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Participação social e esfera pública: desafios na relação com conselhos e movimentos sociais

Social participation and the public sphere: challenges in the relationship with councils and social movements

Resumo:

A partir da análise de elementos conjunturais que explicitam as inflexões da crise do capital em curso na vida social, o presente Editorial problematiza o “lugar” que a participação social, em suas diferentes formas, ocupa na (re)construção da esfera pública. Em diálogo com autores(as) que examinam a conjuntura e temas como participação, associativismo, controle social, direitos e democracia, o texto arrola uma série de desafios postos não apenas aos(às) assistentes sociais, mas também a todos(as) que se posicionam no horizonte das emancipações: política e humana.

Palavras-chave:
Participação social; Democracia; Controle social; Direitos

Abstract:

Based on the analysis of conjunctural elements that explain the inflections of the ongoing Capital crisis in social life, this Editorial problematizes the “place” that social participation, in its different forms, occupies in the (re)construction of the public sphere. In dialogue with authors who examine the situation and themes such as participation, associations, social control, rights and democracy, the article lists a few of challenges posed not only to social workers, but to everyone who positions themselves on the horizon of emancipation: political and human.

Keywords:
Social participation; Democracy; Social control; Rights

Introdução

É incontestável afirmarmos que o presente é tempo de uma aguda crise civilizatória. Seus traços e consequências fazem dela a mais ampla e longeva já vivenciada na história. É uma crise que extrapola os domínios da economia e da política e atinge o campo concreto das relações sociais, tornando ainda mais acirradas as disputas em torno do papel do Estado e das políticas públicas, inaugurando uma “nova razão do mundo” (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.). Nesse contexto, esfacelam-se as instituições que, em tese, deveriam zelar pelas garantias do funcionamento pleno do Estado Democrático de Direito, afinal são essas garantias que permitem aos(às) cidadãos(ãs) saberem como se vive em sociedade, como se usufrui do direito ao território e como uma sociedade pode planejar seu futuro.

A crise continuada do capital - sistêmica, orgânica e estrutural - e a fragilização do papel dos Estados como reguladores e promotores de uma pretensa estabilidade social têm levado muitos analistas a afirmarem que as democracias mundiais, mesmo as mais consolidadas, estão em risco (Chomski, 2016CHOMSKI, N. A democracia como conhecemos será coisa do passado. [Entrevista cedida a] Democratize: Jornalistas para a Democracia, 2016. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/democratize-m%C3%ADdia/para-noam-chomsky-a-democracia-como-conhecemos-ser%C3%A1-coisa-do-passado-6c1b4f21cea4 . Acesso em: 1º ago. 2024.
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; Levitsky; Ziblatt, 2018LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. São Paulo: Zahar, 2018.; Frei Betto, 2023FREI BETTO. A democracia em risco. Instituto de Humanas Unisinos, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/625772-a-democracia-em-risco-artigo-de-frei-betto . Acesso em: 1o ago. 2024.
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; Fraser, 2024FRASER, N. Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. São Paulo: Autonomia Literária, 2024.; Mattei, 2023MATTEI, C. E. A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. São Paulo: Boitempo, 2023.).

Se, por um lado, as democracias burguesas respiram por aparelhos, por outro, as perspectivas de se colocar como alternativa uma democracia socialista como nova ordem mundial (ou mesmo local) se torna ainda mais distante. A ideia da democracia como valor universal proposta por Coutinho (1979COUTINHO, C. N. A democracia como valor universal. In: SILVEIRA, Ê. Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.) não encontra lastro nesses tempos de barbárie, ainda que o socialismo permaneça como a única possibilidade viável de contra-arrestar a autodestruição dos povos e do planeta posta em curso pelo capitalismo contemporâneo.

Enquanto sobrevivemos a esse estado de coisas, o cotidiano nos interpela a incidir e atuar na realidade objetiva, não apenas por meio da militância política, mas também pela admissão de um projeto profissional ético-político que mobiliza assistentes sociais para a luta em sua defesa em vários espaços diferenciados. No caso da democracia à brasileira, a universalização de direitos nem sequer chegou a existir plenamente entre nós, haja vista que o período republicano é atravessado por uma sucessão de golpes de Estado que interrompem a construção democrática, o que evidencia a necessidade da luta permanente na vigilância pelo funcionamento das instituições.

Segundo Bravo e Menezes (2022BRAVO, M. I. S.; MENEZES, J. S. B. Democracia, participação e controle social: as lutas em defesa da saúde. Em Pauta: Teoria Social e Realidade, v. 20, n. 50, p. 88-108, 2022.) a crise estrutural do capitalismo condiciona a barbarização da vida, com mudanças regressivas em todas as dimensões da vida social e com um horizonte desfavorável à classe trabalhadora. Sendo assim, o desafio que está colocado é ampliar a organização das classes subalternas, fortalecer as lutas sociais coletivas na defesa da emancipação política, tendo como horizonte a emancipação humana, como é colocado no Código de Ética do Serviço Social.

