Open-access Do estruturalismo ao culturalismo: a filosofia das formas simbólicas de Ernest Cassirer*

From structuralism to culturalism: Ernst Cassirer’s philosophy of symbolic forms

Resumo

Ao investigar as origens neokantianas do estruturalismo e do culturalismo, este artigo analisa o desenvolvimento do pensamento de Cassirer, seguindo sua trajetória intelectual do conhecimento à cultura e da cultura à práxis. Este artigo está dividido em duas partes. Na primeira, o autor apresenta uma análise da concepção relacional do conhecimento de Cassirer. Na segunda, a crítica do conhecimento é suplantada por uma crítica da cultura. O autor analisa a filosofia antropológica das formas simbólicas e a compara criticamente com a teoria vitalista da cultura de Simmel. O artigo termina com a reivindicação por uma sociologia prática inspirada pelo retorno de Cassirer à filosofia prática de Kant.

Palavras-chave: Cassirer; Cultura; Neokantismo; Práxis; Pensamento relacional.

Abstract

Investigating the neo-Kantian origins of structuralism and culturalism, this article analyses the development of Cassirer’s thought by following his intellectual progression from knowledge to culture, and from culture to praxis. The article is in two parts. In the first part, the author presents an analysis of Cassirer’s relational conception of knowledge. In the second part, the critique of knowledge is superseded by a critique of culture. The author analyses Cassirer’s anthropological philosophy of symbolic forms and critically compares it to Simmel’s vitalist theory of culture. The article ends with a plea for a practical sociology inspired by Cassirer’s return to Kant's practical philosophy.

Keywords: Cassirer; Culture; Neo-Kantianism; Praxis; Relational thinking.

Qual a relação entre Leibniz, Kant, Marx, Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss, Bachelard, Cassirer, Mannheim, Elias, Bourdieu e Baskhar? O que eles têm em comum? Quais são as suas “semelhanças de família”? São todos estruturalistas de alguma ordem. Essa resposta parece surpreendente, mas se definimos o estruturalismo como “a visão filosófica de acordo com a qual a realidade dos objetos do homem ou das ciências sociais é relacional ao invés de substancial” (Caws, 1990: 1), podemos ver, e talvez mesmo apreciar, o fato de que, de um modo ou de outro, todos eles contribuíram para a emergência do paradigma do “realismo relacional” que caracteriza as abordagens estruturalistas nas ciências humanas. Neste artigo, pretendo explorar as contribuições de Ernst Cassirer (1874-1945) - o grande filósofo idealista e acadêmico erudito da cultura - para essa corrente de pensamento que é, sem dúvida, uma das principais da teoria social contemporânea1. Entretanto, dado que Cassirer considera a ciência apenas como uma entre outras formas de cultura, a análise epistemológica das condições de possibilidade do conhecimento científico naturalmente leva e é seguida pela reconstrução da filosofia geral das formas culturais ou simbólicas, que é similar às teorias antropológicas da linguagem de Wilhelm von Humboldt, Benjamin Whorf e Edward Sapir e que inspirou de forma mais ou menos direta as teorias contemporâneas da cultura de Pierre Bourdieu (1978), Jürgen Habermas (1997) e Michel Freitag (1986)2. Consequentemente, o artigo está dividido em duas partes. A Parte 1, mais epistemológica, explora a concepção relacional de ciência; a Parte 2, mais cultural, tem por objetivo repensar a cultura como práxis. O artigo conclui reivindicando uma reorientação da sociologia afastando-a da razão pura em direção à razão prática. Embora o argumento possa por vezes parecer longo demais, é importante ver que a progressão da ciência para a cultura e da cultura para a práxis não é apenas lógica, mas também normativa. Afinal, o que é a sociologia senão uma disciplina crítica a serviço de uma defesa fundamentada dos princípios da autonomia e da integridade do sujeito (Arato, 1974)?

As origens neokantianas da teoria estruturalista do conhecimento

O neokantismo

Há não muito tempo, dificilmente se podia ser um sociólogo sem ser um marxista ou, ao menos, um criptomarxista. Tempos mudaram e talvez devêssemos acreditar em Foucault (1994, 1: 546), “todos somos neokantianos hoje em dia, estejamos conscientes disso ou não”3. Para saber se essa frase é exagerada ou não, é preciso, com efeito, primeiro investigar o que o neokantismo propõe4. O neokantismo - ou neocriticismo, como foi frequentemente chamado no final do século XIX - é mais bem caracterizado não como uma filosofia, mas como um certo modo de filosofar pós-metafísico e resolutamente anti-hegeliano (Habermas, 1988: cap. 1; Schnädelbach, 1991: cap. 1) inspirado em Kant - cujo lema “precisamos voltar a Kant!” (“Also muss auf Kant zurückgegangen werden!”) fecha um dos capítulos do famoso livro de Otto Liebmann, Kant und die Epigonen. Qualquer enciclopédia de filosofia minimamente decente irá lhe dizer que o neokantismo precisa ser definido no plural. Ele se refere a um conjunto de movimentos puramente acadêmicos ou “sistemas professorais” (Lukács, 1955: 255) que existiram em algum lugar da Alemanha entre 1850 e 1930, quando sua influência repentinamente entrou em declínio depois da dura disputa em Davos, na Suíça, que opôs Cassirer e Heidegger, e aparentemente foi vencida por este último5.

Notórias por suas querelas, as diferentes frações do movimento neokantiano tiveram pouco em comum para além da forte e quase visceral reação contra os idealismos especulativos de Fitche, Schelling e Hegel, e da convicção de que a filosofia poderia e deveria ser uma ciência rigorosa (e não uma Weltanschauung). Isso apenas poderia vir a ser o caso, argumentou-se, se a filosofia se voltasse para o espírito e método de Kant, tal como escrito no prefácio da Crítica da razão pura (1781) (Kant, 1983) e no Prolegômenos a toda metafísica futura que possa apresentar-se como ciência (1793). Fiéis ao espírito do sábio de Könisberg, ainda que revisionistas quanto à letra, os neokantianos seguiram sua orientação de “substituir ontologias substancialistas por uma mera analítica do entendimento” (Kant, 1983: B 303), mas generalizaram e estenderam a investigação das condições de possibilidade da ciência para a cultura. Foram duas as características particulares do reavivamento kantiano do final do século XIX: a rejeição dos sistemas metafísicos do idealismo absoluto e a orientação em torno da ciência e da cultura, em uma tentativa de revelar suas condições de possibilidade.

Historiadores das ideias geralmente distinguem duas principais escolas do movimento neokantiano: a Escola Lógica de Marburgo, representada primeiro por Hermann Cohen e Paul Natorp (primeira geração) e, finalmente, por Ernst Cassirer (segunda e última geração); e a Escola Axiológica de Heidelberg, representada primeiro por Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert (primeira geração) e depois por Max Weber e Emil Lask (segunda geração). Essas duas escolas se dividem por duas propostas distintas: uma defende que o espírito da filosofia kantiana é mais bem desenvolvido pela investigação em torno da lógica e dos fundamentos das ciências naturais, tal como reivindicado pelos membros da Escola de Marburgo; já a outra sustenta que é pela investigação em torno da teoria do valor e dos fundamentos das ciências da cultura, tal como os membros da Escola de Heidelberg pareciam pensar.

