Open-access ComiDHAA de verdade para todos: desafios para a efetivação do direito humano à alimentação adequada no cenário de crises no Brasil

Real food for all: challenges for the realization of the human right to adequate food in the context of crises in Brazil

Resumo

No cenário contemporâneo persistem diferentes violações do direito humano à alimentação adequada, desde fome à obesidade. Contudo, esse direito ainda se encontra em processo de efetivação e disputa, dado ao somatório de crises econômica, política, social, alimentar, ambiental, climática e sanitária no âmbito mundial e sua expressão no âmbito nacional. Este ensaio tem por objetivo tecer criticamente a análise de elementos importantes para efetivação do direito humano à alimentação adequada. Para tanto, optou-se pelo percurso metodológico de análise de conjuntura, mais comum nas pesquisas sociais, com a construção argumentativa e analítica sobre os acontecimentos, cenários, atores, e relação de forças existentes, buscando desvendar o que envolve, obscurece ou mesmo inverte o problema social estudado. O artigo estrutura-se em três seções: na primeira, apresenta-se os princípios fundantes dos direitos humanos relacionados ao direito à alimentação; na segunda, expõe-se as fragilidades participativas para a efetivação deste direito como via de justiça e transformação social; por fim, discute-se os desafios para a efetivação da alimentação como um direito de todos, diante do atual cenário de crises no Brasil. No campo da saúde pública permanece a necessidade de construção de uma rede de proteção social que vise a efetivação do direito humano à alimentação.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Políticas Públicas; Segurança Alimentar e Nutricional; Saúde Pública

Abstract

In the contemporary scenario, different violations of the human right to adequate food persist, from hunger to obesity. However, this right is still in a process of realization and dispute, given the sum of economic, political, social, food, environmental, climate, and health crises at the global level and their expression at the national level. This essay aims to critically weave an analysis of important elements for the realization of the human right to adequate food. For this, we opted for the methodological path of conjuncture analysis, most common in social research, with the argumentative and analytical construction of events, scenarios, actors, the relationship of existing forces, seeking to unveil what involves, obscures, or even reverses the social problem studied. The article is structured into three sections: the first presents the founding principles of human rights related to the right to food; the second exposes the participatory weaknesses in the realization of this right as a means of justice and social transformation; and finally, it discusses the challenges to the realization of food as a right for all, given the current crisis scenario in Brazil. In the field of public health, the need for the construction of a social protection net that aims to realize the right to food remains.

Keywords: Human Rights; Public Policies; Food and Nutrition Security; Public Health

Introdução

No âmbito da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) toda pessoa deve ter preservada a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) (Brasil, 2006), nos aspectos da suficiência (proteção contra a falta de alimentos e a desnutrição), da qualidade (prevenção de doenças associadas à alimentação) e da adequação (apropriação às circunstâncias socioeconômicas, ambientais e culturais) nas relações entre os seres humanos, e destes com a natureza (Maluf, 2009). Estes aspectos que integram o conceito de SAN são importantes, pois articulam a promoção da saúde, a cultura alimentar e a sustentabilidade econômica, social e ambiental (Burlandy, 2011; Ferraz, 2017), elementos que estão sob constantes ataques no cenário contemporâneo.

Por sua vez, situações de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN) podem ser identificadas a partir da “fome, obesidade, doenças associadas à alimentação inadequada, consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde, estrutura de produção de alimentos predatória em relação ao ambiente, bens essenciais com preços abusivos e imposição de padrões alimentares que não respeitem a diversidade cultural” (Brasil, 2006, p. 4).

A alimentação é um ato social, cultural, biológico e político que envolve aspectos comportamentais e afetivos, relações de poder, hábitos cotidianos de consumo e alimentares para ingestão de alimentos e nutrientes, que o homem utiliza para manter ou melhorar sua saúde (Brand; Wissen, 2021; Maciel, 2005).

A concepção de alimentação no Brasil, na perspectiva da SAN, aporta-se ao entendimento de que a alimentação adequada e saudável é a realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa; e deve atender aos princípios da variedade, qualidade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), às dimensões de gênero, raça e etnia, e às formas de produção ambientalmente sustentáveis (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, 2007, p. 31).

Esta definição se fortaleceu recentemente com a noção de “comida de verdade”, como expressão de uma forma de organização social e de luta política, destacando as dimensões socioculturais e política da SAN que se aproximam da produção e do consumo de alimentos na perspectiva da sustentabilidade dos sistemas alimentares locais, buscando estabelecer pontes entre o urbano e o rural, visando a soberania alimentar e a garantia dos direitos humanos em todo o curso da vida (Ferraz, 2017; Consea, 2015).

