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Tendências européias na graduação e na garantia da qualidade

European trends in undergraduate studies and quality assurance

Resumos

O texto discute as transformações dos sistemas de educação superior na Europa, a partir do chamado Processo de Bolonha. Na primeira parte, são apresentados e discutidos os "comunicados" assinados pelos ministros de educação europeus que aderiram ao processo que caracteriza a reforma proposta: adoção de um sistema de ensino baseado em três ciclos (bachelor, master e os estudos de doutorado); estabelecimento de um sistema de acumulação e transferência de créditos; promoção da mobilidade; promoção do espaço europeu do ensino superior, entre outros. Na segunda parte, é discutida a avaliação e a acreditação/certificação como meios de desenvolvimento e garantia da qualidade na educação superior. Por fim, trata da questão da educação continuada como um desafio para as instituições de educação superior e uma oportunidade para ampliação do acesso.

Processo de Bolonha; Educação Superior na Europa; avaliação; acreditação; Educação Continuada; qualidade da Educação Superior


This text discusses the changes in European higher education systems after the so-called Bologna Process. The first part presents and discusses the "communiqués" signed by European ministers of education who joined the process that characterizes the proposed reform: adoption of an educational system based on three cycles (bachelor, master, and doctoral studies); establishment of a Credit Transfer and Accumulation System; facilitating mobility; creation of the European Space for Higher Education, among others. The second part discusses the evaluation and accreditation/certification as means for development and quality assurance for higher education. Finally, it approaches the issue of continuing education as a challenge to higher education institutions and an opportunity to broaden access.

Bologna Process; higher education in Europe; Evaluation; Accreditation; Continuing education; Quality of higher education


DOSSIÊ DESAFIOS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Tendências européias na graduação e na garantia da qualidade1 1 Texto traduzido do original inédito "Europäishe Trends in der Graduierung und Qualitätssicherung" por Peter Nauman e revisado por Clarissa Baeta Neves.

European trends in undergraduate studies and quality assurance

Hans-Uwe Erichsen

Presidente do Conselho Curador da Universidade Livre de Berlim

RESUMO

O texto discute as transformações dos sistemas de educação superior na Europa, a partir do chamado Processo de Bolonha. Na primeira parte, são apresentados e discutidos os "comunicados" assinados pelos ministros de educação europeus que aderiram ao processo que caracteriza a reforma proposta: adoção de um sistema de ensino baseado em três ciclos (bachelor, master e os estudos de doutorado); estabelecimento de um sistema de acumulação e transferência de créditos; promoção da mobilidade; promoção do espaço europeu do ensino superior, entre outros. Na segunda parte, é discutida a avaliação e a acreditação/certificação como meios de desenvolvimento e garantia da qualidade na educação superior. Por fim, trata da questão da educação continuada como um desafio para as instituições de educação superior e uma oportunidade para ampliação do acesso.

Palavras-chaves: Processo de Bolonha, Educação Superior na Europa, avaliação, acreditação/certificação, Educação Continuada, qualidade da Educação Superior.

ABSTRACT

This text discusses the changes in European higher education systems after the so-called Bologna Process. The first part presents and discusses the "communiqués" signed by European ministers of education who joined the process that characterizes the proposed reform: adoption of an educational system based on three cycles (bachelor, master, and doctoral studies); establishment of a Credit Transfer and Accumulation System; facilitating mobility; creation of the European Space for Higher Education, among others. The second part discusses the evaluation and accreditation/certification as means for development and quality assurance for higher education. Finally, it approaches the issue of continuing education as a challenge to higher education institutions and an opportunity to broaden access.

Key words: Bologna Process, higher education in Europe, Evaluation, Accreditation/Certification, Continuing education, Quality of higher education.

Introdução

Na segunda metade do séc. XX, o sistema de ensino superior na Europa passou por uma profunda transformação e experimentou, sobretudo nas últimas décadas, uma aceleração dramática. A política educacional [Bildungspolitik] já não mais se restringe à agenda nacional, como mostra especialmente o Processo Bolonha. A crescente internacionalização da ciência, inclusive do ensino, a globalização de mercados comerciais e de trabalho conduzem a uma perda real do poder definitório do Estado-nação. Tal evolução está ligada à diferenciação do setor terciário. Assim, a Europa ensejou, e.g., nas suas Escolas Superiores de Ciências Aplicadas [Fachhochschulen] um tipo de instituição de ensino superior mais referido à aplicação do conhecimento, que se estabeleceu e provou ser útil, em que pesem seus diversos modelos de organização. Ao lado das instituições financiadas pelo Estado surgem agora, embora em graus regionalmente distintos de condensação, os ofertantes do setor privado.

Faz parte das forças motrizes dessa transformação também o significado consideravelmente maior da ciência, pesquisa e qualificação para a capacidade de geração de riqueza de uma sociedade, da qual depende, em última instância, também a estabilidade dos sistemas de seguridade social. A concorrência cada vez mais globalizada demanda com rapidez crescente um conhecimento novo, sobretudo aplicável. Por este motivo, os ciclos de inovação tornam-se cada vez mais breves em muitas áreas da sociedade. As "ofensivas de inovação" são hoje componentes regulares de programas governamentais. As exigências de qualificação, feitas aos assalariados, não só aumentam constantemente, mas transformam-se também nos seus conteúdos. As pessoas devem considerar, cada vez mais, a perspectiva de várias mudanças de posicionamento no mercado de trabalho e da atividade nele exercida no curso da sua vida profissional, de modo que um curso superior concluído não oferece mais a qualificação suficiente para toda a vida profissional.

Considerando esta evolução, os governos – de início apenas os da Europa Ocidental – direcionaram, desde a década de 1960, a sua política para a exploração de reservas de capacitação. Espera-se das instituições de ensino superior que contribuam no que lhes diz respeito para a qualificação de um número cada vez maior de jovens. Elas precisam atender à exigência de lidar com o maior cuidado possível com este período de vida de jovens, caracterizado por uma especial capacidade de aprendizado. Disso, e da rápida obsoletização do conhecimento, segue que as instituições de ensino superior devem considerar a necessidade do aprendizado contínuo. E isso não pode deixar de produzir efeitos na estrutura e função do estudo de graduação (dos estudantes regulares), conseqüentemente nas próprias instituições de ensino superior.

Em 1998, uma ministra e três ministros responsáveis pelo ensino superior (da Grã-Bretanha, da Alemanha, França e Itália) pronunciaram-se, na Declaração de Sorbonne, a favor de uma "Área Européia de Ensino Superior" [European area for higher learning], que deveria consistir de "dois ciclos principais, graduação [undergraduate] e pós-graduação [graduate]".

