Open-access Os impactos do racismo na trajetória de estudantes do ensino médio: experiências e percepções de negros e brancos

The impacts of racism on the trajectory of high school students: experiences and perceptions of blacks and whites

El impacto del racismo en la trayectoria de los alumnos de secundaria: experiencias y percepciones de negros y blancos

Resumo

Este estudo teve como objetivo analisar o modo como o racismo, como fenômeno complexo multifacetado e multidimensional, impacta a trajetória de estudantes negros no que diz respeito às suas subjetividades. Simultaneamente, buscamos apresentar algumas percepções de estudantes brancos sobre o racismo, uma vez que este segmento se constitui como parte integrante e ativa da dinâmica social racializada. Para compreender essas questões, além da discussão teórica, ancorada em estudos sociológicos dedicados à análise da questão racial, tivemos como base entrevistas qualitativas, semiestruturadas, realizadas com estudantes do Ensino Médio de dez escolas públicas vinculadas ao Núcleo Regional de Educação de Londrina, Paraná. Participaram da investigação vinte estudantes com idade entre 16 e 21 anos, sendo quatorze autodeclarados negros (pretos ou pardos) e seis autodeclarados brancos. Os resultados da pesquisa mostram que o racismo, como um fenômeno intrínseco à estrutura social, perpassa a trajetória dos estudantes negros nas diversas dimensões da vida em sociedade. As práticas discriminatórias permeiam as instituições sociais e as relações interpessoais, repetindo-se em todos os espaços da vida cotidiana. No que se refere às narrativas dos estudantes brancos, constatamos que eles não apenas percebem a existência do racismo arraigado na estrutura societária brasileira, como também, explícita ou implicitamente, mostraram-se cientes do privilégio material e simbólico associado ao grupo branco.

Palavras-chave racismo; desigualdades raciais; antirracismo; educação antirracista

Abstract

This study aimed to analyze how racism, as a multifaceted and multidimensional complex phenomenon, impacts the trajectory of black students with regard to their subjectivities. Simultaneously, we seek to present some perceptions of white students about racism, since this segment constitutes an integral and active part of racialized social dynamics. In order to understand these issues, in addition to the theoretical discussion, anchored in sociological studies dedicated to the analysis of the racial issue, we used qualitative, semi-structured interviews as a basis, carried out with high school students from ten public schools linked to the Regional Education Nucleus of Londrina, Paraná. Twenty students aged between 16 and 21 years old participated in the investigation, fourteen self-declared black (black or brown) and six self-declared white. The research results show that racism, as a phenomenon intrinsic to the social structure, permeates the trajectory of black students in the various dimensions of life in society. Discriminatory practices permeate social institutions and interpersonal relationships, repeating themselves in all spaces of everyday life. With regard to the white students' narratives, we found that they not only perceive the existence of deep-rooted racism in the Brazilian societal structure, but also, explicitly or implicitly, were aware of the material and symbolic privilege associated with the white group.

Keywords racism; racial inequalities; antiracism; anti-racist education

Resumen

El objetivo de este estudio fue analizar cómo el racismo, como fenómeno complejo, multifacético y multidimensional, impacta en la trayectoria de los estudiantes negros en términos de sus subjetividades. Asimismo, buscamos presentar algunas percepciones de los estudiantes blancos sobre el racismo, ya que este segmento es parte integrante y activa de la dinámica social racializada. Para comprender estas cuestiones, además de la discusión teórica, anclada en estudios sociológicos dedicados al análisis de la cuestión racial, utilizamos entrevistas cualitativas semiestructuradas con alumnos de secundaria de diez escuelas públicas vinculadas al Centro Regional de Educación de Londrina, Paraná. Participaron en la investigación veinte alumnos de entre 16 y 21 años, catorce de ellos autodeclarados negros (negros o pardos) y seis autodeclarados blancos. Los resultados de la investigación muestran que el racismo, como fenómeno intrínseco a la estructura social, impregna la trayectoria de los estudiantes negros en las diversas dimensiones de la vida en sociedad. Las prácticas discriminatorias impregnan las instituciones sociales y las relaciones interpersonales, repitiéndose en todos los ámbitos de la vida cotidiana. Con respecto a las narrativas de los estudiantes blancos, descubrimos que no sólo eran conscientes de la existencia de un racismo arraigado en la estructura social brasileña, sino que también eran explícita o implícitamente conscientes del privilegio material y simbólico asociado al grupo blanco.

Palabras clave racismo; desigualdades raciales; antirracismo; educación antirracista

Introdução

As violências causadas pelo racismo1 e as profundas desigualdades decorrentes da discriminação racial, situam-se entre os mais duradouros e desafiadores problemas que permeiam as sociedades contemporâneas. Não obstante as singularidades de cada contexto, a violência racial perpassa a experiência negra em nível global. Esta realidade tem suscitado questões de grande relevância à produção sociológica nacional e transnacional, desde obras clássicas, como aquelas produzidas por W.E.B. Du Bois (1899; 2021/1903), nos Estados Unidos, na virada do século XIX para o século XX - que teorizou sobre as dimensões objetivas e subjetivas do racismo - até a literatura recente, de diferentes matrizes teóricas e metodológicas, que tem se debruçado sobre a experiência colonial latino-americana.

Como um fenômeno complexo, intrínseco à estrutura social, o racismo aflige fortemente a vida da população negra no Brasil nas diversas dimensões da vida em sociedade, notadamente no campo educacional, em diferentes níveis, fazendo perdurar sobre este grupo social um “ciclo de desvantagens cumulativas” (Hasenbalg; Silva, 1988). Materializado na discriminação sistemática da população negra, o racismo opera preservando privilégios materiais e simbólicos ao grupo branco, conferindo-lhe vantagens no preenchimento de posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social (Hasenbalg, 2005).

Além da dimensão estrutural do racismo, produtora e reprodutora de desvantagens sistêmicas, desigualdades e injustiças sociais (Hasenbalg, 2005; Almeida, 2020), consideramos de suma relevância a abordagem do racismo cotidiano, conceito cunhado por Philomena Essed (1990, 1991)everyday racism – e debatido com grande vigor interpretativo por Grada Kilomba (2019). O racismo cotidiano refere-se às experiências subjetivas com o racismo presente nos discursos, imagens, olhares, gestos e ações do dia a dia. Segundo Kilomba (2019, p. 80), “o racismo cotidiano não é um ‘ataque único’ ou um ‘evento discreto’, mas sim uma ‘constelação de experiências de vida’, uma ‘exposição constante ao perigo’, um ‘padrão contínuo de abuso’ que se repete incessantemente ao longo da vida de alguém”.

Diante do explicitado, o objetivo deste estudo é analisar o modo como o racismo impacta a trajetória de estudantes negros no que diz respeito às suas subjetividades. Simultaneamente, interessa-nos investigar as percepções de estudantes brancos sobre o racismo, uma vez que este segmento se constitui como parte integrante e ativa da dinâmica social racializada.