A alimentação será abordada neste artigo como um direito que todo ser humano deve ter à alimentação adequada e saudável, ou seja, o direito à comida de verdade, que abarca o acesso à informação, aos recursos financeiros ou naturais (terra, água), à realização de outros direitos sociais como saúde, trabalho, moradia, educação e lazer (Consea, 2015); além da disponibilidade e do acesso físico aos alimentos. Mecanismos estes que são determinados pela maneira como o alimento é cultivado, processado, distribuído e comercializado.

De acordo com a definição expressa no Comentário Geral nº 12/1999 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU),

O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. Ele não deverá ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, como pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. Ele terá de ser resolvido de maneira progressiva e os Estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome mesmo em épocas de desastres, naturais ou não. (parágrafo 2, art. 11)

Acabar com a fome e a miséria é a segunda meta da ONU para o alcance da Agenda 2030, que inclui os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), que visam o enfrentamento de questões ligadas aos direitos humanos, como a alimentação, meio ambiente e direitos das mulheres.

Mesmo diante disso, continuam sendo necessárias diversas ações para a garantia do DHAA no âmbito global e local (Haddad et al., 2016). A ONU definiu o período de 2016 a 2025 como a “Década de Ação pela Nutrição”, cujo objetivo é reforçar as ações de alimentação e nutrição em escala global, reconhecer a necessidade de erradicar a fome e evitar as diversas formas de nutrição inadequada para enfrentamentos das situações de IAN. A definição desta década traz o tema da alimentação e da nutrição para o centro das discussões nos âmbitos internacional e nacional, dos governos e da sociedade, permitindo fomentar o fortalecimento da participação popular nas políticas públicas que tenham a efetivação do DHAA como princípio ou diretriz.

Dados do relatório “El Estado de La Seguridad Alimentaria y La Nutrición em el Mundo” (FAO, 2021) mostram que mais da metade de todas as pessoas subalimentadas (418 milhões) vivem na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e no Caribe. O relatório também informa que a desigualdade de gênero se aprofundou, três bilhões de adultos e crianças permaneceram excluídos de dietas saudáveis, em grande parte devido aos custos excessivos, e quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofre de anemia. Embora o impacto da pandemia ainda não tenha sido totalmente mapeado, a situação alimentar no mundo é desastrosa.

Mesmo antes da pandemia, a fome já estava se espalhando, assim, estima-se que a meta 2 dos ODS não será alcançada por uma margem de quase 660 milhões de pessoas, das quais cerca de 30 milhões podem estar sofrendo os efeitos duradouros da pandemia. Assim, transformar os sistemas (agro)alimentares é uma maneira essencial para alcançar a segurança alimentar e nutricional via seus princípios de soberania alimentar, respeitando o direito humano à alimentação adequada (FAO, 2021).

Ao analisar o Brasil, verificam-se os traços estruturais da desigualdade social e a consequente pobreza, presentes em diferentes regiões do país, nos centros e periferias urbanas, além dos povos originários e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos). Adicionalmente, verifica-se um incremento da situação de IAN com a fome; o sobrepeso e a obesidade; e a insegurança hídrica. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, parte do projeto VigiSAN (PENSSAN, 2021), mostra que 55,2% da população brasileira apresenta algum grau de IAN (leve, moderada ou grave). Do total de 211,7 milhões de pessoas entrevistas, 116,8 milhões conviviam com algum grau de IAN; destes, 43,4 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente para atender suas necessidades e 19 milhões de brasileiros(as) tiveram que conviver e enfrentar a fome neste período de pandemia.

Alerta-se que a situação alimentar e nutricional da população não está adequada e saudável para todos, se compararmos diretamente de modo proporcional os patamares da exportação de alimentos que o país realizou neste mesmo período e os investimentos feitos no agronegócio. Reafirma-se que somente o desenvolvimento econômico de um país e o incremento na produção de alimentos não são suficientes para reduzir a desigualdade social, evitar a fome, melhorar a alimentação e garantir a saúde da população (Haddad et al., 2016).

Na realidade, o que está em curso tanto no âmbito global quanto no local é uma “sindemia global”, que tem acometido populações do mundo inteiro a viverem com obesidade, desnutrição, doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e mudanças climáticas, o que tem gerado impactos desastrosos para a saúde e produzido custos sociais que ofuscam os custos econômicos. O Relatório da Comissão de Obesidade do The Lancet demonstra que adicionalmente ao cenário de pandemias, outro desafio para os seres humanos é a relação com o meio ambiente (Swinburn et al., 2019).

As DCNT têm sido responsáveis por 80% das mortes que ocorrem nos países em desenvolvimento, têm onerado o orçamento global dos sistemas de saúde mundiais, particularmente, no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), devido aos gastos públicos com o tratamento e a assistência a pessoas com essas doenças (Abegunde et al., 2007). Ao considerar que os gastos públicos neste setor devem estar voltados para o investimento e garantia da saúde e não somente de doenças, há a necessidade de investir e fortalecer o cuidado com a alimentação da população, tomando a Atenção Primária à Saúde (APS) como cenário para essa prática. Por ser o ambiente com potencial para o desenvolvimento de ações de promoção da saúde, que podem contribuir para a diminuição das iniquidades em saúde e para a SAN.

