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Determinação social da saúde numa comunidade quilombola: análise com a matriz de processos críticos

Social determination of health in a quilombola community: analysis with the critical processes matrix

Resumo:

Este artigo objetivou analisar a determinação social da saúde numa comunidade quilombola do agreste pernambucano. Trata-se de uma pesquisa-ação, na qual se realizaram dez entrevistas e seis encontros do Círculo de Cultura, sendo analisados por meio da Matriz de Processos Críticos. Os resultados mostram que ser saudável no quilombo passa pelo fortalecimento da integralidade em saúde e pelo viver dignamente. O artigo apresenta uma perspectiva analítica para a compreensão da determinação social nos quilombos.

Palavras-chaves:
Grupo com Ancestrais do Continente Africano; Saúde e Ambiente; Saúde da Comunidade

Abstract:

This article aimed to analyze the social determination of health in a quilombola community in the rural region of Pernambuco. It is an action-research, where ten interviews and six meetings of the Culture Circle were carried out, being analyzed through the Critical Processes Matrix. The results show that being healthy in the quilombo involves strengthening integrality in health and living with dignity. The article presents an analytical perspective for understanding the social determination in quilombos.

Keywords:
African Continent Ancestry Group; Health and Environment; Community Health

Introdução

Para debater saúde em comunidades quilombolas, é necessário pautar os conflitos étnico-raciais e a luta pela terra. Estes são marcadores de base para as desigualdades históricas vividas pelos quilombolas no Brasil (Rezende, 2015REZENDE, L. C. O cotidiano de uma comunidade quilombola: a (des)construção da integralidade na visão de moradores e equipe de saúde. 2015. 109 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.). O processo de formação desses povos e das histórias de vida das pessoas é definidor das possibilidades de vida de cada um e formador das características das existências individuais e coletivas, inclusive relacionadas à saúde (Fleury-Teixeira; Bronzo, 2010FLEURY-TEIXEIRA, P.; BRONZO, C. Determinação social da saúde e política. In: NOGUEIRA, R. P. (org.). Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010. p. 37-59.).

Os quilombolas carregam uma história de privação, injustiça e invisibilidade perante a sociedade e o poder público, convivendo com processos que são determinantes à sua saúde, estando estes relacionados com a história do seu povo, suas histórias de vida e seu território. Estão, assim, subsumidos a um sistema excludente, que não respeita sua cultura nem modo de vida e, ainda, lhes impõe outra forma de viver em parâmetros ocidentais modernos e coloniais.

Mesmo diante desse cenário de injustiça, os quilombolas resistem, buscam manter suas redes de solidariedade, suas tradições e a relação com a natureza. Essas características históricas, sociais e culturais estão relacionadas aos processos de adoecimento e saúde da população quilombola, produzindo um movimento dialético, sendo aqui compreendido com base no referencial teórico e metodológico da Determinação Social da Saúde (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta detransformación hacia una nueva salud pública (salud coletiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellin, v. 31, n. 1, p. 13-27, 2013.).

Esse referencial colabora com a compreensão dos processos protetores e destrutivos da saúde em relação aos 4 “S” da vida propostos por Breilh (2017BREILH, J. El desafío de construir un mundo agrario sustentable, solidario, soberano y seguro (las cuatro “S” de la vida). In: BRAVO, E.; MOREANO, M.; YÁNEZ, I. (org.). Ecología política en la mitad del mundo: luchas ecologistas y reflexiones sobre la naturaleza en el Ecuador. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2017. p. 299-312.). Os quatro “S” são elementos que propõem uma vida digna, ou seja, a sustentabilidade, a soberania, a solidariedade e a (bio)segurança/viver saudável devem ser construídas nos espaços onde se produz saúde, ou seja, nos espaços de produção, consumo, organização, construção da cultura e nas relações com a natureza, esses espaços se reproduzem nas dimensões: singular, particular e geral (Breilh, 2014BREILH, J. Epidemiología crítica latinoamericana: raíces, desarrollos recientes y ruptura metodológica. In: MORALES, C.; ESLAVA, J. C. (org.). Tras las huellas de la determinación: memorias del Seminário Interuniversitario de Determinación Social de la Salud. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014.).

O primeiro “S”, a sustentabilidade, deve ser visto à luz dos direitos humanos e da natureza, de forma a romper com as visões unilaterais e eurocêntricas, mantendo o equilíbrio entre o passado, o presente e o futuro, gerando condições para que os socioecossistemas possam amparar “una vida plena, digna, feliz y saludable”1 1 Tradução: “uma vida plena, digna, feliz e saudável”. (Breilh, 2019BREILH, J. Ciencia crítica para evaluación de impactos en la salud colectiva - ecosistemas (una operacionalización de las 4 “S” de la vida). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, n. 2, 2019. No prelo., p. 7).

