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RODRIGUES, Herbert. 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.

RODRIGUES, Herbert. . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil . Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.

“Pedofilia” transformou-se, nas duas últimas décadas, de categoria da sexologia e da psiquiatria em categoria de acusação e qualificação de qualquer manifestação de sexualidade com menores de idade, extrapolando inclusive sua definição acadêmica mais estrita (pelos saberes do comportamento e da subjetividade) de preferência ou orientação sexual cujo objeto são crianças impúberes ou na fase púbere. É qualificação (embora não tipificação) criminal nas denúncias de “abuso sexual infantil” e do tipo penal “estupro de vulnerável” (no Brasil), como se estivesse ontologicamente presente em quaisquer crimes sexuais contra crianças e adolescentes. A pedofilia foi construída como problema social e causa política (Lowenkron, 2015LOWENKRON, Laura. 2015. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Rio de Janeiro: EdUERJ.) em meio a essa dinâmica conceitual. Como tal, é conteúdo de pânico moral/sexual intenso, na sociedade e no que dela ecoa a mídia, e de disputa no campo político, assim como de execração, linchamento e desumanização integral. Tornou-se, assim, categoria do impensável. Pensá-la pode ser considerado concordância ou omissão diante de crime abominável.

Dessa forma, é muito bem vinda a pesquisa que nos introduza na “pedofilia e suas narrativas”, como o presente livro do sociólogo Herbert Rodrigues, fruto de sua tese de doutorado defendida na USP e de período acadêmico na University of Massachusetts/Amherst, nos Estados Unidos. Esse período tem bastante peso em seus agradecimentos a vários professores e instituições daquele país dedicados às questões do “abuso sexual infantil” nas áreas acadêmica, governamental e de ativismo, e ecoa substancialmente em seus temas e referências. O autor reúne fontes diversificadas, assim configuradas por ele: “análise bibliográfica sócio-histórica a respeito da emergência do tema no seio do conhecimento científico”; sistematização da “discussão de cunho técnico-especializado que tenta diagnosticar, avaliar e propor soluções à pedofilia (especialmente no Canadá e nos Estados Unidos)”; apresentação dos “principais elementos do ordenamento jurídico acerca da violência infantil nos EUA”; exposição de “grande parte da legislação sobre o processo de criminalização no Brasil e da jurisprudência encontrada no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), com decisões de alguns casos julgados”. Estas fontes são consideradas pelo autor como a “base empírica” que lhe serve para

desenvolver uma problematização teórica fundada nos escritos de Michel Foucault, com o propósito de realizarmos um empreendimento arqueo-genealógico das narrativas discursivas que contribuíram para tal processo empenhado no Brasil. [...] Desse modo, tratamos de realizar uma genealogia a partir de discursos, focos de problematização, técnicas e procedimentos que atualmente formam os saberes sobre a pedofilia no Brasil (: 21RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

Em sua proposta de trabalho, Rodrigues delineia a distinção e a transição entre o que era a definição da pedofilia como perversão sexual - “desejo sexual de adultos por crianças” - para sua problematização como “prática criminosa passível de sanções penais”. O que ele se propõe a localizar é um “diagnóstico crítico da presente discussão em torno do tema, buscando seus significados no passado recente do Brasil e no interior da sociedade brasileira” (: 22RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). A proposta é ambiciosa, pois inclui desde o levantamento inicial dos textos históricos da sexologia e da psiquiatria até decisões judiciais atuais em São Paulo, passando pela literatura “científica” (assim qualifica o autor as obras de psicologia e psiquiatria na área) e legislação sobre violência sexual infantil na América do Norte. Além disso, “este livro também considera os discursos da chamada militância pedófila como parte importante das narrativas sobre a pedofilia” (: 25RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

