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Desigualdades raciais na mortalidade de mulheres adultas no Recife, 2001 a 2003

Racial inequality in the mortality of adult women in Recife, 2001-2003

Resumos

As desigualdades raciais, resultantes dos efeitos da exclusão social, são influenciadas pela prática de preconceitos e discriminações. O termo raça pode ser entendido como identidade coletiva ou consciência política que constrói uma auto-estima socialmente positiva. Objetivou-se caracterizar desigualdades raciais na mortalidade de mulheres adultas negras e brancas, residentes em Recife, entre 2001 e 2003. No estudo, tipo transversal, incluíram-se 2.943 óbitos de mulheres de 20 a 59 anos, captados no Sistema de Informação sobre Mortalidade, com raça/cor branca e negra (preta + parda), analisando-se a mortalidade proporcional, coeficientes de mortalidade e razões de taxas. O risco de morte de negras foi 1,7 vezes superior ao de brancas. Entre as negras identificou-se maior risco de morte em todas as faixas etárias e maior proporção de óbitos em hospitais do SUS, de mulheres sem companheiro e que exerciam serviços/atividades domésticas. Quanto às causas básicas, observaram-se maiores coeficientes de mortalidade em todos os capítulos e causas específicas, exceto por neoplasias na faixa de 20 a 29 anos e por câncer de mama nas faixas de 30 a 39 e 50 a 59 anos. Entre negras e brancas, quanto menor a idade, maior a desigualdade do risco de morte por causas externas. Em negras, ressalta-se o maior risco de morte por homicídios; acidentes de transporte; doenças isquêmicas do coração, cerebrovasculares e hipertensivas; diabetes e tuberculose. Os achados revelam iniqüidades na saúde das mulheres negras, decorrentes da violação de direitos que dificultam a ascensão social e o acesso a condições dignas de saúde.

Desigualdade Racial; Mortalidade em Mulheres Adultas; Mulher Negra e Saúde


Racial inequalities are effects of social exclusion, being influenced by prejudice and discrimination. The term race is used here meaning group identity or political perception of sharing a particular racial heritage, which builds a positive social self-esteem. The study aimed to characterize the mortality pattern of black and white adult women living in Recife, between 2001 and 2003. In this cross-sectional study, 2,943 deaths of women aged between 20 and 59 years were included, identified in the Mortality Information System of the National Health System (SUS), with race/skin color white or black (black + mestizo). Proportional mortality, mortality rates and ratios were obtained. The risk of dying was 1.7 times higher for black women compared to whites. Black women had higher risk of death in all age groups and higher proportion of deaths in public hospitals, of women who did not have a partner (single, widow or separated), who were housewives or worked as domestic servants, and who were less educated. Regarding the underlying causes, black women had a higher mortality rate for all chapters of the International Classification of Diseases and for specific causes of death, except for neoplasm in women aged 20 to 29 years and for breast cancer in women aged 30 to 39 and 50 to 59 years. As age decreases, a large difference between black and white women was found in the risk of deaths caused by external causes. Among black women, there was an increase in the risk of dying due to homicides, motor vehicle accidents, ischemic heart diseases, cerebral vascular and hypertensive diseases, diabetes, and tuberculosis. The findings showed inequality in health, with disadvantages for the black women, which are the expression of human rights violation that challenges social rise and the access to decent health conditions.

Racial Inequality; Adult Women Mortality; Black Women and Health


ARTIGOS

Desigualdades raciais na mortalidade de mulheres adultas no Recife, 2001 a 20031 1 Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Vigilância sobre Saúde, do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, em setembro de 2005.

Racial inequality in the mortality of adult women in Recife, 2001-20031 1 Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Vigilância sobre Saúde, do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, em setembro de 2005.

Sony Maria dos SantosI; Maria José Bezerra GuimarãesII; Thália Velho Barreto de AraújoIII

IMestre em Vigilância sobre Saúde pela Universidade de Pernambuco; Gerente Operacional de Informação de Mortalidade e Natalidade e representante da Secretaria de Saúde do Recife no Programa de Combate ao Racismo Institucional da Prefeitura do Recife. Endereço: Secretaria Saúde do Recife. Rua Major Codeceira, 194, Santo Amaro, cep 50100-070, Recife, PE, Brasil. E-mail: sonym@recife.pe.gov.br

IIDoutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; Epidemiologista da Diretoria de Vigilância à Saúde da Secretaria de Saúde do Recife. E-mail: mazegui@recife.pe.gov.br

IIIDoutora em Epidemiologia pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; Professora Adjunta do Departamento de Medicina Social da Universidade de Pernambuco. E-mail: thalia@br.inter.net

RESUMO

As desigualdades raciais, resultantes dos efeitos da exclusão social, são influenciadas pela prática de preconceitos e discriminações. O termo raça pode ser entendido como identidade coletiva ou consciência política que constrói uma auto-estima socialmente positiva. Objetivou-se caracterizar desigualdades raciais na mortalidade de mulheres adultas negras e brancas, residentes em Recife, entre 2001 e 2003. No estudo, tipo transversal, incluíram-se 2.943 óbitos de mulheres de 20 a 59 anos, captados no Sistema de Informação sobre Mortalidade, com raça/cor branca e negra (preta + parda), analisando-se a mortalidade proporcional, coeficientes de mortalidade e razões de taxas. O risco de morte de negras foi 1,7 vezes superior ao de brancas. Entre as negras identificou-se maior risco de morte em todas as faixas etárias e maior proporção de óbitos em hospitais do SUS, de mulheres sem companheiro e que exerciam serviços/atividades domésticas. Quanto às causas básicas, observaram-se maiores coeficientes de mortalidade em todos os capítulos e causas específicas, exceto por neoplasias na faixa de 20 a 29 anos e por câncer de mama nas faixas de 30 a 39 e 50 a 59 anos. Entre negras e brancas, quanto menor a idade, maior a desigualdade do risco de morte por causas externas. Em negras, ressalta-se o maior risco de morte por homicídios; acidentes de transporte; doenças isquêmicas do coração, cerebrovasculares e hipertensivas; diabetes e tuberculose. Os achados revelam iniqüidades na saúde das mulheres negras, decorrentes da violação de direitos que dificultam a ascensão social e o acesso a condições dignas de saúde.