Em 1999, essa iniciativa foi incluída na Declaração de Bolonha ("Área Européia de Ensino Superior"), assinada por 29 ministros. Ela foi desdobrada nos seus conteúdos, definindo-se a "primeira década do terceiro milênio" como quadro temporal para a criação do "Espaço Europeu de Ensino Superior", caracterizado pelos dois ciclos principais. Entre os objetivos a serem atingidos prioritariamente menciona-se o "fomento da cooperação na garantia da qualidade com vistas à formulação de critérios e métodos comparáveis".

No Comunicado de Praga, de maio de 2001, 33 ministros responsáveis pelo ensino superior acordaram que o Espaço Europeu de Ensino Superior deveria ser criado até 2010, e a estrutura dos estudos e da conclusão ser caracterizada por "dois ciclos principais". Constataram que os "sistemas de garantia de qualidade" desempenham em toda a Europa, um papel decisivo "na garantia de elevados padrões de qualidade e melhoria da comparabilidade de qualificações" e que o sistema de desenvolvimento e garantia de padrões de qualidade deve ser ampliado. Enfatizam que "a qualidade da educação de nível superior e da pesquisa é e deveria ser um fator determinante da atratividade e competitividade em escala internacional".

Correspondentemente, as ministras e os ministros dos agora 40 países envolvidos, responsáveis pelo ensino superior, ratificaram, no Comunicado da Conferência de Berlim de 19 de setembro de 2003, "que a qualidade da formação universitária é o ponto arquimédico da criação do Espaço Europeu de Ensino Superior. [...] Constatam com satisfação que, depois da sua definição de um sistema escalonado de estudos, efetuada na Declaração de Bolonha, entrementes principiou um amplo reordenamento do cenário das instituições de ensino superior na Europa. Os ministros comprometem-se a fomentar o desenvolvimento ulterior da garantia de qualidade nos planos institucional, nacional e europeu e enfatizam a necessidade da elaboração de critérios e métodos reciprocamente reconhecidos de garantia de qualidade".

Os ministros frisam que "a responsabilidade principal pela garantia de qualidade na formação de nível superior é de cada instituição de ensino superior, em conformidade com o princípio da autonomia institucional", mas acrescentam em seguida "que esse é o fundamento de uma efetiva responsabilidade das instituições de ensino superior no contexto nacional". Disso resulta uma primeira responsabilidade das instituições de ensino superior pela garantia da qualidade, mas, ao mesmo tempo, também a sua inserção em um sistema nacional de garantia e controle de qualidade.2 2 Cf. também The Legitimacy of Quality Assurance in Higher Education, Council of Europe Higher Education Forum, 2006 Os signatários manifestam o seu consenso quanto à necessidade de, ao lado da avaliação de programas ou instituições, tornar sistemas de credenciamento e de certificação ou procedimentos similares, parte integrante dos sistemas nacionais de garantia de qualidade. Com isso, o credenciamento é reconhecido ao lado da avaliação no plano europeu como componente equivalente na garantia da qualidade.3 3 Cf. também The Legitimacy of Quality Assurance in Higher Education, Council of Europe Higher Education Forum, 2006

No Comunicado da Conferência de Bergen, realizada nos dias 19 e 20 de maio de 2005, os ministros, agora de 45 países, confirmaram a sua "firme decisão de coordenar as políticas dos nossos países no âmbito do Processo de Bolonha, para criar até 2010 o Espaço Europeu de Ensino Superior". Constatam "com satisfação que o sistema de estudos em dois níveis foi introduzido em ampla escala e que na maioria dos países já mais da metade dos estudantes está inscrita nesses cursos". Concordam, outrossim, com a adoção de um "marco de qualificação mais abrangente para o Espaço Europeu de Ensino Superior, que abrangeria agora três ciclo prevendo para cada ciclo indicadores descritivos com fundamento em resultados de aprendizagem e competências, bem como faixas de créditos (credit ranges) no primeiro e segundo ciclos". Comprometem-se a elaborar "até 2010 marcos nacionais de qualificação, compatíveis com o marco de qualificação mais abrangente no Espaço Europeu de Ensino Superior, e começar a trabalhar pela sua consecução em 2007, o mais tardar".

No âmbito da garantia da qualidade, os ministros cobram maiores avanços. Concordam com um "catálogo de padrões e diretrizes de garantia da qualidade, no Espaço Europeu de Ensino Superior, proposto pela ENQA* * European Network for Quality Assurance in Higher Education/Rede Européia para a Garantia da Qualidade no Ensino Superior [Nota do Tradutor] ". Comprometem-se a "introduzir no plano nacional o modelo proposto para a avaliação (peer review) de agências de garantia de qualidade, considerando as diretrizes e os critérios consensualmente adotados, e registram com satisfação o princípio de uma lista européia das agências de garantia de qualidade, com base em certificações nacionais".

Por fim, os ministros frisam "o significado das instituições de ensino superior no fortalecimento continuado da pesquisa, bem como o significado da pesquisa para as instituições de ensino superior no seu papel central para o fomento do desenvolvimento científico e cultural e para a coesão das nossas sociedades". Manifestam a sua convicção "de que os esforços para a implementação de transformações estruturais e o aumento da qualidade do ensino não podem ser feitos em detrimento do fortalecimento da pesquisa e da inovação e sublinham o significado da pesquisa e formação científica para a preservação e melhoria da qualidade, bem como para o aumento da competitividade e atratividade do Espaço Europeu de Ensino Superior".

Os quatro documentos até agora existentes são declarações nas quais os ministros responsáveis pelo ensino superior se comprometem a tomar determinadas medidas na área de sua competência ou forçar desenvolvimentos já iniciados. Por si só, os objetivos fixados não alteram as estruturas juridicamente definidas dos sistemas nacionais de ensino superior. Isso exigiria medidas previstas pelo e necessárias, segundo os dispositivos constitucionais internos de cada país.

Por outro lado, o desenvolvimento acima esquematizado mostra que, no âmbito do ensino e dos estudos acadêmicos – em correspondência à tese liminarmente enunciada – ,a capacidade de formulação de políticas por parte do Estado-nação se perde cada vez mais, ao menos no tocante à realidade. Assim, uma visão realista revela a inexistência de uma alternativa ao Processo de Bolonha. De qualquer modo, o preço a ser pago, caso nos isolássemos na Europa, seria muito elevado – e seria pago, em primeiro lugar, pelas formandas e formandos e, indiretamente, pelas próprias instituições de ensino superior.

