Resumo
A análise das ações executadas por Roberto de Oliveira Campos como Ministro do Planejamento do governo Castelo Branco. Através desta experiência no governo mostra-se as diferenças entre idealizações, implantação e funcionamento de instituições e discorre-se a respeito da relação conflituosa entre governo e trabalhadores e entre governo e empresários nacionais.
política brasileira; Estado e governo; instituições políticas
homem de ação do governo Castelo Branco
MARCELO HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS
Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP
Resumo: A análise das ações executadas por Roberto de Oliveira Campos como Ministro do Planejamento do governo Castelo Branco. Através desta experiência no governo mostra-se as diferenças entre idealizações, implantação e funcionamento de instituições e discorre-se a respeito da relação conflituosa entre governo e trabalhadores e entre governo e empresários nacionais.
Palavras-chave: política brasileira; Estado e governo; instituições políticas.
Este artigo dedica-se à análise das ações executadas por Roberto Campos quando ministro do Planejamento do governo Castelo Branco (1964-1967). Por um lado, o texto ocupa-se das medidas tomadas pelo economista para combater a inflação, da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), da instituição do Banco Central do Brasil (Bacen) e do Estatuto da Terra. A intenção é mostrar, lançando mão da experiência de Roberto Campos no governo Castelo Branco, que idealizar um Banco Nacional de Habitação, um Banco Central, ou qualquer outra instituição importante é muito diferente de implantar e fazer funcionar adequadamente tais instituições, pois um regime reconhecidamente autoritário também pode encontrar dificuldades para viabilizar um projeto político.
Por outro lado, o texto também trata da relação conflituosa existente entre governo e trabalhadores e entre governo e empresários nacionais.
Para abordar a primeira relação, discorre-se sobre a política salarial do governo Castelo Branco e sobre a implantação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Para analisar a segunda relação, apontam-se alguns pontos divergentes entre o empresariado nacional e o governo Castelo Branco. Contudo, o mais importante será verificar de que forma Roberto Campos agiu diante dessas questões.
PROGRAMA DE AÇÃO ECONÔMICA DO GOVERNO E A POLÊMICA COM O FMI
O Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg),11. Vários livros tratam do Programa de Ação Econômica do Governo, porém, quase todos de forma bastante superficial. Uma exceção fica por conta de Luís Viana Filho (1976), que dedica um capítulo do seu livro sobre o governo Castelo Branco para tratar das polêmicas que envolvem o Paeg. redigido por Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões22. Foi ministro da Fazenda do governo Castelo Branco. Ele e Roberto de Oliveira Campos eram velhos amigos e, ao assumirem, respectivamente, a pasta do Planejamento e a da Fazenda, formaram uma das duplas mais entrosadas da administração pública brasileira. quando eram, respectivamente, ministro do Planejamento e ministro da Fazenda do governo Castelo Branco, deixava claro que o governo tinha como meta fundamental conseguir a estabilidade monetária, pois a inflação era vista como o principal obstáculo ao desenvolvimento econômico. Além disso, o Paeg atribuía a inflação às seguintes causas: déficit do setor público; excesso de crédito para o setor privado; e excessivos aumentos salariais.
Em outras palavras, a expansão da base monetária era tomada como a grande estimuladora de um crônico e violento processo inflacionário. Mas qual era o resultado disso? O resultado era uma série de distorções econômicas:
- distorções do mercado de trocas externas;
- bruscas oscilações nas taxas de salários reais;
- incentivo ao uso de capital para manipular inventários ou especular com moedas estrangeiras;
- impossibilidade de atrair investimentos a longo prazo.
Diante de tal situação, Campos e Bulhões optaram por adotar medidas econômicas gradualistas e terminaram entrando em confronto com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que defendia um tratamento de choque para a economia brasileira.
Porém, em quais pontos o Programa de Ação Econômica do Governo diferenciava-se do enfoque recomendado pelo FMI? Segundo Roberto Campos, o Paeg era diferente, basicamente, em três pontos. O primeiro consistia, como já foi dito, no fato de o FMI julgar necessária a adoção de um tratamento de choque, pois acreditava que o enfoque gradual poderia levar à formação de resistências políticas, que poderiam, na visão do Fundo, comprometer o plano. A estratégia contida no Paeg, por ser gradualista, previa três fases de ajustamento: a de inflação corretiva; a de desinflação; e a de estabilidade de preços.
Em segundo lugar, o Fundo Monetário Internacional não concordava com a idéia da correção monetária, enquanto Campos e Bulhões consideravam necessária, antes de debelada a inflação, a utilização de um mecanismo de indexação que teria as seguintes funções: preservar o estímulo à poupança; atualizar pelo seu valor real os ativos das empresas; desencorajar a protelação dos débitos fiscais; e criar um mercado voluntário de títulos públicos.