O segundo “S”, a soberania, se faz presente quando há processos coletivos e autônomos nos espaços comunitários, com tomada de decisões próprias, possuindo um território em conveniência do bem comum (Breilh, 2019BREILH, J. Ciencia crítica para evaluación de impactos en la salud colectiva - ecosistemas (una operacionalización de las 4 “S” de la vida). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, n. 2, 2019. No prelo.). O “S’’ da solidariedade nos traz a compreensão de uma estrutura social e produtiva, pautada na vida e no bem comum.

O último “S” para uma vida saudável é a (bio)segurança, compreendida como modos de vida consolidados e aperfeiçoados em diferentes espaços socioculturais que proporcionem qualidade de vida (Breilh, 2019BREILH, J. Ciencia crítica para evaluación de impactos en la salud colectiva - ecosistemas (una operacionalización de las 4 “S” de la vida). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, n. 2, 2019. No prelo.).

Assim, este artigo se propõe a analisar, por meio da matriz de processos críticos, a determinação social da saúde em uma comunidade quilombola do agreste pernambucano. A aplicação da matriz destina-se ao monitoramento e à investigação para a transformação dos processos críticos, sejam eles destrutivos ou de proteção à vida, tendo por objetivo a redefinição e a integração do espaço social, a fim de promover mudanças nestes e, consequentemente, no modo de reprodução da vida (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta detransformación hacia una nueva salud pública (salud coletiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellin, v. 31, n. 1, p. 13-27, 2013.).

1. Metodologia

Desenvolveu-se uma pesquisa-ação, de caráter analítico, com abordagem qualitativa no território da Comunidade Quilombola do Castainho, localizada na zona rural de Garanhuns, município do agreste pernambucano, Brasil.

Foram realizadas dez entrevistas em profundidade e seis encontros do Círculo de Cultura (CC), sendo esta uma ferramenta metodológica freiriana que coloca os sujeitos-participantes da pesquisa como protagonistas dos encontros desenvolvidos (Monteiro; Vieira, 2010MONTEIRO, E. M. L. M.; VIEIRA, N. F. C. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 63, n. 3, maio/jun. 2010.). Os encontros aconteceram no período de março a dezembro de 2018, tiveram duração média de duas horas e foram gravados em áudio, com o consentimento dos sujeitos participantes.

O primeiro encontro se deu para o levantamento de temáticas, que é a ação em que a facilitadora e os membros do CC elencaram os temas centrais a serem trabalhados: Racismo e Saúde; Mãe Terra e Saúde; Práticas Tradicionais e Saúde; Cultura e Saúde. Esses temas representam o contexto no qual os participantes vivem, sendo base para a realização dos encontros posteriores. No sexto encontro foram realizadas a devolutiva e a validação das análises gerais, bem como a avaliação do processo.

A composição dos participantes do estudo foi estabelecida por amostra intencional, com 14 sujeitos participantes, tendo seis participado das entrevistas em profundidade e do CC, quatro participaram apenas das entrevistas e quatro participaram somente do CC. Os participantes eram metade do sexo feminino e metade do sexo masculino, em todos os métodos de coleta. Para garantir o anonimato dos participantes, adotamos codinomes que remetem a guerreiras e guerreiros quilombolas, orixás e divindades africanas.

Para interpretação e análise dos dados, utilizamos como ferramenta a Matriz de Processos Críticos proposta por Breilh (2019BREILH, J. Ciencia crítica para evaluación de impactos en la salud colectiva - ecosistemas (una operacionalización de las 4 “S” de la vida). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, n. 2, 2019. No prelo.) adaptada aos objetivos deste estudo, tomando como base os quatro “S”, compreendidos como princípios fundamentais para uma sociedade saudável.

Inicialmente, realizamos a transcrição literal de cada entrevista e de cada encontro do CC. Em seguida, os dados foram categorizados e identificados os processos críticos associados às dimensões singular, particular e geral em relação aos quatro “S”, possibilitando a construção da Matriz (Quadro 1).

Quadro 1.
Matriz de Processos Críticos

Nesse estudo, a dimensão mais simples (singular) refere-se aos indivíduos e às famílias quilombolas. Subindo a complexidade, teremos a comunidade quilombola (particular) e, por fim, no que concerne à dimensão mais complexa (geral), nos referimos ao contexto político e econômico em que a comunidade se insere, observando as políticas de Estado e as lógicas globais de mercado.

É na relação dialética, de subsunção e autonomia relativa, que vão se construindo processos protetores e destrutivos à saúde, em que a dimensão mais simples se desenvolve sob subsunção em relação à mais complexa, porém aquela possui autonomia relativa sobre esta (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta detransformación hacia una nueva salud pública (salud coletiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellin, v. 31, n. 1, p. 13-27, 2013.).