No entanto, esta evolução, de sustentabilidade cada vez mais pronunciada desde 1998, é percebida de forma muito seletiva pelo Estado e pelas instituições de ensino superior nos países europeus de maior porte, à diferença da maioria dos países europeus de menor porte. Correspondentemente, a consciência da necessidade de fazer valer o próprio ponto de vista no desenvolvimento de uma arquitetura européia do sistema educacional de nível superior, também no desenvolvimento de uma estrutura curricular e na garantia da qualidade, manifesta-se em graus muito distintos.

Apressados e estimulados pelas Declarações de Berlim e de Bergen, um número crescente de países e/ou instituições de ensino superior na Europa passa a definir uma cronologia para a redefinição integral da sua oferta de estudos acadêmicos nos termos da estrutura curricular escalonada. Em analogia à Áustria (v. Lei das Universidades de 2002, § 54 al. 2) e outros países europeus, a maioria das legislações estaduais sobre a regulamentação do ensino superior na Alemanha prevê a introdução ampla dos graus "BA" e "MA" para a maioria dos cursos com exame universitário. Assim a "Lei sobre a Liberdade das Instituições de Ensino Superior" do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, promulgada em 2006, parte do pressuposto, de que nos cursos conducentes aos graus de "Diplom" ou "Magister", não serão mais aceitos estudantes a partir do semestre de inverno de 2006/2007. Entrementes, as Federações de Faculdades e as Sociedades Científicas na República Federal da Alemanha também desistiram de grande parte das suas objeções inicialmente manifestas.

Porém a introdução da estrutura escalonada nos estudos acadêmicos nem sempre leva em consideração que ela deve ser compreendida como um desafio para a reformulação dos currículos. Não basta, portanto, colar novas etiquetas em estruturas curriculares até agora existentes e transformar a tradicional "Zwischenprüfung" (exame intermediário) em "baccalaureus" ou "bachelor". Por outro lado, surge um problema pelo fato dos "dois ciclos principais" não serem definidos com precisão quanto aos seus conteúdos.

À guisa de orientação, a Declaração da Sorbonne fornece as categorias "graduação" e "pós-graduação". O "primeiro ciclo" é percebido como "nível apropriado de qualificação": "Estudantes de graduação deveriam ter acesso a uma diversidade de programas, incluindo oportunidades para estudos multidisciplinares, o desenvolvimento da proficiência em línguas e a habilidade no uso das novas tecnologias da informação". Com vistas ao "nível da pós-graduação", a Declaração da Sorbonne ainda partiu do princípio de que "deveria existir a possibilidade de escolher entre a obtenção do grau de master num curso mais breve e a obtenção do grau de doutor num curso mais longo, com possibilidades de transferência de um curso a outro. A pesquisa e o trabalho autônomo seriam convenientemente enfatizados nos dois graus da pós-graduação."

Na Declaração de Bolonha, chegou-se a um consenso quanto à introdução de um sistema "essencialmente baseado em dois ciclos principais, de graduação e de pós-graduação. O acesso ao segundo ciclo requer a conclusão exitosa dos estudos do primeiro ciclo, com duração mínima de três anos. O grau concedido depois da conclusão do primeiro ciclo deverá também ser relevante para o mercado europeu de trabalho enquanto comprovante de um nível apropriado de qualificação. O segundo ciclo deveria conduzir à concessão dos graus de master e/ou doutor, como em muitos países europeus."

O Comunicado de Praga afirma: "Os ministros registraram com satisfação que o objetivo de uma estrutura de graus acadêmicos, baseada em dois ciclos principais e articulando a educação de nível superior em estudos de graduação e pós-graduação, foi enfrentado e discutido. Alguns países já adotaram essa estrutura, vários outros consideram-na com grande interesse. É importante registrar que, em muitos países, os graus de bachelor ou master ou graus comparáveis referentes aos dois ciclos podem ser obtidos em universidades tão bem como em outras instituições de ensino superior. Os programas conducentes à obtenção de um grau podem ,e com efeito deveriam ter, orientações diferentes e perfis variados, para poderem acomodar a diversidade das demandas dos indivíduos, da academia e do mercado de trabalho."

No Comunicado de Berlim, os ministros recomendam que "graus deveriam referir-se a conclusões de definição variada. Graus de primeiro e segundo ciclo deveriam ter diferentes orientações e perfis variados para acomodar a diversidade das demandas dos indivíduos, da academia e do mercado de trabalho. Graus de primeiro ciclo deveriam permitir a matrícula em programas de segundo ciclo, no sentido da Convenção de Reconhecimento de Lisboa [Lisbon Recognition Convention]. Graus de segundo ciclo deveriam permitir o acesso a estudos de doutorado."

É difícil identificar um desenvolvimento contínuo, direcionado ao detalhamento dos contornos dos "dois ciclos principais"; por outro lado, podemos registrar que as duas conclusões qualificam para o ingresso no mercado de trabalho, que o BA é, por conseguinte, em relação ao MA um aliud, algo distinto, e não um minus, algo menor, e que a primeira conclusão é o pré-requisito para a admissão à segunda. Por um lado, a falta de definições maiores considera o fato de que definições congruentes quanto ao conteúdo inexistem também naqueles países que já, há muito tempo, praticam um sistema escalonado de conclusões no sistema de ensino superior. Assim o BA estadunidense não pode ser comparado ao BA no Reino Unido, que, por sua vez, não é congruente com o BA e.g., australiano. Mas a flexibilidade ou a falta de uma definição dos conteúdos decorre, não em último lugar, também da assunção consciente das diferenças historicamente explicáveis dos sistemas de ensino superior na Europa.

Se as Declarações até agora feitas se caracterizam, por um lado, pela sua flexibilidade, podemos registrar, por outro lado, desde a Declaração de Sorbonne, no interesse da compatibilidade e do reconhecimento recíproco, por conseguinte, no interesse do fomento da mobilidade, a tendência em definir certas limitações à multiplicidade. Assim, já a Declaração de Sorbonne afirma: "Uma área européia aberta para estudos de nível superior traz consigo uma riqueza de perspectivas positivas, que evidentemente respeitam as nossas diversidades, mas requer, por outro lado, esforços contínuos para remover barreiras e desenvolver um quadro de referência para o ensino e o aprendizado, que fomentaria a mobilidade e uma cooperação cada vez mais estreita". Mais além, aparece na Declaração de Sorbonne o termo "harmonização", quando se afirma: "A harmonização progressiva do quadro geral de referência dos nossos graus e ciclos pode ser atingida mediante o fortalecimento das experiências já existentes, como diplomas emitidos em conjunto, iniciativas-piloto e o diálogo com todas as partes envolvidas. Comprometemo-nos aqui a estimular um quadro referencial comum, que objetiva a melhoria do reconhecimento externo, facilitando a mobilidade bem como a empregabilidade dos estudantes".