Campos e Bulhões adotaram a correção monetária33. O primeiro uso da correção monetária foi determinado pela Lei no 4.357, aprovada pelo Congresso em julho de 1964, que estabelecia a obrigatória correção dos impostos em atraso e de todos os ativos fixos e autorizava a criação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs), novo título do governo, reajustada mensalmente de acordo com a média móvel do índice de preços por atacado. Em julho de 1965, a Lei no 4.728 estendeu a correção monetária para todo o mercado de capitais, utilizando como taxa de indexação a mesma da ORTN. Com isso, já era possível perceber que a correção monetária estava tornando-se um indispensável instrumento de política econômica do período pós-64. com o objetivo de fazer os participantes do processo econômico pensarem em termos reais, mas infelizmente não foi isso o que aconteceu. Ao contrário, com a instituição da indexação, os participantes do processo econômico passaram a pensar como tirariam vantagens da diferença entre os créditos ajustados pela inflação e os débitos não corrigidos monetariamente.44. É interessante verificar que a correção monetária produziu um outro efeito não imaginado por seus formuladores: possibilitou a retomada das vendas a prazo. Numa economia desindexada e caracterizada por elevadas taxas de inflação, é inviável para os empresários realizarem vendas a prazo, porém, com a correção monetária, os empresários passaram a ter a garantia de que os valores das prestações acompanhariam a inflação. Isto impulsionou a venda de bens duráveis, principalmente automóveis, possibilitando o chamado "milagre econômico brasileiro". Tudo isso mostra o quanto as medidas tomadas no âmbito do Estado são, muitas vezes, direcionadas para produzir um determinado efeito e acabam produzindo outro completamente diferente. Além disso, com o tempo, a correção monetária passou a ser percebida como um empecilho à queda da inflação.55. Mesmo Mário Henrique Simonsen, um economista que colaborou muito com Roberto Campos, disse o seguinte sobre a necessidade de desindexação da economia brasileira: "Eu me lembro de que falei muito sobre o problema da necessidade de desindexação quando estava no Ministério da Fazenda, mas qualquer pequena medida que eu tomasse encontrava uma brutal reação dos políticos, da opinião pública. Quer dizer, ninguém, na época, tinha percepção de que, com uma economia amplamente indexada, era inteiramente 'dar murro em ponta de faca' querer aplicar a receita ortodoxa do Fundo Monetário" (Biderman, 1996:200-201).
O terceiro ponto de divergência entre o programa elaborado por Campos e Bulhões e o FMI girou em torno da adoção ou não de metas quantitativas estritas para a taxa de inflação e para o déficit público. O FMI apregoava a necessidade da estipulação das metas, enquanto Campos e Bulhões alegavam que o importante seria acordar com o Fundo Monetário Internacional uma estratégia antiinflacionária e escolher os instrumentos tecnicamente adequados. Já o ritmo preciso da aplicação das medidas deveria ficar a cargo do governo.
Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões não abriram mão da estratégia gradualista e de adotar a correção monetária e chegaram a cogitar a possibilidade de romper com o Fundo Monetário Internacional. Tal rompimento proporcionaria ao governo brasileiro um necessário apoio popular, mas Castelo Branco julgou que evitar o rompimento seria a melhor forma de preservar os interesses nacionais.
Castelo, na esperança de fazer o FMI compreender melhor a posição do Brasil, convidou o embaixador Lincoln Gordon para jantar no Palácio da Alvorada, no dia 14 de novembro de 1964, ocasião em que também estavam presentes Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões.
O Fundo Monetário Internacional terminou por aceitar o "tratamento gradualista" e, em janeiro de 1965, concedeu crédito de 125 milhões de dólares. O Banco Mundial emprestou 79,5 milhões de dólares para a construção de usinas elétricas. O governo norte-americano, aceitando a recomendação do embaixador Gordon, concedeu 150 milhões de dólares "para o novo programa de empréstimo e fixou em 70 milhões os empréstimos de projetos essenciais". Com isso, o Brasil conseguiu recuperar sua credibilidade junto aos investidores estrangeiros. Porém, Campos e Bulhões foram obrigados a aceitar as metas quantitativas estritas para a taxa de inflação e para o déficit público.
É importante verificar que, embora o Paeg apontasse a expansão da base monetária como a causa da inflação, o governo Castelo Branco não conseguiu cumprir as metas estipuladas pelo FMI para a expansão monetária e redução das taxas de inflação.
A experiência de combate à inflação do governo Castelo Branco mostra que, mesmo para um governo autoritário, o diagnóstico do problema é a parte menos complicada, difícil é executar as medidas para solucioná-lo. Isso fica claro quando Roberto Campos assume o Ministério do Planejamento com total apoio do presidente e elabora, juntamente com Octávio Gouveia de Bulhões, um diagnóstico por muitos considerado monetarista e, mesmo assim, choca-se com o FMI, instituição que abriga o maior número de economistas monetaristas.
O fato de não ter conseguido atingir as metas estipuladas pelo Fundo Monetário Internacional não significa que o governo Castelo Branco não tenha reduzido a base monetária: em 1966 o governo obteve a menor taxa do decênio ¾ 16,8%. Além disso, o governo reduziu o salário mínimo real e diminuiu o déficit público. Porém, a inflação atingiu 41% em 1966, contra 46% de 1965, zombando assim das otimistas previsões do Paeg que previa uma inflação de 25% para 1965 e de 10% para 1966. O quadro da inflação melhoraria no final de 1967, porém, já era tarde demais para ajudar o governo Castelo Branco.