É nesse sentido que reflexões sobre participação, democracia, formas de associativismo e lutas sociais se tornam tão fundamentais nos dias de hoje. A proposta da revista Serviço Social & Sociedade, número 147 - eixo 2 -, que trouxe como mote Serviço Social, políticas públicas, poder local, resistências e insurgências se insere nesse contexto. Nesse eixo, foram acolhidos artigos que versaram sobre uma variedade de temas correlatos às temáticas propostas que confirmaram nosso intento explicitado neste Editorial. A categoria profissional, bem como outros segmentos sociais que com ela se relacionam, tem buscado intervir na realidade, associando ação profissional à produção crítica de conhecimentos. Ficou evidenciado, pelo conjunto de artigos, que a formulação, a implantação, a implementação, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas têm sido abraçados pela categoria como possibilidade de luta conjunta pela democratização do acesso a serviços e benefícios públicos e, em última instância, pela democratização do próprio Estado.1 1 Não apenas do Estado brasileiro, pois contamos com experiências internacionais neste número. A incidência no controle social das políticas públicas e a articulação com movimentos sociais comparecem como estratégia essencial do projeto ético-político profissional, evidenciando ser este um caminho acertado para a construção da esfera pública democrática do país.

Os assistentes sociais no Brasil, desde os anos 1980 - período marcante de releitura e redirecionamento da profissão -, incorporaram a temática dos movimentos sociais na formação profissional, na pesquisa e na produção acadêmica. Entretanto, a articulação do debate com análises empíricas e sua relação com o trabalho no Serviço Social foram frágeis, como identifica Duriguetto (1996DURIGUETTO, M. L. A temática dos movimentos sociais e sua incorporação no Serviço Social. 1996. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996. (Mimeo.), p. 145).

Na década de 1990, o debate do Serviço Social se desloca para os espaços de controle democrático, em face da retração de alguns importantes movimentos sociais e da implementação dos Conselhos de Políticas Sociais e de Direitos. Considera-se, entretanto, que na atualidade, os estudos e as intervenções junto aos movimentos sociais tornam-se fundamentais.

Nessa direção, os desafios de materialização do projeto ético-político do Serviço Social exigem a qualificação de ações que contribuam para a ampliação de uma cultura política crítica e democrática na defesa da garantia dos direitos humanos e sociais.

Dessa forma, considera-se que a participação dos sujeitos só poderá ser exercida mediante amplo trabalho de mobilização para uma intervenção qualificada e propositiva, no sentido de exigir direitos e exercer formas de pressão sobre o poder público. Nas frações de classe com baixo poder de organização, as dificuldades são ainda mais complexas. Para que a participação social se efetive, é necessário que os(as) representantes da sociedade civil nos espaços de controle social possam organizar-se nas suas bases, e que tenham consciência dos seus direitos e a quem reclamá-los. Reconhece-se a necessidade, bem como a importância da organização coletiva para a participação efetiva nas decisões públicas.

Assim, reafirma-se o chamado do Editorial de abertura deste subnúmero da revista Serviço Social & Sociedade (147.2), que alerta para o momento oportuno de colocar em exame nossas experiências de participação e reafirmar nossa capacidade crítica de analisá-las. E para “repensar e redefinir estratégias, considerando a importância do amplo movimento sociopolítico que comprometeu um conjunto significativo de sujeitos políticos, precisamos incluir aí as organizações profissionais de assistentes sociais, pesquisadoras/es e militantes da luta pela construção democrática brasileira, ampliando o debate para um conjunto de outras apostas políticas, por dentro da institucionalidade e nas ruas, dentro e fora dos espaços institucionalizados, sem desconsiderar a relevância que eles assumiram” (Editorial 147.2)2 2 RAICHELIS, R.; PAULA, R. e BRAVO I. Serviço Social, políticas públicas, democratização: resistências e insurgências. Serviço Social & Sociedade n. 147.2, p. 4, n. 2, 2024. .

1. O Brasil no mundo e o mundo no Brasil

O cenário conjuntural que descrevemos anteriormente, longe de indicar um tratamento fatalista de fenômenos e fatos narrados, aponta para a ampliação das possibilidades de mobilização. Por ora, nossas possibilidades de movimentação dentro da institucionalidade ainda se encontram circunscritas ao que Santos (1987SANTOS, W. G. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987.) brilhantemente denominara cidadania regulada. A regulação socioestatal da vida social no Brasil está ancorada nos elementos constitutivos da nossa formação sócio-histórica, que incluem o patriarcado, o mandonismo local, o patrimonialismo, o clientelismo, o racismo, a misoginia, a intolerância religiosa como componentes estruturais. Mesmo após a instalação da República e a formulação de sucessivas Constituições, essas características não foram extirpadas da cultura cívico-política brasileira. Ao contrário, a ambiguidade da nossa legislação parecia reforçar tais elementos. Somente com a Constituição Federal de 1988BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: [s. n.], 1988. é que surgem - não sem muita luta - possibilidades de enfrentamento de alguns desses componentes de um complexo sistema de opressões.3 3 É importante salientar que nenhum dos elementos constitutivos de nossa formação social se esvaem apenas com a força da lei. A legislação tem um papel limitado nesse tipo de transformação social. Se não houver uma permanente ofensiva civilizatória na direção contrária desses elementos, eles permanecerão enraizados na cultura cívica e política do país.