Palavras-chave: Desigualdade Racial; Mortalidade em Mulheres Adultas; Mulher Negra e Saúde.

ABSTRACT

Racial inequalities are effects of social exclusion, being influenced by prejudice and discrimination. The term race is used here meaning group identity or political perception of sharing a particular racial heritage, which builds a positive social self-esteem. The study aimed to characterize the mortality pattern of black and white adult women living in Recife, between 2001 and 2003. In this cross-sectional study, 2,943 deaths of women aged between 20 and 59 years were included, identified in the Mortality Information System of the National Health System (SUS), with race/skin color white or black (black + mestizo). Proportional mortality, mortality rates and ratios were obtained. The risk of dying was 1.7 times higher for black women compared to whites. Black women had higher risk of death in all age groups and higher proportion of deaths in public hospitals, of women who did not have a partner (single, widow or separated), who were housewives or worked as domestic servants, and who were less educated. Regarding the underlying causes, black women had a higher mortality rate for all chapters of the International Classification of Diseases and for specific causes of death, except for neoplasm in women aged 20 to 29 years and for breast cancer in women aged 30 to 39 and 50 to 59 years. As age decreases, a large difference between black and white women was found in the risk of deaths caused by external causes. Among black women, there was an increase in the risk of dying due to homicides, motor vehicle accidents, ischemic heart diseases, cerebral vascular and hypertensive diseases, diabetes, and tuberculosis. The findings showed inequality in health, with disadvantages for the black women, which are the expression of human rights violation that challenges social rise and the access to decent health conditions.

Keywords: Racial Inequality; Adult Women Mortality; Black Women and Health.

Introdução

No Brasil, desde o século XVI, as desigualdades impostas pelo regime escravista foram mantidas pelo sistema político-econômico fundamentado no capitalismo, que conservou a ideologia racista como legitimadora da exclusão social e racial (Martins, 2004). As desigualdades raciais, ao limitarem a capacidade de inclusão da população negra na sociedade brasileira, impedem a construção de um país democrático com igualdade de oportunidades para todos (Heringer, 2002).

O termo raça pode ser entendido como um tipo de classificação que as sociedades usam para distinguir e hierarquizar seus membros conforme suas características físicas ou biológicas e seu contexto histórico-social, enquadrando-os em uma categoria que os torna passíveis de serem vítimas potenciais de discriminações. Porém, pode ser adotado com o significado de sentimento de solidariedade, identidade coletiva ou consciência política, com a percepção de estar compartilhando uma herança histórica comum com um grupo racial determinado, motivando um movimento social que construa uma auto-estima socialmente positiva, combatendo a discriminação e revertendo a desigualdade racial (Cepir/PE, 2005).

Considera-se o racismo como uma realidade ideológica que estrutura relações sociais e atribui a superioridade de uma raça sobre as demais, levando a reprodução da discriminação e do preconceito racial que se manifestam em atitudes racistas conscientes ou inconscientes (Lopes, 2004). O racismo institucional, por ocorrer por meio de políticas sociais, significa o fracasso coletivo de uma organização na promoção de serviços adequados às pessoas, por sua cor, cultura ou origem étnica, inviabilizando avanços efetivos na eqüidade das ações (DFID, 2004).

A negação em reconhecer e enfrentar a existência do racismo na sociedade brasileira é uma forma de provocar resistência à realização de estudos sobre as relações entre etnia/raça e saúde e investigações das situações de como o racismo opera (Lopes, 2004; Barbosa, 2001; Batista, 2002; Oliveira, 2001). Travassos e Williams (2004), não considerando uma fundamentação biológica para os diferenciais em saúde segundo raça, ressaltam a importância do uso dessa categoria, apesar dos problemas de classificação e confiabilidade da sua mensuração.

Na última década, no Brasil, a redução da pobreza tem beneficiado mais a população branca do que a negra. Em 2001, a proporção de negros abaixo da linha da pobreza era de 47% contra 22% de brancos (Shicasho, 2002). Pesquisas mostram que a população negra concentra-se nos estratos socioeconômicos mais baixos e possui os piores índices de saúde (Cunha, 1997; Martins, 2004; Shicasho, 2002).

As desigualdades socioeconômicas, ao serem mescladas com as diversidades raciais, provocam uma dupla contradição de classe e raça, evidente na menor apropriação de bens, serviços e direitos que a população negra detém em comparação com a branca, propiciando maior vulnerabilidade a uma série de agravos à saúde (Cunha, 1997).

Ao serem usadas como explicação das iniqüidades raciais, as desigualdades econômicas e de classe "maquiam" a exclusão e a intolerância racial, evidenciadas nas diferenças entre os indicadores socioeconômicos da população branca e negra do país (Henriques, 2001). Esse argumento é fragilizado por estudos de diversos autores (Barbosa, 1998; Martins, 2004; Lopes, 2004, Batista e col., 2004), ao demonstrarem que as desigualdades sociais têm um forte componente de discriminação baseado na raça, desmontando a idéia de redução da problemática do racismo à problemática da pobreza.

