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Apresentação

Apresentação

Violências e contemporaneidade

Mais um número especial sobre violências. Faz ainda sentido – poder-se-ia perguntar –, já que tanto foi escrito sobre o tema? Sua pertinência estaria justificada pelo crescimento efetivo do fenômeno, afirmado e re-afirmado pelos últimos episódios que têm atingido o planeta e que têm seus mais tristes e célebres exemplos no 11 de setembro em Nova York, no 11 de março em Madri, no assassinato de mendigos no centro da cidade de São Paulo, no massacre na escola de Breslan, na Rússia, afetando, de modo bárbaro, a população civil, e, sobretudo, infantil?

Nesses episódios aparece uma violência vazia de sentido que gangrena cada vez mais a vida social nas cidades. O que é mais deplorável, como característica fundante destas violências, é sua unilateralidade.

Ou, ainda, residiria tal pertinência na multiplicidade de representações sociais da violência, cujos conteúdos fazem alusão a uma nova era de barbárie e a situações de medo e pânico que tomam conta das metrópoles ou megalópoles do planeta?

Para se responder de forma breve à questão, poder-se-ia dizer que tanto um quanto outro desses aspectos justificariam, a rigor, o aprofundamento do olhar sociológico sobre essa temática. Pode-se admitir que há um crescimento da violência em novas expressões ou manifestações; da mesma forma, não seria faltar com a verdade dizer que, em determinados contextos socioeconômicos e culturais, as representações sociais da violência visualizam-na como arauto do fim dos tempos, já que as tecnologias da destruição, que os seres humanos desenvolvem, podem pôr em questão a sobrevivência do planeta e de seus habitantes.

Entretanto, no âmbito do campo acadêmico, falar de crescimento e diversidade do fenômeno, sem qualificar o sentido da afirmação, seria leviano, como seria igualmente leviano importar para o campo da ciência as explicações produzidas e propostas pelas representações sociais do senso comum, sem submetê-las, enquanto objeto do conhecimento, ao crivo da crítica.

Não se pretende aqui, no breve espaço de apresentação deste número da revista Sociedade e Estado, trazer estatísticas e comparações que resolvam a intrincada questão do aspecto quantitativo do fenômeno. A violência pode ter crescido, é fato. Mas... em relação a quê? Que novos episódios e modalidades de violências aparecem como cada vez mais respondendo a que critérios e conceitos teóricos? Essas parecem ser questões relevantes e que, às vésperas de se completar dez anos da publicação de um primeiro volume sobre o assunto, podem justificar um outro número da revista sobre o tema.

Se nesse período multiplicaram-se os conhecimentos e reflexões sobre os fenômenos e fatos da violência, por outro lado, novas dinâmicas e novas manifestações desses mesmos fatos apontam para a necessidade de se continuar a pesquisar, debater e analisar os novos acontecimentos nos quais a violência se coloca de forma recorrente e contundente como conteúdo presente em incontáveis processos sociais e políticos. Nesse sentido, vale precisar a pergunta eminentemente sociológica que coloca a ênfase de suas indagações no campo das relações pessoais, ou interpessoais, enquanto espaço privilegiado (ou o núcleo duro) da explicação sociológica. A questão que aguça o olhar sociológico e que precisa ser colocada com insistência é a que diz respeito às razões e ao sentido para os seres humanos escolherem, tão freqüentemente, a violência como forma recorrente de resolução de suas desavenças, desencontros, desenganos, conflitos, instaurando-a, assim, como prática corriqueira da vida social. Sem se debruçar especificamente sobre a resposta a essa pergunta, muitos dos textos aqui apresentados colocam-na como pano de fundo para as reflexões.

Dentre os aspectos relevantes para se refletir sobre a violência, valeria também lembrar que representações sociais, como as referidas nos parágrafos iniciais desta apresentação, podem estar na base da orientação das condutas de atores sociais os mais diferenciados, levando a que tais representações sejam, elas mesmas, partes constitutivas do fenômeno que representam. O efeito mais evidente disso é que, dentre esses atores, não são poucos os que concebem e percebem o mundo à sua volta como estando à beira do caos social e identificam na violência o horizonte concreto que orienta ações e relações sociais; em outras palavras, que incorporam as práticas de violência em suas relações cotidianas.

Diante desse cenário, real ou representado, os atores organizam seu agir acionando uma lógica do salve-se quem puder ou do fazer justiça com as próprias mãos, lógica que leva à auto-proteção, ou à proteção privada, ambos os procedimentos assumidos em lugar da proteção e da segurança públicas representadas como falidas.