O Capítulo I, intitulado “Problematizações sobre a criança e o sexo”, propõe uma “reconstrução histórico-sociológica” da “relação sexual entre adultos e crianças” a partir da “própria história do conceito de infância e de abuso sexual infantil”, já associando, em várias de suas escolhas analíticas, o que será conceituado como “pedofilia” com prática sexual física (e criminosa), como observarei abaixo. Analisa ainda, nesta parte, o que seria a visão da “criança como a vítima ‘natural’ do adulto”, oscilando entre uma pontuação crítica do que seria a formulação da “inocência infantil” e a emergência da criança como sujeito de direitos e objeto de proteção em vários níveis, que a excluem do mundo da sexualidade. A questão do consentimento é tocada em algumas páginas, apontando uma oscilação entre uma visão genealógica desta noção como “norma social [entre o biopoder e a disciplina] com força imperativa de lei” (: 86RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.) e uma crítica, em outro registro, do

poder adulto, em sua maioria masculino, que ignora a norma social do consentimento, cuja masculinidade estereotipada sustenta o poder patriarcal, perpetua os atos de dominação, naturaliza a violência real e simbólica; além de manter a ideologia cristalizada de gênero e de infância, que norteia as representações sociais sobre a sexualidade contemporânea (: 86RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

Rodrigues corrobora neste trecho do livro a posição do denominado “feminismo radical” em relação ao homem intrinsecamente abusador.

O capítulo II trata da “emergência da violência sexual infantil no contexto internacional”, que se refere à América do Norte, mais extensamente aos Estados Unidos. A “pedofilia” torna-se aqui noção relacionada aos “agressores sexuais”, objeto de diagnósticos, métodos de avaliação, tratamentos, ordenamento jurídico e mecanismos de controle policial. O Brasil é abordado a seguir, no Capítulo III, na descrição da “rede de proteção à criança e ao adolescente”, dos marcos legais do “processo de criminalização da pedofilia” e na análise detida de processos jurídicos - ou mais precisamente, de decisões judiciais às quais o autor teve acesso on-line (já que não obteve autorização para consultar processos) - e estabelecimento de jurisprudência que conforma narrativas jurídicas que utilizam a noção de “pedofilia”. Esta última é a pesquisa empírica da tese, cuja análise ocupa grande parte deste capítulo.

Mesmo não tendo acesso aos processos completos, Rodrigues utiliza os acórdãos e as decisões judiciais do TJSP em que aparece a categoria “pedofilia”, sendo sua amostra, portanto, a de narrativas de juízes, reproduzidas e analisadas no livro. Sua conclusão aponta “dois fenômenos”: “por um lado, quase tudo que envolve, ou sugere, o contato sexual entre adultos e crianças passou a ser nomeado de pedofilia” (: 211RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). “Por outro lado, teve um entrelaçamento cada vez maior e mais sofisticado entre a psiquiatria e o direito e aumento de referências técnicas aos laudos produzidos pelos psiquiatras” (: 212RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). São selecionados quatro casos, todos de 2008, que o autor considera ilustrativos da “arbitrariedade no uso dessa categoria” (: 212RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.) pelos juízes, assim como exemplos, a partir de 2010, de referências à CPI da Pedofilia do Congresso Nacional, às operações da Polícia Federal e a matérias da mídia sobre a “alarmada ‘onda de pedofilia’ no Brasil” (: 217RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

As conclusões de sua pesquisa empírica encaminham o Capítulo IV, “Pânicos morais em torno das sexualidades dissidentes”, que dedica algumas páginas à busca pela legitimidade de grupos rotulados como pedófilos, entre os quais o movimento dos boylovers, do sexo intergeracional e o ativismo pedófilo. Outros itens deste capítulo são “pedofilia na igreja católica”, “pornografia infantil, pedofilia na internet e incesto” e “pedofilia e o pânico moral”, com uma discussão de autores que exploraram este conceito e a exposição, como exemplo, das falsas acusações de pedofilia que configuraram “o escabroso caso da Escola Base” (São Paulo, 1994). Como frase final do capítulo, o autor coloca mais uma vez uma oscilação nos registros do conceito “pedofilia” em sua análise:

