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Fundo público e seguridade social no Brasil

Public funds and social security in Brazil

RESENHAS

Fundo público e seguridade social no Brasil

Public funds and social security in Brazil

Dirce Maria Martinello

Assistente social, mestre em Educação e Trabalho pela UFSC, doutoranda do Programa de estudos pós-graduados em Serviço Social pela PUC-SP, São Paulo, Brasil. Área de pesquisa: Participação Social em Orçamento Público, E-mail: dircemaria88@gmail.com

Evilasio Salvador, economista, professor do Departamento de Serviço Social do Programa de Pós-Graduação em Política, pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Política Social pela UnB, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho.

A obra de Evilasio Salvador é o resultado de um estudo profundo sobre o financiamento público e as políticas públicas no Brasil. Sem dúvida, é a referência mais importante para os profissionais que atuam no campo dos direitos, especialmente para os assistentes sociais responsáveis pela gestão e pela concretização de políticas sociais, na área da assistência e da seguridade social.

Reconhece-se a importância da obra, para a academia, para os gestores públicos e, sobretudo, para a sociedade em geral, pois o tema esclarece como o sistema capitalista se apropria dos fundos públicos vinculados à seguridade social, pela aplicação dos recursos, ou seja, "a relação do orçamento da seguridade social com as opções de políticas econômicas e sociais adotadas" (p. 28).

A atualidade do tema permite pôr em debate a forma como o sistema financeiro, do Estado brasileiro, está estruturado, o qual é mantido principalmente pelo pagamento de impostos de toda a sociedade, sendo que parte dos recursos do fundo destina-se a financiar a riqueza.

O autor tem como objetivo desenvolver um "estudo sobre o Estado social, determinado pela inter-relação entre o orçamento fiscal e o orçamento da seguridade social na conformação do fundo público no Brasil" (p. 28).

As referências bibliográficas são relevantes e focam as análises técnicas sobre o atual cenário mundial, determinado pelo neoliberalismo, e os desdobramentos nas políticas sociais, com destaque para a política de seguridade social, considerando o papel do Estado brasileiro, as políticas fiscais e os fundos públicos.

A estrutura do trabalho teórico feito pelo autor se deu dialogando com diversos pesquisadores nacionais e internacionais. A fonte de dados foi construída e pesquisada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas (Dieese) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para análise dos dados orçamentários, a fonte de pesquisa foi o Siafi, disponibilizados pelo Sistema Siga Brasil. Esses órgãos demonstram que o Estado brasileiro dá prioridade ao lucro do capital especulativo, em detrimento do setor produtivo, mantém as taxas de juros elevadas, permite o funcionamento do mercado de forma desregulada, justifica o desemprego elevado, reduz o acesso aos direitos sociais.

A partir dessa perspectiva analítica e da observação crítica da realidade macroeconômica, foi construída a metodologia, considerando as transformações do capitalismo e a configuração da seguridade social — o financiamento e os gastos — utilizando um discurso que não denota as forças econômicas e políticas que reorientam o uso dos recursos destinados à execução desta política. O fundo público, previsto no art. 165 da Constituição Federal, é composto de toda a receita prevista em lei — as tributárias, as não tributárias, as doações, as alíquotas de tributos. O fundo público trata de finanças públicas e do orçamento público, e envolve toda a capacidade de mobilização de recursos do Estado.

Previsto na Constituição, artigo 167, a criação de fundos concretiza-se por meio da autorização do Poder Legislativo para criar políticas públicas e viabilizar as políticas sociais, de acordo com o plano de governo. O sistema tributário brasileiro é regressivo, ou seja, constitui-se por tributos que incidem sobre o consumo, sendo que a tributação direta fica limitada à tributação sobre os salários.

O livro denominado Fundo público e seguridade social no Brasil divide-se em seis capítulos. De modo geral, esse livro mostra a dinâmica e o entrelaçamento que perpassam historicamente pelas políticas econômicas, dentro de um modelo neoliberal, onde o Estado social determina e influencia as políticas governamentais sobre as políticas públicas, penalizando as políticas sociais. Nesse caso, a Seguridade Social, pois compromete parte de seus recursos, oriundos do fundo público, para setores da economia e, neste momento específico, as políticas financeiras. O fundo público é um instrumento fundamental para o Estado social. Está estruturado internamente pelo Orçamento Geral da União (OGU), o qual prevê a destinação dos recursos públicos, divididos entre o financiamento de políticas sociais e políticas fiscais que beneficiem os organismos financeiros, aplicando a Desvinculação da Receita da União (DRU).