Essa diferença entre as duas escolas não deve ser estilizada, contudo, como oposição entre ciência natural e ciência social. O desenvolvimento intelectual de Ernst Cassirer está aí para mostrar que a análise transcendental das ciências naturais pode ser estendida e generalizada para uma análise transcendental da cultura, entendida como sistema unitário, embora diversificado, que faz mundos (world-making system) (Goodman), no qual o acesso à realidade é mediado e constituído por símbolos. Principal aluno de Hermann Cohen e mais conhecido representante da escola lógica, Cassirer claramente pertence à Escola de Marburgo. Diferentemente de seu distinto professor, contudo, ele não se limitou à investigação dos fundamentos das ciências naturais, mas, partindo daí, desenvolveu a análise transcendental da lógica da ciência de Cohen na direção de uma teoria geral da cultura na qual a ciência é considerada como apenas uma entre outras formas de simbolização. A principal tese da filosofia lógico-transcendental de Cohen é que objetos, incluindo objetos da experiência, não são dados, mas “gerados” por uma subjetividade apriorística (Dussort, 1963). O pensamento não aceita nada como dado, mas descobre em cada dado uma geração (Erzeugung). Tomadas essas pistas a partir do estudo da história do cálculo diferencial, Cohen acaba sustentando que cada fato é gerado pelo pensamento e determinado por sua posição em um sistema logicamente necessário. A ideia da sobredeterminação funcional dos fatos pelo campo de relações conceituais nos quais eles foram gerados foi desenvolvida por Cassirer numa teoria relacional ou funcional do conceito.

Uma teoria relacional da ciência

Na discussão introdutória sobre o método de sua obra de quatro volumes a respeito do problema do conhecimento na filosofia moderna e nas ciências naturais, Cassirer (1906-1907/1971) não apenas observa a tendência das ciências modernas a simbolizar coisas e dissolver substâncias em relações, como também começa a esboçar os contornos de uma teoria da ciência pós-positivista e protoestruturalista que vai formar a base, como ver-se-á adiante, de uma virada da filosofia transcendental em direção à cultura e do consequente desenvolvimento de uma teoria antropológica das formas simbólicas, que o tornará famoso.

Apenas alguns anos depois de sua extensa história da filosofia e da ciência moderna (de Nicolau de Cusa a Leibniz e Kant e de Giordano Bruno a Newton), o jovem brilhante e esforçado filósofo, inspirado pela leitura leibniziana de Kant6, desenvolve uma sistemática teoria relacional do conceito elaborada para substituir o conceito aristotélico de substância que reinou por quase dois mil anos na filosofia e nas ciências. Em Substanzbegriff und Funktionsbegriff (O conceito de substância e função), considerado o seu melhor livro, Cassirer (1910/1994) apresentou uma sólida crítica da tradicional teoria aristotélica do conceito. Essa teoria, que é parte da teoria aristotélica do silogismo, começa com a assunção de que a função do conceito consiste em revelar, através de um processo de abstração, a forma substancial das coisas. A realidade apresenta-se à mente do observador como uma multiplicidade discreta de coisas existentes. A atividade da mente consiste exclusivamente em determinar e isolar elementos qualitativos que são comuns à variedade de coisas existentes, unindo-as em classes e repetindo esse procedimento tanto quanto possível. De acordo com Aristóteles, o objetivo final de tal processo classificatório é chegar ao conceito mais abstrato e compreensível, de tal modo que os particulares possam ser nele subsumidos. Essa teoria do conceito pressupõe a precedência da ontologia em relação à lógica; mais precisamente, pressupõe uma ontologia das formas substantivas.

De acordo com Cassirer, a teoria substancialista do conceito é necessariamente defeituosa. Seu defeito é duplo. De um lado, as características comuns que são isoladas pela abstração são tidas como correspondentes aos universais in re, mas em nenhum lugar entre as características de uma coisa vamos encontrar essa semelhança abstrata. Nós não formamos, como Lotze certa vez chamou atenção, “a classe de coisas avermelhadas, gostosas e comestíveis, na qual as cerejas e a carne vermelha devem estar subsumidas” (Lotze, apud Kaufmann, 1949: 189). Por outro lado, é claro que uma progressiva extensão do conceito acompanha uma progressiva redução de seu conteúdo, disso resultando que, no final do dia, o mais geral dos conceitos torna-se puramente analítico e quase totalmente vago.

Contra essa teoria tradicional das classes, o jovem filósofo contrapõe a lógica funcional das relações gerativas que ele encontra em operação não apenas na matemática moderna, mas também nas ciências naturais. A lógica das relações dissolve a junção entre as ciências e a ontologia das formas substantivas. Os conceitos básicos são obtidos não através de um processo de abstração, mas através de um integrado e sintético ato da mente que, oferecendo um esquema reconstrutivo dos conceitos inter-relacionados, constitui uma objetividade determinada. A função do conceito não é trazer o pensamento para um ainda maior grau de generalidade, mas trazê-lo para seu maior grau de determinação possível. O que une os elementos da percepção não é uma propriedade comum, mas uma função, isto é, uma lei geral de esquematização por meio da qual uma regra de progressão é estabelecida:

De fato, pode parecer como se o trabalho do pensamento fosse limitado a selecionar, entre uma série de percepções , , ..., o elemento comum a... [No entanto,] o que vincula a série de elementos da série a, b, c... não é, em si mesmo, um novo elemento que, na verdade, está neles incutido, mas uma regra de progressão que permanece a mesma, não importando qual seja o membro representado. A função f(a, b), f(b, c)... determina o tipo de dependência entre membros sucessivos (Cassirer, 1944/1972: 21-22).

A análise de Cassirer do conceito de função é direcionada para a elaboração de uma lógica transcendental na qual o objeto não é mais pressuposto pela lógica, mas, como Cohen costumava dizer, “gerada” por ela. Conceitos científicos não permanecem sem relação uns com os outros, mas encontram-se organizados em “campos” conceituais (Bourdieu), em “figurações” (Elias) ou em “redes” (Whyte), ou então, para utilizar a expressão preferida de Cassirer, em uma “regra de progressão” que revela e constitui uma região de realidade. O objeto particular não mais é subsumido no geral, mas, aparecendo nas interseções como a síntese de um feixe de relações, é conceituado como “um caso particular do possível” (Bachelard, 1991: 62). O real é, portanto, “relacional”, como diz Bourdieu (1994: 17), dando uma piscada de olho irônica para Hegel.

