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Subjetividade em disputa: Luis Alberto Warat e o sujeito neoliberal

Subjectivity in dispute: Luis Alberto Warat versus the neoliberal subject

Resumo

O problema deste artigo é: de que forma a proposta jurídica de Luis Alberto Warat dialoga com o tema da subjetividade neoliberal? O objetivo é explorar a complexa relação entre subjetividade, Direito e neoliberalismo na obra do citado autor. A metodologia utilizada foi a qualitativa, com revisão documental, pois, com base no aporte teórico waratiano, estabeleceu-se a conexão entre subjetividade, Direito e neoliberalismo. Buscou-se adentrar de forma analítica e didática ao pensamento de Warat, demonstrando tanto a centralidade da ideia de subjetividade para o seu pensamento, como o quanto a categoria neoliberalismo já tinha relevância para a sua obra. Como conclusão, procurou-se demonstrar o protagonismo e a atualidade de Luis Alberto Warat para a crítica jurídica social contemporânea. Ele não apenas faz um diagnóstico atual dos problemas que o Direito deve enfrentar, como continua sendo inovador ao situar a subjetividade no centro da questão jurídica e apontar caminhos de resistência. Colocou-se como um crítico ferrenho da subjetividade homogênea e universal neoliberal, representada pelo homem empresário de si. Ofereceu, como contraposição a esse sistema, a compreensão da subjetividade como fruto de um entre-nós, que deve ter atenção e cuidado político-social, o que definiu como alteridade.

Palavras-chave:
Neoliberalismo; Subjetividades; Micropolítica; Luis Alberto Warat

Abstract

The problem this article focuses on is: how does Luis Alberto Warat’s legal proposal dialogue with the theme of neoliberal subjectivity? The objective is to explore the complex relationship between subjectivity, Law and neoliberalism in the aforementioned author’s work. The qualitative methodology was used, as well as the document analysis technique, since the connection between subjectivity, Law and neoliberalism was established according to the Waratian theoretical contribution. An analytical and didactic approach to Warat’s reflections was pursued, demonstrating both the centrality of the idea of subjectivity throughout his work, as well as how the neoliberalism category was already relevant in his work. As a conclusion, this paper sought to demonstrate the protagonism and actuality of Luis Alberto Warat for contemporary social legal critique. He not only provides a contemporary diagnosis of the problems that Law must face, but he continues to be innovative in placing subjectivity at the center of the legal issue and pointing out paths of resistance. He positioned himself as a staunch critic of the homogeneous and universal neoliberal subjectivity, represented by the self-entrepreneur figure. As an alternative to this system, he proposed to view subjectivity as the result of an in-between and that demands political-social attention and care, which he defined as otherness.

Key-words:
Neoliberalism; Subjectivities; Micropolitics; Luis Alberto Warat

INTRODUÇÃO

Luís Alberto Warat foi um pensador vanguardista, que trouxe questões tão inovadoras que o tornaram protagonista e marginal. Vanguardista, já que tensionava não apenas com as margens laterais do seu tempo, mas principalmente com as fronteiras do horizonte, trazendo reflexões e problemas que só se tornariam centrais anos depois. Protagonista, pois, quando pouco se falava sobre subjetividade, Warat a trouxe para o debate jurídico nacional, afirmando que não há como pensar o Direito, o capitalismo e a modernidade, desprezando a micropolítica que os constitui. Em um ambiente discursivo que preza pelo formalismo, Warat mostrou-se um escritor marginal, que burlou regras com sua escrita surrealista e carregada de pluralismos e afetividades.

O objetivo deste artigo é explorar as conexões entre neoliberalismo, Direito e subjetividade na obra de Luís Alberto Warat. Autores como Dardot e Laval trouxeram para o foco dos debates acadêmicos a discussão sobre o neoliberalismo e, em especial, seus efeitos sobre a subjetividade e o conceito de sujeito neoliberal. Warat, no entanto, já discorria acerca desses temas nos anos de 1970, colocando no centro do seu pensamento a relação entre a subjetividade, o Direito, a modernidade e o capital. Apontava que, para garantir direitos, é necessário pensar, também, sobre a subjetividade; torná-la uma arena política de transformação. Pouco entendido, foi taxado por muitos como um “outsider”.

Assim, o problema enfrentado é: como a proposta jurídica de Luis Alberto Warat dialoga com o tema da subjetividade neoliberal? O diálogo polifônico tem como eixo de reflexão o lugar da subjetividade, na concepção de Luis Alberto Warat, trazendo as problematizações e os lugares de resistência que ele já enunciava para a subjetivação neoliberal.

Este texto é resultado de uma pesquisa qualitativa, por meio da revisão documental. Em busca de uma resposta para o problema, seguiu-se o caminho metodológico que se apresenta a seguir. Inicia-se o artigo com uma ampla revisão bibliográfica da obra de Warat e de autores que têm trabalhado o tema da subjetividade neoliberal. Buscou-se adentrar de forma analítica e didática ao pensamento de Warat, demonstrando a centralidade da categoria subjetividade para o seu pensamento e a relevância da categoria neoliberalismo, que já era identificada em sua obra. Dessa maneira, optou-se pela seguinte estratégia de estruturação do artigo. O passo inicial foi entender como Warat coloca a subjetividade como um tema central para a sua noção de Direito. Em um segundo momento, buscou-se trazer o que autores como Dardot e Laval têm diagnosticado como os efeitos do neoliberalismo sobre os processos subjetivos. No momento final, argumentou-se que as considerações trazidas por esses autores, cujo ápice é a fragmentação das relações humanas, já estavam presentes na obra de Warat. Ele apontava a construção de relações de alteridade como o grande problema jurídico contemporâneo.

Para percorrer esse caminho, utilizou-se a obra de Warat, mas também de suas vozes silentes, seus referenciais, como Foucault e Guattari. Buscou-se dialogar, além disso, com autores que, em que pese Warat não ter mantido diálogo direto, servem como fontes para compreender suas reflexões, como Gonzalez Rey, Dardot e Laval e Wendy Brown.

Como conclusão, procurou-se demonstrar o protagonismo e a atualidade de Warat para a crítica jurídica social contemporânea. Ele não apenas fez um diagnóstico atual dos problemas que o Direito deve enfrentar, mas continua sendo inovador ao situar a subjetividade no centro do Direito e apontar caminhos de resistência. Coloca-se como um crítico ferrenho da subjetividade homogênea e universal neoliberal, representada pelo homem empresário de si. Oferece, como contraposição a esse sistema, compreender a subjetividade como fruto de um entre-nós, que deve ter atenção e cuidado político-social, o que define como alteridade.