Tal cenário tende a desafiar instituições e agências governamentais, limitando o papel dos Estados nas garantias e efetivação dos direitos humanos positivados: a saúde e a alimentação.

A alimentação é considerada um dos determinantes do processo saúde-doença e compartilha de princípios comuns com a saúde enquanto direitos humanos fundamentais. Desta maneira, parte-se do pressuposto de que a SAN deveria ser uma das questões centrais para referenciar a saúde da população, porque as comorbidades anteriormente citadas interagem com o estado nutricional e, consequentemente, com a saúde física e mental, impactando diretamente na vida das pessoas e no crescimento e desenvolvimento de um país (Chilton; Rose, 2009).

Assim, a efetivação do DHAA tem um papel crucial na saúde, tanto por meio da qualidade da dieta quanto do estado nutricional (Haddad et al., 2016). Por impactar positiva ou negativamente na direção de um sistema de produção de alimentos saudáveis, de modo sustentável e justo, que minimiza a produção de resíduos e respeita a biodiversidade, além de valorizar o homem do campo e a produção local. A alimentação pode ser considerada uma ação política, como forma de participação na esfera pública, por integrar um dos eixos estruturantes das “escolhas” e das práticas de consumo (individuais e coletivas) que podem gerar implicações ambientais, sociais e econômicas extremamente importantes (Castro, 2015).

Neste contexto, uma questão que merece destaque é a “escolha” do alimento, por se tratar de um ato que não é somente individual, sofre influência dos diversos processos que extrapolam o indivíduo e são produzidos no campo coletivo, como a padronização das dietas, os desertos alimentares, a determinação do ambiente alimentar, a expansão violenta sobre os ecossistemas e modos de vida, a normalização de produtos ultraprocessados, o controle corporativo da comercialização de alimentos e da massiva força midiática (Brand; Wissen, 2021). Muitas vezes, a “escolha” de um alimento é influenciada pela indústria cultural, pela publicidade/propaganda que transforma determinados produtos e atrai o interesse de consumo por meio de técnicas de marketing, utilizando cores, embalagens, alegações (claims) na rotulagem, vinculando o alimento a imagens de um cotidiano feliz ou de sucesso, ou a um perfil de padrão estético, por exemplo (Chã, 2018).

Este ensaio teve por objetivo tecer criticamente a análise de elementos importantes para a efetivação do DHAA. Optamos pelo percurso metodológico de análise de conjuntura, mais comum nas pesquisas sociais, com a construção argumentativa e analítica sobre os acontecimentos, cenários, atores e a relação de forças existentes, buscando desvendar o que envolve, obscurece ou mesmo inverte o problema social estudado. O texto está organizado em três seções. Na primeira, são apresentados os princípios fundantes dos direitos humanos relacionados ao DHAA. Na segunda, expõe-se as fragilidades participativas para a efetivação deste direito como via de justiça e transformação social, tomando como foco as conquistas político-normativas da SAN no Brasil. E, por fim, discute-se os desafios para a efetivação da alimentação como um direito de todos, diante do atual cenário de crises no Brasil.

O direito à alimentação adequada a partir da abordagem dos direitos humanos

A alimentação adequada enquanto um direito é um dos elementos inerentes à saúde, que afirma o potencial de crescimento e desenvolvimento humano (Gruskin; Mills; Tarantola, 2007). No intuito de conhecer essa relação entre alimentação e saúde, faz-se necessário analisar as situações de IAN das populações tanto no âmbito individual quanto coletivo, por apresentarem determinações relacionadas às condições de vida e ao grau de desenvolvimento humano, social e econômico de um país.

Os direitos humanos são metas desejáveis e fins que devem ser perseguidos (Bobbio, 1992). No entanto, sem deixar de considerar que houve avanços internacionais e nacionais importantes no reconhecimento e na criação de garantias jurídicas, programáticas, orçamentárias e participativas para o DHAA, principalmente, no período de 2006 a 2015. Há ainda um caminho longo de disputas e conquistas a ser percorrido para a sua efetivação.

A relação entre os direitos humanos é reconhecida, mas na vida política concreta pode se esbarrar na concorrência com outros direitos também considerados fundamentais e que no momento de protegê-los, garanti-los e efetivá-los requer dos titulares de obrigações: projeto, articulação e opções políticas para realizá-los.