Assim, a Constituição Federal de 1988BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: [s. n.], 1988. se torna a nossa principal referência para pensarmos a construção de um país republicano e democrático (mesmo considerando suas limitações e ambiguidades), justamente porque é nela que serão nominados os princípios, os juízos e os valores que devem balizar a estrutura do Estado e, consequentemente, balizar também a formatação das políticas sociais. Temos na Constituição, de um lado, os valores subjacentes à ampliação do escopo da política social e, de outro, um conjunto de prerrogativas voltadas à garantia de direitos individuais e coletivos que deverão se materializar em forma de políticas públicas. Ocorre que, no decorrer da história, a Constituição de 1988 foi ora ignorada, como foi o caso dos primeiros governos da redemocratização (Sarney e Collor), ora utilizada residualmente em conformidade a interesses casuísticos, como foi o caso dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (Paula, 2024PAULA, R. F. dos S. Serviço Social, políticas sociais e conquistas democráticas no Brasil. In: PROGRAMA Ciência em Casa, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 18 abr. 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SaiIWvATyfM&t=1292s . Acesso em: 1º ago. 2024.
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).

Em que pese os tratamentos diferenciados que a Constituição recebeu em governos distintos, ela sempre foi alvo de disputas.4 4 Vale recordar que o ex-presidente José Sarney teceu duras críticas à Constituição de 1988, afirmando que o conjunto de direitos nela arrolados tornaria o país ingovernável. A essa crítica, o então presidente do Congresso Nacional e da Assembleia Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, respondeu que ingovernável era o próprio José Sarney. Tais disputas engendraram também as tensões em torno da formulação de políticas públicas, fazendo com que no período mais recente, especificamente a partir de 2003, o primeiro governo Lula optasse pelo caminho da conciliação, tentando acomodar diferentes e divergentes interesses, com vista a conseguir brechas para fazer valer partes significativas do texto constitucional. As negociações no Parlamento e com segmentos estratégicos da sociedade civil fizeram com que muito do que poderia ter sido alcançado, em termos de direitos sociais, não lograsse êxito ou configurasse conquistas importantes, porém parciais, para a classe trabalhadora.

Não há dúvidas de que do ponto de vista histórico, os primeiros governos do presidente Lula e da presidenta Dilma foram a nossa melhor chance de aproximar a Constituição da realidade. A estratégia da conciliação surtiu efeitos positivos durante o período em que o presidencialismo de coalizão conseguiu manter o controle do sistema de “barganhas” com o Parlamento. Foi exatamente nesse período que o capital financeiro e as grandes corporações nacionais obtiveram maiores margens de lucro, ao mesmo tempo que as políticas sociais, a valorização real do salário mínimo e a geração de empregos no campo e nas cidades satisfaziam, ainda que sem garantias de perenidade, interesses imediatos das massas populares. Interesses que não representavam nenhuma subversão no conflito distributivista, ao contrário, apenas faziam valer as letras do Texto Constitucional (Boito Jr., 2006BOITO JR., A. A burguesia no governo Lula. In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires: Clacso, 2006. Disponível em: Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C07Boito.pdf . Acesso em: 1º ago. 2024.
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). Isso significa que o governo, para dar vazão aos princípios constitucionais de justiça, igualdade e de uma sociedade sem discriminação, começa a implementar políticas públicas nessa direção. A partir daí, desenvolvem-se, com mais força, políticas para mulheres, políticas para idosos, para pessoas com deficiência, para a população negra, indígena e comunidades tradicionais, para a população LGBTQIAPN+, e assim por diante. Ou seja, não se “inventa a roda”, apenas se cumpre a lei. Nesse mesmo contexto, criam-se programas de acesso à moradia popular, programas que ampliam o acesso à educação, em especial a educação superior, com Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) e Prouni (Programa Universidade para Todos), reformulam-se os programas de transferência monetária, ampliando sua escala, e assim por diante.5 5 Há inúmeras reflexões que analisam de modo pormenorizado essas iniciativas, programas e projetos, demonstrando seus limites, possibilidades e contradições. Para os fins deste texto, não nos compete realizar a mesma análise.

Essas medidas, embora estivessem aquém das necessidades reais da população, pois, como dissemos, foram construídas na dinâmica da conciliação de classes, eram constantemente atacadas e criticadas pelos segmentos conservadores, tanto no Parlamento quanto fora dele.

O esgotamento desse modo de gestão e projeto político fará emergir uma intensa crise política, que atingirá tanto as frações de classe que ocupam espaço no bloco no poder quanto parte significativa da classe trabalhadora, que não vai encontrar, mesmo com a ampliação das políticas sociais, respostas para suas demandas mais imediatas, quando efeitos da crise econômica mundial se aproximam do Brasil (Boito Jr., 2006BOITO JR., A. A burguesia no governo Lula. In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires: Clacso, 2006. Disponível em: Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C07Boito.pdf . Acesso em: 1º ago. 2024.
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; Paula, 2016PAULA, R. F. dos S. Estado capitalista e Serviço Social: o (neo)desenvolvimentismo em questão. Campinas: Papel Social, 2016.). O acirramento do conflito distributivo no Brasil tem desdobramentos como o próprio impeachment da presidenta Dilma, a prisão do presidente Lula e a ascensão de grupos com traços neofascistas ao governo central do país. Mas, para efeitos desta reflexão, nos compete indagar: o que acontece então com as políticas sociais nesse período?