Acredita-se que este artigo possui relevância e ineditismo por ter como resultado uma discussão que ainda não foi feita: trabalhar a contribuição de Warat e a relação entre Direito e subjetividade neoliberal, com base em autores contemporâneos. A relação entre neoliberalismo e Direito vem sendo explorada por muitos autores; porém, a conexão micropolítica entre subjetividade, neoliberalismo e esfera jurídica é protagonizada por Warat, sendo ele acompanhado de pouquíssimos pensadores.

Outro aspecto relevante é o esforço acadêmico em manter viva (lida, discutida) a obra de um jurista argentino-brasileiro, cujo papel foi significativo no seu tempo e teve enorme impacto na filosofia jurídica do Brasil.

1) A AMBIVALÊNCIA DO DIREITO SEGUNDO LUIS ALBERTO WARAT E O LUGAR DA SUBJETIVIDADE: UMA BREVE RETOMADA

A noção de Direito de Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) é complexa, pois, ao mesmo tempo em que ele é um autor crítico do jurídico, vincula o Direito ao amor e à emancipação. Adota com frequência o uso de metáforas em sua escritura, atribuindo um tom poético ao seu texto, o que tende a dificultar a clareza analítica. Warat trabalha simultaneamente com duas definições de Direito, o que nem sempre é evidente em sua obra. Um é crítico e o outro vislumbra as possibilidades emancipatórias do jurídico. Esse movimento pode parecer bastante contraditório, mas não é.

O contrassenso se desfaz ao entender que, apesar de ele fazer referência a um mesmo signo linguístico, está abordando dois fenômenos distintos. No primeiro caso, sua ênfase e crítica se dão ao Direito normativo, às suas leis, aos sentidos extraídos delas e ao sistema de verdades que dele emana. Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) é um questionador do sistema normativo, de suas instituições e de seus sensos comuns. Propõe, assim, o deslocamento das análises para o que ele pensa ser o cerne do Direito: o regime de sentidos e poderes que constituem a subjetividade jurídica, o que ele chama de micropolítica1 1 Trabalha-se aqui com a distinção entre macropolítica e micropolítica, não como campos opostos, mas como dois níveis de análise. O foco da micropolítica é a produção subjetiva do mundo, ou seja, a representação emocionalizada do mundo, que estrutura o que se chama de realidade. Busca entender o que são os processos de subjetivação, o que está por detrás deles e o que eles estão gerando. Já a macropolítica está no campo institucionalizado, no campo das representações sociais, das instituições. São os cúmulos de verdade que estruturam o real (ROLNIK, 2011). . Nessa proposta, a ênfase sobre o normativo perde força, ganhando destaque o Direito como parte de um regime de produção de subjetividade e verdades próprias2 2 Os processos de subjetivação, segundo Warat (2010), são uma produção individual e social. Estão intimamente associados à fabricação das representações do mundo, mas sabendo que essas representações são indissociadas de emocionalizações. Essa junção entre os processos representativos, semióticos, e as emocionalizações que os acompanham, que se define como subjetividade (REY, 2003; ROLNIK, 2011). .

Warat (2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009.) é um filósofo rigoroso, um semiólogo que compreende a importância das definições, as sutilezas das distinções, bem como as armadilhas e os limites das enunciações3 3 De acordo com Warat (2009, p. 52), a semiologia seria “[...] uma teoria geral das significações, partindo do postulado de que todo comportamento humano é significativo, por si e através de seus produtos”. Assim sendo, seria mais ampla que a linguística, que estuda um sistema significativo específico. . Foi com base no estudo severo da linguagem, das suas possibilidades e interditos, que a compreendeu como um instrumento de poder, e, ao mesmo tempo, como uma ferramenta de resistência. Debruçou-se, então, de forma ambivalente, na crítica ao normativismo jurídico e na proposição de um Direito como alteridade4 4 O normativismo jurídico é o estudo do Direito centrado na norma. No entendimento de Warat (2004a, 2004b, 2009, 2010), em regra, referido estudo está acompanhado de uma pretensão de pureza metódica, ou seja, busca estabelecer sentidos claros para os textos legais por meio do método de interpretação correto. Essa pretensão torna a produção jurídica um local rico para a afirmação de estereótipos, verdades naturalizadas, que ocultam suas pretensões de poder. Warat (2009) chama de jurisdicismo a ideologia jurídica, que se reproduz com base em um senso comum teórico autocentrado, que não questiona o lugar de fala do jurista. . O ponto comum de sua obra é o desnudamento das verdades jurídicas e como elas podem ser mecanismos para a perpetuação de violências.

O texto waratiano é crítico e propositivo, e, em virtude de suas opções, também possui limites5 5 Warat (2004a) assumiu com todo vigor a transgressão por meio da linguagem. Dessa forma, refutando o formalismo jurídico e acadêmico, que cultua a linguagem pretensamente rígida, bem definida, inacessível, distante, ele se direcionou para uma escrita poética e literária. Em uma atitude política de resistência, Warat transitou de uma linguagem rigorosa, com definições precisas - que marcou seus primeiros textos - para uma escrita mais metafórica e sem uma precisão conceitual tão explícita. O rigor analítico pode ser encontrado em seus livros iniciais, como A pureza do Poder (19983). Já a poética está em livros como o Manifesto para uma Ecologia do Desejo (2004a), no Amor Tomado pelo Amor (2004a), na Ciência Jurídica e seus dois maridos (2004a), assim como em tantos outros livros e textos que marcaram sua fase surrealista. Nesse segundo momento, seus textos acadêmicos começaram a confundir-se com romances, tornaram-se escritos híbridos entre o acadêmico e o artístico. Em sua fase surrealista, são as metáforas, as emocionalidades, que emergem com uma força maior. As precisões conceituais dissolvem-se propositalmente. Isso acaba dificultando a compreensão de distinções relevantes para o próprio entendimento de sua obra, dentre elas, dos distintos conceitos de Direito com os quais ele trabalha. A escrita poética é uma opção política, que cumpre o seu papel ao gerar o incômodo do deslocamento, ao transgredir a linguagem acadêmica, ao escrever textos sedutores, que mobilizam afetos e permitem um encontro mais intenso entre o autor e o leitor. É uma escrita marginal, e Warat (2010) sabia disso. . Entre eles está a perda de distinções conceituais que poderiam torná-lo mais claro e acessível; como também a ausência das referências, que permitiria aos seus leitores aprofundarem-se com uma maior facilidade em seus pressupostos. O afastamento da linguagem analítica e a aproximação da linguagem metafórica do autor - por mais que favoreça a conexão entre autor e leitor, com uma capacidade maior de seduzi-lo e afetá-lo - perdem em termos de precisão conceitual, gerando confusões e alguns paradoxos. A concepção dúbia sobre o Direito é um exemplo disso.