Alguns estudos permitem caracterizar os vulneráveis à condição de IAN, que em sua maioria são de origem latina, têm cor da pele preta ou parda, baixa renda, baixa escolaridade, vivem em condições de moradia e saneamento precárias e tem a saúde comprometida (Kaiser et al., 2003). É possível, assim, observar que situações de IAN trazem em si marcas das desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero, da falta de acesso e disponibilidade aos alimentos saudáveis e o consumo de alimentos de qualidade nutricional inadequada (Rocha; Burlandy; Magalhães, 2013).

Deste modo, ao tentar compreender questões ligadas à alimentação, como a fome e outras inadequações alimentares, deve-se ter o cuidado com as diferentes dimensões da SAN e ser sensível as suas faces fortemente subjetivas, que se constroem em um continuum, desde a vontade de comer (relacionada às necessidades fisiológicas do corpo biológico), passando pela nutrição inadequada (causada por desbalanço energético e/ou de nutrientes), chegando em necessidades históricas, culturais, psicológicas e espirituais do ato de alimentar-se, que denotam a incorporação da noção de dignidade humana (Valente, 2003). Isso posto, fica claro que a fome e outras inadequações alimentares sob uma concepção ampliada da alimentação e da saúde, constituem em violência ao ser humano e violação do direito à vida.

Os direitos humanos são todos aqueles que permitem a pessoa viver em situação de igualdade e com liberdade como sujeitos políticos. Desta forma, lhe permite exigir o que está na lei ou aquilo que, embora não esteja, é necessário para que possa haver vida de forma digna. Eles são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, quando há a violação de um direito, muito provavelmente há a violação concomitante de outros (Gruskin; Mills; Tarantola, 2007). Deste modo, compreender que existem pessoas ou populações vulneráveis à IAN significa assumir a violação do DHAA e presumir a de outros direitos humanos fundamentais, como saúde, moradia, educação, trabalho (emprego e renda) e seguridade social. Esta vulnerabilidade está pautada na existência de relações sociais, fatores contextuais e aspectos individuais que, acompanhados da falta de aparatos, tanto governamentais quanto das instâncias de controle social e da ausência de participação social qualificada, limitam a capacidade de ação dos sujeitos para gerar resiliência e garantir seus direitos (Ayres; Paiva; França-Júnior, 2012).

O reconhecimento dos direitos humanos e as concessões efetivadas via políticas públicas é resultado de lutas sociais que vem ocorrendo há décadas e essa luta por direitos é uma forma da sociedade forjar limites e regras para o abuso de poder, tentar se posicionar soberana e contrária a qualquer tipo de exclusão, discriminação e opressão, e buscar transformação social.

Observa-se que princípios do DHAA, tais como participação social, prestação de contas e transparência, não discriminação em favor da inclusão, respeito à dignidade humana, delegação de poder/responsabilidade e existência efetiva de um Estado de direito são reportados no Marco Estratégico Global da FAO para a SAN (2014). No entanto, colidem com a dinâmica capitalista que mercadoriza o alimento e reifica o ato de se alimentar, produzindo a tríade alimento-mercadoria-doença.

O processo de transformação do alimento em mercadoria é um traço importante do capitalismo contemporâneo e uma das chaves para explicar o atual cenário produtor de doenças e de desigualdades econômicas e sociais, que impacta sobre os sistemas alimentares globais e impõe desafios no campo da saúde pública e na garantia de direitos humanos, como o DHAA (Machado; Oliveira; Mendes, 2016).

Apesar da alimentação adequada ser um direito inerente à pessoa, o que per si torna evidente a obrigatoriedade de sua garantia a todos. Como tal, deve ser cumprido pelo Estado brasileiro e seus governantes, que assim devem executá-lo nos três níveis federativos.

Importante lembrar que o DHAA e os demais direitos humanos estão em disputa a todo tempo, no plano teórico-conceitual, na construção ou permanência dos seus princípios ou no âmbito da formulação e implementação das políticas públicas, à medida que a organização social e política e as relações de poder se rearranjam em uma sociedade. Assim, constituem um campo em permanente construção, que desafia a sociedade a se reinventar frente às crises de legitimidade política, de representatividade e de interlocução entre Estado e sociedade (Mendes; Carnut, 2020).

O DHAA nos marcos políticos-normativos da SAN no Brasil (2002-2016): fragilidades na participação popular para a sua efetivação

A efetivação de um direito se concretiza pela política e, no caso das políticas públicas, estas têm distintos suportes legais, devendo buscar dar concretude às normas por meio de uma arquitetura jurídica estruturante, na qual se destacam alguns elementos-chaves (fins, objetivos, princípios, diretrizes, instrumentos e sistema) e formas de sua realização (planos, programas e projetos). Isso ilustra a compreensão de política pública como um quadro de ação governamental, cujo escopo é dar impulso à realização de algum objetivo de ordem pública, ou seja, de concretizar um direito (Bucci, 2006).