No Comunicado de Berlim, os ministros recomendam "a elaboração de um quadro referencial de qualificações comparáveis e compatíveis para os seus sistemas de ensino superior, que deveria procurar descrever a qualificação nos termos da carga de trabalho, nível, resultados do aprendizado, competências e perfil. Eles também acordam em elaborar um quadro referencial abrangente [overarching] para a definição de qualificações no Espaço Europeu de Ensino Superior".

Diante deste fundo, são levados a cabo nos planos nacional e europeu vários trabalhos, apenas parcialmente harmonizados, para o desenvolvimento de um "Quadro Referencial Europeu de Qualificação" [European Qualification Framework]. Assim a "Iniciativa Conjunta em prol da Qualidade" [Joint Quality Initiative] apresentou os assim chamados "indicadores descritivos de Dublin", que descrevem os níveis do bachelor e do master com referência aos resultados a serem atingidos. Baseado neles, o Consórcio Europeu de Credenciamento [European Consortium for Accreditation – ECA) apresentou, em fevereiro de 2004 num documento, as suas idéias sobre um Quadro Referencial Europeu de Qualificação. Esse documento se pronunciaria sobre:

- "a estrutura geral da educação de nível superior – ciclos e níveis;

- indicadores descritivos de qualificação – baseados em resultados esperados do aprendizado;

- créditos baseados na carga de trabalho e no esforço conceitual pré-requisitos de acesso;

- progressividade;

- acordos de reconhecimento – como os acordos firmados entre redes de garantia de qualidade ou a Convenção de Reconhecimento de Lisboa de 1997".

Em 12 de março de 2004, o Bologna Follow Up Group criou um grupo de trabalho que tem por tarefa "coordenar o trabalho sobre o desenvolvimento de um quadro referencial abrangente [overarching] de qualificação para a Área Européia de Ensino Superior. [...] Para atingir os objetivos fixados pelos ministros, o Grupo de Trabalho deverá:

1. elaborar princípios para quadros referenciais nacionais de qualificações, que possam ajudar Estados-membros no estabelecimento dos seus quadros referenciais;

2. elaborar um modelo ou modelos europeu(s) abrangente(s);

3. estabelecer princípios-chave subjacentes aos modelos, tanto no nível nacional quanto no nível europeu."

No Comunicado de Bergen o Follow Up Group é convidado a "relatar sobre a implementação e o aperfeiçoamento do quadro referencial abrangente".

Diante da demanda crescente de educação e da conexa transformação do papel das instituições de ensino superior, distinguir-se-á no futuro, com base no Processo de Bolonha, mais fortemente do que até agora, entre ofertas de estudos que

a) conduzem a uma primeira conclusão e, com isso, à capacidade de inserção no mercado de trabalho (employability);

b) visam conseqüentemente uma demanda maior e mais profunda de qualificação e

c) servem à educação contínua, e com isso à necessária adaptação dos padrões de qualificação às sempre mutantes exigências da vida profissional.

Entre outros, este enfoque considera também o fato de que apenas uma parcela relativamente reduzida dos formandos permanece na pesquisa, ao passo que a grande maioria visará uma profissão fora da ciência e efetivamente exercerá essa profissão fora dos muros da academia. Ele considera, outrossim, que os estoques de conhecimento mais específico envelhecem muito rapidamente, podendo já estar parcialmente obsoletos no momento da conclusão do estudo. Por isso, um estudo só pode conduzir à capacidade de inserção no mercado de trabalho ou à capacidade de exercer uma profissão, ao passo que a qualificação profissional no sentido estrito deve ser transmitida por meio do "training on the job", do treinamento no próprio emprego.

Com vistas à "ciência como vocação",4 4 Referência à famosa fórmula de Max Weber, "Wissenschaft als Beruf", da conferência homônima de 1919 [Nota do Tradutor] as instituições de ensino superior continuam, porém, com a tarefa de transmitir também a qualificação profissional. Por isso se faz necessária uma estrutura autônoma de formação na forma de um estudo de doutorado. Neste sentido, os ministros chegaram a um consenso expresso no Comunicado de Berlim, "de ultrapassar o foco atual em dois ciclos principais de ensino de nível superior para incluir o nível de doutorado como terceiro ciclo no Processo de Bolonha." O Comunicado afirma mais adiante: "Uma reestruturação abrangente do ensino superior na Europa já está encaminhada e se baseia em três ciclos principais: o primeiro ciclo ou bachelor, o segundo ciclo ou master e o terceiro ciclo ou doutorado. No âmbito desses três ciclos é possível definir vários níveis consecutivos e também paralelos, dependendo do quadro referencial nacional". O Comunicado de Bergen, porém, só menciona o terceiro ciclo, sem que se tenham delineado contornos mais precisos, em decorrência das acepções divergentes quanto a esse ciclo.

De acordo com a Lei Básica sobre a Organização das Universidades [Hochschulrahmengesetz], § 19 al. 2, o bachelor representa um primeiro grau de conclusão, "qualificando para o exercício de uma profissão". Esta formulação é extremamente infeliz, uma vez que sugere que o bachelor atingiu uma maturidade referida ao exercício de uma profissão. Mas este dificilmente poderá ser o caso, se é que se pretende assegurar, depois de três anos de estudos, o nível acadêmico da formação e uma atividade profissional equivalente. A concepção da conclusão com a obtenção do grau de BA somente faz sentido se ela for configurada em termos de divisão do trabalho, se, portanto, o futuro BA adquire na instituição de ensino superior uma combinação de conhecimentos fundamentais na sua disciplina, a metódica e as qualificações básicas conexas, para então adquirir, a partir deste fundamento, mediante training on the job, a capacidade e as habilidades necessárias para o exercício da profissão. Se, por conseguinte, o primeiro grau de conclusão dos estudos superiores deve tornar o formando "apto para o mercado de trabalho" [employable], faz-se mister correlacionar novamente os conteúdos curriculares tradicionais e a sua relação entre si.

Em correspondência a uma tendência européia que se delineia no horizonte, é necessário chamar a atenção para o fato de que, no caso de um período trienal de estudos regulamentares, necessário para a obtenção do grau de bachelor, o estudante deve comprovar em regra 180 pontos do ECTS [European Credit Transfer System/Sistema Europeu de Transferência de Créditos]. Em correspondência às exigências internacionais, necessita-se, para a obtenção do máster, de 120 pontos ou, no caso da inclusão dos estudos precedentes até a obtenção do primeiro grau profissionalizante, 300 pontos do ETCS.