Este estudo resulta do Estágio Pós-Doutoral realizado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL),2 a partir do projeto de investigação Discriminações, Estigmas e Violência na Escola: as desigualdades e o racismo como desafios para a política educacional, ligado ao projeto de pesquisa da docente supervisora, intitulado Ações Afirmativas na Universidade Estadual de Londrina: acesso dos negros de quaisquer percursos escolares.3

No intento de apresentar evidências mais sólidas acerca do objeto de investigação, além da discussão teórica, ancorada no campo da Sociologia das Relações Étnico-Raciais, a pesquisa teve como base um conjunto de entrevistas qualitativas, semiestruturadas, realizadas com estudantes do ensino médio de dez instituições públicas vinculadas ao Núcleo Regional de Educação de Londrina,4 das quais cinco situam-se na região central da cidade de Londrina, norte do Paraná, e cinco localizam-se em regiões periféricas, distribuídas entre a Zona Norte, Sul, Oeste e município de Cambé, Região Metropolitana de Londrina.

Participaram do estudo vinte estudantes entre 16 e 21 anos de idade, sendo quatorze autodeclarados negros (pretos ou pardos) e seis autodeclarados brancos.5 A seleção dos estudantes ocorreu por meio de indicações de professores do ensino médio colaboradores do projeto de pesquisa. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente, gravadas em áudio ou vídeo, transcritas na íntegra, categorizadas e analisadas à luz da bibliografia pertinente. Como afirma Rezende (2014), o racismo precisa ser estudado não apenas por meio do que se tem de objetivamente constatado através de dados quantitativos, mas também por meio de dados qualitativos, propícios para desvelar elementos não quantificáveis, mas que impactam eminentemente a trajetória da população negra, agravando sua posição de subalternidade.

Iniciamos o artigo com uma breve elucidação sobre colonialismo, racismo e os seus efeitos sobre o sistema educacional brasileiro. Em seguida, abordamos alguns emperramentos para a consolidação da educação antirracista e descolonizadora, mesmo com o respaldo de leis e políticas resultantes de intensas lutas dos movimentos negros. Feito o debate introdutório, apresentamos os depoimentos de estudantes negros que retratam a realidade experienciada com o racismo cotidiano, acompanhados de suas percepções, perspectivas e expectativas sobre ser negro na sociedade brasileira, hierarquicamente racializada. Por fim, abordamos o racismo na ótica de estudantes brancos com ênfase em suas percepções sobre o fenômeno.

Colonialismo, racismo e os seus efeitos sobre o sistema educacional brasileiro

Frantz Fanon (1968), uma das referências acadêmicas de maior destaque no campo de estudos sobre os efeitos do colonialismo no mundo, ao versar sobre o engendramento da lógica colonialista radicada no tecido social, evidencia o modo como, historicamente, o continente africano, sobretudo a África negra, foi designado como um “não lugar”, uma representação do atraso. Nas palavras de Fanon (1968, p. 134): “Encara-se a África negra como uma região inerte, brutal, não civilizada... selvagem”. O negro, à vista disso, foi constituído como “o outro”, símbolo de inferioridade, cuja imagem foi socialmente construída ancorada numa existência subalterna, destituída de humanidade, racionalidade esta que, apesar das especificidades de cada contexto, continua a permear as estruturas sociais contemporâneas.

Com um olhar mais específico sobre a América Latina, teorizações de autores como Quijano (2005, 2010), Mignolo (2006), Maldonado-Torres (2007, 2008), Maldonado-Torres, Bernardino-Costa e Grosfoguel (2018), entre outros vinculados ao projeto político-acadêmico modernidade-colonialidade-decolonialidade, também têm tido destaque nos círculos acadêmicos atuais. A ideia central é a de que o colonialismo persiste mesmo após a descolonização territorial da América Latina, África e Ásia. Isto é, permanece estruturalmente na forma de colonialidade,6 permeando as esferas do poder (Quijano, 2002), do saber (Mignolo, 2006) e do ser (Maldonado-Torres, 2008), tendo como uma de suas bases estruturantes a ideia de raça, como forma de classificar seres humanos, e o racismo, como dispositivo de dominação associado à exploração capitalista.

No Brasil, o racismo tem como pilares a ideologia do branqueamento7 e o mito da democracia racial8 (Munanga, 2008). Não obstante os seus efeitos devastadores sobre a população negra, retratados em diversos indicadores sociais confirmadores das profundas desigualdades entre negros e brancos, o racismo à brasileira caracteriza-se pela sua negação, singularidade que o torna mais difícil de ser combatido.

Muitas são as produções acadêmicas que, a partir de diferentes bases teóricas, metodológicas e epistemológicas, evidenciam o papel do preconceito, da discriminação racial e do racismo, tanto em níveis estruturais quanto no âmbito da individualidade e subjetividades, na estruturação das desigualdades e opressões que permeiam a trajetória da população negra no Brasil (Bicudo, 1945, 1955; Bastide; Fernandes, 1955; Ramos, 1957; Cardoso; Ianni, 1960; Fernandes, 1965; Nascimento, 1978; Hasenbalg, 1979; Gonzalez, 1984; Munanga, 2005, 2008). Como afirma Hasenbalg (1979, p. 118), um dos autores que impulsionou o campo de estudos sobre as desigualdades raciais no Brasil, “a raça, como traço fenotípico historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social”.

O campo educacional, de modo geral, e o âmbito escolar, de modo específico, são permeados por práticas discriminatórias. Por esta razão, convém mencionar alguns aspectos relevantes da pesquisa pioneira desenvolvida pela socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo no estudo: Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor de seus colegas, publicada no ensaio sociológico Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, coordenado por Roger Bastide e Florestan Fernandes, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco (1955). Embora o estudo tenha sido publicado em 1955, ou seja, há quase 70 anos, apresenta elementos importantes para pensar os impactos do racismo na trajetória de estudantes negros a partir da abordagem de problemas que alcançam os dias atuais.

Bicudo desenvolveu uma análise sistematizada sobre as atitudes raciais de estudantes de diversas escolas públicas da cidade de São Paulo, com idade entre 9 e 15 anos, classificados como “brancos, mulatos e negros”. Realizou a análise estatística das repostas de 4.520 escolares a um questionário que consistia na escolha de colegas preferidos e rejeitados. Na interpretação dos dados estatísticos, Bicudo mostrou que o estudante branco teve a preferência geral de todos os escolares, seguindo-se com percentuais bem mais baixos a preferência pelo negro, pelo japonês e pelo “mulato” 9 (mestiço). No que se refere aos índices de rejeição, os negros retintos foram mais rejeitados que os mestiços, fato que, para a autora, indica que “a côr mais carregada do negro seria fator de rejeição, ao passo que o ‘branqueamento’ gradativo da pele seria um fator atenuante da rejeição” (Bicudo, 1955, p. 284).

Nos motivos recorrentes para a preferência e rejeição dos escolares apareceram em menores proporções razões explicitamente relacionados à raça/cor. As respostas mais frequentes em relação à preferência ancoraram-se em qualidades como: “bondade”, “amizade”, “bom comportamento”, “aplicação aos estudos” e “companheirismo”, ao passo que a as respostas referentes à rejeição estiveram associadas a ideia de “mau aluno”, “maldoso”, “mal-educado”, “ruim”, “briguento”, “sujo”, “vadio”, entre outros atributos depreciativos (Bicudo, 1955, p. 287-289). Tal fato levou Bicudo a concluir que as atitudes hostis relacionadas à cor estariam sendo racionalizadas e encobertas por uma identificação do branco com “boas qualidades” e do negro com “más qualidades”. Bicudo (1955, p. 288) escreve:

O fato de todos os escolares mais preferidos serem brancos, com exceção de um negro, reforça a hipótese de que êles identificaram o branco com boas qualidades. A escolha de um negro preferido indica que esta identidade pode ser superada, quando o negro apresente “qualidades de branco”.