Nas questões de saúde, as mulheres, apesar de apresentarem problemas específicos inerentes à sua condição biológica, estão sujeitas a riscos e danos relacionados à forma como são vistas e aceitas pela sociedade (Xavier e col., 1989). No Brasil, o perfil de saúde mais crítico para as mulheres negras vem sendo revelado por alguns autores (Barbosa, 2001; 1998; Batista, 2002; Cunha, 1997).

Mesmo reconhecendo que muitas questões que comprometem a saúde da mulher têm origem nas desigualdades de gênero, Barbosa (1998) enfatiza a importância de se identificar, medir e informar os problemas de saúde que atingem as mulheres negras que, no cotidiano, têm as garantias constitucionais freqüentemente violadas.

Este estudo foi motivado pela escassez de pesquisas, particularmente na cidade de Recife, que enfoquem as desigualdades raciais em saúde e busca subsidiar o debate e a definição de políticas públicas que apontem para a redução das iniqüidades em saúde vinculadas às origens raciais das mulheres, afirmando o direito à vida e à morte com eqüidade. Tem, portanto, como objetivo caracterizar a mortalidade de mulheres adultas negras e brancas residentes em Recife, no período entre 2001 e 2003, descrevendo e analisando as desigualdades raciais no risco de morte.

Material e Métodos

Os dados estudados referem-se ao município de Recife, capital de Pernambuco, localizado na região Nordeste do Brasil, cuja população, no ano 2000, era composta de 1.422.905 habitantes (IBGE, 2001), dos quais 53,2% se autoclassificaram pertencentes à raça/cor negra (5,3% preta e 47,9% parda). Da população total, 53,5% eram mulheres, sendo 55,2% na faixa etária de 20 a 59 anos, das quais 51,7% se autoclassificaram negras (5,4% pretas e 46,3% pardas) (IBGE, 2002).

Realizou-se um estudo transversal, tendo a raça/cor como categoria de análise. O termo raça foi aplicado considerando-se que o uso científico deste conceito permite compreender a sua utilidade analítica centrada na negação de uma fundamentação biológica e na reafirmação de sua propriedade social e política.

A população de estudo correspondeu a todos os óbitos captados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) ocorridos no triênio 2001-2003 de mulheres adultas (faixa etária de 20 a 59 anos), residentes em Recife, com raça/cor branca, preta ou parda registrada na Declaração de Óbito (DO). O termo mulher negra reuniu as categorias preta e parda da classificação adotada na DO e no último Censo Demográfico.

Os dados sobre os óbitos, provenientes do SIM, foram coletados na Secretaria de Saúde do Recife e de Pernambuco. Ocorreram 3.123 mortes no período, de mulheres adultas residentes em Recife, entre as quais 172 apresentavam raça/cor ignorada (5,5%), 8 eram amarelas ou indígenas, 1.924 negras (61,6%) e 1.019 brancas (32,6%). As duas últimas categorias corresponderam à população de estudo (2.943 óbitos).

Variáveis sociodemográficas e referentes às causas básicas dos óbitos foram descritas para brancas e negras por meio de dois indicadores: mortalidade proporcional e coeficiente de mortalidade. A seleção das variáveis sociodemográficas levou em consideração a sua disponibilidade no banco de dados do SIM. A variável idade foi agrupada em intervalos de dez anos. Quanto à ocupação, as cinco categorias mais freqüentes foram especificadas, por representarem 80% do total dos casos estudados. Como "serviços/atividades domésticas" foram consideradas as ocupações "dona de casa" e "doméstico/comissário".

A variável situação conjugal, proveniente do campo "estado civil" da DO, foi categorizada em "com companheiro" (notificadas como "casadas") e "sem companheiro" (somatório de "solteira", "viúva" e "separada judicialmente/divorciada"). O local de ocorrência do óbito refere-se às categorias constantes na DO. Os hospitais de ocorrência foram agrupados em duas categorias, de acordo com o tipo de provedor. Como "não SUS" foram considerados os hospitais exclusivamente privados, sem convênio com o SUS. Todos os demais foram considerados como "SUS" (hospitais da rede própria do SUS, da rede privada conveniada, universitários/filantrópicos e os que atendem exclusivamente servidores públicos).

Do total de óbitos, as dez causas básicas mais freqüentes foram descritas segundo capítulos e causas específicas, de acordo com a "Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Décima Revisão" (CID-10) (OMS, 1994). A seguir, para cada faixa etária, foram descritos os cinco capítulos e causas específicas com maior número de óbitos.

Para o cálculo dos coeficientes de mortalidade utilizou-se, como denominador, a população preta, parda e branca, proveniente dos Microdados da Amostra do Censo Demográfico de 2000 (IBGE, 2002), multiplicada por três, como uma aproximação da população do triênio 2001-2003. Os Microdados da Amostra do Censo Demográfico de 2000 resultaram de um processo amostral complexo.

Para a análise da desigualdade de mortalidade entre os dois grupos de mulheres obtiveram-se razões de taxas, tendo como denominador o valor observado para a raça branca. Não foram realizados testes estatísticos de significância em relação aos indicadores dos dois grupos, por não serem os dados amostrais.

Resultados

No triênio 2001-2003, dos 2.943 óbitos de mulheres adultas residentes em Recife, 65,4% foram de negras e 34,6% de brancas. O coeficiente de mortalidade para as negras (295,6/100.000 mulheres negras) foi 1,7 vezes maior que o observado para as brancas (171,0/100.000 mulheres brancas).