A maior parte das análises refere que houve um retrocesso, todavia, o ato de retroceder não explica a complexidade do que ocorreu, pois é necessário analisar o retrocesso sob dois prismas: por um lado, porque objetivamente os governos Temer e Bolsonaro sucateiam e desmontam todo o conteúdo social da política, desmobilizando os avanços inclusivos identitários, quando precarizam as políticas de quotas raciais, as políticas para mulheres, para população LGBTQIAPN+, para os povos indígenas e populações tradicionais etc., - e, em paralelo, as políticas setoriais tradicionais também sofrem ataques menos perceptíveis à população em geral, pois tais ataques incidem na estrutura interna das políticas. É o caso do desfinanciamento da saúde, da educação, da assistência social, e assim por diante. Por outro lado, esse contexto de retrocessos se esconde sob “cortinas de fumaça” que deslocam o debate sobre as condições materiais de sobrevivência para a esfera do campo moral e dos costumes. As massas são levadas a conferir maior importância a temáticas como “ideologia de gênero”, “criação de banheiros unissex”, “combate ao marxismo cultural e ao globalismo” do que resistir à drenagem vampiresca de recursos do trabalho para o capital por meio da manutenção de uma política econômica ultraliberal. Esse processo conta com o auxílio eficaz de um aparato comunicacional típico da revolução informacional e telemática que vivemos. E essa revolução será utilizada a favor desse projeto de disseminação da sociabilidade caótica. Trata-se, portanto, de uma guerra semiótica, que monta uma arquitetura social baseada na falsificação da realidade. As chamadas fake news acabam por moldar uma cognição pública, cujo elemento mobilizador é o ódio ao diferente. Ódio destinado àquelas pessoas que haviam sido alvo das políticas sociais do período anterior. Como consequência, cria-se uma cognição que se enraíza e faz com que a mentira deixe de ser identificada como tal, satisfazendo o viés ideológico disseminado junto às massas (Pena, 2024PENA, F. Felipe Pena explica como funciona a dinâmica da produção de fake news dos Bolsonaro. [Entrevista cedida a] Fórum TV, 17 maio 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/IW78CGZj4ms . Acesso em: 1º ago. 2024.
https://www.youtube.com/shorts/IW78CGZj4...
; Paula, 2024PAULA, R. F. dos S. Serviço Social, políticas sociais e conquistas democráticas no Brasil. In: PROGRAMA Ciência em Casa, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 18 abr. 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SaiIWvATyfM&t=1292s . Acesso em: 1º ago. 2024.
https://www.youtube.com/watch?v=SaiIWvAT...
).

É nesse sentido que falar em direitos constitucionais e políticas públicas como componentes de uma sociabilidade democrática se torna algo perigoso e arriscado, pois o que se deseja, nesse contexto, não é apenas ignorar a Constituição como foi feito alhures, mas também anulá-la de vez como elemento regulatório.

Quando as Constituições não são respeitadas, em que pese tratar-se de Constituições burguesas, abrem-se brechas para a ampliação da hegemonia dos dominantes no escopo das disputas de classe que atravessam a ossatura do Estado e, consequentemente, se exponencia o uso do aparelho estatal para o atendimento de interesses privados. Esse é o quadro propício à gestação e à aplicação de atentados contra a democracia, que incluem a retração de direitos e a criminalização de classes e movimentos populares. É o que se observou na invasão à sede do poder executivo norte-americano em 6 de janeiro de 2021, e no Brasil, em 8 de janeiro de 2024. Embora sem sucesso, tais tentativas de golpe simbolizam o advento do poder autodestrutivo da extrema-direita que enraíza seus tentáculos em todo o mundo. Parte de suas intenções inclui a reformatação completa dos desenhos dos Estados Nacionais, promovendo a aniquilação de toda e qualquer forma de participação popular. A eleição de Javier Milei na Argentina em 2023 e as chances de retorno de Donald Trump à Casa Branca, sobretudo após a desistência de Joe Biden da disputa eleitoral em 21 de julho de 2024, são apenas alguns emblemas dessa encruzilhada histórica.6 6 Quando este Editorial estava sendo escrito, não tínhamos nenhuma novidade em termos de paz no conflito Israel versus Palestina. Em 5 de julho de 2024, o Partido Trabalhista do Reino Unido venceu as eleições parlamentares, voltando ao poder após 14 anos. Na França, em 7 de julho, após uma vitória da extrema-direita no primeiro turno, a coligação de centro-esquerda conquista a maioria no Parlamento, o que torna quase impossível que a extrema-direita eleja um primeiro-ministro naquele país; e, as eleições na Venezuela, em 28 de julho, estavam sendo contestadas pelas forças de oposição ao governo reeleito de Nicolás Maduro. Esses são apenas os últimos acontecimentos mais relevantes desse momento de intensificação das correlações de forças no mundo.