POLÍTICA HABITACIONAL: O SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO
Nas décadas de 50 e 60, Roberto Campos via o setor público como elemento decisivo no processo de desenvolvimento econômico. Para o economista, o Estado deveria intervir na economia pelos seguintes motivos:
- o livre jogo das forças de mercado não garante a formação de um nível de poupança desejável;
- o sistema de preços nem sempre incentiva adequadamente a formação de economias externas (investimentos em educação, estradas, etc.), porque não há relação entre a respectiva rentabilidade e a produtividade social correspondente;
- o livre jogo das forças de mercado não leva a uma distribuição satisfatória da renda nacional, tanto entre pessoas quanto entre regiões;
- a eficácia do sistema de preços pode ser distorcida pelas imperfeições do mercado.
No governo Castelo Branco, Roberto Campos procurou conciliar ortodoxas medidas de combate à inflação com uma espécie de política compensatória ditada pelo intervencionismo estatal. A implantação do Sistema Financeiro de Habitação66. É bem verdade que Roberto Campos também atribui a criação do Sistema Financeiro Habitacional à necessidade de dar resposta à política habitacional do governo João Goulart, que havia decretado o congelamento de aluguéis. é um dos exemplos mais significativos de tal política.
A criação do Sistema Financeiro de Habitação só foi possível por causa da instituição da correção monetária, proposta em abril de 1964 no projeto de lei do Banco Nacional de Habitação (BNH), cuja adoção, em julho de 1964, estimulou a poupança e permitiu a formulação de contratos de longo prazo. Contudo, a organização do sistema se deu com a formulação de algumas leis:
- Lei no 4.380, de agosto de 1964, que criou o Sistema Financeiro de Habitação, compreendendo o Banco Nacional de Habitação, as sociedades de crédito imobiliário e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo;
- Lei no 4.494, de novembro de 1964, conhecida como lei do inquilinato;
- Lei no 4.591, de dezembro de 1964, que realiza a regulamentação dos condomínios em edificação e das incorporações imobiliárias;
- Lei no 4.864, de novembro de 1965, que cria medidas de estímulo à indústria de construção civil;
- Lei no 5.107, de setembro de 1966, que cria o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
Para Roberto Campos, a criação do Banco Nacional de Habitação possibilitaria a construção em larga escala de habitações populares, o que atenderia ao problema social e, ao mesmo tempo, proporcionaria novas fontes de emprego. Porém, Campos não deixou de salientar que, no caso do BNH, o governo atuaria como um agente refinanciador, enquanto a tarefa de construir as habitações caberia à iniciativa privada.77. Ver a respeito disso: O Estado de S. Paulo (09/05/1964).
Entretanto, o BNH obteve resultados insatisfatórios: a construção de habitações de baixa renda, que, segundo Campos, era a principal motivação do projeto, perdeu espaço para a construção de habitações de classe média e construções comerciais, tidas como mais rentáveis.
A CRIAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL
Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões estavam decididos a realizar uma reforma financeira, sendo que uma etapa importante desta reforma se deu através da Lei no 4.595, que criou o Banco Central do Brasil (Bacen).
Antes da criação do Bacen, o Banco do Brasil, além da função de emprestar dinheiro para o setor público, era o principal banco comercial do país e a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) havia sido criada como agência coordenadora da política monetária, porém, não conseguira escapar ao controle do Banco do Brasil e, conseqüentemente, não transformou-se num Banco Central.
A Lei no 4.595, de dezembro de 1964, previa a transformação da Sumoc em Banco Central, mas isto ocorreu somente em abril de 1965, sendo que ainda foram necessários alguns anos para que o Bacen funcionasse de forma efetiva. Enquanto isso, Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões instituíram o Conselho Monetário Nacional, que atuou simultaneamente como órgão de previsão e coordenação das contas fiscais e monetárias.88. "Como resultado da reforma bancária (Lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1964) o Banco Central da República do Brasil abriu suas portas a 31 de março de 1965, tendo Dênio Nogueira como presidente. O poderoso Conselho Monetário Nacional, considerado como o órgão supremo do sistema financeiro nacional, era presidido por Bulhões. Além dos ministros da Fazenda, da Indústria e Comércio e do Planejamento, seus membros, em um total de 11, incluíam o presidente e três diretores do Banco Central, o presidente do Banco do Brasil e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e dois técnicos não pertencentes ao governo" (Dulles, 1983:116).
O Banco Central do Brasil foi uma das instituições criadas no governo Castelo Branco, com decisiva participação de Roberto Campos, que não atuou como os seus idealizadores desejavam. Tanto Campos como Bulhões queriam que o presidente do Banco Central tivesse mandato fixo com o intuito de garantir a estabilidade e a continuidade da política econômica, ou seja, para eles o Bacen deveria ser uma instituição totalmente independente. Porém, o Banco Central do Brasil não conseguiu, ao longo de toda a sua história, autonomia em relação ao poder Executivo.
O ESTATUTO DA TERRA
Diferentemente dos governos Costa e Silva, Médici e Geisel, o governo Castelo Branco preocupou-se com o problema do acesso à terra no Brasil e Roberto Campos foi o encarregado da coordenação da reforma agrária.
Na primeira reunião do gabinete, o ministro do Planejamento expôs um projeto que deixava transparecer a preferência do governo por uma reforma agrária capitalista, pois dava ênfase à produtividade e não à justiça social; procurava demonstrar que o instrumento da desapropriação, por ser politicamente conflituoso e economicamente o mais incerto em seu efeito sobre a propriedade, só deveria ser utilizado em último caso, o mais correto seria utilizar a tributação para gerar recursos para a colonização; afirmava que o Brasil sofre devido ao excesso de latifúndios improdutivos e minifúndios antieconômicos, recomendandos, para estes, a desapropriação e a colonização como solução mais adequada e, para aqueles, a tributação progressiva como o remédio mais eficaz.