Assim, a pedofilia passou a ser perigo iminente e quase inevitável, com significados socialmente construídos a partir de estímulos deflagrados pelo pânico moral que tomou conta da discussão em torno do problema. Mas não se trata apenas de dizer simplesmente que a pedofilia é fruto de pânico moral generalizado e que praticamente não existe. Pelo contrário, tem de se problematizar a questão a partir da relação entre o objeto e os sujeitos envolvidos (: 294RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

Em minha leitura, não ficou claro qual seria exatamente este objeto e quais os sujeitos envolvidos. Embora não inteiramente claro, parece aqui ficar mais uma vez afirmado que o objeto é “a pedofilia” e os “sujeitos envolvidos” são os agressores sexuais (e suas vítimas).

O Capítulo V é sobre “a estetização da sexualidade contemporânea”, compreendendo “sexualidade e pedagogização do sexo das crianças”, a pedofilia como “mote genealógico da ideia contemporânea de sexualidade”, uma análise do “caso Eugênio Chipkevitch” (médico paulista condenado a 124 anos de prisão por atitudes supostamente sexualizadas com pacientes pré-adolescentes) para configurar a noção do “pedófilo como monstro contemporâneo”, referência à tese da antropóloga Laura Lowenkron. Nesta parte, o autor volta a noções foucaultianas para tentar descrever o processo de acusação e patologização da pedofilia como “mote” da normalização das “sexualidades dissidentes” pelo biopoder. Ao mesmo tempo, discorre sobre “perpetradores” e “agressores” sexuais ontológica e criminalmente indiferenciados do que seriam os “pedófilos”.

Nas Considerações Finais, Rodrigues indica que “os capítulos apresentados não consistem em respostas finais sobre o processo de criminalização da pedofilia no Brasil” (: 353RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.), revelando a questão central de sua análise e concluindo que as “práticas discursivas”, os “arranjos situacionais”, “os mecanismos de controle” e “as instituições” “de certa forma tendem a naturalizar as relações sociais” na sociedade contemporânea brasileira.

A dimensão e o fôlego do projeto produziram uma reunião de farto e rico material de referência e análise sobre abordagens diversas do objeto. E aí surge um primeiro problema na leitura deste livro: a sinonímia frequente, presente desde as primeiras linhas do prefácio, do sociólogo (orientador) Sergio Adorno, entre pedofilia e “abuso sexual de crianças”. A categoria “abuso sexual infantil” é manejada, em muitos trechos da análise, como se fosse o objeto de estudo, e não a orientação sexual (ou socioafetiva, se quisermos incluir narrativas) “pedofilia”, tal como anunciado no título - mesmo que esta mesma sinonímia seja posta em questão, às vezes, por Rodrigues e/ou alguma de suas referências. Já no primeiro capítulo, o autor nomeia em seu subtítulo a “relação sexual entre adultos e crianças: uma reconstrução histórico-sociológica”, embora em vários momentos levante a relatividade histórica dos conceitos de adulto e criança e o fato de a categoria “pedofilia” não conter em si a prática de “relação sexual”, quanto mais de violência sexual.

No entanto, o capítulo seguinte do livro é um longo levantamento da “emergência da violência sexual infantil no contexto internacional”. “Violência sexual” aparece identificada com “pedofilia” em vários textos selecionados para análise - em geral, do ativismo acadêmico da América do Norte guiado pelo combate ao “abuso sexual infantil” - sem que este fato consubstancie um problema teórico para Rodrigues, e a contrapelo de sua filiação foucaultiana extensamente exposta e afirmada ao longo de vários dos capítulos. Os “diagnósticos, métodos de avaliação e tratamentos de pedofilia”, no Canadá e Estados Unidos, são parte de uma preocupação preventiva, classificatória (doença ou mal moral), punitiva/corretiva e terapêutica estreitamente relacionados à identificação apontada entre pedofilia e violência/agressão e também, em larga medida, ao pânico moral/sexual em relação ao “abuso sexual infantil” e à pedofilia.