A institucionalização normativa de um direito é importante pelos efeitos que pode gerar na realidade da população, desencadeando a criação de um ordenamento jurídico nacional que implica não só na instituição formal do direito, mas também na disponibilização de mecanismos e instrumentos necessários a sua operacionalização (infraestrutura, recursos financeiros e humanos) (Machado; Rocha; Campos, 2015) que devem visar a justiça e a transformação social.

Nas Diretrizes Voluntárias da FAO (2004), a diretriz que trata da Política de Desenvolvimento Econômico do país (diretriz 2) define que o Estado deve diagnosticar a situação de IAN e de outras patologias relacionadas ao consumo alimentar, estabelece como estratégia avaliar os marcos legais, as políticas, programas e ações, bem como as medidas administrativas vigentes, priorizando a APS (diretriz 3). Desta forma, o Brasil assumiu o compromisso perante a comunidade internacional de reconhecer a importância do DHAA para garantir a saúde da população, além de firmar a responsabilidade de transformar esse acordo em realidade nacional.

A promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, lançou as bases para que o Brasil se organizasse de maneira intersetorial e participativa, criou o Sistema Nacional de SAN (Sisan) e instituiu a Política Nacional de SAN (PNSAN) com o objetivo de contribuir para o enfrentamento da fome e da desnutrição, promover a produção diversificada e sustentável de alimentos e garantir o acesso universal a uma alimentação adequada e saudável (Brasil, 2006). A partir disso, a SAN passa a ser um objetivo público, estratégico e permanente, com características que a coloca entre as categorias nucleares para a formulação de opções de projeto de desenvolvimento de um país. Naquele momento, fica registrado o papel do Estado brasileiro de respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do DHAA, bem como de garantir os mecanismos para a sua exigibilidade e resposta em tempo oportuno à demanda (Brasil, 2006).

Visando criar, no nível federal, instâncias que organizassem e elaborassem ações para a garantia do DHAA, em 2007 foi instituída a Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que junto com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) integram o Sisan. Nessas instâncias participam representantes de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e do setor privado, especialistas e profissionais de formação variada e gestores públicos (Brasil, 2006).

Com o Consea e a Caisan, lançou-se o desafio de replicar este modelo de organização nos estados e municípios a fim de consolidar o Sisan em todo o território nacional. Para isso, foi elaborada, em 2008, no âmbito do governo federal, a Ação Orçamentária: Apoio à Implantação e Gestão do Sisan. O Decreto nº 7.272/2010 possibilitou esta garantia orçamentária para a PNSAN, bem como o Sisan e suas esferas de gestão (Caisan Nacional e Caisan Estaduais e Municipais), além de tratar da participação social e da operacionalização da política por meio da implementação do Plano Nacional de SAN (PlanSAN).

A partir do PlanSAN 2012-2015, estabeleceram-se metas para a operacionalização da política pública de SAN nos estados e nos municípios brasileiros, houve avanços na publicação de documentos oficiais de referência conceitual, como o Marco de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas (2012) e a atualização do Guia Alimentar para a População Brasileira (2014).

Durante a 5ª Conferência de SAN (2015), espaço institucionalizado de participação social previsto na Losan para a construção do DHAA, houve a assinatura do Pacto Nacional para Alimentação Saudável por meio do Decreto nº 8.553, de 5 de novembro de 2015, visando ampliar a disponibilidade e o consumo de alimentos saudáveis, combater o sobrepeso, a obesidade e as doenças decorrentes da alimentação inadequada.

Posteriormente a esta ação, foi publicado em 2016 o II PlanSAN 2016/2019, principal instrumento de gestão para a efetivação do DHAA, cujo objetivo é o enfrentamento da obesidade e do sobrepeso como manifestações da alimentação inadequada, o combate a IAN de grupos populacionais específicos (ex.: quilombolas e indígenas), a ampliação da produção, do abastecimento e do consumo de alimentos saudáveis, a redução da pobreza e a ampliação do acesso à água, a consolidação do Sisan e da promoção de maior diálogo internacional sobre o tema da SAN. Dentre as estratégias abordadas no plano para o enfrentamento do cenário de IAN no país, estão a Educação Alimentar e Nutricional (EAN) e as medidas regulatórias para a comercialização e publicidade de alimentos. Além da proposição de estratégias, um outro marco importante do II PlanSAN 2016/2019 foi sua forte interação com a saúde, com destaque para a atenção nutricional, que foi pouco abordada no plano anterior.

Reconhece-se a importância do lançamento destes marcos políticos e estratégicos para a gestão da SAN e efetivação do DHAA, contudo, verifica-se que ainda não são mencionados nestes documentos as populações que vivem em situação de rua, albergues, orfanatos e a população carcerária, ou seja, grupos que conformam realidades permanentes em grandes centros urbanos. Desta maneira, podemos indagar se estamos construindo e efetivando um direito que visa comiDHAA de verdade para todos.