Da amostra geral, Bicudo realizou também estudos de caso e entrevistas com 29 famílias dos escolares que foram mais votados como preferidos e mais votados como rejeitados pelos colegas de classe. No que tange à interpretação dos dados qualitativos, a autora afirma que a hostilidade expressa nas atitudes das crianças recebia grande estímulo das atitudes dos pais e professores. Alguns pais de escolares brancos mais votados como preferidos expuseram concepções hostis em relação ao negro, sobretudo por meio da atribuição de características depreciativas, intensificadoras de estigmas. Para Bicudo (1955, p. 289), a associação dos negros a representações negativas seria um subterfúgio para justificar a discriminação racial.

De outro ponto de vista, alguns pais dos escolares negros mais rejeitados acabaram por reproduzir os estereótipos atribuídos ao negro, fruto do racismo do qual eram vítimas, fato que mostra a complexidade do fenômeno e os impactos violentos sobre os discriminados, que, não raramente, acabam por internalizar ideais brancos. Escreve a autora: “As atitudes dos pais negros com referência à cor demonstram que êles mantêm hostilidade contra as pessoas de côr e, portanto, contra a si próprios, tendo introjetado os ideais do branco” (Bicudo, 1955, p. 291). Ao explicitar “o conflito entre ser ‘negro’ e ‘não querer ser negro’, equivalente ao conflito entre ‘ser mau’ e ‘ser bom’”, Virgínia Bicudo evidencia o incomensurável sofrimento psíquico vivenciado pelos negros, circunstância que levou significativa parcela deste grupo social a duas consequências principais: I) a de elaborar concepções depreciativas sobre si e assumir os estereótipos a ele dirigido; II) a de desejar ser branco (p. 291).

Conforme a análise crítica de Guerreiro Ramos (1957, p.150), “na cultura brasileira, o branco foi concebido como ideal, a norma, o valor, por excelência”. De modo semelhante, Fanon, ao abarcar em suas análises dimensões psíquicas do racismo na obra Pele negra, máscaras brancas, indaga: “Que quer o homem negro?”. Responde o autor: “O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de ser humano” (Fanon, 2008, p. 27).

Os europeus definiram o branco como critério para ser humano. Sob este prisma, o ato de embranquecer física e culturalmente – construção das máscaras brancas – seria uma forma de o negro se sentir mais humano. A internalização de valores criados pelo grupo dominante e a rejeição do próprio ser configuram-se como uma das mais perversas consequências do colonialismo e do racismo sobre a subjetividade do negro.

Os desafios para a consolidação de uma educação antirracista e descolonizadora

Ainda hoje a escola apresenta forte tendência a preterir o negro. Conforme pesquisas realizadas em diferentes contextos (Bicudo, 1955; Gomes, 2002; Cavalleiro, 2005, 2012; Munanga, 2005; Souza; Pereira, 2013; Silva, 2020), as dificuldades com que os negros se deparam vão desde a discriminação praticada por professores, ou falta de iniciativa destes mediante situações de racismo, até os confrontos com colegas que os discriminam, circunstância que restringe suas possibilidades de sucesso escolar, desestimula sua permanência e intensifica sua evasão.

Por longo período, o estudante negro teve ainda de lidar com o agravado quadro de invisibilização, isto é, de ausência de referências em relação à sua raça/cor na cultura educacional pautada em valores eurocêntricos, ou de visibilidade hostil, baseada em conteúdos estereotipados e pejorativos veiculados em livros didáticos (Silva, 2008). Essa realidade passou a ser progressivamente alterada, ou ao menos questionada, após extensivas mobilizações e lutas políticas dos movimentos negros que culminaram na implementação da Lei no 10.639/2003 pelo Estado brasileiro, que alterou a Lei no 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação básica. Posteriormente, a LDB foi novamente alterada, passando a incluir também a História e Cultura dos Povos Indígenas, conforme a Lei no 11.645, de 10 de março de 2008.

Após duas décadas da promulgação da Lei 10.639/2003, estudos mostram que a educação antirracista está longe de ser efetivada (Souza; Pereira, 2013; Gomes; Jesus, 2013; Oliveira, 2016). Em pesquisa realizada por Gomes e Jesus (2013, p. 30), baseada na aplicação de questionários, abrangendo 171 secretarias de educação, e observações de campo em escolas de diferentes regiões do Brasil, os autores mostram que, apesar da existência de projetos avançados, frequentemente, numa mesma unidade educacional em que a lei é cumprida, há profissionais que desconhecem as suas diretrizes ou mesmo se recusam a aplicá-las.

Há também as instituições nas quais a lei é parcialmente cumprida, ou seja, que apresentam baixos níveis de enraizamento e continuidade, pouca adesão por parte dos profissionais e baixo investimento em formação continuada na temática étnico-racial. Gomes e Jesus apresentam alguns indícios acerca do baixo interesse de algumas escolas pelas questões étnico-raciais: o racismo institucionalizado, preconceitos arraigados, discriminação religiosa, crença no mito da democracia racial, modo como os educadores lidam com questões de ordem política e pedagógica, falta de estímulo à carreira docente, posições políticas conservadoras, falta de conhecimento específico de alguns docentes na temática, que, por vezes, acabam por reforçar estereótipos ou desestimular a continuidade das ações (Gomes; Jesus, p. 30-31). Essas evidências indicam que a implementação da Lei 10.639/2003 e suas diretrizes ainda são marcadas por tensões, descontinuidades e limites que precisam ser conhecidos, discutidos e enfrentados. Portanto, é árduo o caminho que se tem ainda de trilhar para que as políticas antirracistas se concretizem na prática, no chão da escola.

A seguir, faremos a exposição de alguns aspectos da pesquisa de campo realizada com estudantes do ensino médio. Em todas as ocasiões, fizemos o uso de pseudônimos com vistas a preservar a identidade dos entrevistados.

O racismo cotidiano: relatos de experiências de estudantes negros do ensino médio

Nesta seção do artigo, explicitamos alguns episódios recorrentes na trajetória de vida de pessoas negras numa sociedade altamente hierarquizada a partir da ideia de raça. Embora cada situação decorra de uma experiência individual, essas são representativas da realidade do negro como grupo. É o que chamamos de racismo cotidiano (Kilomba, 2019).

Dentre as diversas práticas discriminatórias reproduzidas no ambiente escolar, destacam-se as concepções hostis em relação à estética natural negra, sobretudo o cabelo crespo, um dos mais expressivos símbolos da identidade negra. Em seu depoimento, Artur reflete sobre a falaciosa ideia de superioridade racial branca, na qual não vê sentido, ao mesmo tempo que relata a construção de representações e estereótipos depreciativos sobre o seu cabelo.