Nessa perspectiva racionalista e relacionista, na qual a teoria sistematicamente sobredetermina os fatos, as funções e as relações detêm prioridade sobre objetos e coisas. Como resultado,

o real é dissolvido em diferentes estruturas relacionais que são mutuamente interligadas por um sistema total de leis que mutuamente se condicionam (Cassirer, 1979: 288).

Ao enfatizar o caráter construtivo e sintético da ciência, Cassirer desenvolve uma teoria do conhecimento pós-positivista que rompe com todas as teorias da verdade como correspondência. Contra os positivistas e outros empiristas ingênuos, ele argumenta vigorosamente que a função da ciência não consiste em propor uma cópia ou um reflexo da realidade sensível (exit Abbildtheory):

Todo o nosso conhecimento, por mais bem-acabado que ele possa ser em si mesmo, nunca nos fornece diretamente os objetos, mas apenas signos desses objetos e de suas inter-relações mútuas (Cassirer, 1994: 402).

O pensamento, ao invés de voltar-se imediatamente para a realidade, constrói um sistema de signos e aprende a usar tais signos como representativos dos objetos (Cassirer, 1964, III: 53).

Os conceitos científicos aparecem não mais como imitações de coisas existentes, mas como símbolos que representam ordens e elos funcionais dentro da realidade... A realidade dos objetos dissolveu-se em um mundo de relações ideais, especificamente em relações matemáticas (Cassirer, 1971, I: 3).

O conhecimento científico, no mundo do sensível, substitui as impressões confusas e sempre cambiantes dos empiristas por um sistema simbólico de conceitos, leis e relações que não tanto refletem a realidade, mas conceitualmente a formam e geram. Portanto, ao colocar de lado as impressões dos sentidos, ao introduzir uma “ruptura epistemológica” com o realismo ingênuo e ao se deslocar “da substância para o substituto” (Bachelard, 1988: 59), a ciência constrói um mundo desmaterializado e simbólico. O que o mundo perde em termos de substâncias, ganha em termos de relações. O empírico enquanto tal não desaparece, mas reaparece como efeito teórico de um campo conceitual e, portanto, como um símbolo científico.

Cassirer emprega a distinção kantiana entre forma e conteúdo de um modo similar ao que Simmel - seu antigo professor, cujas aulas sobre Kant ele assistira em Berlim - fez em sua teoria vitalista da cultura (Simmel, 1996: 236-296): o símbolo é nada mais do que um conteúdo empírico sobredeterminado por uma forma cultural7. Aqui, onde nosso filósofo sublinha a influência formativa da mente, já se pode perceber que essa teoria da conceituação científica está inscrita em um quadro mais geral da teoria dos símbolos. De fato, à medida que a filosofia das formas simbólicas não apenas se preocupa com a ciência, mas também com o mito, a religião, a arte e a linguagem, à medida que ela passa de uma “crítica da razão pura” para uma mais geral “crítica da cultura”, ela pode ser mais bem descrita como um tipo de epistemologia comparativa.

Do estruturalismo ao culturalismo

A filosofia das formas simbólicas

Se eu tivesse que resumir as 1.200 páginas - ou algo em torno disso - da altamente erudita Filosofia das formas simbólicas, diria que se trata de uma obra de epistemologia comparada em que as formas da linguagem e do mito são tratadas como formas de conhecimento nos dois primeiros volumes e, no terceiro, são concebidas como funções específicas da consciência: a função expressiva (Ausdrucksfunktion) e a função de representativa (Darstellungsfunktion), as quais se tornam as bases para o desenvolvimento do conhecimento científico-teórico. Todo o projeto pode ser mais bem entendido como generalização da reformulação semiótica de Humboldt da filosofia transcendental de Kant: as realizações espontâneas da constituição do mundo são transpostas do sujeito transcendental para a função de constituinte do mundo das formas simbólicas, em geral, e da linguagem, em particular (Habermas, 1997: 22-28).

Ao mover-se para além da logocêntrica fixação de Kant no conhecimento científico, Cassirer passa de uma teoria do conhecimento para uma teoria do significado que procura revelar as categorias fundamentais da constituição da objetividade nas principais esferas da experiência humana: na ciência, é claro, mas também no mito, na religião, na arte, na ética, no direito, na história e na tecnologia. Amplia com isso a questão transcendental para muito além do domínio científico, “a crítica da razão se transforma em uma crítica da cultura” (Cassirer, 1923-1929/1964, I: 11; 1956: 228). Além disso, da mesma forma que o autor, em Substância e função, defendia a primazia da função sobre a substância, em A filosofia das formas simbólicas advoga pela primazia da função sobre a forma, da produção sobre o produto, ou, nas palavras de Humboldt, da energeia sobre o ergon8.

A partir da multiplicidade factual dos sistemas do espírito objetivo que nos confrontam como produtos acabados, Cassirer investiga - ao modo kantiano - suas condições de possibilidade, e interpreta a ciência, o mito, a religião etc., como tantas objetivações, tantas maneiras de “fazer mundos" (Goodman), às quais os atos espontâneos específicos do sujeito correspondem. Assim, não obstante o fato de as formas da cultura aparecerem sempre no plural, elas ainda podem ser desveladas como a expressão ajustada ou a objetivação de uma única função, isto é, da função de simbolização. Neste sentido, pode-se dizer com Cassirer, que a objetivação é a função básica da mente e que ela implica sempre a mediação através de pelo menos uma das formas simbólicas.

Com as noções correlatas de “função simbólica” e “forma simbólica”, chegamos ao coração da filosofia da cultura de Cassirer. A ideia principal de sua teoria do símbolo - que é essencialmente uma reformulação da ideia de Kant sobre o esquema (Kant, 1983: B176 ff) - é radicalmente antiempirista e, assim, pós-positivista: um dado empírico nunca é simplesmente refletido na consciência, mas é sempre gerado e formado por um ato espontâneo da consciência. Nós nunca podemos ter acesso imediato ao conteúdo material do mundo como tal; sempre mediada por formas simbólicas, nossa experiência é, por definição, uma síntese do ideal e do sensual, do espiritual e do material. Tudo o que é, é dotado de significado, de acordo com Cassirer, precisamente porque só pode ser apreendido através de um ato sintético de formação simbólica que encontra sentido ou empresta significado ao empiricamente dado.

Para compreender a “maravilha” do fato de que o material sensório, simplesmente por ser presenciado, é dotado de significado; para compreender a conexão interna que existe entre a forma e o conteúdo, entre sentido e sensibilidade, Cassirer forja precisamente a noção de forma simbólica. Ele a define nos seguintes termos:

Por forma simbólica deve-se entender toda energia da mente através da qual um conteúdo mental de significado está relacionado a um signo concreto e sensível e que lhe é atribuído internamente (Cassirer, 1956: 175).

