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O corpo que incomoda: Movimentos Sociais, Corpo e Autoridade

Apresentação

Este dossiê reúne textos apresentados no Seminário Temático “Dinâmicas Subjetivas e Espaço Público: gramáticas emocionais, corporais e estéticas”, realizado no âmbito do 40º. Encontro da Anpocs, Caxambu, Minas Gerais, em outubro de 2016. O dossiê elegeu como objeto único de análise os movimentos sociais, abordado pelo prisma de suas dinâmicas subjetivas - corporais, emocionais e estéticas. Em relação ao corpo especificamente, a proposta do Seminário era acolher estudos que nos permitissem refletir sobre os processos corporais envolvidos de alguma maneira nas manifestações políticas. Os corpos, entendidos simultaneamente como produtos e produtores de significados sociais e culturais, aparecem nesses casos como um “discurso emotivo” (Lutz & Abu-Lughod, 1990LUTZ, Catherine & ABU-LUGHOD, Lila (eds.). 1990. Language and the Politics of Emotion. Cambridge: Cambridge University Press .) com capacidade de confrontar formas tradicionais de adesão ao mundo social.

Com esta perspectiva no pano de fundo, selecionamos, para esta publicação, os trabalhos que priorizaram a análise do lugar do corpo em movimentos reivindicatórios específicos. A natureza das demandas em questão percorre um amplo arco, incluindo a reparação/responsabilização no caso de vitimização em tragédias, os direitos de sujeitos surdos, as reivindicações feitas em nome de sujeitos autistas, as manifestações em defesa de direitos femininos e da diversidade sexual e, retornando à vitimização, a transformação semântica de “ossadas” de escravos, retiradas do lugar de “objetos” de investigação científica e alçadas a evidências de uma condição vitimizada digna de reparação e reconhecimento.

Colocados em conjunto, os trabalhos nos permitem entrever alguns pontos de aproximação entre estes “casos”. Nesta “Introdução”, percorreremos os principais pontos de cada um dos trabalhos, dispostos intencionalmente em um “arco” organizado a partir do problema da vitimização/reconhecimento/reparação. Esse arco tem, em uma extremidade, o caso das vítimas da tragédia da boate Kiss, ocorrido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em janeiro de 2013, e se fecha na outra com as disputas em torno do lugar atribuído a ossadas de escravos descobertas no Rio de Janeiro (com as ossadas fazendo aqui um “trabalho teórico” de ampliação dos limites da própria concepção de “corpo”). Entre um extremo e outro, dois trabalhos sobre experiências de “deficiência” (com o próprio status da deficiência, sendo evidentemente objeto de reivindicação/contestação) e dois trabalhos sobre experiências de diversidade sexual relacionadas ao exercício da sexualidade.

Este percurso nos sugere um ponto central que anunciamos desde já com a finalidade de guiar o olhar do leitor pelas páginas seguintes: qual o trabalho realizado pelo corpo na construção da autoridade na cena pública?

* * *

O primeiro texto, de autoria de Monalisa Siqueira e Ceres Víctora, aborda as estratégias de reivindicação de justiça por parentes e amigos dos 242 jovens mortos em um incêndio ocorrido na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, durante um show em uma boate. O texto percorre um conjunto de estratégias de reivindicação de justiça, com a punição dos responsáveis pelo incêndio, que acionam elementos e estéticas diversos. Entre elas, destacamos o “minuto do barulho”, caracterizado por uma convocação para que toda a cidade fizesse barulho (buzinas, apitos etc.) em um mesmo momento como forma de evocar a alegria dos jovens mortos; e uma intervenção artística associada a uma vigília programada para o mesmo horário do início do incêndio, de madrugada, no aniversário de um ano da tragédia. A intervenção consistiu na pintura de 242 corpos brancos sobre o asfalto em frente à rua da boate. Essa intervenção foi repetida um mês depois, dessa vez na rua onde fica o gabinete da Prefeitura. Desta feita, tornou-se objeto de um embate, tendo sido apagadas por agentes municipais, repintadas pelos participantes do movimento dos familiares e mais uma vez apagadas.