Eu não consigo entender a cabeça de quem pensa em supremacia branca e tal, porque a pessoa se vangloria de uma coisa que ela nem escolheu, que é a cor da pele. E isso é algo que está enraizado na nossa sociedade, infelizmente. Os meus cachinhos eu faço, ou minha mãe que faz com creme, mas eu sempre tive o cabelo bem crespo e, desde pequeno, pediam para raspar ou falavam: “cabelo de bucha” e tal... Então são coisas que a gente escuta bastante, ainda tem bastante preconceito. Eu sempre gostei do meu cabelo grande, eu tinha um cabelo crespo maior, daí sempre falavam e eu ficava bem chateado... Todo mundo achava feio, aí tinha que cortar

(Artur, 16 anos, autodeclarado negro).

Os apelidos recebidos na escola durante a infância e adolescência deixam marcas profundas nos indivíduos discriminados. É no período escolar que crianças e adolescentes se inserem em círculos sociais mais amplos. Embora a família, especialmente a inter-racial, possa ser lócus de vivências racistas (Schucman, 2018), é geralmente na escola que o negro se depara com as primeiras experiências públicas de desprezo ao seu corpo (Gomes, 2002, p. 45).

A associação de pessoas negras aos símios também aparece em diversos relatos, fato que reforça a experiência desumanizadora. Segue o relato de Luana.

Uma vez que eu estava na sala, aí um menino veio e começou a me chamar de macaca, pretinha, cabelo pixaim, essas coisas... Mas macaca ofendeu bastante.... Só falei para a minha mãe, minha mãe quis vir na escola, mas eu não deixei

(Luana, 17 anos, autodeclarada negra).

No decorrer de cada entrevista, nas ocasiões em que o estudante revelava ter sofrido discriminação racial no âmbito escolar, questionávamos se ele havia relatado o ocorrido a um professor ou membro da direção. A maioria dos estudantes informou preferir compartilhar a situação com familiares ou amigos. Dentre as explicações recorrentes, argumentos como: “Às vezes o professor até escutou, deu uma bronquinha, mas foi só isso” (Laura, 17 anos, autodeclarada negra); “Com os professores não [relatei a situação], porque geralmente a gente não é muito ouvido” (João, 17 anos, autodeclarado negro). Nota-se que, em situações de racismo, nas quais a intervenção do educador seria imprescindível, alguns professores acabam por se omitir. Sobre esse cenário, Munanga (2005, p. 15) afirma:

alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem pena dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um lado, em mostrar que a diversidade não constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por outro lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos de sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em detrimento de sua própria natureza humana.

Outro aspecto recorrente no relato de jovens negros entrevistados é a discriminação racial praticada em tom de brincadeira. A forma como cada pessoa negra lida com o racismo que permeia sua trajetória varia consideravelmente. Júnior, por exemplo, afirma interpretar as práticas discriminatórias, principalmente aquelas mascaradas pelo humor, como brincadeira. Esta condescendência, todavia, parece estar mais associada ao medo da exclusão e da deflagração de conflitos, do que a uma aceitação genuína dos atos discriminatórios.

Desde pequeno já teve muitas brincadeiras. Mas como eu acabo não levando muito a sério, eu não sei se isso vem da pessoa como uma forma de preconceito ou como uma brincadeira, mas também depende muito da forma que a pessoa interpreta. Eu acabo não levando isso paro o lado pessoal no colégio, por causa que eu sei que a molecada da minha idade gosta de zoar bastante... Ficam botando apelido, tipo neguinho, essas coisas. Mas, nada demais, se a gente acaba levando isso para o lado pessoal, ou a gente vai acabar se excluindo, parar de vir para o colégio, ou acabar arrumando confusão. Então é melhor levar isso pro lado da brincadeira pra não arrumar problema pra ninguém

(Júnior, 19 anos, autodeclarado negro).

Ao versar sobre o racismo na escola, consideramos necessário inserir nesse debate também o estudante branco agente da ação discriminatória. Em seu depoimento, Maurício, jovem branco de 17 anos, descreve uma ocasião em que contou uma piada racista.

Olha, racismo é uma coisa que eu não gosto de lembrar, mas eu já cometi racismo, não por vontade... Foi uma piada, mas foi de muito mau gosto. Então eu percebi que esse foi o meu preconceito... Eu, quando fiz a piada, era muito zoeiro, eu sempre falava por impulso, sem pensar. Eu falei por falar, não foi para ofender, era só para fazer dar risada. Só que eu percebi que ele [o colega negro] não deu risada, ele ficou quieto, enquanto o pessoal ao redor ria. E esse pessoal era branco, riram também. Mas depois olharam para mim e falaram: “O mano, pô, não precisava falar né?”. Daí eu fui lá, me desculpei com o cara e falei que não era minha intenção. Me arrependi e essa cara é amigo meu até hoje, se eu chegar até ele hoje, nós se cumprimenta, nós se trata igual, vamos dizer que esqueceu e perdoou... Eu cheguei pra ele, conversei com ele num canto, só eu e ele, e falei: “Mano, minha intenção não foi essa, só queria fazer uma piada e acabei te magoando, foi mal, me desculpe”. Aí ele só falou: “Tranquilo”, apertou minha mão e foi. Aí hoje em dia eu chego pra ele e cumprimento, ele me cumprimenta de boa, normal, penso que não tenha ressentimento

(Maurício, 17 anos, autodeclarado branco).

O racismo está enraizado na estrutura social e cultural brasileira, assim como na formação dos sujeitos, razão pela qual é naturalizado. O relato de Maurício traz à tona o debate sobre o humor racista, designado por Moreira (2019, p. 60) de racismo recreativo, definido como uma política cultural que se apoia no humor para disseminar a hostilidade racial. Para o autor, “o humor racista, ao mesmo tempo que permite a expressão da hostilidade racial, também possibilita a reprodução de estigmas destinados a afirmar a identidade branca como expressão da superioridade moral”. O racismo recreativo permite, assim, que pessoas brancas utilizem o humor para discriminar enquanto preservam a imagem de que não são racistas. Não ser racista, todavia, implica um esforço contínuo para desconstruir a hierarquização racial por séculos sedimentada.

A escola, como uma instituição social, reproduz os padrões da estrutura social racializada. Por esta razão, o racismo sofrido pelo estudante negro não se restringe ao ambiente escolar, ao contrário, está arraigado em todas as esferas da vida em sociedade, incluindo o mercado do consumo, no qual, frequentemente, nem sequer é reconhecido como consumidor, cliente ou potencial comprador e sim o oposto: tachado como suspeito. Muitos são os relatos sobre perseguições das equipes de segurança privada de shoppings, lojas, supermercados, entre outros espaços de circulação. Bruna e Luíza compartilharam suas experiências:

Uma vez eu viajei pra Curitiba e entrei em uma loja, um segurança foi atrás de mim.... Eu me senti super humilhada.... Já aconteceu e já ouvi pessoas mais negras que eu vir falar que entrou em banco e o segurança foi atrás, sabe...

(Bruna, 20 anos, autodeclarada negra).

A gente foi para [o bairro da] Liberdade, em São Paulo, era um lugar de japoneses. O bairro da Liberdade é um bairro cheio de japonês, asiáticos, e daí a moça mandou um segurança atrás da gente dentro da loja. Se isso acontece com a gente, que agora tem mais acesso às coisas, imagina com quem mora na comunidade?

(Luiza, 16 anos, autodeclarada negra).