Com sua noção de forma simbólica, que corresponde mais ou menos à noção de forma cultural de Simmel, Cassirer se refere, portanto, ao ato sintético de formação simbólica pela mente humana de qualquer conteúdo material. O ideal só existe na medida em que, de uma forma ou de outra, é incorporado ao sensível. Se o número de signos ou de conteúdos sensíveis é ilimitado, o número de formas simbólicas, por outro lado, é necessariamente limitado, uma vez que elas devem ser “aplicáveis a qualquer que seja o objeto” (Cassirer, 1946/1975: 34). O autor da A filosofia das formas simbólicas menciona a linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a ética, o direito, a história e a tecnologia, mas, na verdade, apenas as formações simbólicas da realidade por meio da linguagem, do mito e da ciência são plenamente desenvolvidas. As formas simbólicas são como janelas: são matrizes culturais que abrem uma compreensão do mundo; elas são “estruturas estruturantes” (Bourdieu, 1978) de formação do mundo; são formas de objetivação do mundo. O mundo, seja ele o mundo da ciência, do mito ou da linguagem, é sempre a cristalização modulada da função simbólica. Na verdade, poderíamos dizer que, da mesma forma que as diferentes linguagens distinguem-se umas das outras por meio de sua forma específica de olhar o mundo, o que é sempre uma forma de constituir o mundo9, as diferentes formas simbólicas, a começar pela própria linguagem (Humboldt), objetivam o mundo e medeiam o acesso a ele de diferentes modos. Talvez possamos traduzir os conteúdos de uma forma simbólica em outra, mas sempre nos movemos e permanecemos dentro de um mundo simbolicamente constituído. Sem formas simbólicas, e isso é certo, nós simplesmente não temos um mundo.

Para ilustrar o que ele quer dizer com formação simbólica, Cassirer propõe o seguinte experimento mental (Cassirer, 1956: 211 e ss; 1964, III: 191 ff; 1985: 5 ff): trace uma linha na areia ou em um pedaço de papel e considere o seu aspecto particular, a sua forma, as suas características espaciais e outros atributos. O que pode nos parecer um fenômeno estético com uma certa forma irregular ou corrente, aparece para um religioso da Nova Guiné como uma marca de significado mágico. E se um historiador da arte pode enxergá-la como uma ilustração de um estilo particular, para um matemático vai aparecer como uma expressão gráfica do desenvolvimento da função matemática de cosseno.

O animal simbolizante

Em seu Ensaio sobre o homem, Cassirer não só resume a sua filosofia das formas simbólicas para o público norte-americano, como também lhe aplica um enfoque antropológico. Embora ele pense que a definição clássica do homem como animal rationale permanece válida na medida em que exprime um imperativo moral fundamental, Cassirer prefere definir o homem como animal symbolicum (Cassirer, 1944/1972: 26). Na verdade, o que define o homem como homem, o que define o reino humano para além do animal não é tanto a “posição excêntrica” do homem, como Plessner pensava, nem a sua “imperfeição biológica", como pensava Gehlen, mas a capacidade humana de “ideação simbólica”. O homem é aquele ser que tem acesso à realidade e a si mesmo apenas em e através de símbolos. Os seres humanos nunca são confrontados com a realidade imediata, mas apenas com uma realidade que é simbolicamente mediada. Ao contrário dos animais, os seres humanos não respondem imediatamente aos estímulos de seu ambiente, mas como Simmel e os pragmatistas já haviam notado bem antes de Cassirer, eles atrasam a sua resposta por estarem inseridos em um processo complexo da mente e dos instrumentos que lhes apresentam o mundo como vontade (instrumentos) e como representação (mente). Paradoxalmente, os seres humanos só podem ter acesso à realidade distanciando-se dela por intermédio da inserção de uma “rede de simbólica” ou de um “sistema simbólico” feito por eles mesmos, entre eles mesmos e seu ambiente:

Muito antes de sua entrada nessas formas, a vida é, em si mesma, orientada para determinados objetivos. Mas o conhecimento sempre implica uma ruptura com essa urgência da vida... Todo o conhecimento do mundo e todo o trabalho espiritual sobre o mundo exige que o eu adquira certa distância do mundo... Esta aquisição do “mundo como representação” é o objetivo e o produto das formas simbólicas - é o resultado da linguagem, do mito, da religião, da arte e do conhecimento teórico. Cada um constrói seu próprio domínio inteligível de significado interno que se desvincula de forma clara e aguda de todo o comportamento puramente intencional na esfera biológica (Cassirer, 1923-1929/1964, III: 322-3).

Assim, ao distanciar-se do mundo, o homem tem acesso ao mundo por meio de uma multiplicidade de formas simbólicas. Explicitamente, Cassirer identifica essa virada na direção da forma simbólica com a virada de Simmel da vida em direção à ideia (Cassirer, 1995: 13), mas ele se recusa a considerar o surgimento de formas culturais autônomas como tantas vias de mão única nas quais a vida aliena-se de si mesma. Em consonância com Kant, Cassirer nega que a tarefa da cultura seja eudemonística. A cultura não promete a felicidade, mas, gradativamente, torna possível a liberdade. Através da inserção da cultura como um domínio intermediário situado entre si mesmo e seu ambiente, o homem torna-se livre à medida que o “poder da sensação” conscientemente dá lugar ao “poder da expressão” (Cassirer, 1923-1929/1964, II: 31). Através da cultura, o homem torna-se consciente de sua própria influência formativa e, como Hegel, Cassirer está convencido que se tornar consciente é o alfa e o ômega da liberdade.

Cultura versus vida

Ao vincular cultura com liberdade de forma tão épica, Cassirer tem por objetivo explícito se contrapor à filosofia trágica da cultura e da vida de Georg Simmel (1986/1996; ver, também, Vandenberghe, 2000: cap. 6). Ao seguir Hegel, Simmel interpreta a cultura como um duplo processo de objetivação ou exteriorização da alma em formas objetivas (cultura objetiva) e, de modo inverso, de subjetivação ou introjeção de formas objetivas na alma (cultura subjetiva). A cultura objetiva, porém, não obedece às mesmas leis que a cultura subjetiva. De acordo com Simmel, o risco de alienação é inerente ao próprio processo de objetivação, pois tão logo os conteúdos culturais são objetivados, eles se tornam autônomos, juntam-se ao mundo das formas culturais (o “Mundo 3” de Popper), seguem suas próprias leis e, finalmente, alienam-se de sua origem, bem como de seu fim - seu fim porque, idealmente, a finalidade da cultura é cultivar o indivíduo. Mas a cultura cultiva a si mesma, por assim dizer, e a hipertrofia da cultura objetiva é proporcional à atrofia da cultura individual: quanto mais estamos rodeados de objetos culturais, mais somos tentados por eles. Contudo, é bem nítido para qualquer um que não há nenhuma maneira de podermos acompanhar e lidar com a enorme massa de cultura - que nos esmaga.