Algumas estratégias se tornam, assim, elas mesmas, objeto de disputa, com o “minuto do barulho” se opondo ao minuto de silêncio já tradicional em tantas homenagens fúnebres e a “presença” dos jovens mortos sendo alternadamente marcada/negada. Sonoridade e visualidade são acionadas pelos manifestantes de diversas maneiras, a primeira por meio de buzinas, apitos, sirenes, palmas, toques de bumbo e enunciação dos nomes dos mortos, e a segunda por meio de fotos, balões e pela demarcação pictórica da morte no chão da rua em uma estética à qual a reprodução exata do número de mortos - 242 corpos no chão - acrescenta uma tonalidade fortemente realista.

Esse embate entre os significados de barulho/silêncio - negar não a morte, mas sua aceitação - e, de forma particularmente dramática, a tensão entre pintar/apagar corpos - os manifestantes tornando presentes os mortos pelos quais exigem reparação, os agentes públicos negando-os no ato de “apagá-los” - impressiona pela combinação de extrema literalidade com força metonímica. O corpo pintado no chão fala de uma ausência que um lado insiste em lembrar e outro em “apagar”. E, em ato cuja importância reside justamente nessa tensão, a pintura dos corpos se constitui em uma primeira versão do problema já anunciado: qual a relação entre presença corporal e a construção de autoridade em movimentos reivindicatórios?

O segundo texto, de autoria de Regiane Garcêz, situa na linha de frente de seu argumento este tema do lugar do corpo na construção de autoridade. O “caso”, aqui, são os movimentos que colocam em discussão o modelo ideal de escola para pessoas com deficiência auditiva. O estudo se insere em uma discussão mais ampla sobre a representação política não eleitoral, ou seja, sobre os sujeitos que falam por outros sem terem sido escolhidos pelo voto.

Os movimentos analisados aderem ao lema “nada sobre nós, sem nós”, tomando a participação no movimento em sua defesa da forma mais literal possível: estar presente exclui assim se sentir contemplado pela atuação pública de outrem, exigindo o corpo do sujeito surdo em cena, performatizando a surdez (ou deficiência auditiva) por meio do recurso, em cena pública, às mãos e aos rostos para falar em seu próprio nome. Examinando tipologias sobre as fontes da autoridade, Garcêz aponta a presença corporal, física, como uma fonte possível de autoridade, a isso se referindo como “identidade adscritiva” (seguindo Gutmann, 2003GUTMANN, Amy. 2003. Identity in democracy. Princeton: Princeton University Press.). Este tipo de identidade se expressaria por características físicas involuntárias, expressas no corpo em si, com a dimensão de “escolha” se fazendo sentir no processo de formação de uma identidade por meio do compartilhamento dessas características.

A defesa do direito ao uso da língua de sinais estaria, assim, ligada à importância da materialidade do corpo na cena de reivindicação, uma vez que a sonoridade já não é o veículo para a exposição de ideias, mas sim a visualidade exigida pelo uso das mãos e de expressões faciais, em uma forma discursiva à qual a autora se refere como uma “política da presença”. Garcêz agrega ainda à sua análise uma atenção para com a dimensão de intraduzibilidade da língua de sinais que se, por um lado, está presente em qualquer forma discursiva, por outro, ganha especificidade na língua de sinais na medida em que exige a presença do corpo sinalizante no ato de reivindicação. Esse “estar presente”, entendido como fonte de autoridade, acaba por mobilizar emocionalmente os participantes, em um exemplo radical do corpo como aquele “discurso emotivo” de que falam Lutz e Abu-Lughod (1990LUTZ, Catherine & ABU-LUGHOD, Lila (eds.). 1990. Language and the Politics of Emotion. Cambridge: Cambridge University Press .).