Na construção de garantias democráticas de participação direta da sociedade, os conselhos e conferências de SAN (federais, estaduais e municipais) vinham desempenhando um papel importante para a efetivação do DHAA, na condução do diálogo entre ministérios, setores do governo e da sociedade civil. Embora os conselhos não exerçam a função executora de programas e projetos, são instâncias de ação política mais próximos da sociedade e das suas realidades, que articulam ações do Estado junto à população. Portanto, devem trabalhar na produção democrática da formulação, execução e acompanhamento da PNSAN e qualificar seu papel, seu modo de ação e organização para dar visibilidade aos conflitos existentes, além de questionar e denunciar práticas sociais e governamentais de violações de DHAA. No entanto, em 2019, assistimos ao primeiro ato realizado pelo governo Bolsonaro por meio da Medida Provisória nº 870, de 2019: a extinção do Consea, órgão importante para a sociedade civil (que ocupava dois terços da sua representação) e de assessoramento imediato da Presidência da República. Entre suas funções estava articular, acompanhar e monitorar as ações inerentes a Política Nacional de SAN e ao Plano Nacional de SAN, além de zelar pela efetividade do DHAA.

De modo geral, essa lógica de participação social para a garantia de direitos como o DHAA ainda permanece distante da população. Persiste o desafio de fortalecer os espaços de participação popular enquanto instâncias democráticas capazes de dialogar sobre as necessidades da população na implementação das políticas públicas, além de se tornarem espaços atrativos de engajamento e do protagonismo com diversas redes (associações, movimentos sociais e universidades) (Burlandy, 2011).

O aspecto estrutural da criação de garantias para a efetivação de direitos é muito importante, mas a participação social na luta pela efetivação dos direitos sociais precisa transpor-se a lei e a construção jurídica, por tratar-se da realização de justiça e de transformação social. Portanto, é fundamental a recriação de novas formas de participação coletiva, organizada, informada, qualificada e ativa com laços sociais que confrontem a tríade “alimento-mercadoria-doença” e questionem as práticas do Estado enquanto um poder representativo do povo.

A efetivação do DHAA no Brasil: subsequentes desmontes e permanentes desafios diante do atual cenário de crises

Em setembro de 2016, resistindo ao cenário político brasileiro, pós-golpe institucional ocorrido no dia 17 de abril, representantes da sociedade civil organizada e governamental reuniram-se na Oficina de Trabalho sobre Indicadores de SAN em Brasília e discutiram a matriz de indicadores a ser utilizada no monitoramento do II PlanSAN 2016/2019, relacionando nove desafios do governo para as sete dimensões de análise da SAN, dentre elas a saúde e a nutrição. Apesar de ser uma ferramenta importante de avaliação de ações e programas públicos, tal monitoramento ficou, em parte, circunstanciado pelo orçamento destinado a Consolidação da Implantação do Sisan, cujos R$ 13,4 milhões previstos em 2016 foram reduzidos pelo governo Temer para R$ 8,7 milhões no Projeto de Lei Orçamentária Anual 2017, um corte na ordem de 34%.

É importante lembrar que o Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a colocar a fome e a pobreza no centro das políticas públicas sociais, contribuindo, assim, para que, em 2014, saísse do Mapa da Fome da ONU. Além disso, naquele momento conquistou o reconhecimento internacional e inspirou outros países a partir da construção das suas políticas públicas de SAN.

O período de 2003 a 2014 foi marcado pela expectativa da sociedade de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade e implementar uma série de programas e iniciativas direcionadas aos segmentos mais pobres da população brasileira, porém, verificou-se também a manutenção do status quo por meio de uma política econômica que favoreceu largamente os interesses do capital financeiro nacional e internacional. A partir de 2011, o Brasil evidenciou o declínio de seu crescimento econômico em decorrência do prolongamento da crise do capitalismo internacional e de medidas políticas internas, que revelaram o caráter efêmero das conquistas baseadas na inclusão pelo consumo e altamente dependentes do mercado externo. Tal cenário oportunizou às frações de classes poderosas e resistentes um terreno fértil para a crise política instaurada em 2015, com o desmonte de um Estado que acreditou na burguesia industrial e nas alianças político-partidárias realizadas (Singer, 2016).

No ano de 2016, o Brasil passou pelo golpe institucional da Presidência da República. Em que pesam os diversos motivos que geraram a crise política do país, as políticas públicas estruturantes de proteção social, como saúde, educação e assistência social ficaram em segundo plano e foram associadas às medidas de ajustes fiscais que definiram cortes e redução de gastos públicos, bem como reformas institucionais que atacam diretamente os direitos sociais, levando a retrocessos concretos à classe trabalhadora e ameaça real à saúde e à soberania alimentar.