No Brasil, a retomada da estabilidade democrática segue a passos lentos. A vitória apertada da coligação liderada pelo presidente Lula em 2022 não significou o impedimento do avanço da extrema-direita no cenário político, haja vista a permanência de aliados do governo de Jair Bolsonaro em funções importantes e, por vezes, estratégicas no executivo federal. No poder legislativo, permanece em alta escala o fisiologismo de parlamentares vinculados ao chamado “centrão” e da extrema-direita, que pressionam o executivo para o atendimento de suas demandas, recebem o que solicitam, contudo, não cumprem os acordos estabelecidos.7 7 Essa prática nefasta pode ser considerada uma das piores consequências do governo de Jair Bolsonaro, pois o ato que ficou conhecido como “orçamento secreto” consolidou e institucionalizou o vício fisiologista no Parlamento brasileiro. Isto é, estamos diante das mais tenebrosas práticas políticas de toda nossa história recente. Ao mesmo tempo, segmentos organizados da sociedade brasileira permanecem nas lutas pelo “fortalecimento de atores e pautas até então marginalizados no debate público” (Tatagiba, 2023TATAGIBA, L. Participação e controle social - nada será como antes. In: LOPES, M. H. C.; RIZZOTTI, M. L. A.; PAULA, R. F. dos S. O futuro da assistência social e a assistência social no futuro: contexto de crise e desafios pós-pandemia. São Paulo: Hucitec, 2023., p. 179).

[…] o processo político brasileiro recente é marcado pela combinação destas duas lógicas distintas: a radicalização das direitas e a intensificação da polarização política e a pluralização de atores e pautas que, desde a esquerda, renovam desde a base da sociedade as narrativas sobre a democracia […]. A combinação dessas duas lógicas […] conforma um cenário sociopolítico extremamente complexo que altera de forma significativa os padrões do associativismo brasileiro e as relações entre Estado e sociedade […]. Essas mudanças têm profundas implicações sobre o cenário presente e futuro do controle social (Tatagiba, 2023TATAGIBA, L. Participação e controle social - nada será como antes. In: LOPES, M. H. C.; RIZZOTTI, M. L. A.; PAULA, R. F. dos S. O futuro da assistência social e a assistência social no futuro: contexto de crise e desafios pós-pandemia. São Paulo: Hucitec, 2023., p. 179).

Mas não é de hoje que as formas de associativismo, participação, controle social e mesmo o movimentalismo têm sido alvos de ataques sistemáticos. A respeito dessa questão, a violenta reação ao Decreto n. 8.243, de 23 de maio de 2014, do governo Dilma Rousseff, que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social é um bom exemplo dos conflitos que se estabelecem no campo da participação. Não compete aqui tecer considerações sobre o projeto, mas apenas salientar a resposta incisiva que ele provocou por parte de certos parlamentares e de editoriais publicados pela mídia hegemônica, como o jornal O Estado de S. Paulo, que afirmou que a instituição de conselhos populares “abriria o risco de criação de um poder político paralelo no país” (Manzano, 2014MANZANO, G. Decreto que institui conselhos populares abre debate sobre risco de poder paralelo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 7 jun. 2014. Editorial. Disponível em: Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/decreto-que-institui-conselhos-populares-abre-debate-sobre-risco-de-poder-paralelo/ . Acesso em: 1º ago. 2024.
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, n. p.). Dando amplo espaço a juristas conservadores que seguem sua linha editorial, um ministro do STF (Gilmar Mendes) chamou o decreto de “autoritário” e um ex-ministro (Carlos Velloso) classificou a iniciativa de “uma coisa bolivariana, com aparência de legalidade”. As críticas do jornal chegaram a sugerir que o objetivo do governo seria “criar uma espécie de sovietes para acabar com o Parlamento”. Tudo isso mesmo considerando que o Decreto não propunha a criação de nenhum novo conselho ou fórum colegiado, mas pretendeu conferir organicidade ao sistema participativo existente, nos termos definidos na Constituição Federal de 1988BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: [s. n.], 1988., o que envolve o debate sobre a ampliação de fóruns participativos para todas as esferas das políticas públicas, sejam elas econômicas ou sociais.

Bravo e Correia (2012BRAVO, M. I. S.; CORREIA, M. V. C. Desafios do controle social na atualidade. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 109, p. 126-150, 2012., p. 135), por exemplo, ao analisar o controle social na política de saúde, afirmam que, em 2005, os conselhos de saúde implantados em todos os municípios brasileiros abrangiam um contingente de cerca de 70 mil conselheiros, sendo 35 mil representantes dos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde), tornando o conselho de saúde a mais abrangente rede de instâncias participativas do país. O mesmo poder-se-ia afirmar em relação aos conselhos de assistência social, de criança e adolescente, de idosos, de mulheres, de cidade, ainda que considerando as suas diferenças, especialmente no que se refere à representação dos usuários. Isso significa que não se trata de um espaço qualquer, mas da expressão de uma práxis social com capilaridade inédita no país. Desse modo, em concordância ao exposto pelas autoras, nos cabe indagar: devemos ignorar a existência desses espaços ou tencioná-los?