À primeira vista, parece que Simmel prolonga a crítica hegeliano-marxista da inversão alienante do sujeito e do objeto. Porém, enquanto, para Marx, os processos de alienação, fetichismo e reificação são processos econômicos historicamente determinados, para Simmel eles são processos metafísicos:

O valor fetichista que Marx atribui aos objetos econômicos na era da produção de mercadorias é apenas um caso particular e um pouco diferente deste destino universal dos conteúdos culturais. Esses conteúdos são vítimas do seguinte paradoxo: com certeza, eles são criados por indivíduos, mas na fase intermediária, quando eles tomam uma forma objetiva acima e abaixo dessas instâncias, evoluem de acordo com sua própria lógica imanente e, assim, alienam-se não só de suas origens, como também de seus fins (Simmel, 1986/1996: 408).

Ao reduzir o fetichismo da mercadoria a uma instância específica da tragédia universal da cultura, Simmel não apenas desistoriciza e desdialetiza a teoria da alienação de Marx, mas também transforma a oposição sócio-historicamente determinada e sócio-historicamente específica entre o sujeito e objeto em uma oposição metafísica entre a espontaneidade da vida - correspondente ao élan vital de Henri Bergson - e a rigidez das formas culturais: a vida só pode expressar-se ao passar pelo medium das formas culturais, mas dado que essas formas são alienadas da vida e sufocam a sua expressão, a tragédia da cultura já se encontra inscrita na própria vida. Embora a vida possa, em princípio, reinvestir as formas e torná-las fluídas, Simmel, no entanto, traz a dialética entre a vida e a forma para um beco sem saída. Seduzido pelo amor fati de Nietzsche, ele estiliza a alienada autonomização das formas culturais como destino que vem das profundezas da própria vida.

É precisamente neste ponto que intervém Cassirer em sua crítica da filosofia da vida, de modo geral, e da teoria da tragédia da cultura de Simmel, de modo particular10. Embora os textos recém-publicados e os rascunhos para o quarto volume de A filosofia das formas simbólicas - que nunca foi concluída (Cassirer, 1995) - apresentem uma profunda admiração pela filosofia da cultura de Simmel, Cassirer estima que sua tonalidade trágica seja equivocada: a oposição entre a vida e as formas, entre cultura e alma, em que a análise de Simmel fundamentalmente repousa, é, em última análise, falsa. Essa visão talvez possa ser válida para a tecnologia (Cassirer, 1985: 39-91), mas não deve ser generalizada para outras formas culturais. Exatamente porque Simmel não desenvolveu uma filosofia da linguagem, ele não foi capaz de evitar certos erros metafísicos. Mais particularmente, Cassirer vê a tragédia da cultura como resultado triplo de uma forma de pensamento não dialética.

Em primeiro lugar, ao invés de inter-relacionar dialeticamente a vida e as formas mostrando que ambas se pressupõem mutuamente, Simmel tende a opô-las como se fossem duas substâncias, uma pertencendo à esfera subjetiva e outra à esfera objetiva. Como resultado, Simmel não só perdeu o que estava em jogo, mas, de acordo com Cassirer, recaiu em uma espécie de substancialismo que ele mesmo havia anteriormente superado.

Segundo - e mais importante -, Simmel trata as formas culturais como acabadas, tratando as entidades quase como coisas. Se, ao invés de considerarmos as formas como produtos acabados, generalizarmos a injunção de Humboldt para tratar a linguagem não como ergon mas como energeia, não como opus operatum mas como modus operandi (Panofsky), não como trabalho mas como práxis, então o problema imediatamente assume uma forma diferente. Não só as formas aparecem como a expressão do poder de criar formas, mas, uma vez que a cultura não pode ser entendida de forma indireta, nós também ganhamos acesso ao domínio da cultura a partir de dentro. E quando fazemos isso, quando ativamente entramos e participamos na formação do espírito objetivo, já não nos perdermos em um ato de alienação, mas sim nos encontramos, nós mesmos e nossos companheiros humanos, em um ato de participação. Parece então que nós não apenas reproduzimos formas culturais, mas também somos produzidos por elas. E, reproduzindo formas, que já estão sempre presentes como um legado de nossos antepassados, nós não apenas nos formamos, mas também ganhamos acesso a um mundo intersubjetivo e supraindividual de significados que compartilhamos com os nossos companheiros humanos. De fato, na medida em que a cultura aparece como a base comum dos seres humanos, podemos realmente dizer, com Cassirer, que a cultura, em geral, e a linguagem, em particular, fornecem “uma ponte de indivíduo para indivíduo” (Cassirer, 1929/1973: 264). Em resumo, Cassirer expressa suas ideias em uma bela passagem que não só nos faz lembrar de G. H. Mead, como antecipa a teoria da ação comunicativa de Habermas11.

Seja como for, a cultura é um mundo “intersubjetivo”, um mundo que não existe no “mim” [me], mas que é acessível a todos os sujeitos e de que todos devem participar. Contudo, essa participação é completamente diferente da participação no mundo físico. Em vez de relacionarem-se com o mesmo cosmos espaço-temporal de coisas, os sujeitos encontram-se e unem-se em sua ação comum. E quando realizam isso uns com os outros, eles se reconhecem mutuamente e conhecem-se uns aos outros por meio das diferentes formas-mundos a partir das quais a cultura é construída... o Eu e o Tu não são dados prontos que, através dos efeitos que exercem uns sobre os outros, criam as formas de cultura. Ao contrário, parece sobretudo que é nessas formas e graças a elas, que as esferas do mundo do Eu e também do mundo do Tu são primeiramente constituídas... a verdadeira “síntese” é realizada, pela primeira vez, no intercâmbio ativo que vemos na forma típica presente em todo entendimento linguístico [Verständigung]. A constância de que necessitamos para isso é [...] a constância de significado (Cassirer, 1942/1961: 75, 50).

Em terceiro lugar - mas nem por isso menos importante -, Cassirer critica Simmel porque, tal como Weber no trato da burocratização e da rotinização do carisma, ele traz a dialética entre estruturas estruturadas (forma formata) e estruturas estruturantes (forma formans) para um beco sem saída (Cassirer, 1995: 19, 30). Se a cultura é um “poder criador de formas”, ao mesmo tempo ela é necessariamente e efetivamente um poder capaz “de romper e de destruir formas” (Cassirer, 1949: 879). Há, de fato, uma tensão entre a estabilização e a criação, entre uma tendência que leva na direção de formas estáveis e rígidas e outra que rompe essa rigidez, mas não é necessário assumir a priori que a cultura só pode funcionar como forma de violência simbólica que, por reproduzir o passado de modo não dialético, bloqueia o futuro.

A fenomenologia do espírito

Tem sido dito que Cassirer sempre foi um pouco “relutante em aceitar o negativo” (Kroise, 1987: 210). Isso é verdade, mas se ele minimiza a oposição trágica entre vida e forma, ele, no entanto, presta a devida atenção à oposição entre as próprias formas:

O verdadeiro lugar de combate se revela não apenas lá onde a mediação do espírito está lutando contra a urgência da vida, mas lá onde as missões do próprio espírito, na medida em que sempre se diferenciam mais e mais finamente, ao mesmo tempo alienam-se um do outro (Cassirer, 1985: 78).