Pensando em termos de possibilidades e limites do presente volume enquanto instância de reflexão sobre (a) violência, cumpre também realçar que ele não será capaz de trazer respostas fechadas e conclusivas para questões de natureza mais propositiva. A idéia do número é contribuir para, ao colocar questões pertinentes para a análise, aumentar e aprofundar o mais possível o conhecimento sobre a violência e sobre suas dinâmicas e práticas no interior das sociedades. Tal estratégia pode, eventualmente, propiciar instrumentos que cheguem a subsidiar políticas de segurança mais eficazes. Pode, igualmente, contribuir para a construção de olhares, perspectivas ou paradigmas de abordagem cuja ênfase repouse cada vez mais sobre as possibilidades, potencialidades e limites de uma cultura de pacificação capaz de barrar ou minimizar o avanço das práticas de violência, enquanto sistema de resolução de conflitos e divergências.

Hoje, o que se vê é um pouco o contrário: a violência está presente em quase todas as dimensões e espaços da vida cotidiana, seja no plano individual, seja no coletivo, no real e no simbólico. Além disso, ao se concretizar, assume formas múltiplas atingindo os indivíduos tanto em sua integridade física quanto simbólica. Aliás, em tempos de profunda sofisticação da tecnologia e da gestão da violência, as considerações referentes ao âmbito do simbólico não podem estar ausentes das reflexões que se propõem a aumentar o conhecimento do social através de um maior domínio teórico e empírico sobre os fatos da violência: cada vez mais multiplicam-se formas de se atingir a integridade moral e ética do indivíduo, sem que se atinja um único fio de cabelo da pessoa em questão.

Por que violência?

Essa é uma pergunta relevante e recolocada repetidas vezes. Alguns dos nossos pais fundadores, preocupados em pensar a história no longo prazo, diagnosticaram que os períodos militares e de guerra seriam sucedidos por períodos de paz, sob a égide da ciência. Ainda que não se possa ceder aos apelos de uma visão ingênua, pecado mortal para qualquer análise científica, não pareceria paradoxal que as sociedades contemporâneas, que convivem com inúmeros avanços científicos, evidenciados, por exemplo, nos êxitos das pesquisas biológica e tecnológica (que, em tese pelo menos, poderiam proporcionar o incremento nos níveis de bem-estar e na qualidade de vida dos mais de seis bilhões de pessoas que habitam o planeta) convivam igualmente com as formas as mais cruéis e sangrentas de violência, tortura, terrorismo, utilizando-as para se relacionarem com seus semelhantes?

Esse é um lado da indagação e, sob esse aspecto, pesquisas vêm apontando resultados e achados empíricos bastantes alvissareiros que mostram que, contrariamente a outros momentos e períodos históricos, as violências na atualidade contemporânea, seja as de esquerda ou de direita, políticas, religiosas ou de qualquer outra natureza, não encontram legitimidade e respaldo, a não ser no reduzido círculo dos que as praticam.

Se até meados do século passado muitos (aí compreendidos também cientistas sociais das mais diferentes correntes de pensamento) consideravam a prática da violência como recurso político legítimo, porque parte do processo revolucionário e de oposição às práticas ditatoriais, às situações consideradas de exploração socioeconômica e de restrições políticas, e às circunstâncias e conjunturas históricas de determinadas regiões geográficas e humanas do globo, hoje todos esses considerandos perderam legitimidade e são totalmente rejeitados, embora nem por isso tenham perdido força. Ao contrário, cada vez mais acontecimentos violentos envolvendo populações civis e, sobretudo crianças, em prol de causas as mais distintas, mas, em qualquer hipótese, desencadeiam reações profundas de revolta e repúdio por parte da sociedade. O que atesta mais uma vez que o processo civilizador, como ensina Elias, aumenta a sensibilidade e inibe qualquer possibilidade de naturalização ou de justificação, em nome de uma assim chamada "boa causa" de atos de violência. Reações que, vale reafirmar, não têm sido suficientes para estancar ou minimizar a força desses processos violentos.

O outro lado dessa indagação aponta para o fato de que cada vez mais vêm se multiplicando as discussões e as práticas direcionadas à construção e implementação de instrumentos legais, interpretativos e jurídicos mais avançados, que sejam aptos a enfrentar, nas esferas nacionais tanto quanto internacionais, os problemas que atingem os grupos mais vulneráveis. O objetivo é o de se chegar, se possível, a elaborar formas viáveis de garantir, sem distinção, direitos humanos a essas populações, de modo a reverter a condição de milhões que estão, ainda hoje, condenados a sofrimentos e violências que vão desde as múltiplas condições de escravidão à tortura, passando por toda espécie de discriminações e humilhações, tanto de natureza física quanto simbólica.