No governo de Jair Bolsonaro, foi praticada a tentativa de desconstrução da participação popular e das organizações de esquerda nos colegiados da administração pública federal. Já durante sua campanha e após efetivada sua posse, como forma de marcar os cem dias de governo, por meio do Decreto n. 9.759, Bolsonaro diminui de 700 para menos de 50 o número de conselhos previstos pela Política Nacional de Participação Social (PNPS) e pelo Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), criados pelo governo Dilma Rousseff em 2014, e depois foram extintos, o que atingiu frontalmente também a realização das conferências nacionais. Toda essa movimentação demonstra que a temática e a prática política da participação são campos de constantes disputas, compondo, assim, o escopo da luta de classes em escala global.

2. Desafios na relação com conselhos, movimentos sociais e outras formas de participação8 8 Parte dessas reflexões sobre controle social e construção da esfera pública democrática no Brasil foi apoiada em: RAICHELIS, R. (2015, 7. ed.). Para aprofundamento, confira especialmente o Posfácio da autora: Desafios do controle social: notas sobre o papel dos conselhos na atualidade (p. 339-358).

Diante de um quadro tão complexo, nos cabe refletir sobre os desafios que estão postos à participação e ao posicionamento de categorias profissionais como a dos(as) assistentes sociais, cujo lugar ocupado na divisão do trabalho permite o contato permanente com as demandas populares que só encontrarão resolutividade na superação da ordem vigente do capital.

Nesse sentido, o primeiro desafio é reconhecer os avanços conquistados pela institucionalidade participativa por meio dos conselhos e das conferências, que hoje não pode ser desconsiderada por nenhum governo, inclusive pelas competências legais conquistadas (aprovação de planos, orçamentos, programas), mesmo tendo em vista sua baixa incidência nas decisões sobre as políticas setoriais específicas. São também espaços de debate e aprendizagem democrática para os representantes governamentais e da sociedade civil, que vêm exigindo maior qualificação, tanto do Estado (transparência, apresentação de propostas fundamentadas para submetê-las ao crivo do debate e da deliberação coletiva, informações fidedignas do orçamento, alocação de recursos e execução financeira etc.) quanto da sociedade civil (capacitação para o debate público e confronto de projetos, superação de interesses particularistas e corporativistas, construção de alianças na defesa de políticas sociais universalistas e de direitos coletivos etc.).

Nesses termos, é preciso criar novas alianças no âmbito das representações da sociedade civil e da representação governamental, avançar no debate com as demais políticas públicas, inclusive para aumentar a representação de trabalhadores e de usuários nos conselhos. Em algumas áreas específicas, permanece o grande desafio de fortalecimento da representação coletiva dos usuários, sendo necessário investir mais fortemente nas articulações com organizações populares e movimentos sociais e colaborar para estimular a representação autônoma dos usuários, considerando que estes permanecem sub-representados em muitos casos, a exemplo dos conselhos de assistência social.

Como temos analisado reiteradamente, os segmentos populares têm dificuldades ainda maiores de se engajar na rotina das reuniões, de arcar com os custos de deslocamentos, ausência no trabalho etc. Nesse sentido, é preciso criar condições políticas e materiais que garantam meios efetivos de participação da representação de usuários(as) nos conselhos. O fortalecimento dessa representação passa também pela necessidade de reconhecimento e de legitimação das suas associações e formas de organização que, frequentemente, não conseguem cumprir com as exigências formais de inscrição em processos eleitorais, como diretoria formalmente constituída, estatutos registrados etc.

O segundo desafio é o de desenvolver capacidades para reconhecer os projetos em disputa, que muitas vezes não se apresentam nitidamente, nem são racional e logicamente estruturados. Isso exige a desmontagem crítica de um discurso aparentemente homogêneo e consensual, que mais esconde do que revela concepções e posições presentes.

Esta não tem sido tarefa fácil em virtude da expansão do assim denominado associativismo civil, constituído por um conjunto amplo e heterogêneo de entidades sociais, ONGs, organizações empresariais, associações comunitárias, que disputam o acesso ao fundo público para a execução de projetos, serviços e programas nas diferentes políticas sociais, na maior parte das vezes em uma perspectiva de substituição/minimização do Estado, não de cobrança/fortalecimento de suas responsabilidades públicas. Isso implica romper com a polaridade Estado versus sociedade, a necessidade de reconhecer interesses heterogêneos e contraditórios, tanto no interior do Estado quanto da sociedade, considerando que a sociedade civil não é o polo das virtualidades em contraposição a um suposto Estado “satanizado”.

Nesse contexto, a presença de uma visão comunitarista de sociedade civil como sinônimo de “terceiro setor” atualiza o mito da comunidade harmônica voltada ao “bem comum”, disseminando um discurso aparentemente consensual de defesa da democracia, da cidadania e dos direitos sociais, que não considera a polissemia dessas noções, passando por cima dos interesses das classes, dos projetos políticos em disputa, das clivagens étnicas, raciais, geracionais, de gênero presentes na esfera política. Como resultado, a sociedade civil, espaço do conflito social, perde o sentido da crítica, contribuindo para despolitizar a questão social, as relações entre as classes sociais e destas com o Estado. Esse processo de transformismo da sociedade civil desfaz a aposta transformadora dos movimentos sociais, ao mesmo tempo que lança a questão social para o marco discursivo da pobreza, da solidariedade e da filantropia.