Ao contrário de Simmel (1996), que enfatiza o conflito vertical entre a fluidez da vida e a fixidez das formas, mas tal como Weber (1966: 536-573), Cassirer salienta o potencial de um conflito horizontal entre as formas. Algumas formas podem - enquanto outras não - coexistir na mesma mente ou no mesmo ambiente cultural. A linguagem, por exemplo, convive pacificamente com a religião numa cooperação frutífera. O conhecimento científico e o tecnológico se complementam e tendem até mesmo a se fundir alegremente um no outro. Mas o conhecimento científico e o mito são incompatíveis entre si, e o mesmo talvez pudesse ser dito sobre a religião e a lei secular, ou sobre a tecnologia e a ética.

No segundo e, especialmente, no terceiro volume de A filosofia das formas simbólicas, Cassirer toma os conflitos internos às formas e entre elas como o ponto de partida de uma “fenomenologia do conhecimento” (Cassirer, 1923-1929/1964, III: vi) que considera a odisseia do espírito em termos de movimento progressivo de uma sempre crescente espiritualização (Vergeistigung) (Verene, 1969). Cassirer distingue três funções da mente. Ele as nomeia de “função expressiva”, “função de representação” e “função conceitual”. Lembremo-nos da Fenomenologia do espírito de Hegel: ele descreve essas funções como tantas etapas dialéticas no desenvolvimento da relação da mente com o seu objeto. A função expressiva, representada de modo mais puro pelo mito, é um estágio de unidade simples entre símbolo e objeto; nenhuma distinção genuína é feita entre símbolo e objeto. A função de representação, tal como expressa na linguagem, é um estágio de disjunção ou “descentralização” (Piaget) entre símbolo e objeto; o objeto é considerado como totalmente diferente do símbolo. O estágio conceitual, mais puramente expresso pela ciência, é um estágio em que a separação é superada; o objeto é visto como construção do símbolo, como um símbolo de uma ordem diferente.

Embora Cassirer critique severamente Hegel por suprimir a autonomia das formas simbólicas, ele é claramente influenciado pelo autor da Fenomenologia do espírito, e isso a ponto de parecer ter sido tomado em um verdadeiro dilema kantiano-hegeliano (Knoppe, 1992: cap. 9). Por um lado, ele segue Kant e reconhece a diversidade qualitativa das formas simbólicas. As formas simbólicas são objetivações autossuficientes e autônomas do espírito, cada uma seguindo suas leis imanentes e nenhuma sendo redutível a outra. Por outro lado, ele segue Hegel e transmuta as formas para processos dialéticos e, por fim, acaba considerando as funções que expressam como tantos estágios do movimento contínuo na direção de uma maior espiritualização. É verdade que a dialetização de Cassirer do conflito entre as formas não termina em uma filosofia metafísica da história que substancializa e reifica uma das formas. Ele não evita a dupla tentação de transformar a função simbólica em uma substância, ou, o que talvez seja melhor, em um sujeito, e de conceber as diferentes formas como tantos modos de aparecimento do ser essencial desse sujeito. No entanto, ao enfatizar o dinamismo e considerar o desenvolvimento do espírito como uma sucessão de formas, a imanência e autonomia de cada forma são seriamente postas em xeque.

De acordo com Cassirer, algumas formas culturais têm uma tendência imanente à hegemonia. Em vez de coexistirem pacificamente umas com as outras e complementarem-se mutuamente, “como cores e sons” (Simmel, 1912: 8), em vez de aceitarem a sua posição relativa no conjunto, algumas das formas simulam validade absoluta e tentam subjugar as demais formas através da incorporação de seus conteúdos. Em O mito do Estado, Cassirer analisa a catástrofe fascista em termos de uma desdiferenciação ou fusão patológica e sistematicamente induzida das formas simbólicas autônomas. O que caracteriza o fascismo, segundo Cassirer, é a “dessimbolização repressiva”: os mitos não são mais um produto da livre imaginação, mas são “feitos de acordo com um plano” (Cassirer, 1946/1975: 282)12. Os mitos políticos - como o mito de raça e o mito do Führer - são sistematicamente produzidos e difundidos para as massas através dos meios de comunicação. Como resultado, a vida é ritualizada, a comunidade racial é afetivamente catequizada, as emoções assumem precedência sobre a faculdade racional, e a autonomia do indivíduo é abolida. No fascismo, tecnologia e mito se fundem e, à medida que se tornam hegemônicos, paralisam o poder de oposição das outras formas. Consequentemente, nenhuma instância crítica permanece para poder regular e subjugar as formas hegemônicas. De acordo com Cassirer, é dever do filósofo e de todos os cidadãos contribuir para o desenvolvimento das forças críticas artísticas, científicas e éticas, de modo que os monstros míticos sejam continuamente checados e subjugado por forças superiores.

Cassirer é um pensador verdadeiramente cosmopolita. Ao tomar uma posição crítica, ele dá uma virada prática em sua filosofia das formas simbólicas, mudando assim o seu pensamento de uma filosofia da representação para uma filosofia da ação. Desse modo, ele implicitamente encontra o primado da razão prática sobre a razão pura e coloca sua crítica da cultura em novas bases praxeológicas. Baseados em uma linguagem filosófica padrão, poderíamos dizer que, em seus escritos políticos, ele desenvolve uma crítica da razão prática, esta última sendo concebida como razão simbólica e como práxis política.

Conclusão: em direção a uma sociologia prática

Embora Ernst Cassirer possa ter influenciado significativamente as sociologias de Elias, Bourdieu, Habermas e Freitag, ele permanece muito mais como um filósofo, não tendo contribuído, diretamente, para a sociologia como disciplina. No entanto, sua filosofia das formas simbólicas, da qual sua filosofia da ciência é apenas uma parte, é importante para a sociologia por pelo menos três razões.

Em primeiro lugar, sua investigação sobre as condições de possibilidade da ciência significou um enfrentamento e rompimento com o “dogma da imaculada concepção” empirista (Nietzsche). Ao antecipar e contribuir para o esgotamento do positivismo e para o surgimento de filosofias pós-positivistas da ciência, ele demonstrou, de modo convincente, que os fatos empíricos são sempre sobredeterminados pela teoria e, por outro lado, que a teoria é sempre subdeterminada pelos fatos. Como diz Bourdieu, e sabemos até que ponto ele foi influenciado por Cassirer: “os fatos são conquistados, construídos e constatados” (Bourdieu et alii, 1973: 24, 81). Além disso, ao atacar as concepções substancialistas da tradição aristotélica e ao desenvolver uma concepção protoestruturalista ou funcionalista da realidade para então substituí-las, ele pôde ser visto como importante figura para o desenvolvimento do “realismo relacional”, que é, sem dúvida, um dos principais paradigmas nas ciências humanas.