A introdução do sistema de pontos/créditos indicativos do rendimento acadêmico, orientado segundo a carga de trabalho, já está prevista na Declaração de Sorbonne, e a sua necessidade foi confirmada em todas as Declarações subseqüentes. Na Declaração de Berlim foi afirmado "que o ECTS evoluiu crescentemente na direção do fundamento geral de sistemas nacionais de pontos indicativos do rendimento acadêmico".Os ministros "encorajam o progresso continuado com o objetivo de que o ECTS se torne não apenas um sistema de transferência, mas também um sistema de acumulação, a ser aplicado de modo consistente enquanto se desenvolve em meio à Área Européia de Ensino Superior".

Assim, tanto para a obtenção do grau de bachelor quanto para a obtenção do grau de master está prevista a apresentação de uma monografia de conclusão do curso, sendo que o peso do trabalho, necessário para a obtenção do BA, deve perfazer no máximo 12 pontos do ECTS, em conformidade com as orientações da Conferência Permanente dos Secretários de Educação e Cultura dos Estados da República Federal da Alemanha [Kultusministerkonferenz], prevendo-se para a dissertação, para a obtenção do MA, um peso de 15 a 30 pontos do ECTS. Esta ponderação que revela o empenho em reduzir os tempos de estudo, dentre outras medidas, pela redução das exigências à monografia de conclusão, é objeto de discussões, especialmente com vistas à formação de um consenso europeu já existente em diversas áreas acadêmicas.

Garantia da qualidade

A garantia da qualidade [quality assurance] é um valor central de orientação do Processo de Bolonha. Correspondentemente, na última década, a avaliação e o credenciamento enquanto meios de desenvolvimento e garantia da qualidade na área do ensino superior ganharam cada vez mais em importância. No Comunicado de Berlim, os ministros enfatizam a necessidade de "desenvolver critérios e métodos reciprocamente reconhecidos de garantia da qualidade".

"Por isso eles acordaram que por volta de 2005 os sistemas nacionais de garantia de qualidade deveriam incluir:

  • uma definição das responsabilidades dos órgãos e das instituições envolvidas;

  • uma avaliação dos programas ou das instituições, incluindo a avaliação interna, a avaliação externa, a participação dos estudantes e a publicação dos resultados;

  • um sistema de credenciamento, certificação ou de procedimentos comparáveis e

  • a participação, cooperação e formação de redes em escala internacional".

No plano europeu os ministros da Rede Européia de Garantia da Qualidade [European Network for Quality Assurance in Higher Eduacation - ENQA] exigem:

1. a elaboração de um sistema consensual de normas, procedimentos e diretrizes para a garantia da qualidade, bem como

2. o exame das possibilidades de assegurar um processo adequado de avaliação mediante pareceres (peer review) para agências e instituições de garantia de qualidade e/ou credenciamento e apresentar até 2005 um relatório do Grupo de Follow Up aos ministros sobre esse processo. Esse relatório foi apresentado em Bergen nos dias 19 e 20 de maio de 2005, quando da aceitação dos padrões e as linhas de orientação [guidelines] desenvolvidos pela ENQA.5 5 Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu. Os ministros comprometeram-se "a introduzir mediante consideração das linhas orientadoras e dos critérios consensualmente adotados o modelo proposto para a avaliação por pareceres (peer review) elaborados por agências de qualidade no plano nacional".6 6 Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu.

O credenciamento é realizado num procedimento orientado para tomar uma decisão sobre se um dado socialmente relevante satisfaz determinadas exigências, isto é, apresenta uma determinada qualidade. Nas instituições de ensino superior, o procedimento objetiva uma decisão formalizada da parte de uma autoridade especialmente legitimada sobre se uma instituição ou partes dela, uma oferta de estudos acadêmicos ou partes dela correspondem a determinados padrões. Entrementes existem regulamentações legais, assim, e.g., nos Países Baixos e na Noruega, que definem o credenciamento como decisão autorizada sobre se uma instituição ou um curso atendem a determinadas exigências de qualidade.

O procedimento é iniciado por um requerimento apresentado à instituição credenciadora. O requerimento descreve o objeto a ser credenciado, em regra, de modo definido. A decisão referente ao credenciamento fundamenta-se em um exame de qualidade. A decisão conclusiva do procedimento é formulada em termos de "sim" ou "não", podendo também ser formulada em termos de "sim, mas" ou "não, ainda não". A decisão tem validade limitada.

O credenciamento no âmbito das instituições de ensino superior pode servir a objetivos distintos: pode-se tratar de constatar a qualidade de instituições, suas partes, ofertas de estudos ou perfis de conclusão, para

- informar candidatas e candidatos, bem como estudantes sobre a funcionalidade e a relação entre custo e benefício de ofertas de estudos (proteção ao consumidor);

- possibilitar ao mercado de trabalho uma estimativa sobre o valor de certificados de rendimento acadêmico;

- assegurar ou facilitar o reconhecimento de créditos e conclusões em relações acadêmicas interinstitucionais, e.g., no caso da transferência de uma instituição de ensino superior a outra, fomentando assim a mobilidade;

- dar acesso a profissões.

Resulta, dos fins do credenciamento, que a decisão no processo de credenciamento deve ser tomada exclusivamente segundo critérios de qualidade, isto é, independentemente dos interesses dos que participam diretamente, e.g. na condição de requerentes ou afetados, ou indiretamente, e.eg., na condição de financiadores do processo ou ainda na condição de consultores (eventualmente avaliadores).7 7 Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu de 16 de setembro de 2005, Dossiê Interinstitucional 2004/2039 (COD). Este princípio produz o seguinte efeito: por um lado, os assim chamados stakeholders decidem se e para que fins (e.g., transmissão do conhecimento científico mais atualizado, formação da personalidade, relevância para o mercado de trabalho) um sistema é estabelecido; por outro, eles precisam ater-se, na configuração desse sistema, a princípios que asseguram a orientação das decisões exclusivamente segundo critérios de qualidade, e com isso, mais especificamente, a independência do órgão decisor. Isso vale, em primeiro lugar, com vistas à organização da instituição implementadora do processo, mas também com vistas ao procedimento a ser observado por ela.

Objeto da avaliação podem ser instituições, a pesquisa realizada nelas, os cursos por elas oferecidos ou parte dos mesmos, sua gestão, o estímulo das mulheres e seus serviços. A avaliação objetiva prototipicamente a otimização da qualidade, sendo, por conseguinte, parte de um processo. Ela mede a qualidade do rendimento com vistas a objetivos e fins definidos em regime de autonomia ou, ao menos, mediante a participação da instituição avaliada (e.g.: acordo sobre níveis de rendimentos a serem alcançados), sendo que esses objetivos e fins sempre se orientam segundo padrões externos. Trata-se, portanto, prototipicamente de um processo auto-referencial no todo ou em parte.