Em relação à faixa etária (Tabela 1), a proporção de óbitos entre as mulheres negras foi maior que a observada entre as brancas, com exceção da faixa de 50-59 anos, sendo observada, portanto, uma maior concentração de mortes, entre as negras, em idades mais precoces. Por outro lado, em todas as faixas etárias estudadas, o risco de morte representado pelo coeficiente de mortalidade, foi maior em negras do que em brancas, com razão de taxa variando de 1,6 (no grupo de 50-59 anos) a 2,4 (na faixa de 20-29 anos).

Nas duas categorias raciais estudadas, mais de 80% dos óbitos ocorreram em hospitais (Tabela 1). Entretanto, observaram-se diferenças quanto à proporção de óbitos ocorridos em via pública: 4,7% entre as mulheres adultas negras e 1,5% entre as brancas. Quanto aos coeficientes de mortalidade, o risco de morte foi maior em negras, em todos os locais de ocorrência estudados, com razões de taxas variando de 1,5% (domicílio) a 5,5% (via pública).

Em relação à situação conjugal (Tabela 2), observou-se maior mortalidade proporcional em mulheres sem companheiro (solteira, viúva e separada), tanto entre as negras (62,5%) como entre as brancas (55,4%). Entretanto, a proporção foi maior entre as negras. No que se refere à ocupação, em ambos os grupos predominaram os serviços ou as atividades domésticas, com percentual mais elevado entre as negras (70,8%), em comparação com as brancas (58,4%). O percentual de ocupações que exigem acesso ao sistema de educação formal entre as brancas foi maior que o observado entre as negras.

Dos óbitos hospitalares (Tabela 2), a ocorrência em estabelecimentos do SUS foi mais elevada entre as mulheres negras (91,9%) do que entre as brancas (69,4%). Em relação à ocorrência de óbitos em estabelecimentos que não fazem parte do SUS, identificou-se situação inversa, mortalidade proporcional mais elevada entre as brancas.

Quanto às causas básicas de morte (Tabela 3), os dez capítulos mais freqüentes da CID-10 corresponderam a 96,9% do total dos óbitos ocorridos no triênio estudado. Observou-se maior risco de morte de mulheres adultas negras em relação às brancas em todos os capítulos da CID-10, com RT que variaram entre 1,2 (neoplasias) e 4,5 (causas externas).

Ressalta-se, entre as mulheres negras, que as doenças do aparelho circulatório representaram a principal causa de morte, seguidas pelas neoplasias e causas externas. Entre as brancas, as neoplasias ocuparam a primeira posição, as doenças do aparelho circulatório, a segunda e as causas externas, a sétima. Além disso, o risco entre as negras teve magnitude igual ou duas vezes superior ao apresentado pelas brancas para as doenças dos aparelhos circulatório, digestivo e geniturinário; causas externas e causas mal definidas; e agravos relacionados à gravidez, parto e puerpério.

Na distribuição dos óbitos pelos cinco capítulos mais freqüentes da CID-10 segundo faixa etária (Tabela 4), observou-se que os coeficientes de mortalidade foram maiores em mulheres adultas negras do que em brancas, em todos os grupos de idade com exceção da identificação de maior risco de morte por neoplasias de mulheres brancas, na faixa de 20 a 29 anos.

Quanto às causas externas, o risco de morte foi bem mais elevado em mulheres negras mais jovens, apresentando gradiente decrescente com o aumento da idade. Na faixa de 20 a 29 anos, as causas externas representaram a primeira causa, passando para a terceira posição, entre 30 a 39 anos, e para a quarta posição, no grupo de 40 a 49 anos. Nas mulheres com idade entre 50 e 59 anos, as causas externas deixaram de constar entre os cinco principais capítulos de morte.

As dez causas básicas específicas mais freqüentes de morte (Tabela 5), de mulheres adultas negras e brancas, corresponderam a 48,8% do total dos óbitos ocorridos no triênio 2001-2003. Com exceção do câncer de mama, todas as outras causas específicas estudadas apresentaram coeficiente de mortalidade maior em mulheres negras do que em brancas, com razão de taxas variando entre 1,3% (AIDS) e 9,7% (homicídios). Entre as doenças do aparelho circulatório destacaram-se três causas específicas: as doenças isquêmicas do coração, as doenças cerebrovasculares e a doença hipertensiva, com risco de morte aproximadamente duas vezes superior para as mulheres negras em comparação às brancas.

Em relação à distribuição das cinco causas básicas específicas mais freqüentes por faixa etária, entre as mulheres adultas negras e brancas ocorreram grandes diferenças no risco de morte (Tabela 6). O risco de morte por doenças isquêmicas do coração e por doenças cerebrovasculares foi de duas a três vezes maior em negras nas faixas etárias a partir de 30 anos. Quanto às doenças hipertensivas, foi observado na faixa etária de 40 a 49 anos, para as mulheres negras, um risco de morte quase duas vezes maior que o das brancas. As causas que fazem parte do capítulo de doenças do aparelho circulatório não aparecem entre as cinco principais causas específicas de morte na faixa entre 20 e 29 anos, em que as causas externas, maternas e AIDS ocupam posição de destaque.

Chama a atenção o câncer de mama como terceira causa específica de morte a partir dos 30 anos de idade, nas duas categorias raciais estudadas. Essa neoplasia representou para as mulheres brancas risco mais elevado de morte, nas faixas etárias de 30 a 39 e 50 a 59 anos, mais elevado que em negras. O câncer de colo de útero destacou-se entre as cinco causas específicas na faixa etária entre 40 e 49 anos, com maior risco de morte de mulheres negras.