Qualquer projeto de reforma agrária no Brasil, mesmo sendo tão conservador como este apresentado por Roberto Campos, não escapa das críticas de setores ainda mais conservadores. Os oponentes da reforma agrária eram particularmente numerosos nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Estes, além de recearem a criação de minifúndios, não gostaram nada da proposta, feita por Campos, de taxar progressivamente as grandes porções de terras improdutivas.
A União Democrática Nacional (UDN) estava bastante preocupada com a questão. Os deputados Antônio Godinho e Bilac Pinto, ambos da UDN, procuraram sustentar a visão de que a tensão social era o resultado da excessiva mão-de-obra no campo que precisava ser reduzida. O deputado Herbert Levy, ex-presidente da UDN, afirmava que os proprietários rurais haviam apoiado de forma decisiva o movimento contra João Goulart, portanto, não era prudente provocá-los. O deputado argumentou ser inconcebível a utilização do Imposto Territorial Rural (ITR) sem antes realizar um censo completo de todas as propriedades. Além disso, Herbert Levy, fazendo uma clara referência a Roberto Campos, falava em tecnocratas sem experiência prática e pouco identificados com os objetivos da Revolução de 64. Outro ataque dirigido a Campos veio do governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que acusava os "utópicos" do ministério de pretenderem utilizar a questão da reforma agrária com o objetivo de dar vazão a seus sonhos mais ou menos vagos.
O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, declarou à imprensa que o Estatuto da Terra elaborado pelo governo só seria aprovado se as funções executivas fossem incumbências dos Estados. Magalhães Pinto, em carta ao presidente Castelo Branco, afirmou ainda que os impostos deveriam ser arrecadados pelos Estados e alegou dificuldades para compreender os coeficientes sugeridos para os impostos progressivos.
No dia 19 de outubro de 1964, Castelo Branco convocou Daniel Krieger, Pedro Aleixo e Peracchi Barcelos para comunicar que a proposta do governo seria enviada ao Congresso. Tal proposta estabelecia impostos territoriais progressivos bastante inferiores aos previstos inicialmente, permitindo assim que Bilac Pinto a apoiasse, "removidas as objeções espinhosas". A coleta desses impostos seria feita pelos Estados, que ficariam com 20% e distribuiriam o restante para os municípios. Previa-se também a realização do censo completo das propriedades, como julgava necessário o deputado Herbert Levy, e o pagamento em dinheiro, exceto no caso de expropriações de extensas terras, quando então poderiam ser utilizadas as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs), sujeitas à correção monetária.
O Congresso votou o Estatuto da Terra no dia 26 de novembro, dentro do limite de 30 dias fixado por Castelo Branco. Para realizar o censo e fazer cumprir a nova lei, foi criado o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), subordinado à Presidência da República, e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), subordinado ao Ministério da Agricultura.
O Estatuto da Terra foi aprovado, porém a proposta do governo foi alterada por pressão dos proprietários de terra via políticos, como o deputado Herbert Levy e o governador Magalhães Pinto, e o Imposto Territorial Rural não foi regulamentado.
A comparação das idéias iniciais do governo Castelo Branco a respeito da questão agrária e a forma como foi aprovado o Estatuto da Terra mostram que um governo militar também pode encontrar obstáculos para viabilizar um projeto político.
ELIMINANDO A OPOSIÇÃO SINDICAL E EXECUTANDO UMA NOVA POLÍTICA SALARIAL
Roberto Campos procurou associar os aumentos salariais desvinculados do crescimento da produtividade ao aumento da inflação. Para estabelecer tal associação, Campos lançou mão de uma série de termos pertencentes à ciência econômica (produtividade, espiral de preços, arrocho fiscal, margem de lucro, custo salarial, aumento do consumo real, estagnação econômica, etc.). Além disso, o economista esforçou-se para desqualificar a política salarial dos governos anteriores a 1964, denominando-a de populista. A propósito disso, veja-se trecho de um artigo escrito pelo economista em 30 de abril de 1964.
"O enfoque populista é mais distributivo do que produtivo. Propugna maciços reajustamentos salariais, que, por excederem o crescimento possível da produção e produtividade, alimentam a espiral de preços. Acredita ingenuamente (ou demagogicamente) ser possível legislar melhorias do padrão de vida, mediante a concessão de benefícios sociais superiores à capacidade da economia de sustentá-los. O Brasil, por exemplo, tem uma legislação social muito mais avançada que a dos Estados Unidos. E o padrão de vida operário é muito mais baixo (...)