Assim, a avaliação é, em primeiro lugar, um meio do monitoramento interno ou próprio, embora sirva também à prestação de contas. Neste sentido, ela não está direcionada apenas para dentro, mas pode também adquirir relevância na relação externa, assim com o ente financiador - e.g., por ocasião do balanço do cumprimento de acordos sobre rendimentos a serem alcançados.

Como meio do automonitoramento, a avaliação está incluída na autocompreensão de uma instituição autônoma de ensino superior. Correspondentemente, as universidades e outras instituições de ensino superior e pesquisa na Europa sempre se formularam a pergunta (ou deveriam formular essa pergunta), 'se e em que abrangência elas atingiram os objetivos e fins conexos com a sua tarefa e missão.' Disso resulta que a legitimação para a avaliação transinstitucional está, ao menos, também ancorada nas próprias instituições de ensino superior.

Há, nos países que participam do Processo de Bolonha, um consenso de que – em correspondência aos resultados de um projeto piloto fomentado pela Comissão da União Européia nos anos 90 – o procedimento de avaliação inicia em regra com uma auto-avaliação, isto é, com um juízo da instituição a ser avaliada sobre se, e em que grau, ela atingiu os objetivos pré-definidos. Essa auto-avaliação constitui o fundamento de uma avaliação por peritos externos (peer review), que introduzem, nesse processo, também padrões transinstitucionais com vistas à definição dos objetivos e à sua consecução, e que em regra são contratados de comum acordo com a instituição a ser avaliada. O resultado deste parecer informa sobre os pontos fortes e fracos da instituição avaliada, do programa avaliado. É transmitido à instituição avaliada à guisa de informação para o seu processo de automonitoramento e, com isso, como fundamento para medidas de aperfeiçoamento e melhoria da qualidade do seu rendimento, podendo dessarte induzir ou fomentar um processo de planejamento estratégico e influir na distribuição de recursos humanos e materiais. Para além disso, o resultado da avaliação pode, quando a instituição é parte de um sistema mais abrangente, ser objeto de conseqüências desse sistema, em conexão com a celebração de novos acordos sobre rendimentos ou de um processo de recredenciamento.

O credenciamento e a avaliação são, assim, congruentes sob vários pontos de vista. Considerados os objetivos comuns, isso não é motivo de maior admiração. O que importa em ambos os procedimentos é a qualidade no sistema de ensino superior. Por outro lado, existem diferenças a serem consideradas também em uma fase evolutiva futura. Assim, o destinatário de uma decisão de credenciamento não é, a partir do objetivo desse processo, primacialmente o requerente; importa, muito pelo contrário, informar uma parcela da opinião pública. Diferentemente, o destinatário do relatório de avaliação é a instituição avaliada, que o "interioriza" em larga escala e procede à sua interpretação para fins de automonitoramento. A decisão no processo de credenciamento é revestida de autoridade, organizada por uma instância externa e formulada em termos de "sim/não". Isso também não é alterado em nada pelo fato de que, no decurso dos processos de credenciamento, ocorre, por meio de consultorias prestadas aos requerentes em todas as fases do processo, um desenvolvimento da qualidade, que pode surtir também efeitos para além da decisão, mediante recomendações, encargos ou condicionamentos.

Até o momento, o credenciamento foi realizado na Europa sempre pelo Estado (licenciamento), mediante autorizações dos cursos ou o reconhecimento das instituições. No contexto do Processo de Bolonha há, porém, uma tendência crescente a retirar do Estado a responsabilidade pela qualidade e delegá-la a órgãos independentes do Estado, mas também das instituições de ensino superior. Considerados nas suas peculiaridades, os sistemas, mediante os quais se busca atingir este objetivo na Europa, divergem muito entre si.

O credenciamento é o necessário outro lado da medalha de um aumento da autonomia das instituições de ensino superior, da sua inclusão em um sistema global direcionado para o atendimento da demanda e comprometido com um determinado nível de qualidade. Ele é necessário em um cenário de formação e educação que já agora se torna cada vez mais complexo e difícil de compreender [unübersichtlich] devido a ofertas transnacionais de estudos em nível superior.

No contexto do fomento da mobilidade dos estudantes, embora não apenas nele, o credenciamento e a avaliação adquirem um significado muito considerável. Aqui, sobretudo o reconhecimento de créditos e conclusões não pode mais ser abandonado – como ainda previra a Declaração de Sorbonne – aos acordos entre as instituições de ensino superior. Correspondentemente os ministros enfatizaram no Comunicado de Bergen "a importância da cooperação entre as agências nacionalmente reconhecidas, para que o reconhecimento recíproco de decisões de credenciamento e garantia de qualidade possa ser impulsionado". Comprometeram-se a envidar esforços para o reconhecimento integral dos estudos realizados no exterior, no âmbito dos programas europeus. Por outro lado, registra-se a experiência dos últimos anos, de que os países não estão dispostos a abrir mão integralmente da sua soberania nesta área. Com vistas ao credenciamento de instituições, programas e conclusões, um caminho com perspectivas de futuro, fomentador da mobilidade, poderia consistir em assegurar, mediante acordos gerais entre os Estados ou as suas instituições responsáveis pelo credenciamento, o reconhecimento recíproco dos programas, das conclusões e instituições credenciadas no respectivo plano nacional.

3. Educação continuada

Como a rápida obsoletização do conhecimento se reduz constantemente – e em nenhum outro lugar isto é mais conhecido, do que nas instituições de ensino superior, fatores essenciais para a produção do conhecimento novo -, vale, conforme já foi dito anteriormente, para os formandos, que eles precisam ajustar-se às novas exigências profissionais por meio de uma educação contínua regular. Correspondentemente, o aprendizado contínuo e a educação contínua são objetos das declarações dos ministros. Se a Declaração de Sorbonne ainda formula, em passagem algo marginal, que "a educação e o treinamento contínuos [tornam-se] uma obrigação inequívoca", a Declaração de Bolonha enfatiza que "os créditos também poderiam ser adquiridos em contextos exteriores a instituições de ensino superior, incluindo o aprendizado contínuo [lifelong learning], contanto que fossem reconhecidas pelas universidades acolhedoras afetadas."