Convém sublinhar que nem sempre as perseguições por equipes de segurança se limitam a constrangimentos e humilhações. Em sociedades marcadas pelo racismo, vidas negras têm o seu valor diminuído e, por isso, frequentemente são expostas à violência letal (Waiselfisz, 2012, 2016). Rotineiramente os negros são vistos e tratados como suspeitos. Fazem parte do cotidiano deste segmento populacional as abordagens policiais, nas quais jovens negros do sexo masculino são as vítimas preferenciais. Segue o depoimento de Júnior.

Já teve vezes de eu estar em loja e ver pessoas me “olhando de lado”. Muitas vezes pelo estilo que eu tinha antigamente, as pessoas me “olhavam de lado’. Eu tinha dread [dreadlocks], então eu tinha impressão que as pessoas olhavam pra mim como um drogado, alguma coisa assim, um vagabundo... Teve várias vezes dessas de lojas e uma que me incomodou muito. Eu estava andando na rua com dois amigos meus brancos e a gente foi parado pela polícia e a polícia só revistou a mim, meus amigos não

(Junior, 19 anos, autodeclarado negro).

Soma-se ao que foi exposto, os olhares de estranhamento e até mesmo aversão quando o negro passa a ocupar lugares tidos como exclusivos da elite branca. É como se o negro estivesse fora do lugar que lhe foi reservado. Segue o depoimento de Luiza.

A gente morou uma época num condomínio em Londrina, eu saia com minha prima que também tem um cabelo bem armadão, bem cacheado, ela é muito maravilhosa, e as pessoas encaravam como se a gente fosse, sei lá, diferente, sabe? E daí era muito desconfortável... A gente foi num restaurante em Londrina, no Aurora Shopping, é em um restaurante daqueles “riquinho”, mas é barato, e daí tinha várias senhoras e elas ficavam encarando e falando as coisas tipo... Com nojo, sabe? É bem complicado

(Luiza, 16 anos, autodeclarada negra).

Diante dos depoimentos explicitados, que elucidam experiências dos jovens negros entrevistados, é notável que o racismo, como fenômeno intrínseco à estrutura social, permeia todas as dimensões da vida em sociedade. Assim, as discriminações perpassam o ambiente escolar, as ruas, os estabelecimentos, enfim, todas as instituições sociais e setores da sociedade.

Perspectivas e expectativas de estudantes negros em relação ao combate ao racismo

Viver numa sociedade racialmente hierarquizada exige dos indivíduos discriminados um esforço inestimável para continuar existindo. Como resultado da experiência permanente com episódios de discriminação, diversos depoimentos revelam a desesperança de jovens negros em relação à possibilidade de erradicação do racismo. Segue o depoimento de Henrique.

Eu acho bem difícil isso morrer assim, sabe? Porque já teve várias formas de tentar ensinar esse povo, é como se fosse um problema mesmo, uma falta de parafuso na cabeça, não tem muito o que explicar. Mas acho que para a pessoa entender o quão grave é essa atitude do racismo, ela tem que sentir isso na pele. E eu acho bem difícil de quem pratica o racismo entender isso, sabe? Eu acho que sempre vai existir, querendo ou não, de uma forma ou outra, talvez não tão agressivo, mas às vezes mais inofensivo, mas, ainda assim, ser racismo.

Não tem como a gente falar dando palestras, ensinando, passando notícias ou informações pela TV, porque quem pensa dessa forma, acho que vê essas coisas, essas notícias e fala: “Tão de brincadeira, mais um negro passando...”, meio que caçoando, fazendo racismo ainda, continuando com esse racismo. Então acho que é bem difícil parar isso, acho que está fora do nosso alcance

(Henrique, 17 anos, autodeclarado negro).

Luana compartilha de uma perspectiva semelhante à que foi exposta por Henrique, principalmente sobre as dificuldades em promover mudanças significativas no modo de agir e pensar de pessoas cuja mentalidade foi contaminada por ideias racistas.

Eu acho que não tem como combater [o racismo]. É uma coisa que... Como você pode ver, já tem a Lei do racismo, tem todo um processo. Mas a pessoa ainda vai ter na cabeça dela, vai ter o racismo nela... Ela não vai mudar o pensamento dela, já é da pessoa ser racista. Então acho que não tem como mudar. A pessoa pode ser punida, mas ela sempre vai ter o racismo

(Luana, 17 anos, autodeclarada negra).

Como analisa Munanga (2005, p. 17), embora não existam leis capazes de suprimir o preconceito incutido no íntimo das pessoas, derivado dos sistemas culturais nos quais fomos socializados, a educação pode propiciar ao indivíduo a chance de questionar e desconstruir o imaginário da hierarquização entre grupos humanos, historicamente internalizado.

Rafael, por sua vez, acredita na importância da criação de mecanismos de concientização que envolvam os segmentos discriminados, os que discriminam e aqueles que não discriminam, mas também nada fazem para mudar esta realidade.

Eu acho que para resolver o racismo é [preciso] uma conscientização geral, tanto da pessoa que está sendo ofendida, quanto dos ofensores, e também daqueles que não ofendem, mas só que não vão lá e fazem alguma coisa para melhorar. Acho que seria uma conscientização geral a forma de melhoramento disso

(Rafael, 17 anos, autodeclarado negro).

Como discutimos previamente, o colonialismo e o racismo impactam as subjetividades tanto do branco, que, como grupo social, conscientemente ou não, assume o papel de superioridade em relação aos demais grupos, quanto do negro, que internaliza essas concepções. A partir de análises como as de Fanon (2008) e Bicudo (1955), vimos que uma das faces mais violentas desses sistemas de opressão é o negro rejeitar a própria cor. Essas teorizações embasam a narrativa de Luiza, estudante de 16 anos que, ao expor algumas de suas inquietações, revelou a autorrejeição desenvolvida pelo seu primo, uma criança negra de cinco anos que tem vergonha da própria cor. Explicitamos o depoimento de Luíza após ser indagada sobre como, na sua perspectiva, seria possível combater o racismo na sociedade. A resposta da estudante, sobretudo quando menciona “que os brancos racistas morram”, evidencia sua revolta em relação às perversas consequências do racismo:

Como que eu falo essas coisas dessas... Mas que os brancos racistas morram e deem espaço para gerações seguintes, que, talvez, mudem a perspectiva delas, porque quando a pessoa é racista, ela passa isso para o filho, o filho passa para o outro... Nossa, é um problema imenso! Meu primo é uma criança super nova e ele não gosta de ser chamado de preto... Tem que chamar de pretinho porque ele é preto, é uma criança preta, e a gente chama ele de pretinho, pretinho da mamãe, essas coisas como apelido fofo e ele não gosta. Daí como é que ele passa por isso desde cedo sem nem saber o que é racismo, sem nem saber se defender perto de crianças que tratam ele dessa forma, sabe? Ele tem vergonha de ser preto, é uma coisa horrível, a gente não tem que combater isso desde a adolescência, que a pessoa já tem mais conscientização, tem que ser uma coisa bem de criança mesmo, para as crianças verem que isso é errado, porque às vezes o pai está construindo a cabeça da criança, a mãe tá construindo a cabeça da criança...

(Luiza, 16 anos, autodeclarada negra).