Trata-se de uma dinâmica sociopolítica que coloca sérias dificuldades para a intervenção política comprometida com os interesses das classes e os grupos sociais subalternos, impondo-se a criação de estratégias para a construção de alianças táticas, mesmo que parciais e provisórias, dentro e fora dos conselhos. Nesse contexto, é preciso enfrentar o desafio do debate público diante dos novos interlocutores que se apresentam e disputam legitimação na esfera pública, especialmente as forças conservadoras que “descobriram” a potência desses espaços institucionais e buscam hegemonizá-los para a viabilização de seus interesses particularistas em todas as áreas. Isso exige dos sujeitos sociais investidos da representação nova capacitação teórica e técnica, mas sobretudo ético-política, para realizar o embate politizador desses espaços.

O terceiro desafio é considerar o conselho um dos espaços de exercício do controle social, não o único, nem o mais importante. No processo de implantação dos conselhos, gerou-se uma enorme expectativa frente ao seu potencial transformador, obliterando-se os limites próprios da natureza institucional de suas atribuições. Em muitas áreas, como na assistência social, assistimos à desativação dos fóruns setoriais, na medida em que os conselhos municipais e estaduais foram sendo criados, o que significou um equívoco estratégico, pois os conselhos precisam ser ativados a partir de fora de seus limites, complementados e articulados com outras formas de mobilização social e de organização política. Reiteramos assim que, embora os conselhos sejam espaços de controle social, eles também têm que ser objeto de controle democrático da sociedade e das bases sociais que neles devem estar representadas. Nesse sentido, é fundamental buscar a legitimidade dos conselhos para além das representações que os integram, ampliando a interlocução com bases sociais mais amplas, com movimentos sociais e coletivos populares; desprivatizando-os; “abrindo suas portas”; tornando efetivamente públicas suas reuniões; facilitando o acesso às atas; criando canais de comunicação e de prestação de contas; divulgando publicamente suas deliberações e resoluções; considerando que vários estudos atestam o quanto os conselhos são desconhecidos para além das representações e das organizações que fazem parte deles.

Também é preciso acionar estratégias frente à multiplicidade de conselhos que reproduz a lógica de setorização das políticas sociais. A multiplicação acelerada de conselhos, a dinâmica própria de funcionamento de cada um e o envolvimento com pautas específicas contribuem, mesmo que involuntariamente, para manter a fragmentação e a segmentação das políticas sociais. É nesse contexto que se coloca a importância de mecanismos de articulação entre os conselhos, mais ainda quando se considera a natureza transversal de muitas políticas, como as voltadas para a criança, o adolescente e a juventude, a mulher, o idoso, a pessoa com deficiência, a igualdade racial, entre outras.

As estratégias participativas, como o Fórum de Reforma Urbana e a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, são bons exemplos de espaços mais amplos e não institucionalizados a serem acionados e fortalecidos, que podem tensionar os conselhos e suas representações, cobrando compromissos, fiscalizando orçamentos e programas, impulsionando avanços, denunciando arranjos espúrios, rompendo o imobilismo e a burocratização. Há inúmeras avaliações que demonstram avanços políticos relevantes quando se combinam ações nos espaços institucionalizados com outras modalidades de mobilização e luta política que acontecem fora dos limites dos conselhos, necessárias muitas vezes para fazer cumprir pactuações e decisões que não estão sendo implementadas.

O quarto desafio relaciona-se com a função deliberativa dos conselhos, em muitos casos definidas em norma específica. Almeida e Tatagiba (2012ALMEIDA, C.; TATAGIBA, L. Os conselhos gestores sob o crivo da política: balanços e perspectivas. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 109, p. 68-92, 2012. Sociedade civil e controle social.) lembram que o caráter deliberativo dos conselhos tem sido um dos principais pontos da luta pela democratização das políticas sociais e, ao mesmo tempo, a incapacidade de exercer a deliberação nas questões substantivas tem sido uma das principais frustrações nas expectativas políticas de que os conselhos possam de fato decidir sobre a justa distribuição dos recursos públicos, inverter prioridades e ampliar direitos dos grupos subalternos. Contudo, a questão que precisa ser considerada é a própria noção construída sobre a função deliberativa dos conselhos, que não pode ser confundida com uma suposta autonomia político-institucional, como ponderam as autoras:

Essa confusão nubla o reconhecimento da especificidade do tipo de luta política que pode ser travada via conselhos. Eles são estratégias de lutas por dentro do Estado, visando à sua democratização, e não sobre ou paralelamente a essa instituição. Reconhecer esta especificidade é fundamental para superar as avaliações marcadas por frustrações decorrentes de expectativas que os conselhos não podem cumprir, o que gera imobilismo político (Almeida; Tatagiba, 2012ALMEIDA, C.; TATAGIBA, L. Os conselhos gestores sob o crivo da política: balanços e perspectivas. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 109, p. 68-92, 2012. Sociedade civil e controle social., p. 82).