O texto seguinte, de autoria de Clarice Rios, é “editado” aqui nesta sequência de textos em um lugar que nos permite acentuar a importância do corpo como fonte de autoridade em um movimento para o qual o lema do “nada sobre nós, sem nós” é também central, colocando, porém, novos desafios para sua performance pública. O movimento em questão é aquele que reivindica a construção de direitos do sujeito autista, em um percurso de vinculação aos movimentos dos sujeitos com deficiência. O foco do texto é a análise do corpo como um “recurso semiótico potencialmente capaz de ‘dar voz’ aos autistas”. Como pano de fundo, está a contestação, realizada por membros dos movimentos em defesa dos sujeitos autistas, da noção de pessoa como indissoluvelmente ligada à racionalidade e à autonomia.

A autora analisa o protagonismo dos pais na luta em defesa desses direitos, trazendo como material de análise os dados obtidos na observação de eventos (audiências públicas, fóruns etc.) relativos a políticas públicas nas áreas de saúde mental, autismo e deficiência, e em eventos pedagógicos voltados para a conscientização geral em torno do autismo. Entre seus dados, estão os depoimentos de mães de autistas aos deputados estaduais do Rio de Janeiro, em sua maioria marcados por uma tonalidade dramática e que visam à “sensibilização” em torno da causa do autismo.

Entre os dados etnográficos analisados no texto, há uma cena que gostaríamos de comentar mais detidamente aqui por seu potencial de articulação com o problema do trabalho político que a exposição do corpo na cena pública faz em termos de construção de uma capacidade de reivindicação. Trata-se de uma mãe que dá seu testemunho com o filho autista, de 34 anos, a seu lado. Ela narra a sua luta para cuidar do filho, sua abnegação para que ele pudesse ser bem cuidado e ter alguma possibilidade de desenvolvimento. Mas, como destaca Rios, a mãe fala por ele; o filho autista é exposto ao seu lado em silêncio, dá testemunho, com sua presença corporal muda, do sacrifício da mãe. Essa associação entre dois corpos, aquele que fala por e aquele por quem se fala, ganha uma síntese dramática no destaque dado à dentição: o rapaz tem “a dentição completa”, enquanto ela precisou arrancar os próprios dentes para cuidar dele. Dois corpos em complementariedade, um corpo mudo bem preservado às custas de outro corpo, esse falante, porém não íntegro. Dois corpos parciais que podem ser entendidos, aqui, na necessidade de sua exposição conjunta como estratégia de reivindicação, como um terceiro exemplo etnográfico da centralidade do corpo como estratégia de construção da autoridade para reivindicar.

Os dois textos seguintes abordam movimentos de reivindicação de direitos na área da diversidade sexual. Carla Gomes percorre, num primeiro momento, algumas teorias sobre movimentos sociais, para compor uma reflexão sobre os usos do corpo e das emoções como recursos discursivos na Marcha das Vadias. Em que pese o fato de que o corpo tenha se apresentado como um articulador usual no movimento feminista de protesto, a autora destaca as particularidades desse protesto que se apresentou em diferentes partes do mundo, apontando as suas especificidades, bem como as suas implicações sobre o campo feminista.

Problematizando uma sociologia da ação coletiva (Sasson-Levy & Rapoport, 2003SASSON-LEVY, Orna & RAPOPORT, Tamar. 2003. “Body, gender, and knowledge in protest movements: the Israeli Case”. Gender & Society. Vol. 17, issue 3, p. 379-403.), Gomes sugere que na Marcha das Vadias, além de ser o “assunto” do protesto e o “veículo” do protesto, o corpo é a “mensagem” do protesto, o que denomina de “corpo bandeira”. Sua pesquisa, desenvolvida entre 2013 e 2014 no âmbito da organização e da realização da Marcha no Rio de Janeiro, revela como esse protesto contra o estupro se distancia de maneiras mais tradicionais de se dispor (e se indispor) no mundo.