No grupo das causas externas, as desigualdades raciais foram visualizadas na mortalidade tanto por acidentes de transporte quanto por homicídios e suicídios. Em mulheres negras, o risco de morte por acidentes de transporte foi cerca de duas vezes superior ao das brancas. As negras também, na faixa etária de 20 a 29 anos, apresentaram risco de morte por suicídio quatro vezes maior, quando comparadas às brancas.

Cabe salientar que os homicídios ocupam o primeiro lugar, como causa específica de óbito de mulheres negras mais jovens, representando elevado risco de morte, tanto para o grupo de 20 a 29 anos (para o qual o risco foi 40 vezes maior do para as brancas), como o de 30 a 39 anos (com risco para as negras nove vezes maior do que para as brancas).

Discussão

As estatísticas de mortalidade representam importante fonte de informação para a elaboração de estudos epidemiológicos e análises da situação de saúde, capazes de subsidiar o planejamento e o gerenciamento em saúde (Laurenti, 1991). Não é mais justificável a subutilização destas informações com o argumento de deficiências na cobertura e na qualidade do SIM, visto que a captação e o preenchimento da DO, instrumento básico de coleta do sistema, vem melhorando ao longo dos anos (Paes, 1996).

No caso do município de Recife, a melhoria do SIM vem sendo observada na última década, havendo redução da proporção de causas mal definidas de morte para menos de 1% e aumento da proporção de preenchimento de diversas variáveis, inclusive a raça/cor (Prefeitura do Recife, 2005), sendo a cobertura do sistema considerada adequada (Brasil, 2005).

A operacionalização do estudo deparou-se com a questão da raça/cor ter sido classificada na DO pelo profissional que a emitiu e nos dados demográficos ter resultado da autoclassificação. Apesar de representar uma limitação, os estudos que abordam o risco de morte de acordo com a raça/cor, com dados provenientes do SIM, enfrentam essa mesma questão, como é o caso do que foi conduzido por Batista (2002).

Quanto ao uso da população referente ao ano 2000, a provável superestimação dos coeficientes obtidos foi minimizada pelo baixo crescimento populacional anual de Recife (Prefeitura do Recife, 2005), não interferindo nos valores obtidos para as razões de taxas. A realização de estimativas para o período 2001-2003, a partir de dados já estimados (Microdados da Amostra do Censo Demográfico de 2000), poderia resultar em grandes distorções.

De uma forma geral, esse estudo reafirma os achados de outras pesquisas quanto às desigualdades da situação de saúde da população negra em relação à população branca (Barbosa, 2001; Batista, 2002; Cunha, 2001), ainda que o recorte utilizado tenha sido a mortalidade de mulheres adultas residentes em Recife. A identificação de maiores coeficientes de mortalidade em mulheres adultas negras, com risco de morte quase duas vezes superior ao observado para mulheres brancas, evidencia a dimensão do legado do passado escravista da população negra, que produziu desigualdades resultantes do racismo e da discriminação racial.

A análise das variáveis sociodemográficas, disponíveis no SIM e selecionadas neste estudo, tem um caráter descritivo do espaço social ocupado pelas mulheres, de acordo com a sua condição racial. Ressalta-se a maior mortalidade proporcional em idades mais precoces, entre as negras residentes em Recife. Situação semelhante também foi evidenciada no município de São Paulo, em 1995, por Barbosa (1998).

A maior proporção de mulheres negras em relação às brancas, com óbito ocorrido em hospitais da rede SUS aponta para a forte relação entre pertencer à população negra e não possuir plano de saúde, como já demonstrado a partir dos dados da PNAD referentes ao período de 1992 a 2001 (Shicasho, 2002). Essa situação decorre, certamente, do menor poder aquisitivo das mulheres negras, pois, como foi evidenciado por Martins (2004) a partir da mesma fonte, no período de 1999 a 2001, a renda média proveniente do trabalho das mulheres negras não atingia mais do que 53% da renda das brancas. Esse quadro reafirma a importância do fortalecimento do SUS e da prevenção e monitoramento do racismo institucional no setor saúde, como uma forma de contribuir para a redução das desigualdades raciais relacionadas à situação de saúde.

Quanto à situação conjugal, observou-se, uma maior proporção de óbitos de mulheres sem companheiro entre as negras do que entre as brancas. Dados de Shicasho (2002), referente ao Brasil no período de 1992 a 2001, revelam uma maior proporção de famílias chefiadas por mulheres negras entre as famílias monoparentais femininas, em todos os anos. Esse fato mostra-se mais acentuado nas famílias dos 40% mais pobres da população, sendo sempre menor entre as famílias dos 10% mais ricos. Berquó, a partir do olhar de raça e gênero, também evidenciou, no Brasil, a posição mais desfavorável das famílias chefiadas por mulheres negras (Articulação de Mulheres Brasileiras, 2001).

Em relação à ocupação, importante marcador da inserção das mulheres na sociedade, identificou-se, entre os óbitos, maior participação entre negras que exerciam serviços ou atividades domésticas. A mortalidade proporcional em brancas com ocupações que exigem o acesso a níveis mais elevados de escolaridade foi superior à de negras. Existe uma visão, na sociedade, da ocupação prioritária a ser exercida pela mulher negra: trabalho manual, serviços em geral e serviços domésticos (Articulação de Mulheres Brasileiras, 2001). Soares (2002) aponta essa situação, ao referir que as mulheres negras arcam com todo o ônus da discriminação de cor e de gênero, e ainda sofrem maior discriminação no mercado de trabalho do que as brancas e os homens negros.