O Comunicado de Praga explica: "O aprendizado contínuo é um elemento essencial da Área Européia de Ensino Superior. Na Europa futura, construída sobre uma sociedade e economia baseadas no conhecimento, as estratégias de aprendizado são necessárias para enfrentar os desafios da competitividade e do uso das novas tecnologias e para melhorar a coesão social, a igualdade de oportunidades e a qualidade da vida."

Na Declaração de Berlim, os ministros frisam "a contribuição importante da formação superior para a realização da concepção do aprendizado contínuo". Para atingir este ojetivo, eles dão passos rumo à adaptação das suas políticas nacionais e convidam todas as instituições de ensino superior, bem como todas as pessoas afetadas, a melhorar a possibilidade do aprendizado contínuo no plano da instituição de ensino superior, inclusive o reconhecimento de conhecimentos anteriormente adquiridos. Enfatizam que tais medidas devem ser parte integrante das atividades das instituições de ensino superior.

Outrossim, os ministros chamam a atenção de todas as pessoas dedicadas ao trabalho, no marco de qualificação para a Área Européia de Ensino Superior, que considerem o amplo espectro de estudos com currículos flexíveis, de possibilidades e técnicas de estudo e façam um uso adequado do sistema ECTS. Sublinham a necessidade de possibilitar a todos os cidadãos, em conformidade com seus desejos e suas capacidades, percursos de aprendizado contínuo até à formação de grau superior e no âmbito da formação de grau superior.

A importância da educação continuada não se mostra apenas no fato de o setor privado gastar por ano alguns bilhões de euros para este fim. Há muitos anos ela é ressaltada constantemente, entre outros, pela Comissão da União Européia, mas também por declarações dos governos e das representações profissionais e, de resto, também de outros modos na esfera pública.

Como educação continuada de caráter científico podemos resumir aquelas ofertas que,

- depois da primeira conclusão de um curso profissionalizante (em regra, um curso superior, mas também uma formação profissional), e

- depois de uma fase de atividade profissional, possibilitam um novo ingresso no aprendizado organizado e são demandadas enquanto tais, e que foram preparadas de modo correspondente em termos de conteúdo e em termos didático-metódicos, considerando a específica disponibilidade de tempo de pessoas com atividade profissional.

A educação continuada contém simultaneamente um desafio e uma oportunidade para as instituições de ensino superior. Com sua ajuda, inicia-se ou fomenta-se a interação entre os sistemas até agora amplamente fechados da formação e do universo profissional. O corpo docente da instituição de ensino superior vê-se confrontado com uma clientela que formula, tendo por base suas experiências profissionais e sociais, outras perguntas, apresentando outras contribuições diferentes daquelas dos estudantes que chegam diretamente das escolas secundárias. Com isso, essa clientela ao mesmo tempo exige e controla a atualidade da pesquisa e do conhecimento científicos. Já assim, mas também por meio da inclusão de pessoas com experiência profissional, mas com orientação científica, no corpo docente, a educação continuada pode contribuir, mediante o desafio do corpo docente permanente da instituição, também para a atualização e renovação dos conteúdos dos estudos regulares.

Acresce-se a isso, especialmente nas disciplinas "próximas ao setor privado", que a educação continuada pode ensejar a constituição de uma ponte apropriada para a redução dos ciclos de inovação "da idéia ao produto". Se a transferência de tecnologia entre a instituição de ensino superior e o setor privado pretende ser bem-sucedida, a correspondente qualificação contínua de pessoas em atividade profissional é um elemento imprescindível no jogo conjunto da modernização da economia e da sociedade. Diante da dinâmica tecnológica e da economia mundial, a necessidade do êxito desse processo afigura-se inegável.

Entrementes, as instituições de ensino superior, na Europa, ainda tem a tarefa legalmente definida de oferecer também a educação científica continuada. Mas, em alguns países, o fosso entre a situação legal e a realidade que a implementa é considerável. Caso as instituições de ensino superior queiram afirmar-se no mercado de educação continuada nas condições do sistema fundamentado na concorrência, é necessário abrir-lhes possibilidades de ação adequadas à concorrência na contratação e remuneração de serviços de docência e possibilitar-lhes um uso dos recursos captados que se orientem segundo os mecanismos da concorrência.

Não importa se as instituições de ensino superior oferecem a educação continuada do âmbito da sua capacidade jurídica plena ou com ajuda de uma organização de direito privado, fundada por elas: em cada caso elas devem responsabilizar-se, por um lado, pelos conteúdos e pela qualidade das suas ofertas de educação continuada enquanto instituições públicas renomadas e, por outro lado, usar os recursos captados de acordo com princípios gerenciais e sob condições adequadas ao mercado.

Em princípio, as instituições de ensino superior estão obrigadas a cobrar taxas ou remunerações pela educação continuada que devem cobrir os custos na íntegra ou em grande parte, para não prejudicar ou mesmo eliminar a competitividade de ofertantes privados. De acordo com múltiplas experiências, os recursos dessarte captados, em regra não bastam para assegurar um refinanciamento direto dos meios gastos, vinculado a determinados fins.

Por isso as instituições de ensino superior devem superar os tradicionais limites da sua atuação, para que possam afirmar-se como concorrentes no mercado de educação continuada. Devem desenvolver um marketing e uma gestão modernas, que até o momento falta em ampla escala nas universidades financiadas pelo Estado e orientadas segundo estudos com currículos regulamentares. Em muitos casos, as instituições de ensino superior ainda precisam criar no seu âmbito interno, ou no quadro de uma instituição mantida por elas, a infra-estrutura, os procedimentos e instrumentos necessários para a educação continuada. Disso fazem parte, entre outros fatores, a identificação da demanda, a manutenção dos contatos com parceiros externos, a comercialização das ofertas de educação continuada, bem como a coordenação dessas ofertas no âmbito interno.

Há um amplo consenso de que, no futuro, a demanda de educação continuada de natureza científica se estenderá, como já ocorre nos dias atuais, preponderantemente a conteúdos relacionados com a atividade profissional. Para o desenvolvimento de ofertas correspondentes, é importante colocar a configuração conteudística e cronológica em uma forma adequada aos grupos-alvo e, mais especificamente, levar em consideração a base de experiências profissionais dos participantes. Isso exige:

- uma correspondente divisão do tempo (e.g., ofertas de cursos em tempo parcial, realizados sem interrupção da atividade profissional dos participantes);

- a consideração das necessidades dos grupos-alvo (direcionamento para a aplicação, referência à solução de problemas);

- correspondentes formas de apresentação (preparação didática, utilização de recursos de comunicação modernos, também interativos; em regra não ao molde do curso expositivo [Vorlesung] ou da aula tipicamente acadêmica).