Isso pode ser observado através da recusa explícita à posição de “vítima” ou de “sobrevivente”, o que se afasta radicalmente do conhecido discurso do movimento feminista mais tradicional. Caminhando em outra direção, as “vadias” apostam em uma estética sexualizada como forma de performar a insubordinação. Corpos e emoções que se (con)fundem entre lingeries ousadas e peitos à mostra, batons vermelhos, saltos altos, adereços e pele pintada com expressões de humor e deboche evidenciam o frame de transgressão desse movimento de protesto. Com isso, defende Gomes, escancaram disputas internas do feminismo e elaboram narrativas de “nós” e “outras”, uma forma de construção identitária contrastiva, que também vai ser destacada no artigo de Stephanie Lima, que comentamos a seguir. Em outras palavras, a autora sugere que a Marcha das Vadias, ao se colocar em um outro enquadramento, tensiona não apenas as formas de fazer protesto (feminista) contra a violência, mas a própria política identitária feminista. Com isso o artigo põe em evidência o entendimento que motiva o presente dossiê: de que nossos “corpos” nunca são neutros. Ao contrário, como presenças corporificadas de gênero, raça, geração e classe, nosso engajamento no mundo é sempre político e contextual.

O artigo de Stephanie Lima coloca em questão corporalidades e identidades no contexto do Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual. Trata-se de um evento anual levado a cabo nas diferentes regiões do país, que se desenvolve desde 2003 e se propõe a ser um espaço de realização da experiência de “viver mais livremente a sexualidade individual e o seu corpo”. É essa “liberdade” que a autora problematiza, explorando interpretativamente as suas possibilidades e os seus constrangimentos a partir de três casos etnográficos que colocam em xeque esse ideal.

O primeiro caso aborda a expulsão de alguns participantes do evento que foram acusados de “machismo” e “racismo” pela Comissão de Segurança de Mulheres. Nessa situação, observa Lima, “a mulher” como uma vítima por definição da violência dos homens, fala do lugar da experiência, o que inevitavelmente leva à condenação/expulsão dos supostos abusadores.

O segundo gira em torno de controvérsias do chuveiro coletivo, antes ícone do ideal de “liberdade igual e coletiva”, que foi contestado por participantes trans que, alegando particularidades da sua experiência corporal, reivindicaram uma separação nos chuveiros coletivos, com a colocação de uma divisória e uma placa na porta: “banheiro trans”. Entretanto, a opção por ocupar um banheiro que não fosse coletivo por parte de pessoas cis não estava dada e o simples questionamento dessa experiência “compulsória” de liberdade era visto como inadequado.

E o terceiro caso, que reflete sobre o Ato Público que marca o final do encontro na cidade anfitriã, focaliza as corporalidades e as identidades para fora dos muros do ENUDS. As “fechações”, como atos políticos altamente valorizados no espaço da universidade, encontram seus limites nas ruas da cidade, colocam em pauta as implicações políticas de certas representações para garantia da manutenção da liberdade dos encontros.

Nesse contexto coletivo de disputas em torno da liberdade, vale destacar nessa introdução a expressão “o ENUDS é uma experiência”, usada recorrentemente pelos participantes desses encontros. Estamos diante de uma enunciação que dispensa adjetivos. “O ENUDS é uma experiência”, seguida do ponto final, remete a algo que só quem esteve lá consegue entender. Assim sendo, para quem já participou, dispensa explicações. E para quem nunca foi, não é possível explicar. Uma “experiência” que, como tal, é apreendida não só com a mente, nem só com o corpo, mas que se trata de um engajamento prático de todos os “sentidos”.