O plano de governo “A Travessia Social: Uma Ponte para o Futuro”, lançado posteriormente ao golpe, é um exemplo de projeto neoliberal que propõe uma reorganização do país para supostamente conter a crise econômica e retomar o crescimento. As medidas para a concretização desta proposta estão ligadas ao controle dos gastos públicos, destacando-se a Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 15 de dezembro de 2016 (EC nº 95), que instituiu o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União com o intuito de “congelar” as finanças do Estado por 20 anos.

Neste sentido, políticas e programas que visam a garantia dos direitos sociais está comprometida, se adicionarmos à EC nº 95 a reforma trabalhista, a reforma da previdência social, a reforma administrativa (PEC 32/2021), o Projeto de Lei nº 823 de 2021 (PL 823/2021) que previa de criação do Programa de Atendimento Emergencial à Agricultura Familiar para os camponeses afetados pela pandemia e muitos outros. Este cenário de desmontes tem gerado impactos negativos diretos no desenvolvimento humano e social do país, anunciando a piora das condições de vida da população brasileira, o agravamento da pandemia devido às escolhas políticas adotadas no âmbito federal e o descrédito do Brasil perante organizações internacionais.

Como algumas políticas são operadas pelos municípios em regime de cofinanciamento, reduções nos gastos públicos federais representaram a paralisação de alguns serviços locais e a descontinuidade de políticas públicas sociais no âmbito estadual e municipal. Na medida em que o SISAN, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) estão sendo enfraquecidos, a sociedade tem reduzida a sua capacidade no monitoramento do cumprimento das obrigações do Estado, como o de garantir o DHAA, a saúde e a assistência social.

Considerando alguns avanços, sem deixar de lado o construto histórico da complexa realidade alimentar brasileira e suas profundas marcas de desigualdades sociais, o cenário atual brasileiro está imerso em retrocessos estruturais nas políticas públicas sociais e no comprometimento da garantia dos direitos humanos, principalmente, no que tange ao atual modelo adotado para a sustentação das políticas públicas sociais de saúde e alimentação.

Mesmo antes do agravamento do cenário de crises e da pandemia do SARS-Cov-2 no Brasil, a situação de IAN já estava explícita entre aqueles que relatavam piores níveis de emprego, apoio social e escolaridade. Sinalizando a necessidade de políticas emergenciais para proteger e garantir o acesso à alimentação adequada e saudável para os mais vulneráveis, e a articulação de medidas governamentais nas três esferas de gestão (federal, estadual e municipal) (Sousa et al., 2019).

Durante a pandemia, as precárias condições de vida, incluindo a falta de acesso à água, ao saneamento básico, a fragilidade dos sistemas de saúde (tensos e sobrecarregados pela pandemia), incidiram diretamente na dimensão nutricional da alimentação - no estado de saúde dos indivíduos, sobretudo entre os mais vulneráveis, limitando a utilização biológica dos nutrientes e expondo ao risco de desenvolver a má nutrição (Ribeiro-Silva et al., 2020): a desnutrição, as carências de micronutrientes e também o sobrepeso e a obesidade pelo alto consumo de produtos ultraprocessados. Considerando as diferentes dimensões da SAN, tanto seu componente alimentar (disponibilidade, produção, comercialização e acesso aos alimentos) como nutricional (relacionado às práticas alimentares e utilização biológica dos alimentos), observou-se que durante a pandemia essas dimensões se agravaram.

O distanciamento social produzido nesta pandemia impôs também importantes mudanças socioculturais, redução da atividade física e alterações nos hábitos alimentares, condições que afetam diretamente a angústia e distúrbios emocionais, além do estado nutricional das pessoas.

Neste período pandêmico, no Brasil, foi identificada entre as ações do Governo Federal frente à pandemia: a criação de arranjos institucionais para o gerenciamento da crise (Alpino; Barros; Freitas, 2020), que tiveram profundas implicações na garantia do DHAA.

Estudo realizado por Gurgel et al. (2020) mostra que as medidas implementadas para assegurar a disponibilidade e o acesso físico ou financeiro a alimentos envolveram fundamentalmente a distribuição de alimentos e garantia de renda mínima. Foram instituídas: Renda Básica Emergencial (União); Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e auxílio financeiro emergencial (estados); programas de doação emergencial de alimentos (estados e municípios); medidas existentes foram adaptadas frente à pandemia, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) nacional, a distribuição de alimentos e de cestas básicas. nacional, Programa Bolsa Família (PBF), Benefício de Prestação Continuada (BPC), e distribuição de alimentos por meio dos equipamentos públicos de SAN. As estratégias identificadas para garantir o acesso físico ou financeiro aos alimentos foram, especificamente, as seguintes: renda mínima, PNAE, Restaurantes Populares, cozinhas comunitárias, distribuição/doação de cestas básicas e PAA.