O estudo foi submetido ao comitê de ética e pesquisa, sendo aprovado com número do Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 83178018.0.0000.5190.

2. Resultados e discussão

A saúde quilombola está relacionada à história dos povos negros no Brasil, às vivências e às lutas travadas nos diversos quilombos espraiados por todo o país. Nesses territórios se expressam seus modos e estilos de vida, as questões culturais e raciais e a relação desse povo com a natureza. No quilombo do Castainho, a saúde é compreendida em sua complexidade, onde identificamos três principais temáticas que estão relacionadas ao viver digno e com a saúde no quilombo. São elas: a luta pelo território, a defesa da cultura e o combate ao racismo.

Essas temáticas são importantes elementos para a compreensão da determinação social da saúde na Comunidade Quilombola do Castainho e colaboram com a construção de uma vida digna na comunidade. Dessa forma, a Figura 1 apresenta como essas temáticas se relacionam aos quatro “S” da determinação social da saúde no quilombo do Castainho.

Figura 1.
Esquema teórico para a construção da saúde no quilombo Castainho.

O esquema relaciona os quatro “S” à realidade quilombola, de maneira que as questões referentes à raça e ao modo de vida camponês são fundamentais para a compreensão da saúde e de seus processos protetores e destrutivos. Dessa forma, podemos destacar que: a sustentabilidade passa pela luta pelo território; a soberania quilombola só é possível por meio da defesa de sua cultura; a solidariedade se fortalece por intermédio de atitudes e ações coletivas antirracistas. Esses elementos conformam um ambiente saudável, base fundamental para um viver digno.

3. Direito ao território e à sustentabilidade no Castainho

Ao olharmos a sustentabilidade na comunidade do Castainho, observamos que na dimensão geral o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Um Milhão de Cisternas) aparece como processo protetor da saúde e da vida na comunidade. Instituído pela Lei n. 12.873/2013 e regulamentado pelo Decreto n. 8.038/2013, o programa possibilitou a construção de cisternas para famílias rurais de baixa renda que sofrem pela falta regular de água e com a seca, sendo os povos e as comunidades tradicionais prioridades para o programa.

Dessa forma, o armazenamento de água pelos quilombolas foi melhorado, pois foram construídas cisternas de placas ao lado das residências, tendo capacidade de armazenar 16 mil litros de água potável.

Essas iniciativas do governo federal, no ano de 2013, amenizaram as dificuldades sofridas pela população quilombola referentes, principalmente, ao armazenamento de água. Porém, nos períodos de estiagem, a água acumulada nas cisternas não supre o consumo familiar, precisando, assim, recorrer à compra de caminhões-pipa para abastecimento. Esse é um dos pontos identificados como destrutivos da saúde, pois a compra da água, para a maioria, onera o orçamento familiar e por vezes impossibilita o acesso a um direito fundamental: a água.

Outro processo destrutivo encontrado refere-se ao riacho do Flamengo, um dos afluentes do rio Mundaú, que corta o território do Castainho, porém este se encontra poluído desde suas nascentes localizadas na cidade de Garanhuns, passando pelo Castainho com águas já impróprias para o consumo. Essa poluição se deve, essencialmente, à inadequação do saneamento básico da cidade de Garanhuns.

De acordo com o Relatório Técnico da Agência Estadual de Meio AmbienteAGÊNCIA ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE (PE). Relatório técnico: GARA. Unidade integrada de gestão ambiental. Garanhuns: CPRH, 2019. (CPRH), emitido em 16 de outubro de 2019 pela Unidade Integrada de Gestão Ambiental - Garanhuns, o rio Mundaú recebe grande carga poluidora de esgotos domésticos e industriais da região.

[…] Tudo que tem de seboseira, de nojeira dos hospitais, das residências, dos mercados, é jogado nos esgotos e os esgotos transfere pra nossa nascente. E tudo que cai na nascente é doença. Aí por muito você toma um medicamento e não resolve, por muito que você se alimente bem, não resolve. Aquele ar vem te prejudicar né... (Zumbi).

A fala de Zumbi nos mostra o quanto a poluição do rio atinge a saúde dos moradores do Castainho, sendo esse problema frequentemente relatado pelos participantes da pesquisa, os quais mesmo tendo um rio cortando suas terras convivem com a escassez de água devido à poluição. Essa situação pode ser definida como racismo ambiental, no qual os impactos ambientais sempre são sofridos primeiro pelas populações quilombolas e indígenas, ou população negra periférica (Souza, 2015SOUZA, A. S. Direito e racismo ambiental na diáspora africana: promoção da justiça ambiental através do direito. Salvador: EDUFBA, 2015.).