Compreender que Warat trabalha com um mesmo signo, mas com duas significações distintas, permite desfazer a aparente contradição de sua obra. Deixa mais claro, assim, qual o plano em que ele realiza sua crítica, e qual o caminho que pretende avançar como teórico do Direito.

Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) é um profundo crítico do Direito normativo e do jurista tradicional: aquele que centra sua análise apenas na norma, limitando-se ao estudo das instituições e às análises macropolíticas. Ele faz um giro, lança sua lente epistêmica para o regime de produção subjetiva que dá sustentação ao Direito moderno, ou seja, propõe uma análise micropolítica. Dessa forma, seu pensamento caminha de forma ambivalente e complexa: tanto busca desnudar as verdades e subjetividades que dão sustentação ao sistema normativo moderno, quanto é propositivo, defendendo a necessidade de outro Direito, o da alteridade.

Foi um grande crítico da normatividade jurídica, empenhando-se em revelar os mitos que a sustentam (Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.). Fez isso ao analisar as armadilhas linguísticas, os sensos comuns e as relações de poder presentes na semiótica do Direito - exercício de desnudamento que denominou como semiologia do poder6 6 Por meio da categoria Semiologia do poder, Warat (2009, p. 9) reivindica o lugar social e conflitivo que envolve toda significação, busca “[...] restaurar a noção de poder ideológico para mostrar como a significação comporta uma forma de exercício do poder político”. Em outro texto, Warat (2004b, p. 348) explica que “a Semiologia que apoiará estes estudos deve começar por reconhecer a dimensão ideológica e política das palavras, vendo-as como um lugar de poder”. . Não obstante, sua crítica tornou-se ainda mais substancial e inovadora ao cruzar com a Psicologia Social francesa, de Felix Guattari (1990GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.), e com as reflexões linguísticas de autores como Bakhtin (2010BAKHTIN, Michael. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.) e Barthes (2007BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007.). Isso permitiu que ele descobrisse que o normativo está intimamente associado a um regime de subjetivação próprio.

Segundo Warat, quando o jurista tradicional enfoca nas normas, nas instituições, na macropolítica, perde de vista o principal: o Direito como uma produção semiótica e subjetiva, quer dizer, sua dimensão micropolítica (Warat, 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.). Warat argumenta que a grande atuação do Direito está na rede de sentidos que induz, nas verdades que produz e no campo de ação que estrutura. O jurista tradicional, ao trabalhar apenas com o normativo - desconsiderando o subjetivo -, restringe-se às ilusões geradas pelas verdades do Direito, sem adentrar na casa de máquinas de produção dessas verdades. Com isso, não consegue alcançar o cerne da realização dos direitos fundamentais ou os mecanismos profundos de exercício de poder pelo Direito.

O chamado teórico de Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.) significou o deslocamento da macropolítica para a micropolítica jurídica, para a política da subjetivação (Guattari; Rolnik, 2005GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.). Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) pressupõe o reconhecimento de que as relações sociais se constituem por um “entre-nós” afetivo, uma rede de sentidos subjetiva e reciprocamente produzida. Ele provoca o jurista para encontrar o desejo no Direito, deslocando seu olhar teórico para a rede de sentidos e poderes que produzem a subjetividade jurídica.

A análise teórica waratiana voltou-se para os efeitos subjetivos do atual sistema normativo, lutando por um sistema de direitos que permita o respeito à singularidade, aos múltiplos projetos de vida e à emergência da alteridade. No seu entendimento, não há como discutir a realização de direitos fundamentais sem colocar em xeque a própria forma de subjetivação moderna capitalista. Direitos humanos devem ser pensados em um regime de produção de subjetividade, que afirme e potencialize as partes que se afetem como seres desejantes, que se constituem em um “entre-nós”, próprio das relações humanas.

Assim, se por um lado Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) é crítico ao jurista que perde de vista a subjetividade, ocultando as estratégias mais agudas de poder do Direito; por outro, acredita que é possível e necessário deslocar do campo normativo e centrar atenção na micropolítica, permitindo a construção de novos caminhos desejantes não hegemônicos, resistindo ao sistema de captura da subjetividade.

2) A SUBJETIVIDADE NEOLIBERAL

Este texto argumenta que o pensamento e as críticas de Warat têm adquirido uma maior atualidade. Contemporaneamente, as reflexões dentro do campo das Ciências Sociais evidenciam a captura da subjetividade como um elemento central do neoliberalismo. Como defendido por Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), o neoliberalismo não é apenas uma forma específica de produção e de circulação de mercadorias ou de acumulação de capital. Sua ênfase, como movimento teórico e prático, está na produção de uma subjetividade e de um sujeito específicos: o sujeito empresarial, que guia sua vida e suas ações por meio da lógica da concorrência.

Os teóricos neoliberais compreendem a importância de atuar politicamente no campo da produção dos sentidos subjetivos. É uma preocupação teórica explícita, com desdobramentos práticos. A clássica frase de Margareth Tatcher, de que era necessário moldar o espírito, talvez seja a dimensão mais notória da política subjetiva neoliberal. No centro dessa política está o apagamento do nós, da interrelação entre o eu e o outro, sintetizada na negação do social e na valorização do sujeito como empresário de si. A reflexão sobre esses aspectos auxiliará no diálogo buscado neste trabalho, que relaciona as noções acerca da subjetividade neoliberal e das percepções já construídas por Warat, o que será exposto na terceira parte do artigo.

2.1) A fragmentação do social e o indivíduo como empresário de si

Se a proposta teórica de Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.) coloca ênfase na subjetividade e no entre-nós que constitui os sujeitos, o projeto neoliberal tem como política subjetiva o apagamento do social e a supervalorização do indivíduo. O mantra propagado é: não há o coletivo; há apenas o individual. Há uma discursividade, cada vez mais comum, que nega as razões sociais das desigualdades e injustiças, colocando no foco apenas o esforço e os méritos pessoais para superar qualquer adversidade.