E supérfluo repetir que o populismo não só não conseguiu melhorar o padrão de vida operário ¾ pois que a espiral de preços anulou as altas salariais ¾, como diminuiu as oportunidades de emprego, pela estagnação econômica. O desenvolvimentismo é sem dúvida parte de verbiagem populista; mas apenas da verbiagem (...) porque o distributivismo ingênuo e precoce do populismo salarial reduz a capacidade de investimento da economia e, portanto, sua taxa de desenvolvimento" (Campos, 1969a:200-201)
Este item trata da implantação e repercussão da política salarial do governo Castelo Branco junto aos trabalhadores. Antes, porém, será necessário verificar as principais imposições estabelecidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que criou uma estrutura sindical corporativa a partir do Estado Novo (1937-1945). A CLT prescrevia as seguintes imposições:
- todos os trabalhadores "protegidos" pela CLT eram obrigados a pagar, anualmente, uma contribuição sindical (equivalente a um dia de trabalho) descontada dos salários. O dinheiro ia diretamente para o Ministério do Trabalho, que o repassava aos sindicatos e supervisionava suas despesas;
- as eleições sindicais eram fiscalizadas pelo Ministério do Trabalho, que tinha como uma de suas funções a validação ou não dos resultados, podendo até mesmo desqualificar candidatos;
- a lei tornava as greves ilegais. Dessa forma, quase todas as disputas eram transferidas para os tribunais trabalhistas para efeito de decisão;
- os sindicatos deveriam ser formados para representar somente uma categoria dentro de apenas um município. Era permitida a constituição de uma federação (no âmbito estadual) e uma confederação (no âmbito federal), porém a negociação em um desses dois âmbitos era considerada extralegal;
- a lei dificultava ou até mesmo impedia a negociação direta. Dessa forma, a questão do salário mínimo, uma das mais importantes, era controlada pelo governo. As outras questões eram decididas nos tribunais do trabalho.
A estrutura sindical corporativa criada pelo Estado Novo foi mantida, a despeito de ideologias políticas opostas, pelos sucessivos governos brasileiros.99. Sobre isso, Thomas Skidmore (1988:78-79) afirma o seguinte: "A 'redemocratização' do Brasil em 1945-46 deixara intacta essa estrutura de relações corporativistas do trabalho. A Constituição de 1946 reconheceu o direito à greve (Art. 158), ficando para ser regulamentada a sua aplicação em lei ordinária que, entretanto, cairia no esquecimento. As disputas entre empregadores e sindicatos a partir de 1945 geralmente eram levadas aos tribunais trabalhistas e, como os seus juízes eram nomeados pelo governo, estes procuravam não contrariá-lo. Está claro agora por que sucessivos governos achavam fácil conviver com a estrutura da CLT. No final dos anos 40 o governo do presidente Dutra usou-a para expurgar a liderança sindical de todos os esquerdistas. Em seu período presidencial de 1951-54 Getúlio Vargas usou-a através do seu jovem ministro do Trabalho, João Goulart, para estimular a mobilização trabalhista em São Paulo. No começo dos anos 60 o presidente Goulart usou a estrutura sindical oficial para gerar apoio político às suas malfadadas reformas." Tal estrutura só foi abalada quando o governo brasileiro precisou aplicar programas de estabilização econômica. A propósito disso, a experiência do governo Goulart foi esclarecedora. Em meados de 1963, Goulart criou o chamado Conselho Nacional de Política Salarial com autoridade para determinar os salários do setor público. O governo esperava que o conselho controlasse os salários e, conseqüentemente, detivesse os aumentos de preços praticados pelas empresas estatais e pelas empresas privadas licenciadas para prestar serviços públicos, cuja produção pesava de forma decisiva no índice de inflação. Entretanto, no segundo semestre de 1963, os aumentos salariais nessas empresas não foram inferiores aos praticados pelas empresas não controladas.
O governo Castelo Branco estava determinado a estabelecer uma política de controle salarial que impedisse a elevação dos salários acima da taxa de inflação. Antes, porém, procurou eliminar a possibilidade de qualquer oposição sindical intervindo nos sindicatos e expurgando vários líderes sindicais, entre eles Clodsmith Riani, Hércules Correia, Oswaldo Pacheco da Silva e Dante Pelacani.
Roberto Campos foi responsável pela implantação de uma política salarial (definida em junho e julho de 1964), que associou os aumentos salariais desvinculados do crescimento da produtividade ao aumento da inflação. Em 19 de dezembro de 1967, Campos escreveu um artigo que expressava tal associação, explicitando que a única solução durável e realista para aumentar o consumo real dos trabalhadores é através do incremento de produtividade da mão-de-obra ou do equipamento utilizado na produção.
"Muitos empresários se sentiriam felizes se tivessem um mercado mais ativo para suas mercadorias. Um mercado de vendedor, se possível (...) Assim eliminariam a capacidade ociosa, baixando os custos unitários de produção. O remédio para isso seria uma elevação geral de salários, a fim de dar poder aquisitivo aos assalariados, aumentando-lhes a procura de bens de consumo. Até aqui, tudo ótimo (...) Existe apenas uma complicação: salário é renda disponível para consumo, mas é também custo de produção. Se os preços se elevarem, reagindo à elevação dos custos, o volume real de consumo continuará o mesmo, a preços mais altos. Se os salários subirem, sem aumento de preços, haverá, sim, um acréscimo real de consumo, propiciado pela redução da margem de lucro empresarial. Mas por que não recorrer então a uma solução mais elegante: manter os salários e reduzir os preços? Apenas (...) diminuiriam os recursos disponíveis para investimento. E a diminuição de investimentos reduziria a capacidade de economia de dar emprego a novos assalariados e, portanto, tenderia a contrair a procura global (ou a impedir sua expansão). A única solução durável e realista para uma elevação, que todos ardentemente desejamos, do consumo real dos assalariados, é um incremento de produtividade da mão-de-obra ou do equipamento, porque se poderia então aumentar salários sem elevar preços, e sem comprimir a capacidade de investimento. Isso não importa em negar que uma empresa isolada pode ver aumentada a procura real de seus produtos se sobem os salários nas empresas concorrentes, enquanto ela mantém invariantes os custos de produção e os preços; ou que a situação dos assalariados poderia melhorar ¾ sem acréscimo, entretanto, da procura global da economia ¾ se outras classes sociais ou o Governo diminuíssem seu consumo real, mediante uma redistribuição da renda em favor dos assalariados" (Campos, 1969a:50-51).