Mesmo diante de tais processos destrutivos, encontramos também processos protetores relacionados à sustentabilidade, como a coleta seletiva realizada pelo grupo de mulheres “Guerreiras Quilombolas”, formado por mulheres da comunidade que realizam a coleta de materiais recicláveis no Castainho.

A gente tem um trabalho, trabalho voluntário aqui na comunidade de recolher material reciclável. [...] Sempre tive vontade de recolher esse material reciclável da natureza né, porque esse material ele é muito prejudicial à natureza e aí a gente recolhendo esse material [...] a natureza vai respirar melhor […] (Aqualtune).

Essa iniciativa das mulheres beneficia toda a comunidade, pois, como dito por Aqualtune, é uma forma de cuidar da natureza e, com o recurso das vendas, construir algo na comunidade, como o salão paroquial. Essa ação reduziu a quantidade de lixo na comunidade, bem como as queimadas de lixo nos quintais das casas.

Um elemento importante na discussão da sustentabilidade é o direito ao território quilombola, fundamental para a produção e o sustento das famílias. No ano 2000, Castainho recebeu a titulação de remanescente de quilombo da Fundação Palmares e registrou parte de suas terras (183 hectares) em cartório, porém a extensão territorial reivindicada inicialmente foi de cinco mil hectares, que foi sendo reduzida, e apenas 183 foram oficializados pelo Decreto de declaração da área como de interesse social, emitido em 2009.

No entanto, desses 183 hectares, 40 ainda estavam sob o domínio de não quilombolas; o processo de desintrusão só foi iniciado em 2012. Muitos processos de desapropriação ainda estão em andamento, colocando a comunidade em situação de insegurança devido às ameaças sofridas e aos conflitos com os fazendeiros (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2010ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SERGIO AROUCA. Mapa de conflitos . 2010. Disponível em: Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pe-comunidade-quilombola-de-castainho-luta-pela-regularizacao-fundiaria-de-seu-territorio-e-pela-garantia-de-direito-a-vida-de-seus-moradores . Acesso em: 10 out. 2019.
http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?...
).

Apesar de o Decreto n. 4.887, de 2003, garantir o território como um direito quilombola (Brasil, 2003BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília: Presidência da República, 2003.), pouquíssimas comunidades no Brasil tiveram seus territórios demarcados. Com o crescimento do agronegócio, cada vez mais comunidades campesinas e tradicionais são desterritorializadas e vulnerabilizadas, tornando os territórios rurais e os bens naturais mercadorias a serviço do neoliberalismo.

Essa lógica é contrária à relação construída pelos quilombolas com a natureza, a qual está intimamente articulada com a sua forma de viver e sua cultura que geram no cotidiano seus modos de vida comunitários. Nesse sentido, para os quilombolas, a natureza e a terra são muito mais que espaços de trabalho, são os espaços de vida e de reprodução da vida, desenvolvendo uma economia de natureza não capitalista, baseada no valor de uso.

4. Liberdade cultural e soberania no quilombo

O trabalho na agricultura se configura como um elemento de soberania e como um processo protetor da saúde dos quilombolas. Esteve presente durante toda a história de ancestralidade quilombola, sendo essa a principal atividade econômica da comunidade e de manutenção da vida. São produzidos diversos cultivos, porém a mandioca, além de ser o principal produto, possui uma simbologia relacionada à soberania e à possibilidade de reprodução da vida comunitária, como podemos ver na fala de Nagô:

[...] Eu criei meus fios com a mandioca. [...] Eu trabalhei na feira com a goma, a massa puba, o pé de moleque e a tapioca… [...] Quando eu saí da feira, deixei minha menina e até hoje ela tá lá. [...] E hoje eu ainda planto a mandioca […] Me sinto muito orgulhoso sobre a planta mandioca, sobre o trabalho. Agora isso na casa de farinha minha mulher tirava a goma mais a menina e mais tarde eu vendia, de primeira qualidade! Era garantida! Porque quem fazia todo trabalho [...] era minha família dentro de casa (Nagô).

Muitos foram os relatos da importância da mandioca entre os participantes do estudo, pois é por meio do cultivo e da transformação da mandioca na casa de farinha e da venda dos seus produtos, nas ruas e nas feiras da cidade, que as famílias conseguiram ter uma renda. Foi por meio da mandioca que foi possível aos seus filhos estudarem e, em alguns casos, acessarem o ensino superior, como relatado a seguir por Aqualtune:

Eu nasci e desde que eu me entendo por gente a minha mãe já fazia farinha, a gente se criou tudinho vendendo na feira, fazendo farinha, eu ajudando minha mãe, vendendo nas portas com o balaio na cabeça [...[. E aí veio passando por geração e hoje eu continuo né, trabalhando […] e minha filha me ajudando e eu acredito que é ela que vai tocar [...] o trabalho da roça e da mandioca. […] E eu me sinto muito bem fazendo esse trabalho, porque foi com que eu sustentei toda minha família né, até hoje. [...] a minha primeira filha ela… passou no vestibular [...] e foi estudar fazer é… Direito […]. Eu tenho um orgulho imenso de ver minha filha se formando na faculdade… Através da feira né, porque era o único financeiro que a gente tinha, era a feira (Aqualtune).