Luiza destaca que o combate ao racismo não deveria ser incumbência daqueles que mais sofrem as suas consequências, mas sim responsabilidade dos grupos que, intencionalmente ou não, perpetuam essas violências a cada geração. Nesse caso, por mais que as famílias se empenhem para construir a autoestima da criança negra, esta várias vezes é minada nas interações cotidianas com colegas que a discriminam. Segue o seu depoimento.

A gente não tem se que conscientizar de nada, as pessoas só tão existindo, o que que faz delas serem culpadas de alguma coisa? O único culpado é o branco que é racista, e também existem negros racistas, mas isso é uma construção também vinda da família... O que a gente poderia fazer seria conscientizar as crianças desde pequenas, desde a pré-escola mesmo, porque o racismo existe desde sempre, desde qualquer idade. O pai passa para o filho, a mãe passa para o filho e depois o filho vai até a criança negra e fala que ela não é bonita, fala que a pele dela é estranha.... É horrível ver a criança falando isso. Daí a gente até tentou falar com ele [o primo de cinco anos], sabe? Isso é uma coisa que os pais devem fazer sim, só que não adianta só os pais fazerem, porque se uma criança continuar atormentando a outra, a criança negra vai continuar se diminuindo...

(Luiza, 16 anos, autodeclarada negra).

Não obstante os impactos imensuráveis do racismo na trajetória de estudantes negros, que inclusive levaram muitos deles a desacreditar da possibilidade de erradicação desse sistema de opressão, todos os entrevistados foram contundentes ao afirmar que anseiam ingressar na universidade e cursar uma graduação, pois, de uma forma ou de outra, enxergam na educação a possibilidade de mudança de vida.

O racismo na ótica de estudantes brancos do ensino médio: percepções e perspectivas

O combate ao racismo e a consolidação de uma educação antirracista não interessa somente aos negros. Como afirma Munanga (2005, p. 16), “interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas”.

Apesar das diferentes trajetórias e vivências, todos os estudantes entrevistados afirmaram que negros e brancos recebem tratamento diferenciado nos diversos setores da sociedade. Segue o depoimento de Ana Laura.

Tá longe de ser tratado da mesma forma [negros e brancos]. A gente já progrediu muito em vista do que era antes, mas ainda tá longe. Coisas como o assassinato do George Floyd, coisas como os vários assassinatos que a polícia comete dentro da favela em relação a crianças que não estão nem relacionadas ao crime, deixam isso muito claro. Tem uma estatística que fala que a cada 23 minutos, aqui no Brasil, morre um jovem negro, e as pessoas querem fechar o olho para isso. Falam assim: “Mas também morre gente branca!”. Só que nenhum branco morre por causa da cor da pele, esse é o ponto que as pessoas não conseguem enxergar. Pessoas brancas se negam a enxergar isso, sabe? Porque elas vivem geralmente em uma bolha, se não acontece com elas ou perto delas, elas vão fingir que não tá acontecendo. Eu era assim há muito tempo, se eu não tivesse começado a escutar rap... É um cenário totalmente diferente da minha vivência, só que eu entendo o que as pessoas estão vivendo e que é uma coisa que eu não viveria, mas que sei que existe

(Ana Laura, 16 anos, autodeclarada branca).

O depoimento de Ana Laura mostra que a estudante tem conhecimento sobre a estrutura racista da sociedade brasileira e de diversos problemas que afligem a vida da população negra. Ainda que a vivência de Ana Laura seja bastante distinta da realidade social vivenciada pela maioria dos negros, ao afirmar que “nenhum branco morre pela cor da pele”, a jovem se mostra ciente também dos privilégios associados ao grupo social a que pertence.

Ana Laura afirma que um dos fatores que a fizeram ampliar seu olhar sobre o racismo foi o rap nacional, cuja característica é o uso do ritmo e da poesia como instrumentos para denunciar as injustiças sociais sofridas principalmente pela população negra periférica. Artistas como Racionais MC’s, Sabotage, MV Bill, Djonga e Primavera Fascista foram mencionados pela estudante como impulsionadores dessa tomada de consciência. Este fato reafirma a potencialidade do rap para os jovens negros, primordialmente, que passam a se enxergar como detentores de direito e voz, e também para circulação do conhecimento que alcança jovens brancos, inseridos em contextos sociais distintos, que podem ser impactados pela força de suas letras. Na continuidade de sua narrativa, Ana Laura reforça sua percepção sobre os privilégios associados ao grupo branco.

Quem é branco tem que ter noção dos privilégios que tem por ser branco e eu sei que, por exemplo, ninguém vai desconfiar de mim pela cor da minha pele, ninguém vai ter medo de mim a ponto de atravessar a rua, sabe? Porque isso acontece muito, é um relato que eu escuto bastante dos meus amigos negros, de pessoas negras que eu conheço. Até as mulheres negras são estigmatizadas na sociedade, é totalmente diferente da mulher branca, eu tenho os meus privilégios sendo branca e todo mundo que é branco deveria notar os seus privilégios e simplesmente aceitar que eles existem

(Ana Laura, 16 anos, autodeclarada branca).

A ideia de privilégio tem sido debatida principalmente por estudiosas críticas da branquitude, como Bento (2002) e Schucman (2012), que designam a branquitude como um lugar de poder e de privilégio sistêmico, material e simbólico, do grupo branco nas sociedades edificadas sobre a dominação racial. Como analisa Bento (2002, p. 49-55), existe entre os brancos o que a autora designa de pacto narcisístico, cumplicidade que consiste na omissão e silenciamento acerca do racismo, bem como na isenção do branco de qualquer responsabilidade pela preservação das desigualdades raciais. A branquitude implica, portanto, a manutenção da hierarquia racial e dos privilégios de raça. É sob esse prisma que Schucman (2012) afirma que “uma das contribuições que um branco pode fazer pela e para a luta antirracista é denunciar os privilégios simbólicos e materiais que estão postos nessa identidade”.

Outro fator de suma relevância para um maior entendimento de jovens brancos sobre as consequências devastadoras do racismo para a vida em sociedade é o relacionamento interpessoal com sujeitos negros, principalmente quando acompanhado da ampliação da escuta sobre as experiências e problemas que os afligem, da empatia e da reflexão crítica sobre o papel do grupo social branco no combate ao racismo. Ao expor suas percepções sobre os infortúnios causados pelo racismo a partir da convivência com um amigo negro, Ana Laura afirma:

não vou falar que eu sei, porque eu não sei, mas eu imagino o que significa [o racismo]. O meu amigo é negro – aí ele falou que, às vezes, ele sentia que tinha um alvo nas costas dele desde o dia que ele tinha nascido. Eu nunca vou sentir isso, mas é um peso muito grande você se imaginar com um alvo desde o seu nascimento, porque a sociedade não te respeita, o governo te marginaliza, a polícia não te respeita, te brutaliza a cada momento... É totalmente inimaginável pensar que alguém viva assim realmente... A polícia, querendo ou não, por mais que tenham muitas pessoas boas lá dentro, é uma instituição racista, assim como o governo, assim como o Estado acaba sendo, porque o racismo é estrutural e as pessoas se negam a ver isso. [Dizem]: “Não ia matar à toa”; “devia estar fazendo alguma coisa errada”. Sempre a culpa é de quem morreu e nunca de quem matou

(Ana Laura, 16 anos, autodeclarada branca).