Ao analisar dados da PNAD, no período de 1992 a 2001, Shicasho (2002) demonstra que, apesar dos avanços nos níveis de educação e rendimento da população brasileira, o quadro geral das desigualdades raciais tende a se manter inalterado. Cita como exemplo, o Nordeste, onde são observadas as mais altas taxas de analfabetismo do país, com maior expressividade na população negra. Esses fatores resultam na concentração de trabalhadoras negras em setores que oferecem menores rendimentos.

Quanto às causas básicas de morte, as doenças do aparelho circulatório representam a causa mais freqüente em todo o mundo, mesmo nas regiões menos desenvolvidas incluindo o Brasil, (Lessa, 2004). No Nordeste, em 2001, esse grupo de doenças ocupou a primeira posição como causa de morte de mulheres (Brasil, 2004a). Em Recife, situação semelhante foi observada na população feminina, entre 1995 e 2001 (Medeiros e col., 2003), e no presente estudo, ao evidenciar as doenças do aparelho circulatório como a causa de óbito mais freqüente de mulheres adultas negras.

No Estado de São Paulo, em 1999, Batista (2002) constatou que a mortalidade por doenças do aparelho circulatório foi mais elevada entre homens e mulheres pretos, em relação à população branca, havendo maior ocorrência de mortes por doenças cardíacas hipertensivas e doenças isquêmicas do coração. Esse autor destaca o fato de a taxa de mortalidade por doenças isquêmicas do coração, de mulheres negras, ser próxima à dos homens pretos, chamando a atenção, também, para a associação entre a hipertensão e a maior mortalidade de mulheres e homens pretos por doenças cerebrovasculares.

Entre as doenças do aparelho circulatório, Lotufo (1998) classifica a doença isquêmica do coração como a maior responsável por mortes, em todo o mundo. No Brasil, essas doenças destacam-se como importante causa de óbito em todas as regiões. Nas mulheres, em particular, as doenças cerebrovasculares têm grande importância como causa de morte no país: em 1980, lideravam as causas de óbito por doenças do aparelho circulatório nesse grupo populacional (Szwarcwald; Castilho, 1989).

Entre mulheres adultas residentes em Recife, destacaram-se três causas específicas de morte por doenças do aparelho circulatório, no triênio estudado: as doenças isquêmicas do coração, as doenças cerebrovasculares e a doença hipertensiva. A contribuição da hipertensão arterial na mortalidade da população não é adequadamente retratada quando se considera apenas o estudo das causas básicas de morte. Na seleção da causa básica, de acordo com a CID-10, são consideradas algumas complicações da doença, a exemplo do infarto agudo do miocárdio, em detrimento da hipertensão arterial, agravo desencadeante da seqüência de eventos que levou à morte (Chor e col.,1999; Lessa, 1998).

Como o acesso e a qualidade da atenção têm grande importância para seu controle, a hipertensão arterial contribui para a mortalidade por outras doenças do aparelho circulatório, destacando-se a decorrente de doenças cerebrovasculares, em que representa o principal fator de risco (Chor e col., 1999).

Para Bloch (1998, p. 64), mesmo referindo a existência de controvérsias, é possível que "... estresses psicossociais associados a categorias étnicas em desvantagem exacerbem o risco de ter hipertensão arterial". Ainda, a partir de revisão da literatura, Lessa (1998) refere que é freqüente associação da hipertensão com fatores do ambiente psicossocial, como o pertencimento a estratos sociais menos favorecidos, baixa escolaridade, estressores sociais crônicos (pobreza, hostilidade, estado marital, racismo, aglomeração e estresse socioecológico), ocupações menos qualificadas, estressores do trabalho e migração. A autora relata que os negros convivem, quase sempre, com ambientes sociais mais desfavoráveis e estão mais expostos aos estressores sociais crônicos, quando comparados aos brancos.

Quanto à associação entre hipertensão e população negra, Cruz e col. (1998) investigaram, na literatura, determinantes históricos e sociais que relacionam hábitos de mulheres e homens negros escravizados com os hábitos da população negra na atualidade, considerados como estressores decorrentes do processo de escravização. Esses estressores expressam-se nos fatores de risco para hipertensão arterial impostos à população negra e não revogados com a Lei Áurea, como pobreza crônica, baixa auto-estima, violência, padrão alimentar precário, tabagismo e alcoolismo.

Os achados do presente estudo, em consonância com os autores citados anteriormente, apontam a necessidade de superação das desigualdades, visando à melhoria da qualidade de vida da população negra. Também evidenciam a importância da vigilância epidemiológica das doenças crônicas não-transmissíveis e de estudos epidemiológicos com recorte racial, que investiguem o impacto das doenças do aparelho circulatório, com atenção para a mortalidade por doenças isquêmicas do coração, doenças cerebrovasculares, doenças hipertensivas e seus fatores de risco.

Em mulheres adultas, residentes em Recife, as neoplasias, conforme esse estudo, representaram o primeiro grupo de causas de morte, em brancas, e o segundo, em negras, destacando-se a magnitude do câncer de mama e de colo uterino.

O câncer de mama é predominante em populações com melhor nível socioeconômico, em contraste com o câncer de colo de útero que se mostra mais freqüente em populações com piores condições de vida (Koiffman e Koiffman, 1999). A morte por câncer de colo do útero evidencia a ineficiência e ineficácia dos programas de prevenção do câncer cérvico-uterino, por ser uma das neoplasias de mais fácil detecção, com baixo custo e curável, dependendo do estágio do diagnóstico (Lessa, 1998). As características dessas neoplasias provavelmente estão associadas aos achados do presente estudo: o câncer de mama com risco de morte maior em brancas e o câncer de colo do útero, em negras. Situação semelhante foi encontrada no Estado de São Paulo, em 1999, por Batista (2002).