A mandioca faz parte da cultura quilombola na comunidade do Castainho e a compreensão dessa cultura é fundamental na discussão da soberania, pois um povo só pode ser considerado soberano se puder reproduzir livremente sua cultura e modos de vida. Os trabalhos na casa de farinha produzem um modo de trabalho que integra produção agrícola, relações comunitárias, formação cultural e uma forma de vida partilhada no território.

Na dimensão geral, encontramos programas e ações criados no intuito de proteger e fortalecer a cultura quilombola, bem como de promover a qualidade de vida dessa população e reduzir as desigualdades raciais. Como encontramos no Programa Brasil Quilombola (PBQ) (Brasil, 2004BRASIL. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2004.), que possui como uma de suas diretrizes a ênfase nos métodos de produção agroecológicos para a subsistência e a produção de renda nas comunidades quilombolas, além de colaborar com a racionalização do uso dos recursos naturais.

Esse programa trata ainda da regularização da posse da terra e do fortalecimento da identidade cultural e política quilombola, estimulando seu protagonismo nos espaços de discussão e deliberação de políticas de seu interesse (Brasil, 2004BRASIL. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2004.).

Outro elemento presente na dimensão geral e que contribui com a proteção da soberania quilombola é a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Decreto n. 5.813, de 22 de junho de 2006. Aprova a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: Ministério da Saúde, 2006.), a qual tem como diretrizes a promoção e o reconhecimento das práticas populares de uso de plantas medicinais e remédios caseiros, práticas essas bastante exercidas na comunidade quilombola do Castainho.

As práticas tradicionais em saúde, como o uso de plantas medicinais e a atuação das rezadeiras, bem como as demais expressões culturais presentes no território do Castainho, como o samba de coco, são elementos de resistência e reprodução do modo de vida, que contribuem para a soberania das formas de existir e produzir o quilombo do Castainho.

A busca pela soberania se expressa na constante luta pelo território presente na história dos quilombolas, os quais desde o período colonial construíam redutos de resistência, como espaços para invenções de modos de vida e formas culturais de luta contra o regime escravocrata. Assim, os quilombolas carregam consigo a ancestralidade de um povo resiliente, que resistiu e lutou em busca de sua liberdade. Com a comunidade do Castainho não é diferente. Eles são descendentes dos negros que formaram um dos mais importantes quilombos da história, o Quilombo dos Palmares, símbolo de luta e resistência negra no país e no mundo.

Essa ancestralidade que carrega a luta por liberdade e pelo direito ao território, a resistência e o combate ao racismo, o trabalho como bem coletivo e o forte vínculo com a natureza é elemento-base para a produção de saúde no território em estudo. Esse elemento leva ao sentimento de pertencimento ao território e à comunidade. Essa força e coletividade contribuem para a autonomia relativa da comunidade perante os processos destrutivos que levam ao enfraquecimento e à perda da soberania.

Porém, o racismo, como processo estruturante no modo de organização do Estado brasileiro, emerge nas vidas dos quilombolas, sendo um importante elemento destrutivo da saúde e da vida na comunidade. De acordo com Barata (2009BARATA, R. B. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.), os marcadores raciais possuem importante impacto sobre a saúde e o acesso a políticas públicas, incluindo os serviços de saúde. A autora afirma que alguns problemas e comportamentos de saúde apresentam uma associação maior com a exposição às situações de racismo e negligência de direitos básicos vividas por povos negros e indígenas.

Outro processo destrutivo da soberania refere-se às consequências geradas pelo modelo biomédico, o qual está presente nas práticas dos profissionais de saúde e na maneira hegemônica de se pensar o processo saúde-doença, em que um é compreendido como ausência do outro. Como dito por Clarindo (2014CLARINDO, M. F. Medicina popular e comunidades rurais da região da Serra das Almas, Paraná: o amálgama cosmo-mítico-religioso tradicional. 2014. 126 f. Dissertação (Mestrado em Gestão do Território: Sociedade e Natureza) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2014.), esse modelo inviabiliza outras formas de se olhar para a saúde, não a restringindo a seus processos orgânicos individuais, mas abrangendo aspectos complexos, como o modo de vida, as relações comunitárias, o uso de outras tecnologias do cuidado que valorizam as formas de viver experienciadas de maneira coletiva, por exemplo, o uso de plantas medicinais, rezas, raizadas, conversas cotidianas e práticas coletivas.