Concentrando-se primeiro no setor público, Campos reorganizou o Conselho Nacional de Política Salarial e criou, a partir de sugestões do economista Mário Henrique Simonsen, uma fórmula para calcular os futuros aumentos salariais do setor público. Tal fórmula trabalhava com três fatores: a média do aumento do custo de vida durante os 24 meses precedentes; o aumento estimado da produtividade no ano anterior; e o "residual inflacionário" (a metade da média da taxa da inflação prevista pelo governo para os 12 meses seguintes). Além disso, o economista estabeleceu que os salários seriam reajustados apenas a cada 12 meses.
O ministro do Planejamento esperava que as empresas privadas e os tribunais seguissem a orientação estabelecida para o setor público. No entanto, os salários do setor privado subiram além dos níveis estabelecidos pelo Paeg, obrigando o governo Castelo Branco a requerer ao Congresso, em agosto de 1965, a extensão ao setor privado das regras já estabelecidas para o setor público. Os líderes sindicais que "sobreviveram" aos expurgos do governo tentaram inutilmente resistir. O Congresso aprovou, em setembro de 1965, a Lei no 4.725 que, além de impor ao setor privado as mesmas regras salariais do setor público, prorrogava por três anos a autoridade do governo para fixar salários.
O objetivo do governo Castelo Branco era manter a participação dos trabalhadores no produto nacional. Porém, isso só seria possível mediante a manutenção dos salários reais. Paradoxalmente, os salários reais, mesmo com o crescimento do produto nacional bruto no período 1964-67, decresceram.
O próprio Mário Henrique Simonsen afirmaria, muitos anos depois, que durante o ajuste de 1964 a 1967 os salários pagos na indústria foram defasados na ordem de 25%. "São dados estatísticos. É o óbvio ululante. Se era preciso aumentar a taxa de câmbio real, aumentar os aluguéis reais e elevar as tarifas públicas, como isso seria possível? Se houvesse aumento do salário real, o sujeito não ganharia o prêmio Nobel de Economia, ganharia o Nobel de Física. Teria descoberto a maneira de se criar a matéria do nada. A queda de salário real ali era inevitável" (Jornal do Brasil, 03/03/1996).
Autores que produziram análises favoráveis ao pensamento e à atuação de Roberto Campos na vida pública, como é o caso de Reginaldo Teixeira Perez, também não deixam de reconhecer que o governo Castelo Branco, além de excluir da vida pública os líderes sindicais mais combativos, implantou uma política de arrocho salarial. Veja-se a seguinte passagem do livro O pensamento político de Roberto Campos: "Já a imposição de limites ao mundo privado foi mais lenta e problemática do que no público. O estabelecimento de constrangimentos à liquidez se fez através das políticas salarial e creditícia. Operou-se à compressão da massa salarial com a alteração do cálculo dos reajustes, que antes era feito pela negociação, e agora obedecia a uma fórmula apresentada pelo governo. Os salários reais foram portanto sistematicamente reduzidos entre 1964 e 1967, caindo 20% no caso do salário mínimo e um pouco menos para os salários industriais. Os reclamos dos assalariados ficaram limitados pelo caráter discricionário do novo regime. Excluídos da vida pública, os líderes sindicais mais combativos foram impedidos de mobilizar seus liderados para evitar a implantação do arrocho" (Perez, 1999:145).
Com a cassação da oposição sindical e a implantação de uma política salarial produtora de compressão salarial, acelerou-se o processo de transformação dos sindicatos numa espécie de agência cartorial do governo, sem outra função senão a de executar as tarefas que o governo lhe incumbia.
A IMPLANTAÇÃO DO FGTS
Roberto Campos optou pela aceleração do desenvolvimento econômico em detrimento da eqüidade distributiva. Esta opção foi feita já na década de 50, como mostra o seguinte trecho da palestra Cultura e Desenvolvimento, proferida no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e publicada no Digesto Econômico ¾ março-abril de 1957: "Escreveu recentemente Arthur Lewis, em seu notável trabalho sobre a teoria do desenvolvimento econômico, que 'os países menos desenvolvidos acordaram para um século em que todo mundo deseja cavalgar dois cavalos simultaneamente: o cavalo da igualdade econômica e o do desenvolvimento. A União Soviética descobriu que esses dois cavalos não marcham na mesma direção, e abandonou, portanto, um deles. Outros países menos desenvolvidos terão também que transigir'.
No Brasil continuamos querendo cavalgar os dois cavalos em direções opostas. Não temos vocação cultural para endossar o projeto socialista, com todos os perigos de frustração política e ferocidade tirânica que ele encerra. Envergonhamo-nos, ao mesmo tempo, de deixar que funcionem os valores essenciais ¾ cruéis às vezes, porém eficazes ¾ do projeto capitalista. Com isso perdemos o impulso místico do primeiro e a eficiência do segundo.