Em Recife, em relação à mortalidade por neoplasias em mulheres adultas, os resultados encontrados contribuem para evidenciar a dimensão do câncer como problema de saúde pública, as desigualdades raciais na mortalidade e a importância da promoção de ações que considerem as dificuldades de acesso à informação sobre os fatores de risco e ao diagnóstico e tratamento precoces. Essas dificuldades são vivenciadas, no cotidiano, pelas mulheres pobres, entre as quais se destaca a grande inserção de mulheres negras.

Em Recife, as causas externas representaram a terceira causa de morte de mulheres adultas negras e a sétima, de mulheres brancas. Ressalta-se a desigualdade racial encontrada: o risco de morte em negras foi quatro vezes superior ao das brancas, sendo mais elevado para as mulheres negras mais jovens. Esses dados são consonantes com os de Batista (2002) para o Estado de São Paulo, em 1999, quando observado que as mulheres negras morreram mais por causas violentas que as brancas e as pardas.

Ao se considerar a totalidade dos óbitos, no Nordeste, em 2001, as causas externas ocuparam a segunda causa de morte. Nas mulheres, representaram a quinta causa, em quase todas as regiões do país, nesse mesmo ano, com exceção apenas da Região Sul, onde ocuparam o quarto lugar (Brasil, 2004a). Para a população em geral de Recife, no período de 1996 a 2001, as causas externas representaram a segunda causa de morte, porém o risco de morte por violência foi mais elevado nos estratos com piores condições de vida (Silva, 2003).

Neste estudo, no capítulo de causas externas foram visualizadas desigualdades raciais na mortalidade por acidentes de transporte, homicídios e suicídios, sendo o risco de morte por essas causas específicas mais elevado em negras. Chama a atenção, particularmente, a mortalidade na faixa etária de 20 a 29 anos: os homicídios além de representarem a primeira causa específica de morte em negras, nesse grupo apresentaram coeficiente de mortalidade quarenta vezes maior que o observado em brancas, a maior desigualdade racial de mortalidade detectada no estudo.

A desigualdade de morte por homicídios, juntamente com a decorrente dos acidentes de transporte, provavelmente contribuiu para a diferença observada quanto ao local de ocorrência dos óbitos, em que o risco de morte em via pública das mulheres adultas negras foi cinco vezes superior ao das brancas.

De acordo com estudo encomendado pelo Ministério da Saúde, entre os anos de 1998 e 2000, no Brasil, os homicídios corresponderam a 12,3% das mortes da população negra e a 5,5% dos óbitos da população branca (Paixão e col., 2004). Recife tem sido identificado como uma das capitais mais violentas do país, com os homicídios representando entre as causas externas a primeira causa de morte (Brasil, 2004a), correspondendo, no período de 1995 a 2001, a 62,1% do total de óbitos por causas violentas (Medeiros e col., 2003).

No Brasil, os estudos que analisam o perfil das vítimas de homicídios mostram uma predominância de jovens, do sexo masculino, identificados nas declarações de óbito como pretos ou pardos, com menor qualificação profissional e pertencentes a famílias de baixa renda. Mesmo predominando entre os homens, desde 1980, vem crescendo a participação dos homicídios na mortalidade das mulheres brasileiras (Souza e Minayo, 1999).

A violência é um fenômeno bastante complexo. Quando infligida às mulheres é, em geral, uma violência articulada a questões de gênero, ou seja, a assimetrias existentes nas relações de poder entre homens e mulheres, com raízes na subordinação e desvalorização do feminino diante do masculino. Em geral, essa forma de violência é exercida no espaço doméstico e tem, como agressor, homens com os quais as mulheres mantêm relações afetivas, sexuais ou familiares (Portella, 2002). O uso de álcool e drogas, a condição de desemprego e a baixa escolaridade são algumas das características que têm sido identificadas no parceiro agressor. Para algumas mulheres, a situação pode ser ainda mais dramática, por sofrerem violência tanto no espaço privado, como no público (Drezett, 2002).

Em Pernambuco, vem sendo observado número crescente de homicídios de mulheres em espaços públicos, cometidos por desconhecidos, seja pelo envolvimento de seus companheiros, familiares ou mesmo delas com o crime organizado ou resultante da crescente violência urbana (Portella, 2002).

Apesar de as relações de gênero possuírem uma dinâmica própria, encontram-se também articuladas a outras formas de dominação e desigualdades sociais, sejam elas de raça/etnia ou classe social (Camargo, 2002). A violência racial e de gênero representa obstáculos para a eqüidade em saúde e uma violação dos direitos humanos, sendo fundamental a articulação de diversos setores para seu enfrentamento. Os resultados deste estudo, ao mensurar a desigualdade racial na mortalidade por causas externas, em mulheres residentes em Recife, apontam a necessidade de outras pesquisas que permitam aprofundar a interseção entre violência contra a mulher e recorte racial.

Quanto às doenças infecciosas e parasitárias, o risco foi mais elevado em mulheres adultas negras, destacando-se, entre as causas específicas desse capítulo, a AIDS e a tuberculose. A AIDS, nos dois recortes raciais estudados, constou entre as três primeiras causas específicas de morte nas faixas etárias mais jovens, compreendidas entre 20 e 39 anos. No Estado de São Paulo, em 1999, Batista (2002) também verificou o impacto da AIDS entre mulheres, com a identificação de maior taxa de mortalidade nas pretas e pardas. Dados da epidemia de AIDS no país, referentes aos casos notificados a partir de 2001, mostram redução na proporção de casos em mulheres brancas e aumento entre as pardas (Brasil, 2004b).