As autoras chamam atenção para a multiplicidade e a diversidade de instituições que participam da rede estatal de produção das políticas públicas. Na política de assistência social, bem como em várias outras, além dos órgãos gestores federais, estaduais, do Distrito Federal e dos municípios, e dos seus órgãos de controle interno, que são instâncias do executivo, atuam também os tribunais de contas nas distintas esferas de poder, os órgãos do legislativo, os órgãos do judiciário, como os Ministérios Públicos, as defensorias públicas, que têm competências específicas e obrigações legais em relação à fiscalização e ao controle das políticas públicas, no cumprimento de metas e na utilização dos recursos públicos, que muitas vezes se sobrepõem de modo conflitivo às prerrogativas dos conselhos e mesmo dos executivos. Um exemplo emblemático são as emendas parlamentares na política de assistência social, situação em que os(as) parlamentares podem transferir recursos diretamente para uma entidade social de sua base eleitoral, conflitando com as prioridades de redistribuição de recursos definidas nos Planos de Políticas Públicas.

A função deliberativa dos conselhos precisa ser repensada no âmbito da malha institucional que compõe o aparelho de Estado, que não confere aos conselhos soberania decisória sobre a política. Por isso é fundamental na agenda política dos conselhos identificar, em cada uma das políticas específicas, as diferentes instâncias que têm competência legal para incidir sobre sua produção, e definir estratégias para que possam constituir-se em interlocutores reconhecidos na luta pela legitimidade política por dentro do Estado e de seus inúmeros órgãos de controle.

O quinto desafio é o de ampliar as esferas participativas para o âmbito dos espaços restritos e ocultos onde se definem os rumos da política macroeconômica em nosso país. Historicamente, o discurso participativo busca um elemento de legitimação em medidas macroestruturais que favorecem os interesses do capital, por meio do estímulo à participação popular, o que é atestado pelo discurso político das agências internacionais de revalorização do lugar da sociedade civil na gestão pública e na governabilidade democrática.

Maricato (2009MARICATO, E. Informalidade urbana no Brasil: a lógica da cidade fraturada. In: WANDERLEY, L. E.; RAICHELIS, R. (org.). A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. São Paulo: Educ, 2009., p. 291), ao se referir à febre participativa, proposta inclusive por organismos internacionais e corporações multinacionais, nos adverte de que: “[...] a política, que ferve de participação, não arranha a economia”. Advertência que permanece vigente, embora o tempo presente não seja de fervura participativa. Mas também “cabe como uma luva”, nesta nota final de nossa reflexão, a chamada de Edmundo Dias (1999DIAS, E. F. O possível e o necessário: as estratégias das esquerdas. Dossiê: o futuro da esquerda, 1999. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/dias/1999/02/90.pdf . Acesso em: 20 jul. 2024.
https://www.marxists.org/portugues/dias/...
, p. 75-760) quando afirma: “A democracia, mesmo a mais limitada, interessa mais aos trabalhadores do que a ditadura mais esclarecida do capital”.

Referências

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  • 1
    Não apenas do Estado brasileiro, pois contamos com experiências internacionais neste número.
  • 2
    RAICHELIS, R.; PAULA, R. e BRAVO I. Serviço Social, políticas públicas, democratização: resistências e insurgências. Serviço Social & Sociedade n. 147.2, p. 4, n. 2, 2024.
  • 3
    É importante salientar que nenhum dos elementos constitutivos de nossa formação social se esvaem apenas com a força da lei. A legislação tem um papel limitado nesse tipo de transformação social. Se não houver uma permanente ofensiva civilizatória na direção contrária desses elementos, eles permanecerão enraizados na cultura cívica e política do país.
  • 4
    Vale recordar que o ex-presidente José Sarney teceu duras críticas à Constituição de 1988, afirmando que o conjunto de direitos nela arrolados tornaria o país ingovernável. A essa crítica, o então presidente do Congresso Nacional e da Assembleia Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, respondeu que ingovernável era o próprio José Sarney.
  • 5
    Há inúmeras reflexões que analisam de modo pormenorizado essas iniciativas, programas e projetos, demonstrando seus limites, possibilidades e contradições. Para os fins deste texto, não nos compete realizar a mesma análise.
  • 6
    Quando este Editorial estava sendo escrito, não tínhamos nenhuma novidade em termos de paz no conflito Israel versus Palestina. Em 5 de julho de 2024, o Partido Trabalhista do Reino Unido venceu as eleições parlamentares, voltando ao poder após 14 anos. Na França, em 7 de julho, após uma vitória da extrema-direita no primeiro turno, a coligação de centro-esquerda conquista a maioria no Parlamento, o que torna quase impossível que a extrema-direita eleja um primeiro-ministro naquele país; e, as eleições na Venezuela, em 28 de julho, estavam sendo contestadas pelas forças de oposição ao governo reeleito de Nicolás Maduro. Esses são apenas os últimos acontecimentos mais relevantes desse momento de intensificação das correlações de forças no mundo.
  • 7
    Essa prática nefasta pode ser considerada uma das piores consequências do governo de Jair Bolsonaro, pois o ato que ficou conhecido como “orçamento secreto” consolidou e institucionalizou o vício fisiologista no Parlamento brasileiro.
  • 8
    Parte dessas reflexões sobre controle social e construção da esfera pública democrática no Brasil foi apoiada em: RAICHELIS, R. (2015, 7. ed.). Para aprofundamento, confira especialmente o Posfácio da autora: Desafios do controle social: notas sobre o papel dos conselhos na atualidade (p. 339-358).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2024
  • Aceito
    08 Ago 2024
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