A circulação da discursividade neoliberal e sua hegemonização devem ser entendidas como a institucionalização de uma nova ordem de circulação do discurso, que pressupõe a naturalização de determinados sensos comuns e o surgimento da interdição de discursos não hegemônicos (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2008.). Assim, os discursos que questionem a ordem neoliberal tendem a ser desacreditados. As ideias neoliberais, que assumam como pressuposto a existência de uma moral meritocrática, tornam-se cada vez mais palatáveis, circuláveis, comuns e naturais (Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.). A contraposição a essas ideias, qual seja, o resgate do social, a reivindicação das causas coletivas para as questões contemporâneas, o questionamento da sociedade de mercado e da meritocracia encontra interditos cada vez mais poderosos.

Na micropolítica neoliberal há a valorização de uma individualidade reificada em detrimento do social. Há a produção de verdades estereotipadas sobre os indivíduos, que são subjetivados como atomizados, sem historicidade, apagando a sua relação, simbólica e afetiva, com o mundo (Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.).

O neoliberalismo não é apenas um conjunto de ideias ou políticas públicas, ele impacta na representação dos sujeitos sobre o mundo e sobre si, induzindo subjetivações, vivências simbólicas e emocionais, particulares (Brown, 2019aBROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.; Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018., REY, 2003REY, Luiz Fernando Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

Assim, por mais que a dimensão econômica do neoliberalismo seja a mais evidente, seus impactos sobre os sujeitos e a sociedade não se limitam a esse campo, atingem a própria produção da subjetividade. A análise macropolítica sobre o neoliberalismo deve caminhar junto da micropolítica (Warat, 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.). Evidencia-se tal dimensão, já que esse formato hegemônico de subjetivação alimenta a macropolítica, estando tais elementos intimamente implicados.

Um dos sentidos marcantes do sistema de subjetivação neoliberal e das verdades por ele produzidas é a negação do outro, favorecendo um único sujeito e uma única forma de vida, tida como superior. Há a negação da polifonia, da pluralidade de discursos e de projetos de vida, em favor de um caminho único (Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.). Segundo o sistema de verdades neoliberal, o mercado é uma instituição social total, que normatiza todas as relações humanas, as quais passam a ser entendidas como relações fundadas sob a lógica da concorrência. Desse modo, é no mercado que os indivíduos devem buscar a satisfação das suas necessidades, a sua felicidade e os seus desejos (Brown, 2019aBROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.; Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

Nessa dinâmica, o indivíduo atomiza-se em uma coletividade. Percebe-se como único responsável pelo seu sucesso e seu fracasso. Tudo isso tendo como norte uma liberdade de ações, escolhas e vivências. O caminhar da vida, os projetos, os sonhos, todos são plenamente plausíveis, dependendo unicamente das escolhas do próprio sujeito para que se concretizem. A felicidade, os prazeres, tudo pode ser realizado por meio do consumo no mercado. O modelo da empresa é imposto como horizonte normativo para o processo de individualização (Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

A partir de uma transposição linear das práticas empresariais, em que há um projeto de melhor gestão para alcance de resultados ótimos, normatiza-se esse mesmo projeto sobre os indivíduos. As práticas empresariais de sucesso, de concorrência são levadas para a dimensão da vida cotidiana. As relações diárias, a condução da própria vida, que, em regra, se baseiam em uma interação desinteressada - cujo horizonte é o próprio reconhecimento do outro como sujeito - passam a ser subjetivadas cada vez mais sob a lógica das relações de mercado. O modelo empresarial torna-se horizonte normativo e subjetivo, gerando o que Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) denominam como o sujeito empresário de si, aquele que é o único responsável, tanto pelo seu sucesso, quanto pelo seu fracasso e deve gerir sua vida como se fosse uma empresa.

Para o momento, importa aprofundar nas raízes do neoliberalismo e compreender como a produção dessa subjetividade neoliberal impacta em uma percepção do eu de forma fragmentada em relação ao outro - proposta avessa à alteridade pensada por Warat.

A consequência política desse processo, como já sinalizado, é a naturalização do sucesso e do fracasso, que são reduzidos e compreendidos exclusivamente sob uma lógica econômica, levando à conformação aos processos de dominação. Essa essencialização replica e legitima práticas violentas de subalternização. O social é esvaziado, bem como o questionamento sobre justiça ou injustiça e suas relações de poder, silenciando o discurso da revolta e das dissidências, camuflando a opressão (Brown, 2019aBROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.).

Quando se perdem no tempo as raízes da violência, colocando-a no lugar-comum, no cotidiano da comunidade, a violência torna-se prática recorrente, hábito, costume. Nesses termos, vê-se que a violência assume uma dimensão de negação da intersubjetividade que constitui os sujeitos. Conduz à rejeição da possibilidade de indivíduos realizarem-se existencialmente em uma relação de reciprocidade, em um entre-nós compartilhado, em relações de alteridade. O não reconhecimento da alteridade é, também, uma das dimensões não assumidas, naturalizadas, da violência pela subjetivação neoliberal (Brown, 2019aBROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.; Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.).

Ao descontextualizar e desconectar historicamente as fontes da opressão, caminha-se para a sua naturalização. As coisas são, porque sempre foram. Finca-se profundamente não apenas nas práticas sociais, mas também na subjetividade dos indivíduos. O remoto, o passado, o esquecido conduzem às práticas sociais atuais. Constrói-se uma rede de hábitos que induz os indivíduos a uma racionalidade opressiva, que reverbera tanto em seu agir, quanto em seu sofrer (Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

No processo de naturalização das opressões, na redução dos sucessos e dos fracassos a uma dimensão meritocrática individual, há o esvaziamento do político e da discussão política sobre o bem comum. No momento em que se legitima a ideia de que cada um é responsável por si, dando um ar de liberdade dentro das práticas sociais, os indivíduos desvinculam-se da ideia de comunidade, de reciprocidade e de interdependência. Não é necessário mais se preocupar com o outro. Basta ter o “eu” como foco da atenção, afinal, cuidar de si já é tarefa cara o suficiente (Browna, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.; Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018., Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.).