Em segundo lugar, ao realizar uma virada cultural na filosofia transcendental, Cassirer passou, com sucesso, de uma crítica da razão para uma crítica da cultura. Sua filosofia das formas simbólicas nos lembra não só o fato de que estamos sempre já inseridos em um mundo dotado de significados, como também que este mundo da cultura é, literalmente, “nosso mundo”, pois aproveitando as formas simbólicas que medeiam nossa ação, dotamos o mundo de significado e, assim, o tornamos “nosso mundo”. De acordo com Cassirer, o principal objetivo de todas as formas culturais consiste na tarefa de construir um mundo comum de pensamentos e de sentimentos, um mundo de humanidade que simula ser um koinon kosmon. Ao se basear em Humboldt, Cassirer concebe a linguagem, conforme vimos, como o primeiro e decisivo passo para esse mundo comum em direção ao qual a cultura caminha. A cultura, em geral, e a linguagem, em particular, fornecem uma base comum aos seres humanos, relacionando-os uns aos outros.

A cultura, no entanto, não é uma coisa ou uma substância, mas um processo praxeológico. Como tal, “exige um sistema de ações” (Cassirer, 1979: 65). A cultura só é possível se apropriada pelos indivíduos que, ao se apropriarem dela, reproduzem-na e transformam-na e, assim, idealmente, percebem a si mesmos. Com amparo no teorema da “dualidade da estrutura” de Anthony Giddens (1984: 25), poderíamos dizer que a cultura é tanto o meio quanto a consequência das práticas significativas dos indivíduos. A cultura conecta e, embora esteja sempre ligada a condições nacionais e até mesmo individuais, é potencialmente universal. Ela transcende comunidades particulares e proporciona uma base para a construção de um mundo comum. Este mundo comum, no entanto, não é um dado, mas uma ideia e um ideal. Como a razão, a cultura não é, portanto, um dado, mas uma tarefa. Neste sentido, a cultura realmente exige um sistema de ações - ações que atualizam o potencial da cultura e que tentam realizar as promessas da razão prática.

Em terceiro lugar, ao realizar uma guinada política na sua filosofia praxeológica da cultura, a crítica neokantiana da cultura transcende a si mesma em direção a uma teoria social crítica que é animada pelo “interesse emancipatório no conhecimento” (Habermas). De acordo com sua vocação final, Cassirer concebe a filosofia como o guia e o zelador da cultura e da razão. Seu dever é lembrar-nos que temos de lutar pelos ideais sobre os quais repousa a nossa cultura. “Na hora do perigo [fascista], o vigilante, que deveria nos vigiar, dormiu” (Schweitzer, apud Cassirer, 1979: 60). Hoje em dia, o fascismo se foi, mas reemerge continuamente sob diferentes disfarces (nacionalismo, fundamentalismo etc.). E a própria cultura é constantemente mercantilizada pelo mercado e instrumentalizada pela administração, tendo como resultado o fato de que o seu potencial emancipatório tende a ser sufocado (Habermas, 1987, II: cap. 8). Se não queremos que ela seja silenciada uma vez mais, temos que permanecer vigilantes. Gosto de pensar que, enquanto disciplina crítica, a sociologia tem o seu papel a desempenhar, como promover “o projeto inacabado do Iluminismo”. Isto pressupõe, no entanto, que nós coloquemos a sociologia de volta nos trilhos da filosofia prática.

Com demasiada frequência, a sociologia tem concebido a si mesma num espírito cientificista, como uma espécie de jovem herdeira ou de emuladora das ciências naturais. Sem explicitamente dizer, sem sabê-lo e talvez até mesmo sem querê-lo, ela tem se orientado na direção da primeira crítica de Kant. Na Crítica da razão pura, Kant lançou, como todos sabemos, uma investigação sobre as condições de possibilidade do conhecimento científico. No entanto, sua crítica filosófica garante a possibilidade de conhecimento objetivo apenas na medida em que se refere ao domínio do mundo fenomênico; o domínio numênico da prática, entendido em sua dimensão moral irredutível, não pode aspirar a um conhecimento objetivo ou positivo. Livre, a atividade prática pertence ao reino da liberdade e, para Kant, a liberdade está fora do âmbito da ciência. Aqui, quero argumentar que a sociologia escolheu o caminho errado e que, em vez de acatar as sugestões da primeira crítica, deveria orientar-se sistematicamente em direção da segunda crítica. Na Crítica da razão prática, Kant investiga as condições de possibilidade da ação autônoma, moral. A sociologia pertence às ciências morais. Seu objeto é o sujeito. É apenas abandonando de uma vez por todas a sua referência ao modelo ontoepistemológico, que não combina com o seu objeto, que ela poderá realizar sua promessa de ciência humana, como ciência do “homem” como agente livre e moral. É somente orientando-se na direção da Crítica da razão prática que a sociologia pode prosseguir com seu próprio projeto. Esse projeto é, ao mesmo tempo, moral e crítico. Destina-se a continuar o projeto do Iluminismo e a aumentar a autonomia do sujeito e da sociedade. Em suma: confrontada com a oposição kantiana entre o domínio dos fenômenos regidos por leis (que é objeto do conhecimento empírico) e o domínio numênico da liberdade ética e política (que é objeto da filosofia prática), a sociologia deve escolher, e, se de modo sério e reflexivo considerar o seu tema, ela não tem outra opção a não ser tornar-se uma sociologia prática.

Tanto para Kant quanto para Cassirer, toda a filosofia prática está intimamente relacionada à questão dos direitos inalienáveis. Na questão dos direitos humanos, eles encontram a realização da filosofia prática. No entanto, se a filosofia pretende realizar seus objetivos e aumentar a autonomia dos seres humanos e da sociedade, deve passar por cima de uma concepção escolástica e abraçar uma concepção mundana de filosofia (concepto cosmicus - Kant, 1983: B867). É claro, Kant e Cassirer pensam que o conhecimento puro, o conhecimento pelo conhecimento, é importante. Ainda assim, eles não estão satisfeitos com a compreensão da filosofia segundo a sua concepção puramente escolástica. A filosofia deve se relacionar com o mundo. Devidamente concebida, sua missão é conectar todos os conhecimentos para a finalidade essencial da própria razão humana. A razão não é um dado, mas é, como Fichte costumava dizer, uma tarefa. Gosto de pensar que também a sociologia tem um papel a aqui desempenhar. Temos que lutar não apenas para defender os ideais da razão, mas também para realizá-los.

