williams não concebe a cultura como uma instância separada, uma esfera autônoma, conforme assevera a tradição idealista. A cultura é, pois, concebida como uma força produtiva, uma força ativa na vida social. Se os aspectos românticos são secundarizados na análise de Cevasco, seu livro tem o grande mérito de não alijar a obra teórica de Raymond Williams do seu engajamento social e político, portanto, de suas convicções anticapitalistas8 8 Nota do tradutor: Maria Elisa Cevasco publicou, ainda em 2001, outra obra importante na disseminação da teoria social e da crítica cultural elaborada por Williams. Trata-se do livro Para ler Raymond Williams, lançado pela editora Paz e Terra (SP). .

Outra contribuição interessante de Cevasco é a comparação que estabelece entre os estudos culturais ingleses e a escola brasileira de crítica cultural. Não se trata aqui de uma questão de influência, mas sim de um paralelo analítico resultante de uma afinidade metodológica. Um exemplo foi a revista política e cultural Clima (1941-1944), que, segundo consta, também dispunha de uma sensibilidade anticapitalista e marxista (leia-se: anti-stalinista). Em torno dela, se formou um núcleo de pensamento crítico, cujos dois representantes mais importantes foram o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977) e o crítico literário Antonio Candido (1918-1917), do qual tive a chance de ser aluno. Seu trabalho tornar-se-ia a partir da década de 1950 uma das principais referências para a reflexão crítica sobre a cultura no Brasil. O que ambos partilham com Williams e com os cultural studies é uma abordagem marxista aberta, na qual a interpretação dos processos culturais se faz a partir de uma perspectiva da realidade social e histórica concreta.

A geração seguinte dos estudos culturais brasileiros foi formada ao fim da década de 1950 e início da década seguinte, num seminário inicialmente informal de leitura do Capital, de Karl Marx, organizado como atividade complementar por jovens professores e estudantes da USP. A figura mais importante dessa segunda geração formada a partir do “grupo do Capital” foi um dedicado aluno de Antonio Candido, o crítico literário e sociólogo cultural Roberto Schwarz (1938-) - que também se interessava por cinema e música popular. Na década de 1970, Schwarz publicou inúmeros ensaios sobre a formação social da literatura, com destaque especial para uma pesquisa de fôlego sobre o grande romancista Machado de Assis, na qual tece uma análise crítica do “liberalismo” escravagista brasileiro9 9 Nota do tradutor: o autor refere-se ao livro Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, publicado em 1977 por Roberto Schwarz pela editora Duas Cidades (SP). . Nesse trabalho, Schwarz formula o conceito de “ideias fora do lugar” para demonstrar o processo de adaptação do moderno capitalismo liberal às estruturas arcaicas e coloniais do Brasil - conceito hoje utilizado por vários pesquisadores e pesquisadoras do mundo, quando se ocupam da análise sobre o desenvolvimento das sociedades capitalistas periféricas (Cevasco, 2008Cevasco, Maria Elisa. (2008). Pourquoi lire Roberto Schwarz? La Revue Internationale des Livres & des Idées, 8, p. 50-54.: 50-54).

Em suma, para além das diferenças evidentes entre os contextos inglês e brasileiro, Maria Elisa Cevasco não se equivoca em destacar as analogias entre essas duas escolas de estudos culturais em seu livro lançado em 2003. Afinal, seu trabalho de pesquisa, estruturado a partir da perspectiva do materialismo cultural de Raymond Williams, contribui decisivamente tanto para a disseminação dos instrumentos dos cultural studies nas áreas de literatura, sociologia e educação como propõe novas abordagens dos fenômenos da produção e da circulação cultural no contexto brasileiro e latino-americano.