A opção pelo desenvolvimento implica a aceitação da idéia de que é mais importante maximizar o ritmo do desenvolvimento econômico do que corrigir as desigualdades sociais. Se o ritmo do desenvolvimento é rápido, a desigualdade é tolerável e pode ser corrigida a tempo. Se baixa o ritmo de desenvolvimento por falta de incentivos adequados, o exercício da justiça distributiva se transforma numa repartição de pobreza" (Campos, 1964:115-116).
Para Roberto Campos, os aumentos de salários desvinculados do aumento de produtividade, além de causarem inflação, demonstravam que o Brasil havia optado pela igualdade econômica e, ao fazê-lo, estava comprometendo o desenvolvimento econômico. Por isso, o governo Castelo Branco, através de Roberto Campos, esforçou-se para substituir os aumentos de salários monetários por uma espécie de política de "salários indiretos" que não comprometesse o desenvolvimento econômico. O FGTS é um dos componentes de tal política.
Antes da criação do FGTS, havia o instituto da estabilidade no emprego, ou seja, após completar dez anos na mesma empresa, o trabalhador garantia a estabilidade no emprego. Um dos argumentos utilizados por Campos contra a estabilidade foi o de que esta havia virado uma peça de ficção, porque os empresários, temendo a indisciplina e a indolência dos trabalhadores, demitiam os empregados antes destes concluírem o período de carência.
Porém, a intenção do governo Castelo Branco de implantar o FGTS gerou fortes resistências por parte da classe trabalhadora. Os líderes desta classe argumentavam que a criação do FGTS cercearia mais ainda o seu espaço de atuação política e social, pois dificultava o acesso ao recurso da greve que era, até então, possibilitado pela Lei de Estabilidade.1010. A Lei de Greve, de 01 de junho de 1964, foi outro dispositivo criado pelo governo Castelo Branco para restringir o espaço de atuação política e social dos trabalhadores. As greves, na visão dos militares e de seus colaboradores civis, atentavam contra a segurança nacional.
O Congresso Nacional recebeu o projeto de criação do FGTS em agosto de 1966 e constituiu uma comissão mista para analisá-lo. O presidente desta comissão foi Daniel Krieger (UDN) e o relator foi o deputado Brito Velho (UDN-PL). O projeto foi fortemente combatido pelos senadores Franco Montoro e Josaphat Marinho. Segundo Roberto Campos, o projeto de criação do FGTS não passaria no Congresso se o presidente Castelo Branco não consentisse na introdução de uma cláusula opcional que facultava aos trabalhadores continuarem no regime de estabilidade ou aderirem ao novo sistema. Contudo, mesmo com a inclusão de tal cláusula opcional, o projeto recebeu várias emendas que forçaram o governo a recorrer, conforme palavras do próprio Campos, a táticas ditatoriais para aprová-lo por decurso de prazo, em 13 de setembro de 1966, e transformá-lo na Lei no 5.107.
Paradoxalmente, a cláusula que facultava ao trabalhador optar pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou pela estabilidade no emprego foi inócua, porque na prática os empregadores recusavam-se a admitir candidatos que optassem pela estabilidade. Com o passar do tempo, o FGTS substituiu a estabilidade. Esta mudança foi fortemente criticada pelos líderes sindicais e pelos membros da oposição, que denunciavam que os trabalhadores estavam perdendo a garantia de emprego e recebendo em troca um duvidoso plano de poupança forçada de fácil manipulação pelo governo.
COMBATENDO O NACIONALISMO
A Nova Lei de Remessa de Lucros
Já na década de 50, Roberto Campos mostra-se favorável ao aproveitamento do capital estrangeiro como importante elemento do desenvolvimento econômico de países como o Brasil e, conseqüentemente, crítico veemente dos setores nacionalistas que procuram alertar a respeito dos perigos da utilização do capital estrangeiro.
Campos escreve: "outro tipo de subversivo é o 'nacionaleiro', que se apresenta sob duas variantes principais: o traficante de nacionalismo e o patriota obscurantista. O traficante de nacionalismo explora o sentimento do patriotismo, como meio de bloquear concorrentes e proteger monopólios ineficientes. Fatura nacionalismo a expensas do consumidor. Já o patriota obscurantista é mais respeitável e talvez mais perigoso, pois nada mais sólido e irresistível ¾ quase uma força da natureza ¾ que o cidadão de puras intenções e parco entendimento: o 'burro honesto', em suma.
O problema é que ambas as variedades nacionaleiras retardam o desenvolvimento econômico e impedem o funcionamento do capitalismo. Diminuem o ingresso de poupança estrangeira, sem nada fazerem para aumentar a poupança nacional. Confundem divergências sobre métodos de desenvolvimento, com desamor à independência nacional. Deturpando a expressão nacionalismo, usam-na como instrumento de intimidação, pois, como disse certa vez o Presidente Castelo Branco, 'condenam aqueles que não concordam com seus pontos de vista à situação de traidores e incapazes de pertencerem à comunidade política'" (Campos, 1969b:102).