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  • *
    Gostaria de agradecer a Peter Halfpenny, Stephen Turner, Michael Lynch, Dick Pels, Kirsten Campbell e ao falecido Irving Velody por seus valiosos comentários. Agradeço a Diogo Corrêa pela tradução espontânea e a Rodolfo Amaro pela revisão competente e profissional. Mais uma vez, observamos que a ciência avança mais pela empolgação do que pelos interesses.
  • Tradução de Diogo Silva Corrêa, doutor pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess).
  • 13
    Revisão de Rodolfo Alves Amaro, doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
  • 1
    . Em outros trabalhos (Vandenberghe, 1996; 1999), explorei as contribuições de Simmel, Bachelard e Bourdieu a essa corrente de pensamento. Na mesma linha, Maso (1995) estudou a relação entre Cassirer e Elias.
  • 2
    . Michel Freitag (1986) desenvolveu uma monumental e sistemática teoria social na qual a cultura é concebida como totalidade a priori que medeia dialeticamente e regula socialmente as práticas de significação que produzem e reproduzem a sociedade como totalidade. Para uma análise crítica mas amigável dessa grande teoria no estilo hegeliano, bem conhecida em Québec, mas não alhures, ver Vandenberghe (2006).
  • 3
    . Epistemologica-mente falando, o próprio Foucault é mais um pós-kantiano do que um neokantiano, mais próximo de Heidegger a esse respeito do que de Cassirer. Ao levar em conta que a sua historicização da filosofia transcendental reduz radicalmente os a priori universais da consciência de Kant à contingência e facticidade das epistemes incomensuráveis, sua posição parece muito mais próxima de Nietzsche do que de Kant. Contudo, não podemos esquecer da filiação abertamente kantiana da fase arqueológica de Michel Foucault. Nesse aspecto, Foucault filia mesmo o seu projeto explicitamente a essa tradição neokantiana levada adiante por Cassirer. Em resenha publicada em função da edição francesa da Filosofia do esclarecimento de Cassirer, Foucault atribui ao autor da Filosofia das formas simbólicas o mérito de ter inventado um novo método, irredutível à sociologia do conhecimento e à história das ideias: “Cassirer procede segundo uma espécie de abstração fundadora: de um lado, ele apaga as motivações individuais, os acidentes biográficos e todas as figuras contingentes que povoam uma época; de outro lado, ele afasta ou ao menos deixa em suspenso as determinações econômicas ou sociais [...]. Ele isola de todas as outras histórias (a dos indivíduos, assim como a das sociedades) o espaço autônomo do teórico: e sob seus olhos se revela uma história até então muda.” (Foucault, 1994, 1: 547-548). Qualquer aproximação com as noções de episteme e de a priori histórico, tão caras ao percurso arqueológico de Michel Foucault, não é, portanto, mera coincidência. Agradeço a Marcelo de Oliveira pelas sugestões contidas nesta nota.
  • 4
    . Para uma introdução ao neokantismo, consulte Kohnke (1986). Numa via neo-historicista, Kohnke acredita ter escrito a verdadeira história desse movimento intelectual. Porém, seu livro estranhamente termina no ponto onde geralmente se atribui o início do neokantismo, ou seja, na predominância intelectual de Heidelberg e das Escolas de Marburg. Willey (1978) oferece uma boa visão geral, mas seu foco é bastante estreito, pois se limita sobretudo a um resumo das posições políticas e éticas dos neocríticos. Rose (1981: cap. 1) apresenta de forma convincente a origem neokantiana da tradição sociológica, mas o livro é demasiado denso, técnico e pesado para ser recomendado. Dadas as restrições desses livros, o livreto de Öllig (1979) e a resenha crítica de Holzhey (1992) provavelmente representam a melhor relação custo-benefício.
  • 5
    . Os protocolos desse encontro, escritos por Bollnow e Ritter, foram publicados como apêndice da quarta edição do livro de Heidegger Kant und das Problem der Metaphysik (Cassirer, 1929/1973: 246-268). Ao opor a interpretação de Cassirer sobre a doutrina kantiana como uma teoria geral do conhecimento, mais particularmente como uma tentativa de dar uma base transcendental para o conhecimento científico, Heidegger reinterpretou Kant, principal e basicamente como tentativa de fundar a metafísica alicerçado em uma análise existencial da finitude do Dasein. O declínio do neokantismo está ligado, no nível intelectual, ao surgimento da fenomenologia existencial e, no plano histórico, ao exílio forçado e à repressão de seus representantes judeus.
  • 6
    . Mesmo antes de seus estudos sobre a história da filosofia e das ciências naturais modernas, Cassirer já havia publicado um trabalho sobre Leibniz. Ele também produziu uma edição de três volumes de escritos filosóficos de Leibniz e uma edição de dez volumes da obra de Kant. Ambos os filósofos foram extremamente influentes para Cassirer - a tal ponto que poderia ser descrito tanto como um neoleibniziano quanto como um neokantiano.
  • 7
    . Para uma comparação entre as filosofias da cultura de Cassirer e de Simmel, ver Ernst Orth (1991) e Willfried Gessner (1996).
  • 8
    . Cassirer discute extensamente o trabalho de Humboldt no primeiro volume de sua obra principal (Cassirer, 1964, I). Humboldt introduz sua distinção entre ergon e energeia, que corresponde mais ou menos à distinção de Saussure entre langue e parole, à distinção de Panofsky entre opus operantum e modus operandi ou à distinção de Chomsky entre competência e performance, nos seguintes termos: “A linguagem, em si mesma, não é trabalho, ou seja, não é um trabalho (ergon), mas uma atividade (energeia). A sua verdadeira definição só pode, portanto, ser genética. Ela é, afinal, o contínuo esforço intelectual para fazer o som articulado ser capaz de expressar o pensamento” (Humboldt, 1963: 418).
  • 9
    . “O pano de fundo do sistema linguístico (em outras palavras, a gramática) de cada língua não é apenas um mero sistema de reprodução de ideias vocais, mas é, ele próprio, um formatador de ideias, o programa e guia para a atividade mental do indivíduo, para sua análise de impressões, para a síntese de seus próprios recursos mentais” (Whorff, 1956: 121).
  • 10
    . Para a crítica de Cassirer sobre a filosofia da vida, consulte Cassirer (1949: 857-880; 1961, cap. 5) e sobre Simmel, Cassirer (1964, I: 48 e ss; 1995: 1-32, 215-219).
  • 11
    . Cassirer é muito influenciado pela filosofia da linguagem de Humboldt. Ao ler Cassirer, tive a sensação de que a principal intuição de Habermas (1987, I: 387), segundo a qual o telos do entendimento pertence à linguagem enquanto tal, já pode ser encontrada na filosofia da linguagem de Humboldt. Valeria a pena ver até que ponto a Teoria do agir comunicativo de Habermas toma emprestado e desenvolve sistematicamente as ideias anteriormente formuladas por Humboldt em sua famosa introdução ao “Kawiwork” (Humboldt, 1963).
  • 12
    . A noção de “dessimbolização repressiva” foi forjada por um acadêmico francês como um paralelo à noção de “sublimação repressiva” de Marcuse. Ver Gaubert (1996: 103, n. 132).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2018
  • Aceito
    11 Set 2018
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