Dessa forma, a negação dessas práticas leva ao enfraquecimento e, muitas vezes, ao desaparecimento delas nos quilombos. Como ocorreu em relação às parteiras na comunidade de Castainho, que hoje não conta mais com as práticas tradicionais de partejar e parir, pois as parteiras foram deixando seu fazer devido a ameaças sofridas pelos saberes técnicos-científicos, como se sua prática fosse ilegal.

Um elemento importante nesse debate é o papel colonizador das igrejas, as quais possuem grande influência em seus seguidores, levando, muitas vezes, à fragilização de elementos da cultura quilombola, pois a prática da reza para a cura e a dança afro, entre outras práticas presentes no território do Castainho, possuem suas raízes na cultura africana que, historicamente, foi negada e marginalizada, sendo imposta a cultura do colonizador entre os povos negros e indígenas.

O enfraquecimento da cultura no Castainho ocasiona a perda da soberania, pois é por meio dela que o povo quilombola resiste, levando à luta pela reparação social e à ampliação de direitos. O modo de viver dos quilombolas está diretamente relacionado às suas práticas culturais, políticas e sociais.

5. Postura antirracista e a construção da solidariedade

A comunidade do Castainho possui uma Associação Quilombola atuante e articulada com movimentos sociais e ONGs, tendo ainda parcerias firmadas com instituições de ensino presentes na região.

Essas articulações também se dão dentro do próprio movimento quilombola e entre comunidades, que se apoiam e se juntam em busca da conquista de direitos. A fala de Zumbi a seguir mostra a solidariedade que existia entre as comunidades, quando as casas eram construídas com taipa:

[…] Eles se planejava, num era como hoje que tem celular, tem num sei o que... Internet e não sei o que lá, eles se comunicava, um vinha aqui, saía de Alagoas andando a pés de lá pra cá, vinha aqui, fazia um comunicado, aí voltava pra lá e dizia “oh daqui a quinze dias vai ter a sambada de coco pra concluir a casa de fulano que construirão a casa”. Pronto, aí vinha um rebanho de lá (Zumbi).

Hoje, no Castainho, não se constroem mais casas de taipa, porém o apoio entre as comunidades continua. Este pode ser observado por meio da partilha de produtos coletados dos cultivos entre vizinhos, familiares e amigos.

Essa rede de colaboração proporciona um sentimento de coletividade e de dádiva que, de acordo Martins (2005MARTINS, P. H. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 73, p. 45-66, 2005.), aponta que o valor da relação deve ser superior ao valor das coisas, sendo o simbolismo fundamental para a vida social. Dessa forma, as antigas maneiras de estabelecimento de vínculos e alianças entre os sujeitos não são substituídas pela lógica mercantil moderna, continuando presentes na comunidade.

Não só alimentos e produtos são partilhados, podemos ver a solidariedade também nas práticas de cuidado realizadas na própria comunidade por meio da reza e do uso de plantas medicinais. Conhecimentos que circulam no dia a dia e não se apresentam em posse individual de ninguém, ao contrário, encontram-se como saberes coletivos. Esses são alguns exemplos da relação solidária construída na comunidade. A fala de Ganga Zumba a seguir mostra a solidariedade presente também nas relações, no respeito à família em luto:

Quando morre uma pessoa aqui, aí não fica só a família de luto né, a família fica de luto mais o pessoal que conhece. Por exemplo, o pessoal não liga o som, [...] não demonstram alegria, pela família que tá lá passando por um momento difícil né [...] a gente ainda mantém uma cultura aqui de ter respeito pelo sentimento do próximo (Ganga Zumba).

O estudo realizado por Chagas (2001CHAGAS, M. F. A política do reconhecimento dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 7, n. 15, p. 209-235, 2001.) no Quilombo de Ivaporunduva, no município de Eldorado (São Paulo), mostra como a rede de solidariedade construída nesse quilombo é uma forma de organização interna. A compreensão do território quilombola se dá a partir da percepção da história do grupo, das relações de parentesco, do entendimento de suas religiosidades, das ritualidades festivas, bem como de suas relações de lealdade e de solidariedade.

Tem um lugar que a gente ainda pode chegar e ficar embaixo de qualquer pé de árvore né, porque a gente tem necessidade de fazer isso, e a gente, assim [...] esse direito que deixaram pra gente né... Porque a gente não plantou, se plantar agora daqui a não sei quantos anos é que vai ficar embaixo, chupar um caju... Aí quem fez isso lá trás, ele não usufruiu, quem vai usufruir é a gente, então também isso é saúde. É saber que alguém vai precisar um dia, não você vai precisar, talvez não chegue nem a usufruir daquilo ali né, mas vai ter alguém que precise né (Acotirene).