Beatriz é uma estudante de 16 anos, autodeclarada branca, que namora um jovem negro. A partir da experiência dessa relação afetiva e da convivência com o namorado e sua família negra, a jovem relata suas percepções sobre o racismo.

Não tem igualdade. Um exemplo bem fácil de citar: eu sempre vou na Léo (loja de cosméticos) e eu sempre carrego uma mochila, assim, normal, para carregar minhas coisas, e nunca ninguém falou assim: “Ó, guarda sua mochila”. E, recentemente, fui com meu namorado – meu namorado é preto – ele entrou na loja, ele estava com uma mochila também, tava eu e ele, e o moço pediu para ele guardar a mochila. Então... Já aconteceu vários casos, não é um, dois, já aconteceu vários, desde entrar no mercado, desde andar na rua. Eu convivo com o meu namorado e eu sei um pouquinho só do que acontece com ele.

A família do meu namorado inteira é de pele negra, então, querendo ou não, eu já conhecia, mas você estar ali perto, ver aquilo [o racismo] acontecendo é totalmente diferente. Com os meus amigos também, mas, assim, eu não convivia tanto quanto eu convivo com a família do meu namorado, então é totalmente diferente ver realmente essa desigualdade na sua frente, tão forte. Não é só ouvindo uma música ou sabendo de um movimento social que você vai entender como o racismo realmente acontece, como que realmente funciona. É só realmente vivendo ou vivenciando com pessoas que passam por isso. Querendo ou não foi um choque assim... Eu não fui ensinada a guardar a notinha [fiscal] pra ninguém desconfiar ou tentar não correr na rua para não causar suspeita. Esse foi outro choque muito grande que eu tomei, quando eu escutei ele falando: “Não guarda essa coisa dentro da loja, espera a gente sair da loja”. “Leva a notinha, faz isso, faz aquilo”, porque era algo que não fazia parte da minha realidade, eu realmente desconhecia na prática, porque escutar é fácil, ver é fácil, ler é fácil, mas na prática é totalmente diferente

(Beatriz, 16 anos, autodeclarada branca).

Embora não sinta na pele, a convivência com o namorado negro propiciou a Beatriz uma compreensão mais ampla sobre os impactos do racismo na sociedade e nos indivíduos discriminados. Muitos dos problemas contidos no depoimento de Beatriz, estavam presentes nas narrativas dos estudantes negros entrevistados. É nesse sentido que, numa sociedade racialmente hierarquizada, não ser estigmatizado pela cor da pele é, de fato, um privilégio racial.

Outro fator que levou Beatriz a despertar para as agruras do racismo e também a encarar a violência de gênero, foi o intempestivo questionamento de pessoas sobre suas expectativas em relação aos filhos com o namorado negro – como se a maternidade fosse regra –, suas prováveis características, tipo de cabelo, em suma, questionamentos ancorados em concepções racistas e sexistas.

Eu me sinto bastante desconfortável quando escuto: “Ah, o que vai ser dos seus filhos?”. “Como vai ser o filho de vocês?”. É extremamente vergonhoso você ouvir isso, se eu me sinto assim, imagina ele.... Já me perguntaram também do cabelo, porque o meu cabelo ele é bem cacheadinho e o dele é crespo. Então já perguntaram: “Nossa, como é que você vai fazer com o cabelo das crianças?”. Isso que a gente é bem novo ainda... Já estão projetando meu futuro inteiro e não sabem nem se eu quero ter filho

(Beatriz, 16 anos, autodeclarada branca).

Vitor, jovem branco de 18 anos, também compartilha da ideia de que negros e brancos são tratados de forma desigual na sociedade. O estudante reconhece a influência da cor em seu cotidiano, bem como as vantagens intrínsecas a identidade branca. Segue o seu depoimento.

Eu tenho certeza que se eu fosse negro, dependendo da onde estivesse andando, as pessoas não iam querer ficar do mesmo lado da rua, ou, por exemplo, dividir um elevador. Eu tenho certeza que se eu tivesse passando em algum lugar à noite sozinho, provavelmente eu não seria parado [pela policia]. Mas se eu tivesse outra cor, provavelmente eu iria ser parado, eu iria ser questionado... É uma coisa que eu acho muito injusta e eu sei que não dá para mudar radicalmente, vai demorar muito tempo. Então claramente tem vantagens, a cor influencia muito toda a sua vida. Mesmo que você tenha uma formação muito boa, ou seja, uma pessoa muito renomada, as pessoas ainda vão duvidar de você por causa da sua cor ou do seu gênero

(Vitor, 18 anos, autodeclarado branco).

Em discussão empreendida anteriormente, vimos que Virginia Bicudo (1955) elucidou que as atitudes discriminatórias de escolares brancos em relação aos seus colegas negros recebiam forte estímulo das atitudes da família. Maurício reforça a influência da família na reprodução do racismo, assim como a tentativa da mãe em não incitar a discriminação.

Meu pai é branco e, no caso da família da minha mãe, tem racistas. Meu tio é racista, homofóbico, uma pessoa ignorante. Então não adianta, porque isso aí foi um sistema que meu avô passou pra ele, meu avô passou pra ele, ele aprendeu, não mudou e tentou passar para os filhos. Os primos, que eu quase nem tenho contato, são ignorantes, não aceitam. Minha mãe, por outro lado, por influência da minha avó, foi quem falou bastante. Falou assim: “Ó, não preciso discriminar alguém, ele é uma pessoa, eu sou uma pessoa, somos iguais, a diferença de cor não vai diferenciar grande coisa de nós”. É isso que minha mãe foi passando. Então a questão da conversa entre família é importante, eu vejo que é uma coisa importante, mas quando se tem uma pessoa dentro da família que é homofóbica, racista, que tem esse preconceito, eu acho muito mais complicado.... Vamos dizer que é quase hereditário, o meu avô pegou isso daí do sistema antigo dele, de onde ele veio, e ele foi passando pros filhos.

(Maurício, 17 anos, autodeclarado branco).

Quando Maurício, a partir da sua experiência familiar, interpreta o racismo como um fenômeno “quase hereditário”, o estudante elucida concretamente a reprodução desse sistema de opressão através da transmissão intergeracional, que faz perdurar o ciclo discriminatório. Entretanto, como afirma Elliot, citada por Schucman (2012, p.112): “Aprendemos a ser racistas, logo podemos também aprender a não ser. Racismo não é genético. Tem tudo a ver com poder”.

Considerações Finais

Este estudo teve como objetivo analisar o modo como o racismo produz efeitos nas subjetividades de estudantes negros e, simultaneamente, apresentar algumas percepções de estudantes brancos sobre este sistema de dominação.

O racismo, como fenômeno de dimensão sistêmica, cria condições para a distribuição desigual de desvantagens e privilégios, materiais e simbólicos, entre os grupos sociais que compõem uma sociedade (Hasenbalg, 1979; Almeida, 2020). É nesse sentido que, no intento de ampliar a compreensão sobre o racismo, consideramos de suma importância o debate sobre a sua materialização no âmbito das relações interpessoais e das interações sociais cotidianas.