“Solução à pedofilia”, expressa desta forma, faz lembrar, num certo sentido, a “cura gay”, ou seja, a reversão de uma orientação sexual, sem que essa proposta (vigente em certa literatura) seja explorada. É o controle e o combate ao crime que estão em jogo em muitas das referências trabalhadas. E a ligação automática pedofilia-violência sexual traz sérios problemas epistemológicos e políticos à análise de ambos os temas, assim confundidos. O próprio Rodrigues nos alerta, ainda utilizando a literatura técnica sobre “agressores sexuais”:

Além disso [de que “o abusador infantil é geralmente uma pessoa respeitável, cumpridora da lei, que pode escapar da detenção exatamente por essa mesma razão”], acredita-se que muitos agressores, inclusive, são indivíduos cuja orientação sexual não está necessariamente voltada às crianças (: 25RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

Assim, reconhece o autor, “essa pesquisa sobre violência sexual infantil tornou-se mais complexa, por envolver diversas camadas discursivas e socialmente construídas como verdadeiras” (: 25RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). Mas seu texto não enfrenta diretamente esta complexidade, e segue abordando o “abuso sexual infantil” enquanto pedofilia, por ser esta última seu objeto manifesto, mas a violência sexual é o fio condutor de toda a literatura técnica e material jurídico de que se utiliza.

Infelizmente, esta confusão de objetos, presente nos saberes técnicos que visam à “solução da pedofilia”, é predominante na escolha das fontes e na exposição frequentemente descontextualizada destas, o que nos deixa bastante afastados do método foucaultiano. A quase exclusividade da literatura sobre abuso sexual infantil produzida nos Estados Unidos e no Canadá (ou no Brasil, sob tal influência), em forte associação com o ativismo internacional de combate, sem o cotejamento desta com a ampla literatura que critica os pressupostos da “psicologia do abuso”, por exemplo, traz um viés epistemológico e político à pesquisa que a afasta, em muitos momentos, do que seria compor um quadro das narrativas controversas em torno da pedofilia. Neste sentido, faz-se importante relembrar a perplexidade e o alerta do filósofo Ian Hacking (2000HACKING, Ian. 2000. “Kind-making: The Case of Child Abuse”. In: HACKING, Ian. The Social Construction of What? 3ª ed. Cambridge e Londres: Harvard University Press. 261 p. [Trad. “Construindo tipos: o caso de abusos contra crianças”. Jan.-jun. 2013. Cadernos Pagu, Campinas. Nº 40, p. 7-66].):

Eu não defenderia a escolha [de “abuso infantil” como exemplo filosófico] pelo argumento pedante de que a ideia de abuso infantil poderia combinar com alguma análise filosófica. Há, de fato, uma quantidade imensa de confusão conceitual sobre a ideia. Ler a literatura profissional nos enche de desesperança, não apenas sobre os destinos de crianças, mas sobre pesquisa e escrita ritualmente institucionalizada. Mas um estudo filosófico de tipos não vai mudar isso. Minhas razões para escolher o exemplo são práticas. Podemos assisti-lo. Está ocorrendo neste exato momento (: 131-132RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

Destaco duas exceções ao exposto acima, e que enriquecem o livro. A primeira é a consideração da pedofilia como “sexualidade dissidente” que busca legitimidade, tratada em breves páginas (:237-253RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). Para o autor, estas narrativas políticas (“em primeira pessoa”, poderíamos acrescentar) são “no mínimo inquietantes”, diante da “força dos discursos médico e jurídico acerca do abuso sexual infantil como forma monstruosa de violência” (: 253RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.). A equivalência desejo/fantasia/ato criminoso é mantida... Concluindo esta abordagem, Rodrigues parece querer retomar uma linha mais foucaultiana e crítica, ao acrescentar: “... e [os argumentos de pedófilos] lançam luz sobre a sexualidade contemporânea, que insiste em manter a ordem reprodutiva e o modelo patriarcal de família como normas sociais inquestionáveis” (: 253RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.).