Acotirene traz em sua fala a importância da solidariedade, não apenas pensando no presente, mas também nas gerações futuras, objetivando a manutenção e o equilíbrio dos recursos naturais e comunitários. Há na fala dela um sentimento de ligação ancestral, de vínculo familiar e comunitário que não se desenlaça e produz saúde: “[…] Aí quem fez isso lá trás, ele não usufruiu, quem vai usufruir é a gente, então também isso é saúde” (Acotirene).

Os quilombos se caracterizam por questões fundamentalmente referentes à sua territorialidade, onde há o predomínio do uso comum de espaços, tendo estes diferentes formas de ocupação e uso com base nas relações de reciprocidade entre parentes e vizinhos, que possuem uma mesma referência histórica construída nas vivências e nos valores compartidos. Com essa compreensão, Nascimento (1980NASCIMENTO, A. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. 281 p., p. 263), em seu livro O quilombismo, define quilombo como “[…] reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”.

A organização coletiva é um elemento importante, pois colabora com a garantia de direitos e com a busca por melhorias para a comunidade. Dessa forma, encontramos na comunidade a organização de seu povo por meio da atuação da Associação Quilombola do Castainho, que representa a comunidade nos diversos espaços de luta e discussão de interesse do coletivo. Espaços de organização como este propiciam aos moradores da comunidade um sentimento de proteção comunitária e de identificação com o coletivo.

Porém, esse sentimento não é unânime, existe entre alguns uma descrença na luta por direitos e no papel desempenhado pela Associação Quilombola, os quais não valorizam o trabalho realizado pelas lideranças:

Quando tem alguma coisa errada a culpa é da diretoria, quando chega alguma coisa de bom, não é... É obrigação de vocês (Ganga Zumba).

A fala de Ganga Zumba expressa algo que, segundo ele, é frequente entre alguns moradores: o descrédito relacionado ao trabalho realizado pelos representantes da comunidade. Isso leva à desmotivação daqueles que estão na luta por melhorias na comunidade e à desunião entre os moradores. Tal fato mostra a complexidade do processo de construção comunitária que não é uníssona, mas apresenta suas contradições, tendo nas formas de dominação historicamente arraigadas nos territórios vias de contramão à luta política e social.

Outro elemento importante na destruição da solidariedade no Castainho está relacionado com o racismo estrutural e a cultura conservadora e colonial, ainda fortemente presentes no município de Garanhuns, que é reconhecido por ser a Suíça pernambucana devido ao clima frio durante o inverno, sendo divulgada uma imagem da cidade ligada à cultura branca, europeia e colonial, que nega e marginaliza os diversos quilombos presentes em seu território, ou melhor, que estão no território antes mesmo da formação do município.

Essa cultura presente no município repercute na vida dos quilombolas que lidam desde muito cedo com o racismo (estrutural, institucional e individual) em seu dia a dia, inclusive dentro da própria comunidade, sendo esse um reflexo da sociabilidade entre os sujeitos, o que afeta a vida dos indivíduos e das famílias, provocando baixa autoestima e processos de negação de sua cultura e identidade.

Essas questões que remetem aos conflitos existentes no interior da própria comunidade são importantes para a compreensão de sua dinâmica, rompendo com a visão folclorizada da comunidade que, de acordo com Leite (2000LEITE, I. B. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, Lisboa, v. 4, n. 2, p. 333-354, 2000.), enaltece a solidariedade e a resistência e menospreza os conflitos, que são importantes agentes de transformação e mudança, presentes na coletividade. A coletividade, segundo a autora, é compreendida por meio de um pleito que é comum a todos e expressa uma luta unificada por dignidade e respeito.

6. Viver saudável e digno no quilombo

Algumas políticas públicas contribuem com o fortalecimento de processos protetores à saúde nas comunidades quilombolas, por exemplo, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Decreto n. 5.813, de 22 de junho de 2006. Aprova a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: Ministério da Saúde, 2006.) e as Práticas Integrativas e Complementares - PICs (Secretaria de Atenção à Saúde, 2006SECRETARIA de Atenção à Saúde. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC-SUS). Brasília: Ministério da Saúde , 2006. 92 p.) -, que colaboram com o fortalecimento dessas formas de cuidado nos territórios quilombolas.

Outras políticas, como a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta - PNSIPCF (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.866, de 2 de dezembro de 2011. Institui a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Diário Oficial da União, Brasília: Ministério da Saúde , 2 dez. 2011.) - e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN (Brasil, 2013BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política nacional de saúde integral da população negra: uma política para o SUS. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.) -, trazem elementos para a discussão da saúde da população quilombola com diretrizes voltadas à promoção da saúde, o olhar para a integralidade no cuidado e o combate ao racismo institucional em saúde.