Embora essas estratégias sejam extremamente importantes, o estudo conclui que estas têm alcance limitado e são insuficientes para assegurar a SAN, quando o objetivo é garantir alimentação adequada e saudável para toda a população; incluindo a população em situação de rua, aqueles abaixo da linha da pobreza, boa parte da população rural, povos e comunidades tradicionais. Observou-se também uma prevalência de ações direcionadas ao consumo, sem interferir com mudanças significativas na cadeia produtiva nacional ou local. Outro ponto importante encontrado no estudo foram as limitações de registro das iniciativas adotadas e dos dados disponíveis nos sites dos governos estaduais e municipais. Em geral, as informações eram disponibilizadas como notícias, de forma dispersa, frequentemente não citando o dispositivo legal que as institui e regula, o que sinaliza a fragilidade para que se cumpra a responsabilização e obrigatoriedade de ação dos agentes públicos.

Durante este período de pandemia, 2020 e 2021, as diversas incertezas advinham das possíveis consequências de propagação do vírus: o fechamento de comércios, escolas e a restrição de circulação de pessoas. Com essas atividades retomadas, principalmente neste início do segundo semestre de 2021, verificamos que os desmontes continuam na agricultura familiar, para os indígenas e povos tradicionais, mulheres negras, crianças dentre outros. Então, parece que os desafios continuam sendo permanentes, a pandemia apenas escancarou e agravou a situação já vivida; e fica claro que a garantia e a efetivação dos direitos sociais no Brasil não são prioridade para o governo federal, com ou sem pandemia.

A sociedade civil possui importante papel na participação popular da gestão das políticas públicas, com destaque para àquelas de combate à fome e promoção da alimentação adequada. Foi deste lado, das experiências comunitárias e populares, que verificamos o desempenho extenuante no combate à covid-19, estando na linha de frente os movimentos sociais, as associações comunitárias e grupos anônimos, as organizações não governamentais, igrejas, em especial nas favelas e nos territórios onde o poder público não chega - por diversas vezes articulando o desenvolvimento de circuitos locais de produção e abastecimento, na tentativa de integrar campo-cidade.

É fato, os brasileiros podem morrer por falta do que comer, somos quase cerca de 20 milhões. Assim, ao desvelar essa situação, urge a necessidade de saídas que coloquem as condições de vida e a dignidade humana no centro das decisões e da responsabilização do cumprimento das políticas públicas já existentes.

Considerações finais

Considerando o exposto, no campo da saúde pública permanece a necessidade de proteção, cumprimento das garantias e efetivação do DHAA como um direito de todos. Entre os desafios colocados para o atual cenário de desmontes e crises, está construir uma rede de proteção social - ampliada, coerente e consistente -, capaz de integrar políticas públicas sociais e humanitárias, oferecer aos pequenos agricultores as condições financeiras necessárias para o enfrentamento dos riscos climáticos e de apoio à pandemia, construir uma política de abastecimento capaz de sobreviver aos impactos econômicos (principalmente, durante períodos como a pandemia) sem volatilidade dos preços dos alimentos, com valorização da cadeia local de produção e distribuição dos alimentos (de comida de verdade), fortalecer os sistemas e ambientes alimentares para que sejam capazes de mudar o modo de vida existente, visando à alimentação adequada e saudável para todos.

Em tempos de crises, a garantia dos direitos humanos é tradicionalmente impactada pela opção política dos governos neoliberais em reduzir o papel do Estado frente ao avanço do capital internacional. As consequências concretas são a diminuição dos gastos públicos e cortes significativos nos investimentos sociais, além da reorientação dos investimentos para setores que correspondem a esse interesse.

O discurso da estabilização econômica via contingenciamento financeiro para saúde, alimentação e assistência social tem se mostrado capaz de sobrepujar as pautas de desenvolvimento humano no país. Apesar dos movimentos sociais conduzidos nas três últimas décadas para a construção do DHAA, verifica-se que não foi construída junto aos brasileiros uma cultura de participação e luta pelos seus direitos, parece que ainda inexiste uma tradição de vida coletiva devido à construção histórica que tivemos de dependência e escravidão. Assim, a efetivação dos direitos no Brasil implica em mudanças nas ações de comunicação social, informação e formação para a população, em mudanças culturais no Poder Executivo e Legislativo, e dos agentes públicos técnicos para que influenciem no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas na perspectiva do DHAA e da SAN. É preciso haver compromisso e responsabilidade institucional com essa agenda política, priorizando mudanças radicais nos mecanismos de distribuição de renda, proteção e justiça social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2021
  • Revisado
    23 Ago 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
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