A segunda exceção é a abordagem do pânico moral “em torno das sexualidades dissidentes”, com o relato do “caso da Escola Base”, uma falsa acusação de abuso sexual infantil em série. Utilizando as análises clássicas sobre pânicos morais, Rodrigues aponta como a pedofilia é objeto de sensacionalismo da mídia, clamor popular de punição e oportunismo político. Ao final do capítulo, porém, como citado acima, ele retoma sua linha mestra de discorrer sobre a “real” pedofilia. E mais uma vez surge a identificação epistemológica entre “fatos” (violência sexual/orientação sexual) e categorias socialmente construídas (“abuso sexual infantil”/“pedofilia”), que gera, apesar de todas as ressalvas, um viés político de identificação da pesquisa com a busca técnica (médica, psicológica, jurídica) pela “solução da pedofilia” em campos delimitados pelo ativismo de direitos (da criança e do adolescente, da intervenção médica em desvios sexuais) e saberes e instituições jurídicas e terapêuticas.

O livro de Rodrigues resulta útil, a nosso ver, para quem busca informação acadêmica e institucional sobre a questão dos “agressores sexuais” de crianças e adolescentes, notadamente nos Estados Unidos e no Canadá, de um lado, e na mentalidade e na prática de juízes brasileiros, de outro, a partir da análise de decisões judiciais. A pedofilia aparece como uma das categorias centrais nas narrativas jurídicas e médico-psicológicas sobre aqueles agressores. A equivalência entre os objetos de estudo expressos nessas categorias transforma o que seria “a pedofilia e suas narrativas” em “a pedofilia como substrato da literatura acadêmica e ativista e de textos jurídicos sobre o abuso sexual infantil”. Mas nem sempre pedofilia resulta em abuso... e nem sempre o abuso é praticado por pedófilos, como bem nos alerta Rodrigues na breve passagem citada acima.

Estudar um tema não seria estudar o outro, mas apenas uma abordagem dele. E, como apontou Hacking em sua história social do “tipo”, a confusão “está aí”, pela dinâmica das narrativas e pelo ativismo político sobre abuso sexual infantil nas duas ou três últimas décadas, e merece continuar a ser destrinchada. A pedofilia restou como um dos últimos bastiões de se igualar orientação sexual com desvio, patologia e crime. O dispositivo da sexualidade e o dispositivo dos direitos (Carrara, 2015CARRARA, Sergio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 21, nº 2, p. 323-345.) misturam-se em suas narrativas, e Foucault poderia iluminar de forma mais clara as consequências disso para a biopolítica do pânico moral - e suas emoções - em torno da categoria e dos sujeitos reais sobre os quais recaem saberes e poderes, cruzadas e caçadas.

Em sua parte final, Rodrigues nos contempla com uma “bibliografia comentada” de pesquisas, dissertações, teses, artigos e livros “sobre o abuso sexual infantil e a pedofilia nas ciências humanas e também em outras áreas do conhecimento [...] com atenção especial para Europa, América Latina e Brasil”, completando suas referências da pesquisa. Inegavelmente de grande utilidade e demonstrado mais uma vez o grande fôlego do autor, essas resenhas também nos dão um panorama mais descritivo do que analítico ou contextualizado das vertentes diversas apresentadas no material recolhido.

Referências bibliográficas

  • CARRARA, Sergio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana. Estudos de Antropologia Social Vol. 21, nº 2, p. 323-345.
  • HACKING, Ian. 2000. “Kind-making: The Case of Child Abuse”. In: HACKING, Ian. The Social Construction of What? 3ª ed. Cambridge e Londres: Harvard University Press. 261 p. [Trad. “Construindo tipos: o caso de abusos contra crianças”. Jan.-jun. 2013. Cadernos Pagu, Campinas. Nº 40, p. 7-66].
  • LOWENKRON, Laura. 2015. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos Rio de Janeiro: EdUERJ.
  • RODRIGUES, Herbert . 2017. A Pedofilia e suas Narrativas. Uma Genealogia do Processo de Criminalização da Pedofilia no Brasil Rio de Janeiro: Editora Multifoco. 394 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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