Atualmente, a idéia de progresso convive e mistura-se com o avanço da indústria bélica e da produção de armamentos sofisticados (o que não significa que as armas mais elementares tenham deixado de existir e de ser utilizadas) responsáveis pela destruição, no século XX, de milhões e milhões de seres humanos. Com ênfase sobretudo para a população feminina, a qual acompanhada por seus filhos e por seus idosos está condenada a abandonar ou a fugir de seus países em função da guerra, ou porque seus corpos são tomados como territorialidade de guerra para a limpeza da raça via práticas massivas de estupro, ou como espaço de des-realização aravés do dilaceramento de seus corpos, no dizer de Butler, enquanto a população masculina também acaba morrendo aos milhares, seja em guerras civis, seja nas batalhas cotidianas que constituem as guerras urbanas travadas violentamente nas grandes metrópoles.

O debate sobre a violência hoje, para ser consistente e pertinente, tem que levar em conta a complexidade e a pluralidade de situações em que ela se manifesta. E não pode se restringir a uma posição única, pois tem que considerar desde o extremo barbarismo, o terrorismo de Estado e o terrorismo contra o Estado, com todo o pavor que o terrorismo nos causa, até a dita violência serial e a violência difusa que envolve o cotidiano de milhares de homens e mulheres e expõem a fragmentação e, mais que isso, o dilaceramento de muitas das formas que caracterizam as relações interpessoais.

Há que se considerar também o amplo debate, de modo algum consensual, que se desdobra em uma dupla vertente: por um lado, há os que se indagam sobre ter o Estado (com todo o conjunto de instituições que o formam/compõem) abandonado, ou não (e em que medida, profundidade e extensão) as funções que lhe eram (ou são) próprias, quando se pretendia social, interventor e benfeitor; por outro lado, há os que afirmam que, num caso como no outro, conservou o Estado sua função de exercer "a violência legítima", com as implicações que dela decorrem.

Para alguns, a característica de legitimidade dessa violência aparece entre aspas para ressaltar seu caráter abusivo; para outros, entretanto, é precisamente o exercício do monopólio do uso legítimo da força física, enquanto prerrogativa do Estado, o que garante a pacificação social. Sua ausência responde pela violência difusa, que pode se degenerar, para, no limite, propagar um Estado hobbesiano de guerra de todos contra todos, o que põe em risco a manutenção do vínculo social. Razão pela qual, advogam os partidários desse ponto de vista, é urgente que o Estado volte a concentrar o monopólio do uso da força física, desde que sem ultrapassar os frágeis limites que se situam entre o uso legítimo da força e o abuso de poder, potencializado pela utilização das armas.

Depois da queda do Muro de Berlim e do desaparecimento do império soviético, a opinião pública civilizada não mais admite o uso da violência do Estado contra ninguém. Mas sabe igualmente dos riscos decorrentes do fato do monopólio de a utilização da violência escapar do âmbito do Estado, e acabar empregada/usada por movimentos antinacionais da sociedade civil – desde os setores informais e/ou excluídos até os setores fundamentalistas, que sacrificam sua vida por uma identidade religiosa. Ou seja, irrompe ou pode irromper uma "violência selvagem", que se coloca como resposta a uma representação da insuficiência, não meramente quantitativa e provisional, da capacidade do Estado. Ocorre que muitas vezes o Estado (como é o caso do brasileiro e de vários outros), antes mesmo dessa violência desenfreada ter-se propagado, já não conseguia controlar e resolver, pela via institucional, todos os conflitos produzidos no interior da sociedade civil. Nesse caso, trata-se, na maior parte das vezes, de uma insuficiência gerada não apenas conjuntaralmente em razão dos últimos progressos da economia mundial globalizada, que vêm ampliando substancialmente a superfície social que o Estado deve cobrir, mas também em razão das próprias transformações que este Estado traz consigo, como resultado de sua condição histórica, patrimonialista e paternalista, a qual prevaleceu durante boa parte do século XX.

Deste ponto de vista, podem exacerbar-se tanto a violência social "selvagem" (tráfico, fundamentalismos), como a violência "civilizadora" do Estado.

A dinâmica de todas essas novas modalidades de violência instala-se de modo tão profundo e veloz que o presente número da revista não consegue, nem era aliás sua pretensão, dar conta de toda a gama de fatos, questões, problemas e conceitos que estão relacionados ao tema e teimam em desafiar e provocar a imaginação sociológica com agudez talvez maior do que a que suscitou a produção do primeiro número da revista Sociedade e Estado sobre a violência.

Se o número publicado em 1995 registrava como lacunas maiores a ausência de reflexão sobre a questão agrária e sobre a condição feminina, o atual não trata de modo mais imediato e direto a questão do terrorismo, em suas várias manifestações e tipologias. Ficamos devedores; mas essa dívida pode transformar-se em promessa: a de que, certamente, não esperaremos mais dez anos para trazermos a público um terceiro número sobre violência.

Maria Stela Grossi Porto

Lourdes Bandeira

(Organizadoras)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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