Além disso, cabe destacar que “experiência” pode também significar um “experimento”, ou seja, uma tentativa de realizar algo de maneira incomum, inovadora, inusitada talvez. Algo que se tem a ousadia de testar, sem ter certeza sobre os resultados. Estes dois significados parecem se apresentar de uma maneira cristalina no ENUDS. Se é verdade, como ensina Bourdieu, que os “sentidos” (senses), inclusive os cinco tradicionais através dos quais nos relacionamos com o mundo, nunca escapam à ação estruturante dos determinismos sociais (Bourdieu, 1995: 124BOURDIEU, Pierre. 1995. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press.), por outro, a sua condição corporificada (embodied) os coloca inevitavelmente no mundo em relação aos “sentidos corporificados” de outros. Nessa direção pode-se sugerir que a “experiência” (como um experimento) de liberdade do ENUDS estabelece a relação entre os “sentidos” corporificados de diferentes sujeitos, materializando as tensões que podem advir da diversidade social e corporal. Os corpos trans e cis que ocupam os banheiros, de homens e mulheres que disputam as identidades de agressores e vítimas, os nós e os outros que se expressam de maneira diversa no Ato Público, não apenas se manifestam nos espaços públicos, como constroem as diferenças sobre as quais e em nome das quais falam.

O último texto que integra esse dossiê, de autoria de Simone Vassallo, traz uma reflexão sobre a mudança de status de ossadas de escravos encontradas na Zona Portuária do Rio de Janeiro. O pano de fundo contra o qual o argumento é construído é o tema da vitimização, entrelaçado à discussão sobre as relações entre luto e política proposta por Judith Butler (2015BUTLER, Judith. 2015. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e à problemática da memória e sua preservação em suportes materiais de naturezas diversas.

O trabalho analisa a descoberta arqueológica de ossadas de escravos no Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro, procurando colocar os debates, eventualmente conflituosos, em torno do destino que lhes deveria ser dado em diálogo com outros movimentos internacionais em torno de descobertas arqueológicas relacionadas à escravidão, tal como ocorrido em Nova York, no African Burial Ground, e em iniciativas tais como a criação de Rotas dos Escravos, que permitem que o trajeto percorrido pelos escravos seja refeito para uma melhor compreensão da experiência da escravidão. Os debates em torno do significado das ossadas e dos lugares em que são encontradas ocupa posição central no ativismo negro, empenhado, segundo a autora, em afirmar por meio dessas iniciativas a humanização dos africanos escravizados, retirando-os da condição “objetificada” em que o status de “mercadoria” (no contexto da “escravidão”) e de “descoberta arqueológica” (no contexto de “objeto de estudo científico”) os teria lançado.

O caso analisado por Vassallo é a história da criação do Instituto dos Pretos Novos. A fundação do Instituto foi uma iniciativa de um casal que, tendo adquirido um imóvel na Gamboa, no Rio de Janeiro, encontrou um conjunto de ossadas no subsolo, descobrindo então o antigo Cemitério dos Pretos Novos. Ameaçado de perder o imóvel em meio a sucessivas negociações/embates com o poder público, o casal encontrou na fundação do Instituto uma maneira de tentar simultaneamente preservar o imóvel e dar visibilidade à memória daqueles que ali haviam sido enterrados. O local conta hoje, entre outras estéticas de exposição, com pirâmides de vidro no chão através das quais o público pode ver restos das ossadas trituradas e misturadas ao lixo.

O Instituto dos Pretos Novos é um “caso” em que podem ser entrevistas muitas tensões em torno do status a ser atribuído às ossadas, bem como a quem cabe seu cuidado. Perpassando essas tensões, há o tema do resgate da “dignidade” dos escravizados, em uma “conversão simbólica progressiva” rumo ao lugar de “vítimas” (para usar a expressão da autora), o qual, como afirma Sarti (2011SARTI, Cynthia. 2011. “A vítima como figura contemporânea”. Cadernos CRH, Salvador. Vol. 24, n. 61, p. 51-61.), é uma configuração da subjetividade central hoje como estratégia de reivindicação de direitos e reparações.

Mas uma pergunta se impõe: por que incluir um texto que toma como objeto a ressignificação de ossadas em um dossiê que se propõe a discutir os usos do corpo nos movimentos sociais e, em particular, sua importância como fonte de autoridade?