Uma visão empobrecida de liberdade, de individualidade e de sociedade contribui para o esvaziamento do bem comum. O bem público, o respeito à diversidade do outro são retórica e imediatamente associados à opressão e ao totalitarismo. Argumenta-se que no momento em que o Estado estabelece o que é esse bem comum, ele reduz os espaços de liberdade dos indivíduos, suas possibilidades de ser, em especial, de consumir e contratar, isso em um contexto de enaltecimento extremo da liberdade (Browna, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.).

O sistema neoliberal sofisticou-se a tal ponto que engendrou uma subjetividade “hiper-exploratória” de si. Os sujeitos são levados a demandarem-se cada vez mais, responsáveis pela gestão do próprio tempo e da melhoria de si como sujeitos produtivos. Sendo assim, todas as pessoas podem ser inseridas nessa sociedade e predispostas como indivíduos aptos a consumirem e serem consumidos (Bauman, 2005BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.; Brownb, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.).

Esse panorama consolida e fortalece o chamado capital humano, isto é, os indivíduos não são mais enxergados com base em sua dignidade e potencialidades. Todas as suas qualidades e fraquezas são precificadas e atravessadas pela capacidade de produção econômica. Quanto mais apto a produzir, mais valioso é o sujeito, mais espaço em nossa sociedade ele conquistará e de mais direitos ele desfrutará (Brownb, 2019BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. Organização de Margareth Rago e Maurício Pelegrini. São Paulo: Intermeios, 2019b.; Foucault, 2021FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2021.).

Percebe-se, assim, algumas facetas assumidas pelo neoliberalismo e que moldam a subjetividade dos dias atuais. É diante desse dilema contemporâneo que se retomam as reflexões construídas por Warat e seu embate à subjetividade única.

3) A CARNAVALIZAÇÃO WARATIANA E O QUESTIONAMENTO DA SUBJETIVIDADE ÚNICA

Este último tópico buscará refletir como Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) já trabalhava os efeitos do neoliberalismo na produção da subjetividade contemporânea, qual seja, sua dimensão monolítica e a indução de um eu fragmentado em relação ao outro7 7 O primeiro capítulo do livro “A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia”, tradução e organização de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa, Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010” é inteiramente dedicado à relação entre subjetividade, neoliberalismo e Direito. . Também visa apontar dois caminhos de resistência enunciados por ele: a alteridade e a ecologia política.

Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) foi um questionador constante e afiado dos sistemas de verdade que sustentam a modernidade. Foi um crítico agudo do ensino jurídico; da modernidade, que conduz à estereotipação (entendida como a naturalização de verdades); e da castração do desejo pela modernidade-capitalista. Nesses termos, o desejo, a normalização de corpos, o normativismo e a produção moderna de uma subjetividade monolítica, elementos tão reverberados no contexto da subjetividade neoliberal, são temas que estão presentes de forma constante em sua obra. São a expressão de uma mesma micropolítica, de um mesmo sistema de verdades que impacta no regime de subjetivação e, por conseguinte, devem ser trabalhados de forma conjunta.

Desse modo, pode-se afirmar que a proposta waratiana é complexa ao enfrentar dicotomias modernas que se alimentam de cisões como o racional/irracional, caos/ordem, objetivo/subjetivo (Morin, 2008MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.; Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.). Falar sobre isso é importante, pois, no centro da sua crítica ao normativismo jurídico, está a divisão entre Direito e desejo, entre a normatividade e a subjetividade. Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) salienta que uma das grandes falácias do normativismo é ter como foco a norma jurídica, desconsiderando sua relação com as produções subjetivas dos seus sujeitos. Defende o autor que a norma e o corpo possuem uma relação indissociável.

Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.), na mesma linha de Foucault (2010FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 273-296.), acredita que a principal dimensão do poder não está no exercício da violência pelo Estado. O poder é exercido quando consegue influir em uma conduta. A conduta, por sua vez, é uma dimensão mais profunda que a ação, pois ela pressupõe a indução de uma subjetivação. O poder atua transformando a subjetividade, moldando corpos e conduzindo condutas8 8 “A forma inicial da política não é a dominação (repressão), mas a representação da realidade. A grande revolução da sociedade são mudanças na forma de representação da realidade, alterações profundas nos modos da comunicação simbólica” (WARAT, 2004a, p. 246). Ou seja, conforme Warat, a política está no campo do sentido, na mobilização e fabricação de produções subjetivas. .

O Direito, então, não é apenas um sistema semiológico em que normas são interpretadas e aplicadas de forma externa ao sujeito; ele atravessa e produz corpos, constituindo-os. Igualmente, o Direito não pode ser dissociado dos corpos que fabrica. Simultaneamente, são esses mesmos corpos que permitem a existência de um sistema jurídico-semiológico específico.

O Direito não se reduz a um sistema produtor de sentidos. É gerado socialmente, reflexo de uma temporalidade, de conflituosidades. É, destarte, um sistema de poder. Warat (2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b.) procura demarcar isso por meio de sua semiologia do poder, apontando que todo processo de subjetivação é socialmente constituído, buscando desvendar os jogos e as tramas que estão por detrás das palavras, dos símbolos e dos sentidos (Barthes, 2007BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007.; Bakhtin, 2010BAKHTIN, Michael. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.; Rocha, 2003ROCHA, Leonel Severo. Algumas anotações sobre a semiologia do poder. In. WARAT, Luis Alberto. Confissões e ilusões: manifesto para contradogmáticas. Contra-dogmáticas. 2003.). Cada signo não emite apenas um significado, mas é reflexo das complexidades de um tempo social. Assim sendo, Warat (2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009.) procura desvendar as tramas que constituem os sentidos, excluindo qualquer ilusão de neutralidade dos sistemas significantes, entre eles o jurídico.

Falar sobre Direito é também discorrer sobre sujeitos e suas subjetividades. Essa conclusão é importante, pois, com base nela, podem-se construir zonas de inteligibilidade para resgatar o tema do neoliberalismo anteriormente analisado. O projeto neoliberal envolve uma redefinição da relação entre o Estado e o mercado, mas, também, implica a constituição de um tipo específico de sujeito, o empresarial, e a defesa de um modelo próprio de liberdade: a que se dá pelo consumo (Dardot; Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.).

Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) discute abertamente com o tema do neoliberalismo. Ele ressalta que o atual momento do capitalismo funda-se em uma subjetividade monolítica, cujo pressuposto social e jurídico é a negação radical do outro, de toda e qualquer diferença. Metaforicamente, ele se refere à construção de uma nova “Torre de Babel”, que tem como pretensão atingir o céu, buscando uma linguagem única:

Os representantes visíveis do Império tentam a construção da terceira Torre de Babel para retirar-se de cima, para sempre, as possibilidades da diferença. É uma torre que tem consciência (seus construtores), que o êxito da empresa depende da possibilidade de contar com um pensamento único, um estado de ânimo uniforme e um universalismo de conceitos [...] é a torre que pretende construir rumo ao infinito do céu a eternidade do poder, a eterna perpetuação do mesmo e com as mesmas caras e as mesmas pretensões. (Warat, 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010., p. 8-9).

O neoliberalismo tem como pressuposto epistêmico e como projeto de poder a afirmação de uma subjetividade universal, em que se apagam toda a diferença, os indesejáveis, as pessoas “mal cheirosas”, a resistência, o refugo, em favor de uma linguagem pretensamente homogênea e de verdades pretensamente inquestionáveis. Um jogo discursivo, que busca encobrir o poder, em que o sujeito homem, branco, ocidental, individual e empresário de si torna-se norma (normatizada e normalizada). De acordo com Warat, o neoliberalismo é um projeto político, jurídico e social, cujo centro é um modelo de individualização que nega os vínculos de alteridade com o outro9 9 Deve-se esclarecer que por mais que esses vínculos sejam negados, eles jamais deixam de existir, pois as relações humanas se produzem no entre-nós. . Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) convergem nessa linha de entendimento, na medida em que identificam a complexidade do sistema neoliberal, que regula esferas além da econômica e financeira. Ele se espraia sobre a política e a subjetividade, conforme já pontuado ao longo deste texto.

Como expõe Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010., p. 12), “o capitalismo, diz Guattari, reduz tudo ao estado de merda, isto é, ao estado de fluxos indiferenciados e decodificados, dos quais cada um deve tirar sua parte, de um modo privado e culpabilizado”. Ao negar o outro, o entre-nós que constitui os processos de subjetivação, induz-se um modelo de individualização atomizado, em que o sujeito se compreende como o único responsável pelo seu sucesso e seu fracasso, em uma dinâmica de hiper-exploração e culpabilização de insucessos. Esse olhar dialoga com as reflexões já levantadas de Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), e Han (2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

O esforço de Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.), todavia, não é apenas para pensar o diagnóstico sobre os impactos do capitalismo e do neoliberalismo sobre a subjetividade. Seu principal desafio, ao trazer a dimensão subjetiva, é pensar caminhos de resistência, possibilidades jurídicas que levem em conta a alteridade. Suas críticas ao ensino jurídico, suas incursões a respeito da mediação e a sua tese sobre o surrealismo jurídico fazem parte dessa trajetória10 10 Todos esses caminhos de resistência tem como foco a indução de novas formas de subjetivação. A crítica passa por uma educação jurídica menos normalizadora, que potencialize os espaços criativos e os vínculos de alteridade; passa pela construção de uma proposta de mediação que deixa de lado a norma jurídica e enfatiza a restauração da alteridade, dos vínculos de cuidado abalados; perpassa a proposição do surrealismo jurídico, que critica o normativismo do Direito e propõe o Direito como alteridade (WARAT, 2004a; 2004b). .

Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) esclarece que a pretensão neoliberal de construir a terceira Torre de Babel, cujo objetivo é atingir o grau zero da escrita11 11 O grau zero da escrita seria a pretensão irrealista que busca o sentido original, único de qualquer palavra, ou seja, a ausência de qualquer dubiedade, a clareza absoluta (WARAT, 2004b). O efeito de poder dessa pretensão é exatamente ocultar o poder dos sistemas semióticos, como consequência, afirmando estereótipos, significados naturalizados (BARTHES, 2007). , a verdade única, com a busca da produção de um sistema de subjetivação monolítico, tem gerado como consequência verdadeiros semiocídios, que podem ser entendidos como “[...]o extermínio das subjetividades, as marcas de um sistema de crenças que nos penetram como se fossem balas que produzem a morte de quem é contaminado por elas” (Warat, 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010., p. 46).

Em oposição ao semiocídio neoliberal, que implica o extermínio de sujeitos, seja pela violência física, simbólica, seja pela negação existencial, Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) reivindica a radicalidade da alteridade. Para isso, traz para o jurídico a discussão da subjetividade, ao mesmo tempo em que critica a identidade que as teorias normativistas estabelecem entre o Direito, o Estado e a norma.

Por meio da sua semiologia do poder, desnuda as verdades estereotipadas (naturalizadas, que se vendem como neutras e universais), que dão sustentação ao atual modelo de subjetivação neoliberal. Ele busca denunciar estereótipos, desnaturalizando práticas de violência e opressão, demonstrando como elas também têm uma raiz micropolítica (Warat, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.).

O seu projeto, porém, não se limita a expor os semiocídios (2010). Ele insere a alteridade no cerne do Direito, definida como a criação de vínculos de afeto e cuidado. Não se restringe ao diagnóstico da subjetividade monolítica neoliberal, mas reivindica novas formas de subjetivação, menos conformistas, menos dóceis, mais abertas ao desejo e aos múltiplos devires; inserindo-as no contexto jurídico. Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) postula processos subjetivos baseados na resistência, que tenham como fundamento a radicalidade do outro e a assunção do “entre-nós”.

O autor (2010) empenha-se em denunciar a negação do social, a naturalização de violências e o não reconhecimento da interdependência. Compreende a subjetividade como um campo de resistência, de enfrentamento político, de resgate da alteridade e de valorização de diferentes projetos de vida e de distintas relações com o mundo. A luta contra o neoliberalismo está no campo político e semiótico, portanto (Browna, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.).

Apesar da pretensão de poder neoliberal da nova Torre de Babel em construir a linguagem única, segundo Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.), os de baixo, os excluídos, não param de se movimentar, de produzir subjetivações divergentes. Metaforicamente, ele afirma que à pretensão de encontrar uma linguagem neutra sem resistências, Deus castiga inserindo toda diferença, toda alteridade, o devir do outro, que emerge de forma teimosa.

Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.) utiliza-se, então, da polifonia, da pluralidade de linguagens, para reivindicar a necessidade de uma democracia carnavalizada, que se abra para o conflito e abrigue múltiplas subjetivações. Ao semiocídio ele opõe a ecopolítica, a política do cuidado ecológico, com o outro12 12 Warat (2004a), com base em Guattari (1990), trabalha com três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana. São registros indissociáveis. A ecopolítica é a política do cuidado consigo, com o outro e com o meio ambiente. . Ao Direito normativo ele opõe o surrealismo jurídico, que encontra seu foco na subjetividade, na alteridade e na ecologia política, de Felix Guattari (1990GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.).

Ao sujeito que se guia pelo mercado, pelo consumo, reduzindo suas possibilidades de experiências sob o formato de mercadoria, venal e descartável, em que o valor de troca assume preponderância sobre qualquer outro, Warat aposta no sujeito do desejo, que reconhece e valoriza sua interdependência. À subjetivação hiper-exploratória de si, que funda o sujeito empresário de si, guiado pela lógica da competição, Warat aposta no afeto, no reconhecimento do afetar e do ser afetado pelo outro, e na valorização da pluralidade de subjetivações. No lugar do adoecimento, há a aposta em uma ética do cuidado e do acolhimento. Ao passo que o neoliberalismo oferece apenas uma alternativa de olhar e ser olhado pelo mundo, que se dá pela mercadoria, o autor nos oferece a diversidade de olhares e o acolhimento dessas múltiplas e complexas subjetivações (Brownb, 2019BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. Organização de Margareth Rago e Maurício Pelegrini. São Paulo: Intermeios, 2019b.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

Conduzindo para o fim, se a proposta waratiana de Direito gira em torno da ecopolítica, que é a política da alteridade, da criação de vínculos de afeto e cuidado com o outro, cabe indagar, quem é o “outro” para Warat?

Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.) trabalha com a ideia de três ecologias: (1) a ecologia do eu consigo mesmo; (2) a relação entre os sujeitos; (3) a relação com a natureza. São divisões analíticas, porém indissociáveis. A ecologia política oferece uma dimensão complexa da alteridade, pois o outro pode significar a relação de cuidado e afeto que devo constituir comigo mesmo, com outros sujeitos humanos e com sujeitos inumanos (a natureza). O outro não é apenas outro ser humano, mas pode ser também a relação que um sujeito estabelece consigo ou com a natureza.

O questionamento à subjetividade monolítica neoliberal é um questionamento à fragmentação (eu/outro) e à centralidade do mercado, que faz com que a alteridade das relações que estabeleço comigo, com outros seres humanos e com a natureza sejam negadas ao mesmo tempo em que são internalizadas sob a lógica da mercadoria. É assim que, no entendimento da razão neoliberal, o eu, o outro e a natureza são percebidos a partir do viés da coisificação precificada, conduzindo a uma visão de liberdade que se reduz ao consumo (Brownb, 2019BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. Organização de Margareth Rago e Maurício Pelegrini. São Paulo: Intermeios, 2019b.; Han, 2018HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.).

A construção de vínculos de alteridade pressupõe novos processos subjetivos que permitam a reconstrução ecológica, criando novas relações de cuidado com as três dimensões ecopolíticas. Essa é a grande insuficiência que Warat aponta ao Direito normativo, a grande crítica que faz ao neoliberalismo e o horizonte de possibilidade que anuncia de forma desafiadora aos juristas.

CONCLUSÃO

Warat foi um pensador único. À frente de seu tempo, analisou os impactos de uma sociedade monolítica e universalizante, e ofereceu alternativas disruptivas. Por meio de uma narrativa tomada por surrealismos e metáforas, questionou o altar para o qual o homem neoliberal e autocentrado foi alçado. A partir da percepção da importância do outro e da natureza nas interações desse sujeito, complexificou as relações de alteridade para além do consumo e da exploração de si mesmo. Urge, agora, ressignificar as práticas sociais e relacionais, absorvendo uma perspectiva de afeto tendo como foco uma ecologia política.

Inovou ao trabalhar a relação Direito e neoliberalismo sob um ponto de vista que ainda hoje é incomum, o da subjetividade. Estremeceu as bases das narrativas jurídicas ao tratar da importância da micropolítica para o Direito. Enquanto todos os olhos tendem a se voltar para as questões públicas, para o formalismo exacerbado e pelas rígidas verdades propostas pelo Direito, Warat retoma a importância da subjetividade e da micropolítica. Propõe, no acolhimento e no fomento de múltiplas subjetivações, o cuidado com o outro, um elemento central para uma sociedade democrática.

É na percepção de uma micropolítica resistente a processos homogeneizantes que se consolidam novas categorias jurídicas e reconhecimentos. Nesse processo, então, do subterrâneo das relações convencionais, das intencionalidades e das hipocrisias jurídicas, emerge o real, o latente, o que insiste em pulsar, apesar das tentativas de silenciamento.

A micropolítica sobre a qual Warat se debruça é aquela que estremecerá as bases do instituído e que oferecerá alternativas para aquilo que o neoliberalismo insiste em sufocar: o dissidente e o cuidado. Assim, reconhecer subjetividades divergentes não apenas fortalece o debate para o nascimento de novas categorias jurídicas, como reoxigena práticas eivadas de formalismos e de uma segurança jurídica que serve especificamente para perpetuar opressões.