O acesso dos moradores do Castainho à rede de serviços de saúde é facilitado pela Unidade de Saúde da Família que cobre o território. Porém, muitas são as queixas da população em relação ao atendimento da equipe de saúde, pois é comum os moradores não terem seus problemas de saúde resolvidos. Os entrevistados relataram não possuírem vínculo com os profissionais, existindo ainda relatos de racismo institucional presente na Unidade de Saúde, o que contribui para as desigualdades raciais, interferindo negativamente no processo saúde-doença-cuidado na comunidade, indo de encontro ao que preconiza a PNSIPN.

As práticas tradicionais em saúde desenvolvidas na comunidade muitas vezes não são respeitadas pelos profissionais, que as negam e ainda recriminam seu uso. Como mostra a seguinte fala de Zumbi:

[...] [Um profissional de saúde] quando alguém fala que tá tomando chá de plantas medicinais, ele pergunta logo: “Vocês acham que isso resolve?”.

A formação e a prática desses profissionais estão pautadas pelo modelo biomédico de saúde, que tem como foco a doença e não o usuário como um sujeito integral, dessa forma, desrespeita a cultura e os costumes quilombolas.

Esse modelo ganha espaço e se torna hegemônico com o crescimento do sistema capitalista e neoliberal, que adota o modelo gerencial da administração pública e objetiva a produtividade. Essa lógica produtivista mede a saúde da população pela quantidade de serviços e produtos médico-hospitalares consumidos, tratando o usuário do sistema como um consumidor de serviços. Isso ocorre sem que haja incidência em relação às condições de vida e de saúde da população e sem necessariamente atender às necessidades básicas do cuidado (Gomes; Bezerra, 2014GOMES, W. S.; BEZERRA, A. F. B. Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ): reflexões à luz da teoria antiutilitarista. In: MARTINS, P. H. et al. (org.). Produtivismo na saúde: desafios do SUS na invenção da gestão democrática. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2014. p. 81-97.).

[...] o próprio profissional, a forma como ele atende a gente, nem olha pra gente e acha que já atendeu. Já passa um medicamento e aí não fomos atendidos […].

Essa fala, além de mostrar a insatisfação do usuário com o atendimento na Unidade de Saúde, remete ao racismo institucional. Este diminui as possibilidades de diálogo e de vínculo dos usuários com os profissionais, interferindo na autoestima e, principalmente, na saúde mental dos usuários.

O racismo institucional colabora com o agravamento da exclusão social, pois o setor de saúde que deveria estar contribuindo para a redução das vulnerabilidades, por meio do racismo, diminui o diálogo e afasta dos serviços a população negra, no caso a quilombola, ampliando as barreiras de acesso e a vulnerabilidade dessa população (Kalckmann et al., 2007KALCKMANN, S. et al. Racismo institucional: um desafio para a eqüidade no SUS? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 146-155, 2007.).

Considerações finais

Só é possível falar de vida saudável se tivermos uma sustentabilidade, soberania e solidariedade consolidadas, pois essas são condições para a estruturação daquela. Dessa forma, promover a sustentabilidade no Castainho é fazer a defesa do território, sendo este o local de produção de saúde e reprodução do modo e dos estilos de vida quilombola. Separar o quilombola do seu território é tirar dele seu modo de vida, é lhe negar a condição de existência.

A soberania no Castainho é potencializada com o fortalecimento da cultura e da identidade quilombola no território, sendo fundamental questionar o saber hegemônico, desconstruindo os preconceitos e o racismo colocados sobre seus saberes ancestrais. A cultura é elemento essencial no fortalecimento do povo quilombola; é por meio dela que os quilombolas se afirmam, constroem sua identidade e coletividade.

A promoção da solidariedade se dá por meio do fortalecimento da Associação Quilombola e dos grupos e coletivos organizados na comunidade, construindo um sentimento de coletividade e proteção. Assim, compreendemos que a construção de um viver saudável no Castainho está relacionada à promoção dos elementos protetores da saúde em cada dimensão estudada, buscando o fortalecimento da integralidade em serviços e sistema de saúde, respeitando as práticas tradicionais em saúde e combatendo o racismo, o qual aumenta as iniquidades sociais do povo quilombola, restringindo seu acesso a serviços e políticas públicas.

Para a construção de um viver digno no quilombo é necessário que este tenha uma cultura fortalecida e respeitada, onde seu povo se reconheça no coletivo e na identidade quilombola, onde as pessoas tenham direito ao território e estejam inseridas numa sociedade antirracista, conforme apresentado na Figura 1. Esta se apresenta como uma perspectiva analítica para o entendimento da determinação social da saúde em territórios quilombolas, o que contribui com a compreensão da saúde, da doença e do cuidado de forma complexa e integrada.

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  • 1
    Tradução: “uma vida plena, digna, feliz e saudável”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
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