* * *

A pergunta original que propusemos no início desta introdução tem muitas nuances, podendo ser desdobrada em várias outras: de que forma a presença ou a ausência do corpo se transforma em instrumento de reivindicação? Quais as estéticas corporais acionadas como estratégias de reivindicação? Qual a função política do corpo que “incomoda”? Como as emoções corporificadas participam do jogo de transformação das dinâmicas sociais?

Os trabalhos sobre os movimentos de reivindicação de direitos dos autistas e dos deficientes auditivos trazem, como objeto explícito de análise, o tipo particular de uso do corpo feito pelos ativistas. No caso dos deficientes auditivos, falar por si exige uma dimensão visual, com a performance pública do corpo sinalizante; no caso dos autistas, falar em nome deles já não basta, com a exposição do corpo mudo parecendo ser essencial para complementar aquele corpo que, ao falar por eles, guarda algo de incompletude.

Os movimentos estruturados em torno da diversidade sexual são também explícitos em relação à importância do corpo nas estratégias de reivindicação. Aqui, parece ser a literalidade que ofusca: a exposição do corpo nu, do corpo parcialmente revelado, nos seios nus e pintados das Vadias, ou do corpo (des)coberto de maneira iconoclasta, a afrontar as convenções cotidianas predominantes, o corpo do qual se dispõe em uma estética marcada pelo excesso intencional, como nas “fechações” dos enudianos.

Esses corpos incomodam. Porque são corpos que reivindicam, que saem do plano confortável da “natureza” em que o senso comum insiste em inscrevê-los para se transformarem em instrumentos ativos de cobrança de direitos, reparações, reconhecimento. Outras formas de “incomodar” usando o corpo para protestar, como a própria noção de “ocupação” de espaços, hoje pilar de tantas reivindicações, ou o seu aparente “reverso”, como a estratégia do “abraço”, poderiam também integrar o escopo analítico deste dossiê.

O corpo surge, assim, como uma fonte indispensável de construção de autoridade. Quando fala por si, mas não é sonoro, recorrendo à visualidade para metaforicamente se “fazer ouvir” pela presença em si; quando não fala por si, apresentando-se em sua dimensão material como “complemento” da fala, agora insuficiente; quando se veste/se despe de forma transgressora, reivindicando por meio da nudez; quando já não está vivo nem íntegro, sendo exposto e ressignificado; e, quando já não mais existe, materializando-se no chão na forma de uma pintura.

Criam-se, então, corpos plenos a partir de restos triturados, queimados, destituídos de humanidade pela mistura com o lixo. Criam-se, assim, pela pintura, corpos onde, de uma maneira muito (r) estrita, já não estão.

Todos esses esforços para colocar o corpo na cena pública atestam, então, sua centralidade, sua essencialidade mesmo, como fonte de autoridade. Se é assim, o que fazer quando já não existem?

Ora, pintá-los no chão, em uma estratégia cuja força se torna evidente no incômodo que suscita: pintar, apagar, ecoar, silenciar, lembrar, esquecer.

Referências bibliográficas

  • BOURDIEU, Pierre. 1995. Outline of a theory of practice Cambridge: Cambridge University Press.
  • BUTLER, Judith. 2015. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • GUTMANN, Amy. 2003. Identity in democracy Princeton: Princeton University Press.
  • LUTZ, Catherine & ABU-LUGHOD, Lila (eds.). 1990. Language and the Politics of Emotion Cambridge: Cambridge University Press .
  • SARTI, Cynthia. 2011. “A vítima como figura contemporânea”. Cadernos CRH, Salvador. Vol. 24, n. 61, p. 51-61.
  • SASSON-LEVY, Orna & RAPOPORT, Tamar. 2003. “Body, gender, and knowledge in protest movements: the Israeli Case”. Gender & Society Vol. 17, issue 3, p. 379-403.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017
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