A falibilidade do projeto neoliberal em curso, então, é confrontada com a emergência da afetividade surrealista arquitetada pelo pensador. Não há saídas plausíveis quando o Direito se coloca como ferramenta que viabiliza um projeto massificante de subjetividades. É justamente ao confrontar essa tendência e oferecer as saídas já explanadas que Warat oferece todo o seu protagonismo e vanguardismo.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, Michael. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007.
  • BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
  • BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos: Editora Filosófica Politeia, 2019a.
  • BROWN, Wendy. O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas “democracias” do século XXI. In: Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. Organização de Margareth Rago e Maurício Pelegrini. São Paulo: Intermeios, 2019b.
  • CARVALHO NETTO, Menelick. A contribuição do direito administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício de teoria da constituição. Teoria da Constituição e Direito Constitucional. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
  • FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 273-296.
  • FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Edições 70, 2021.
  • GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.
  • GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
  • HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyné, 2018.
  • HARVEY, David. O neoliberalismo: histórias e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
  • MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
  • SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. 1ª ed. 2ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
  • REY, Luiz Fernando Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
  • ROCHA, Leonel Severo. Algumas anotações sobre a semiologia do poder. In WARAT, Luis Alberto. Confissões e ilusões: manifesto para contradogmáticas. Contra-dogmáticas. 2003.
  • ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformação contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFGS, 2011.
  • WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis: ed. da UFSC, 1983.
  • WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.
  • WARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b.
  • WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009.
  • WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.
  • 1
    Trabalha-se aqui com a distinção entre macropolítica e micropolítica, não como campos opostos, mas como dois níveis de análise. O foco da micropolítica é a produção subjetiva do mundo, ou seja, a representação emocionalizada do mundo, que estrutura o que se chama de realidade. Busca entender o que são os processos de subjetivação, o que está por detrás deles e o que eles estão gerando. Já a macropolítica está no campo institucionalizado, no campo das representações sociais, das instituições. São os cúmulos de verdade que estruturam o real (ROLNIK, 2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformação contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFGS, 2011.).
  • 2
    Os processos de subjetivação, segundo Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.), são uma produção individual e social. Estão intimamente associados à fabricação das representações do mundo, mas sabendo que essas representações são indissociadas de emocionalizações. Essa junção entre os processos representativos, semióticos, e as emocionalizações que os acompanham, que se define como subjetividade (REY, 2003REY, Luiz Fernando Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.; ROLNIK, 2011ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformação contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFGS, 2011.).
  • 3
    De acordo com Warat (2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009., p. 52), a semiologia seria “[...] uma teoria geral das significações, partindo do postulado de que todo comportamento humano é significativo, por si e através de seus produtos”. Assim sendo, seria mais ampla que a linguística, que estuda um sistema significativo específico.
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    O normativismo jurídico é o estudo do Direito centrado na norma. No entendimento de Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., 2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b., 2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009., 2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.), em regra, referido estudo está acompanhado de uma pretensão de pureza metódica, ou seja, busca estabelecer sentidos claros para os textos legais por meio do método de interpretação correto. Essa pretensão torna a produção jurídica um local rico para a afirmação de estereótipos, verdades naturalizadas, que ocultam suas pretensões de poder. Warat (2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009.) chama de jurisdicismo a ideologia jurídica, que se reproduz com base em um senso comum teórico autocentrado, que não questiona o lugar de fala do jurista.
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    Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.) assumiu com todo vigor a transgressão por meio da linguagem. Dessa forma, refutando o formalismo jurídico e acadêmico, que cultua a linguagem pretensamente rígida, bem definida, inacessível, distante, ele se direcionou para uma escrita poética e literária.
    Em uma atitude política de resistência, Warat transitou de uma linguagem rigorosa, com definições precisas - que marcou seus primeiros textos - para uma escrita mais metafórica e sem uma precisão conceitual tão explícita. O rigor analítico pode ser encontrado em seus livros iniciais, como A pureza do Poder (19983). Já a poética está em livros como o Manifesto para uma Ecologia do Desejo (2004a), no Amor Tomado pelo Amor (2004a), na Ciência Jurídica e seus dois maridos (2004a), assim como em tantos outros livros e textos que marcaram sua fase surrealista. Nesse segundo momento, seus textos acadêmicos começaram a confundir-se com romances, tornaram-se escritos híbridos entre o acadêmico e o artístico.
    Em sua fase surrealista, são as metáforas, as emocionalidades, que emergem com uma força maior. As precisões conceituais dissolvem-se propositalmente. Isso acaba dificultando a compreensão de distinções relevantes para o próprio entendimento de sua obra, dentre elas, dos distintos conceitos de Direito com os quais ele trabalha.
    A escrita poética é uma opção política, que cumpre o seu papel ao gerar o incômodo do deslocamento, ao transgredir a linguagem acadêmica, ao escrever textos sedutores, que mobilizam afetos e permitem um encontro mais intenso entre o autor e o leitor. É uma escrita marginal, e Warat (2010WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução e organização: Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. E Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010.) sabia disso.
  • 6
    Por meio da categoria Semiologia do poder, Warat (2009WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica, textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux , 2009., p. 9) reivindica o lugar social e conflitivo que envolve toda significação, busca “[...] restaurar a noção de poder ideológico para mostrar como a significação comporta uma forma de exercício do poder político”. Em outro texto, Warat (2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b., p. 348) explica que “a Semiologia que apoiará estes estudos deve começar por reconhecer a dimensão ideológica e política das palavras, vendo-as como um lugar de poder”.
  • 7
    O primeiro capítulo do livro “A rua grita Dionísio: Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia”, tradução e organização de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa, Rio de Janeiro: editora LumenJuris, 2010” é inteiramente dedicado à relação entre subjetividade, neoliberalismo e Direito.
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    “A forma inicial da política não é a dominação (repressão), mas a representação da realidade. A grande revolução da sociedade são mudanças na forma de representação da realidade, alterações profundas nos modos da comunicação simbólica” (WARAT, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a., p. 246). Ou seja, conforme Warat, a política está no campo do sentido, na mobilização e fabricação de produções subjetivas.
  • 9
    Deve-se esclarecer que por mais que esses vínculos sejam negados, eles jamais deixam de existir, pois as relações humanas se produzem no entre-nós.
  • 10
    Todos esses caminhos de resistência tem como foco a indução de novas formas de subjetivação. A crítica passa por uma educação jurídica menos normalizadora, que potencialize os espaços criativos e os vínculos de alteridade; passa pela construção de uma proposta de mediação que deixa de lado a norma jurídica e enfatiza a restauração da alteridade, dos vínculos de cuidado abalados; perpassa a proposição do surrealismo jurídico, que critica o normativismo do Direito e propõe o Direito como alteridade (WARAT, 2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.; 2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b.).
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    O grau zero da escrita seria a pretensão irrealista que busca o sentido original, único de qualquer palavra, ou seja, a ausência de qualquer dubiedade, a clareza absoluta (WARAT, 2004bWARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurídica e ensino jurídico: o sonho acabou. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b.). O efeito de poder dessa pretensão é exatamente ocultar o poder dos sistemas semióticos, como consequência, afirmando estereótipos, significados naturalizados (BARTHES, 2007BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007.).
  • 12
    Warat (2004aWARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia Servilha Monteiro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a.), com base em Guattari (1990GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.), trabalha com três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana. São registros indissociáveis. A ecopolítica é a política do cuidado consigo, com o outro e com o meio ambiente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2022
  • Aceito
    18 Dez 2023
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