Imprescindível é aqui a cooperação entre as instituições de ensino superior e a "parte compradora", no sentido mais amplo do termo, isto é, empresas privadas, câmaras de indústria e comércio, associações profissionais e outras organizações. Ela facilita, entre outras vantagens, a elaboração de uma oferta orientada segundo as demandas dos grupos-alvo, possibilita uma melhor harmonização da organização e pode fomentar também a concessão de liberações. Neste contexto, cabe chamar a atenção para o fato de que a educação continuada de natureza científica não é uma edição em miniatura de um estudo acadêmico regulamentar. A educação continuada deve ser dimensionada de modo mais flexível, podendo por isso ser dimensionada mais no curto prazo. Ela deve reagir rapidamente a novos desenvolvimentos e implementá-los em conteúdos curriculares. O pré-requisito indispendável de uma oferta de educação deste tipo é a flexibilidade de conteúdo e a mobilidade organizacional.

A prática até agora existente da certificação e da expedição de atestados na educação continuada de natureza científica é diversificada. Predominam os atestados de participação e os certificados. Ao lado deles, são expedidos históricos escolares e documentos com caráter de diplomas, certificando-se ocasionalmente também que o participante cursou módulos ou unidades avulsas de ensino. A introdução de cursos e conclusões de cursos baseados em currículos escalonados, que hoje ocorre no âmbito do Processo de Bolonha, reforçou a tendência a valorizar a educação continuada mediante a oferta de cursos de aperfeiçoamento e mediante a oferta de conclusões adicionais com qualificação profissional, especialmente vantajosos para a carreira (educação continuada em cursos de MA). Isso responde a uma necessidade dos interessados e do mercado de trabalho em formar um juízo claro acerca do valor dos certificados, históricos escolares e diplomas de conclusão, expedidos nos cursos de educação continuada. Há na Europa a tendência de conceder um MA num curso de educação continuada, quando o participante adquiriu, no âmbito dos seus estudos, 75 a 120 pontos do ECTS.

Justamente na área da educação continuada a garantia da qualidade adquire uma importância considerável: para assegurar que o participante do curso, que assume esse ônus que freqüentemente se soma aos seus encargos profissionais normais, receba um valor agregado em termos de conhecimentos, descobertas, capacidades e habilidades. Os custos que o participante ou a empresa suportar devem ter uma contrapartida adequada. Como também nas certificações ou graduações no âmbito de estudos regulamentares em instituições de ensino superior, deve-se assegurar a possibilidade de respaldar qualitativamente os certificados de cursos de educação continuada, no interesse do próprio mercado de trabalho, pois justamente no âmbito das ofertas crescentes, também transnacionais, o risco da "venda" de certificados e graus é especialmente elevado, na relação de tensão que se estabelece entre a busca do lucro e a qualidade.

Por conseguinte, a educação continuada exige um sistema de garantia e desenvolvimento de qualidade que atenda a aspectos distintos. Trata-se, por um lado, de assegurar a relevância do conteúdo de uma oferta com vistas à demanda. Isso exige a criação de competências, organização e procedimentos para estudos mercadológicos orientados segundo a demanda. Além disso, faz-se mister assegurar a adequação sistêmica, isto é, o nível de exigências característico da instituição ofertante (e.g., não ofertar cursos universitários para assistentes de médicos).

Como a educação continuada carece, por várias razões conexas com o próprio objeto em pauta, da inclusão de pessoas experientes e de orientação científica, eventualmente também de especialistas de outras instituições de ensino superior, é necessário desenvolver um "procedimento de nomeação" que evite profissionalização falahs. Diante da combinação de módulos de cursos que não surgiram nem foram harmonizados apenas no interior da instituição, surge uma responsabilidade especial pela qualidade e logicidade interna da concepção global e pela sua implementação. Por fim, torna-se necessário verificar periodicamente a "satisfação dos clientes".

Essa avaliação direcionada para o automonitoramento deveria ser complementada pelo controle externo, mediante o credenciamento dos currículos. Com vistas à quantidade e aos custos a serem enfrentados, poderá ser discutível considerar o credenciamento da instituição como suficiente no caso de universidades financiadas pelo Estado, nas áreas dos estudos regulamentares e da pesquisa; já na área da educação continuada, o credenciamento do programa parece ser imprescindível. Ele contribui para a transparência num mercado dificilmente acessível [unübersichtlich]. Em qualquer caso, ele deve avaliar a capacidade de funcionamento e a efetitividade do sistema de garantia de qualidade da própria instituição, podendo, na dependência destes objetivos, variar quanto ao dimensionamento do marco cronológico e da intensidade.

Recebido: 03/11/06

Aceite final: 12/01/07

  • BFUG. "From Berlim to Bergen". General Report of the Bologna Follow-Up Group to the Conference of European Ministers Responsible for Higher Education. Bergen: 19-20 May 2005.
  • Conselho e Parlamento Europeu. Recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu: Dossiê Interinstitucional 2004/2039 (COD), 2005.
  • European Association for Quality Assurance in Higher Education. Standards and Guidelines for Quality Assurance in the European Higher Education Area Helsink, Finland, 2005.
  • Lei Básica sobre a Organização das Universidades [Hochschulrahmengesetz] In: http://www.bmbf.de/pub/hrg_20020815.pdf, consultado dia 31 de outubro de 2006.
  • The Legitimacy of Quality Assurance in Higher Education: The role of public authority institutions, 2006, Strasburg. Draft Writing Contribution from Speakers Strasburg: Council of Europe Higher Education Headquarters, 2006.
  • *
    European Network for Quality Assurance in Higher Education/Rede Européia para a Garantia da Qualidade no Ensino Superior [Nota do Tradutor]
  • 1
    Texto traduzido do original inédito "Europäishe Trends in der Graduierung und Qualitätssicherung" por Peter Nauman e revisado por Clarissa Baeta Neves.
  • 2
    Cf. também
    The Legitimacy of Quality Assurance in Higher Education, Council of Europe Higher Education Forum, 2006
  • 3
    Cf. também
    The Legitimacy of Quality Assurance in Higher Education, Council of Europe Higher Education Forum, 2006
  • 4
    Referência à famosa fórmula de Max Weber, "Wissenschaft als Beruf", da conferência homônima de 1919 [Nota do Tradutor]
  • 5
    Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu.
  • 6
    Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu.
  • 7
    Cf. também a recomendação do Conselho e do Parlamento Europeu de 16 de setembro de 2005, Dossiê Interinstitucional 2004/2039 (COD).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Aceito
      12 Jan 2007
    • Recebido
      03 Nov 2006
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