Para garantir a entrada de capital estrangeiro no país e combater o nacionalismo, Roberto Campos agiu no sentido de revogar a lei de remessa de lucros (Lei no 4.131, de 03 de setembro de 1962), que determinava um teto de 10% por ano do investimento original e era vista pelo economista como o principal motivo da diminuição do ingresso de investimentos diretos no país.
Em meados de 1964, o governo Castelo Branco enviou ao Congresso Nacional um projeto que visava principalmente eliminar os três artigos introduzidos, ainda no governo Goulart, na Lei no 4.131, chamada emenda Celso Brant, que estabeleciam a limitação quantitativa das remessas e das repatriações e discriminavam entre capital inicial e capital reinvestido. Eis os três artigos:
- Art. 31 - As remessas anuais de lucros para o exterior não poderão exceder de 10% sobre o valor dos investimentos registrados.
- Art. 32 - As remessas que ultrapassam o limite estabelecido no artigo anterior serão consideradas retorno do capital e deduzidas do registro correspondente para efeito das futuras remessas de lucros para o exterior.
Parágrafo único - A parcela anual de retorno do capital estrangeiro não poderá exceder de 20% do capital registrado.
- Art. 33 - Os lucros excedentes do limite estabelecido no artigo no 31 desta lei serão registrados à parte, como capital suplementar, e não darão direito a remessas de lucros futuros.
Segundo Roberto Campos, a lei de remessa de lucros do governo Goulart produziu acentuada queda do ingresso de capitais no Brasil e perplexidade da comunidade financeira internacional, assustada com o irrealismo de um país carente de capitais. Estes problemas foram solucionados no governo Castelo Branco com a promulgação da Lei no 4.390, que suprimiu o artigo 33 e eliminou o teto de 10% do capital registrado para remessas de lucros.1111. Em John W. F. Dulles (1983:52) encontramos uma interessante passagem a respeito da atuação de Campos para a revogação da Lei no 4.131 e promulgação da Lei no 4.390. "Em Brasília, Roberto Campos discutia com congressistas a necessidade de liberalizar a lei de remessa de lucros promulgada por Goulart. Apoiado em dados numéricos, ele demonstrou que a legislação vigente custava aos trabalhadores brasileiros 100 mil empregos e que a legislação liberal que vigorara entre 1954 e 1961 não apenas estimulara o ingresso de capitais, mas também dera margem a que a média da remessa anual de lucros fosse inferior à registrada no período precedente, de legislação restritiva. O ministro concluiu dizendo que 'errar é humano, mas persistir no erro é diabólico'."
O EMPRESARIADO NACIONAL
No decorrer do governo Castelo Branco, Roberto Campos convocou os empresários brasileiros para serem personagens centrais no combate à inflação e na promoção do desenvolvimento econômico. Isto mostra o quanto Campos via o empresário como o elemento renovador da sociedade, porém não significa que o economista não teve problemas com a classe empresarial, no caso o empresariado nacional, durante sua gestão no Ministério do Planejamento.
Embora tenham aderido quase incondicionalmente ao regime militar, os empresários nacionais discordaram da política econômica adotada pelo primeiro governo pós-1964.1212. O governo Castelo Branco adotou rigorosas medidas de arrecadação de impostos que resultaram em significativo aumento da receita federal, passando de 7,8% do PIB em 1963 para 8,3% em 1964, depois para 8,9% em 1965 e 11,1% em 1966. O governo também concentrou forças no controle do crédito do setor privado. Tais medidas provocaram descontentamento entre os empresários. Ver Skidmore (1988:75-76). O empresariado brasileiro desejava que o governo incrementasse o crescimento econômico e desenvolvesse um sistema de defesa para as empresas nacionais. Na verdade, os empresários queriam proteção contra o capital estrangeiro e que o governo se preocupasse menos com a estabilidade monetária.
A resposta de Roberto Campos aos empresários foi a seguinte: "Não é fácil mudar hábitos, nem atitudes. Muito menos quando estes hábitos e atitudes são de pessoas que tiraram proveito da inflação. O problema que se coloca, entretanto, não é o da conveniência imediata das poucas pessoas que se beneficiaram com a inflação. O grande desafio que o Governo, as classes empresariais e os assalariados têm a enfrentar não é o de poupar esta ou aquela empresa isoladamente, mas o de recriar condições para que a livre iniciativa tenha um sentido econômico e um sentido social em nosso País. O sentido econômico que a torne capaz de se desenvolver, sem crises e sem perturbações de estrutura, gerando empregos estáveis e riqueza verdadeiramente nacional. O sentido social que a torne capaz de dar resposta aos anseios, legítimos e inadiáveis, de integração das grandes massas urbanas e rurais aos benefícios do desenvolvimento econômico" (O Estado de S. Paulo, 25/04/1965).
O trecho citado mostra o quanto Roberto Campos pretendia mudar a mentalidade não só do empresariado nacional, mas de toda a sociedade brasileira. Esta mudança ocorreria a partir da introjeção de disciplina numa sociedade impregnada de irracionalismo. O empresariado brasileiro não entendeu dessa forma, mas não foi, assim como os trabalhadores assalariados, forte o bastante para fazer frente ao governo Castelo Branco.
NOTAS
E-mail do autor: marhenrique@aol.com Este texto é uma versão, ligeiramente modificada, do terceiro capítulo da tese de dissertação de mestrado do autor, defendida na PUC-SP em maio de 2000.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Maio 2003 -
Data do Fascículo
Jun 2000