Diversos foram os depoimentos de estudantes negros que retrataram experiências dolorosas com o racismo cotidiano. Como fenômeno intrínseco à estrutura social, o racismo permeia todas as dimensões da vida dos jovens negros entrevistados, isto é, perpassa o ambiente familiar, a escola, as ruas, os estabelecimentos comerciais e as relações interpessoais.

Partindo da premissa de que o racismo estabelece a distribuição desigual de desvantagens e privilégios entre os grupos sociais, convém enfatizar que, se as desvantagens recaem expressamente sobre a população negra, os privilégios incidem sobre o grupo branco, que, intencionalmente ou não, se beneficia da estrutura racializada. Como afirma Schucman (2012, p. 14): “O branco não é apenas favorecido nessa estrutura racializada, mas é também produtor ativo dessa estrutura, através dos mecanismos mais diretos de discriminação e da produção de um discurso que propaga a democracia racial e o branqueamento”.

A partir das narrativas dos estudantes brancos, constatamos que todos os entrevistados reconhecem a existência do racismo, bem como os diversos problemas que afligem a vida da população negra. Mais do que isso, os jovens brancos entrevistados mostraram-se cientes dos privilégios associados à identidade social branca, ainda que não tivessem a intenção de obtê-los.

Uma tendência observada nos relatos dos estudantes brancos é a de que o racismo é um assunto pouco discutido no núcleo familiar. A ampliação do conhecimento sobre esse sistema de dominação, a reflexão crítica sobre o privilégio de raça e sobre o engajamento do grupo branco na luta antirracista geralmente ocorre por influência de fatores externos e de círculos sociais mais amplos, como a socialização através da música (com destaque ao rap) e, principalmente, por meio da relação com pessoas negras, quando baseada na empatia.

Evidencia-se, assim, a complexidade da luta antirracista, cujo êxito demanda a criação de estratégias que visem combater o racismo em suas diferentes chaves de interpretação. Trata-se de um processo desafiador, que exige a mobilização de várias frentes de batalha no sentido de romper com as racionalidades herdadas do colonialismo, do ideário do branqueamento e do mito da democracia racial, que embasam as relações de poder e as interações sociais cotidianas.

A escola, como instituição respaldada por um conjunto de dispositivos legais para consolidação de uma educação antirracista, embora não seja capaz de enfrentar sozinha um problema dessa dimensão, configura-se como lócus privilegiado para iniciar a reversão desse quadro. Como analisam Silva, Gomes e Araújo (2013, p. 15), a legislação é determinante para propiciar uma mudança estrutural, contudo, essa transformação exige das instituições a adoção de princípios afirmativos eficazes, alicerçados não apenas no reconhecimento da diversidade cultural, mas também da desigual distribuição de oportunidades entre os grupos sociais.

  • 1
    O racismo é definido por Kabengele Munanga como “uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural” (Munanga, 2003, p. 8). Do ponto de vista biológico, raças humanas não existem. Entretanto, a supressão da categoria raça da ciência, como forma de classificar seres humanos, não foi suficiente para eliminar a raça do imaginário social, tampouco o racismo. Nessa perspectiva, como afirma Guimarães (2021, p. 25), “as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da Sociologia ou das Ciências Sociais, que trata das identidades sociais”. O emprego do conceito de raça na sociologia consiste, portanto, no uso da terminologia como um construto social, um instrumento conceitual e analítico central para a compreensão de desigualdades e injustiças sociais e para a luta antirracista.
  • 2
    O Estágio Pós-Doutoral foi realizado entre julho de 2019 e junho de 2021, com bolsa concedida pela CAPES.
  • 3
    Projeto de pesquisa coordenado pela Prof.ª Dr.ª Titular de Sociologia Maria Nilza da Silva, supervisora do estágio pós-doutoral. As entrevistas qualitativas foram realizadas no âmbito do projeto da supervisora, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP).
  • 4
    Col. Est. Hugo Simas, Col. Est. José de Anchieta, Col. Est. Thiago Terra, Col. Est. Professora Ubedulha Correia de Oliveira, Col. Est. 11 de Outubro, Col. Est. Marcelino Champagnat, Col. Est. Vicente Rijo, Col. Est. Newton Guimarães, Col. Est. Professora Olympia Morais de Tormenta, Col. Est. São José.
  • 5
    Dez entrevistas foram realizadas presencialmente, antes da pandemia de COVID-19, por Nikolas Gustavo Pallisser Silva, doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integrante do LEAFRO-UEL. As outras dez entrevistas foram realizadas através do Google Meet, em decorrência do contexto pandêmico, pelas autoras deste trabalho com a colaboração de Pallisser Silva.
  • 6
    Quijano escreve: “a Colonialidade do poder é um conceito que dá conta de um dos elementos fundantes do atual padrão de poder, a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da idéia de ‘raça’. Essa idéia e a classificação social e baseada nela (ou ‘racista’) foram originadas há 500 anos junto com América, Europa e o capitalismo. São a mais profunda e perdurável expressão da dominação colonial e foram impostas sobre toda a população do planeta no curso da expansão do colonialismo europeu. Desde então, no atual padrão mundial de poder, impregnam todas e cada uma das áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz forma de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais universal de dominação política dentro do atual padrão de poder” (Quijano, 2002, p. 1).
  • 7
    A ideologia do branqueamento, construída no âmago da dominação colonial e imperial e intensamente expandida na transição do século XIX para o século XX, consiste num projeto civilizatório, embasado por teorias racialistas, adotado pelo Brasil com o objetivo de embranquecer a população do país, tanto física como culturalmente (Munanga, 2008).
  • 8
    Embora a terminologia “democracia racial” não tenha sido formulada por Gilberto Freyre, sua obra Casa-Grande & Senzala(1933) impulsionou mundialmente a ideia de um padrão harmônico das interações raciais no Brasil, que se constituiria na presumida “democracia racial”, a qual Florestan Fernandes refutou e alcunhou de mito.
  • 9
    O termo mulato, utilizado pela autora, refere-se ao indivíduo fruto da miscigenação entre negros e brancos. O uso do termo entre aspas decorre de debates críticos, sobretudo de movimentos negros, que consideram o termo pejorativo. Sobre o termo “mulato”, Silva afirma: “Os movimentos negros brasileiros refutam a utilização da palavra por dois motivos: 1) linguístico – derivação de ‘mulus’, do latim, atualizado por ‘mula’, o animal que surge da cópula de duas raças diferentes – o asno e a égua, que, no século XVI, derivou-se na América hispânica para ‘mulato’ como uma analogia ao caráter híbrido do animal, considerado uma raça inferior já que não possui a possibilidade da reprodução; e 2) cultural – a falsa impressão de democracia racial que há no país, associado à representação da mulher negra ou mestiça através do corpo branqueado e hiperssexualizado” (Silva, 2018, p. 77).

Referências

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    » https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300004
  • 17 GOMES, Nilma L.; JESUS, Rodrigo Ednilson de. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa. Educar em Revista, n. 47, p. 19-33, 2013. https://doi.org/10.1590/S0104-40602013000100003
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  • 21 HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil Belo Horizonte: UFMG, 2005.
  • 22 HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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  • 26 MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (org.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores, 2007.
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  • 28 MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: SANTOS, B. de S. (org.). Conhecimento prudente para uma vida descente: “Um discurso sobre as ciências” revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
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