Em Recife, apesar da importante redução da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias, tem-se observado a predominância de casos e óbitos por tuberculose em estratos de baixa condição de vida, considerando-se a pobreza como um importante fator de risco para a ocorrência de casos e, em especial, de mortes por tuberculose (Medeiros e col., 2003; Silva, 2003). Essa situação provavelmente contribui para o maior risco de morte por tuberculose, observado neste estudo, em mulheres adultas negras de Recife.

Em relação ao grupo das doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, no qual o risco de morte foi mais elevado em mulheres adultas negras, ressalta-se que a diabetes representou a principal causa específica de morte deste capítulo da CID-10 e a quarta causa específica para o conjunto de causas estudadas.

A população negra entre 30 e 69 anos identificada com diabetes, em estudo populacional brasileiro, no período de 1987 a 1989, tinha menor escolaridade e referia menor freqüência de diagnóstico prévio da doença (Franco, 2001). Essa situação, de acordo com Franco (2001), expressa diferenças socioeconômicas importantes entre a população negra e branca, que se refletem no acesso aos serviços de saúde, com conseqüente atraso no diagnóstico e no tratamento das complicações, no aparecimento de complicações mais severas e de incapacidades, e no tratamento mais tardio de tais condições. Bloch (1998) ressalta que a diabetes faz parte do conjunto de fatores de risco que eleva a mortalidade cardiovascular, com impacto relativo maior entre as mulheres.

Entre os dez capítulos mais freqüentes da CID-10 estudados, destaca-se o maior risco de morte por causas mal definidas em mulheres adultas negras. Segundo Cunha e col. (2000), entre 1980 e 1994, as causas mal definidas foram mais freqüentes em mulheres e essa característica vem aumentando ao longo dos anos em todas as regiões brasileiras, excetuando-se a Região Sul. As queixas referidas pelas mulheres são menos valorizadas e, conseqüentemente, menos investigadas e suas causas menos diagnosticadas, em comparação com a dos homens. Para as mulheres negras, essas questões de gênero são acrescidas das dificuldades de acesso aos serviços e meios de diagnóstico, colocando-as em situação mais desfavorável em relação às mulheres brancas (Barbosa, 2001).

A mortalidade relacionada à gravidez, parto e puerpério (causas maternas) representa um importante problema de saúde pública, com grande impacto social. Em sua maioria são óbitos evitáveis por meio de assistência oportuna e de qualidade (Galli, 2003). Em Recife, de acordo com o presente estudo, o risco de morte de negras em relação ao de brancas, por agravos relacionados à gravidez, parto e puerpério, foi duas vezes superior e, na faixa etária de 20 a 29 anos, quatro vezes maior. No Estado do Paraná, em 1993, o risco de morte por causas maternas foi 7,4 vezes maior em mulheres pretas que em brancas (Martins, 2000) e, no Estado de São Paulo, em 1999, 5,6 vezes superior (Batista, 2002).

O desigual risco de causas de óbito, entre mulheres negras e brancas, observado neste estudo, sinaliza iniqüidades no acesso e na qualidade da atenção integral à saúde das mulheres, alertando para a importância da promoção da eqüidade em saúde, por meio do combate ao racismo, inclusive institucional, e às desigualdades sociais. Deve-se considerar que, no cotidiano, as mulheres negras enfrentam os efeitos cumulativos da discriminação racial e da redução dos direitos de condição de vida digna e de acesso à saúde.

Ao descrever e analisar comparativamente as características sociodemográficas e as causas básicas de morte, em mulheres adultas negras e brancas, residentes na cidade de Recife, os dados deste estudo reafirmam a importância da incorporação do recorte racial quando da elaboração de perfis epidemiológicos e de análises de situações de saúde, sendo fundamental a sensibilização dos profissionais de saúde quanto à inclusão e ao adequado preenchimento da variável raça/cor nos registros dos serviços oferecidos à população.

Numa perspectiva de gênero e raça, os dados apontam para a necessidade de se incorporar, nas ações de saúde, a reflexão sobre os fatores que influenciam o poder de intervenção das mulheres, com destaque para a posição de desvantagem da maioria das mulheres negras, quanto à adoção de práticas de prevenção e promoção à saúde.

As desigualdades reveladas na mortalidade das mulheres negras residentes em Recife reforçam a necessidade do aprimoramento da vigilância em saúde e do incentivo à produção de conhecimento sobre desigualdades raciais em saúde. Indicam, também, a necessidade da efetivação de políticas e ações públicas baseadas em princípios de cidadania e de respeito à dignidade da pessoa humana, que possibilitem a superação de desigualdades pautadas no racismo e na discriminação racial, contribuindo para a construção de uma sociedade justa e solidária.

Por fim, praticamente todos os dados revelam iniqüidades na saúde das mulheres negras, herdeiras das desigualdades resultantes das relações sociais e políticas pautadas por discriminações de natureza sexista e racial, com violação de direitos que dificultam o acesso à ascensão social e a condições dignas de saúde.

Recebido em: 11/12/2006

Aprovado em: 23/04/2007

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  • 1
    Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Vigilância sobre Saúde, do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, em setembro de 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Recebido
      11 Dez 2006
    • Aceito
      23 Abr 2007
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