REFERÊNCIAS

  • Cevasco, Maria Elisa. (2003). Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo.
  • Cevasco, Maria Elisa. (2008). Pourquoi lire Roberto Schwarz? La Revue Internationale des Livres & des Idées, 8, p. 50-54.
  • Labica, Thierry. (2010). Porquoi nous avons besoin de Raymond Williams. Contretemps, 5, p. 133-142.
  • Löwy, Michael & Sayre, Robert. (2010). Esprits de feu. Figures du romantisme anticapitaliste. Paris: Éditions du Sandre.
  • Williams, Raymond. (1983). Cobbett. London: Oxford University Press.
  • Williams, Raymond. (2009). Culture et matérialisme. Paris: Prairies Ordinaires.
  • Williams, Raymond. (1971). Culture and society: 1870-1950. London: Penguin Books.
  • Williams, Raymond. (1968). May day manifesto. London: Penguin.
  • Williams, Raymond. (1980). What is anticapitalism? Review of Georg Lukács: from Romanticism to Bolshevism, by Michael Löwy. New Society, 24 jan.
  • 1
    A respeito da recepção e da circulação das obras de Williams, consultar o interessante artigo de Labica (2010Labica, Thierry. (2010). Porquoi nous avons besoin de Raymond Williams. Contretemps, 5, p. 133-142.).
  • 2
    William Cobbett (1763-1835), jornalista e ensaísta, foi célebre polemista em seu tempo. Inicialmente um conservador, tornou-se por volta de 1804 - e se manterá assim até o fim de sua vida - um democrata radical e defensor da causa dos trabalhadores.
  • 3
    Para uma discussão mais detalhada sobre a dimensão “romântica” de Raymond Williams, consultar o ensaio “Le courant romantique dans les sciences sociales en Angleterre: Edward P. Thompson et Raymond Williams” que redigi em coautoria com Robert Sayre, publicado em Löwy e Sayre (2010Löwy, Michael & Sayre, Robert. (2010). Esprits de feu. Figures du romantisme anticapitaliste. Paris: Éditions du Sandre.). Nota do tradutor: o ensaio tem uma primeira versão em português publicada pela Revista Crítica Marxista da Unicamp, n. 08, lançada em 1999.
  • 4
    Nota do tradutor: Trata-se do livro Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires, publicado pela Presses Universitaires de France, no ano de 1979. A edição britânica, lançada no mesmo ano, teve a tradução de Patrick Camiller sob o título Georg Lukács: from romanticism to bolshevism e publicada pela New Left Books (hoje denominada Verso Books), de Londres. No Brasil o livro teve uma primeira edição em 1979, pela Livraria Editora Ciências Humanas (LECH), sob o título Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários: a evolução política de Lucács (sic): 1909-1929, com tradução de Heloísa Helena Mello, Agostinho Ferreira Martins e Gildo Marçal Brandão. Em 1998, uma edição revisada foi produzida pela editora Cortez, tendo por base o texto da LECH, mas com novo título: A evolução política de Lukács: 1909-1929.
  • 5
    Para mais detalhes, consultar Williams (1980Williams, Raymond. (1980). What is anticapitalism? Review of Georg Lukács: from Romanticism to Bolshevism, by Michael Löwy. New Society, 24 jan.). De todo modo, a conclusão da crítica de Williams a respeito do meu livro é que ele tem muitas qualidades, sendo a principal “que pode ser lido contra algumas das suas formulações imediatas” (Williams, 1980Williams, Raymond. (1980). What is anticapitalism? Review of Georg Lukács: from Romanticism to Bolshevism, by Michael Löwy. New Society, 24 jan.: 189-190). Também porque a crítica de Williams me obrigou a pensar, em novos termos, sobre a relação entre o marxismo e o romantismo a partir de então.
  • 6
    Nota do tradutor: Em 1969, a Companhia Editora Nacional, de São Paulo, lançou a primeira edição de Cultura e sociedade, 1780-1950, traduzida para português por Leônidas H. B. Hegenberg, Octanny Silveira da Mota e Anísio Teixeira. Vinte anos depois (em 1989), outra editora de São Paulo, a Companhia das Letras, editou O campo e a cidade: na história e na literatura, com tradução de Paulo Henriques Britto. Em 1991, também pela Companhia das Letras, foi lançado o romance de Williams intitulado O povo das montanhas negras: o começo, com tradução de Sergio Flaksman. O autor não menciona, mas a editora Paz e Terra (São Paulo) lançou o livro Cultura, em 1992, com tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, a partir da obra original intitulada Culture, editada por Fontana Paperbacks, em 1981.
  • 7
    Nota do tradutor: Cumpre ressaltar que depois de 2009 outras iniciativas de ampliação da bibliografia de e sobre Raymond Williams no Brasil resultaram numa nova série de trabalhos de pesquisas e traduções. Entre as traduções devemos destacar os cinco lançamentos da Editora da Universidade Estadual Paulista (Editora da Unesp). Entre eles, Cultura e materialismo (2011), Políticas do modernismo: contra os novos conformistas (2011), A política e as letras: entrevistas da New Left Review (2013) e Produção social da escrita (2014). Esses quatro foram traduzidos por André Glaser. Em 2015, com tradução de Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski, a Editora da Unesp publicou Recursos da esperança: cultura, democracia e socialismo.
  • 8
    Nota do tradutor: Maria Elisa Cevasco publicou, ainda em 2001, outra obra importante na disseminação da teoria social e da crítica cultural elaborada por Williams. Trata-se do livro Para ler Raymond Williams, lançado pela editora Paz e Terra (SP).
  • 9
    Nota do tradutor: o autor refere-se ao livro Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, publicado em 1977 por Roberto Schwarz pela editora Duas Cidades (SP).
  • *
    Este artigo foi traduzido por Rodrigo Czajka, graduado em Filosofia (2001) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre (2003) e doutor (2009) em Sociolo gia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 2009 e 2011 foi professor adjunto de Sociologia vinculado à Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal dos Vales do Jequitin honha e Mucuri (UFVJM), campus Diamantina (MG). Entre os anos de 2011 e 2015 foi professor adjunto do Departamento de Sociolo gia e Antropologia e docente/pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus Marília (SP). Atualmente é professor adjunto do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Sociologia da Cultura, Pensamento Social Brasileiro e Sociologia dos Intelectuais. Atua nos seguintes temas: cultura e sociedade, indústria cultural, intelectuais, esquerdas, teoria social marxista, resistência cultural, ditadura militar e redemocratização no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com