É apresentado um estudo detalhado, com as leis, as políticas da seguridade social, bem como as fontes de financiamento, instituídas pela Constituição de 1988. Isso feito pelo princípio contributivo, em que trabalhadores e empregadores cotizam, obrigatoriamente, para os fundos de previsão, os quais são amparados e garantidos pelo Estado, a fim de cobrir situações de risco (doenças, acidentes ou incapacidade) derivadas do mercado de trabalho (p. 126). A seguridade social prevê os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência, incluindo o trabalhador desempregado, via seguro-desemprego. Esclarece-se que o financiamento da seguridade social compreende, além das contribuições previdenciárias, os recursos orçamentários destinados a esse fim, em um único orçamento (p. 164).

O tema fundo público desdobra-se no primeiro capítulo, denominado "A configuração do fundo público no capitalismo contemporâneo". Nele, Evilasio Salvador traz os fundamentos teóricos do keynesianismo/fordismo e as suas influências nas políticas sociais, bem como a origem da seguridade social, a importância do fundo público na construção do Estado social, a financeirização da riqueza e as mudanças na proteção social.

Associado às ideias de Keynes surge o fordismo, que defendia a produção e o consumo de massa. Henry Ford (1914) só conseguiu viabilizar a sua filosofia no segundo pós-guerra. Contudo, o processo de planejamento e racionalização adotados alterou profundamente as relações de produção, de trabalho, os ganhos na produtividade e o modo de acumulação, devido ao enfrentamento da classe trabalhadora e ao recuo diante dos avanços trazidos pelos ganhos salariais e pelas políticas de proteção social.

Evilasio Salvador aprofunda a sua análise considerando os múltiplos aspectos do fundo público. Durante os anos do keynesianismo/fordismo, o fundo público, particularmente o previdenciário, serviu para garantir a aposentadoria dos trabalhadores e canalizar recursos para obras de infraestrutura. Poggi traz o papel do Estado em assegurar verbas obtidas das receitas públicas para destiná-las às organizações privadas. Já Maia e Harvey analisam o significado da não aplicação dos recursos destinados à viabilidade das políticas sociais. Pochmann (1999) considera as estratégias do sistema de emprego no capitalismo contemporâneo, em que destaca: a política macroeconômica do pleno emprego, o estabelecimento de condições entre o trabalho e o capital (intensivo/extensivo), em termos de paradigma técnico/produtivo, os problemas sociais, o acesso a garantias mínimas de proteção social que contribuem para o crescimento econômico, com a geração de renda e de novas formas de ocupações nos segmentos não mercantis da economia.

A análise sobre fundo público, produzida por Evilasio Salvador, esclarece: o fundo público é um conceito construído para investigar os processos pelos quais o capitalismo perdeu a sua capacidade regulatória. Francisco de Oliveira também procura esclarecer, citando que "fundo público [...] é um mix que se forma e se representa na mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado sociopolítico, e as razões dos capitais, que é a privada" (p. 87). É a luta de classes, o deslocamento da esfera privada para a pública. De forma indireta, da reprodução geral do capital (subsídios, negociações de títulos e de garantias de financiamento), como elemento presente na reprodução da força de trabalho, única fonte de criação de valor da sociedade capitalista.

Nesse período, ocorreram as limitações das políticas de Keynes, diante da internacionalização do capital, da força de trabalho sendo reduzida e a reprodução sendo automatizada. Verificam-se novos investimentos para elevar a capacidade produtiva; a manifestação da crise, com forte reação do capital contra o Estado social; a presença da inflação, a manutenção da lucratividade do capital, a desaceleração do investimento, o desemprego, o aumento dos gastos, o surgimento dos novos produtos financeiros, dentro de um processo de globalização ou de mundialização do capital.

Com informações e dados que influenciaram toda a trajetória da política dos fundos públicos no Brasil, Evilasio Salvador produz um estudo atual, que contempla os desdobramentos que alteram as categorias do capitalismo contemporâneo em crise, seus desdobramentos na aplicação das políticas públicas em um Estado que é gerido pelos princípios do neoliberalismo e responde às interferências de organismos financeiros internacionais. Também responde à sociedade em geral, principalmente nas políticas sociais, como: seguridade social, saúde e assistência.

A crise fiscal do Estado, portanto, é uma disputa entre os recursos destinados à reprodução do capital e os fundos destinados à manutenção das políticas sociais. Aqui cabem duas observações: 1. Quando o Estado financia, recai o peso sobre o sistema tributário na acumulação do capital sobre o regime de financeirização. 2. A financeirização é responsável pela hierarquia das rendas e patrimônios das pessoas, ou seja, pela desigualdade social.

Conforme Evilasio mostra em todo o seu estudo, a crise fiscal traz prejuízos ao financiamento da seguridade social, pois a forma de funcionamento da economia capitalista e de financiamento dessa mesma economia se dá em detrimento das políticas sociais. Inclusive os fundos públicos destinados à manutenção das políticas sociais são disputados por grupos econômicos.

O autor analisa, em sua obra, como os países da America Latina, incluindo o Brasil, lidaram com as crises em que o Estado pouco fez para assegurar os direitos aos cidadãos. Historicamente, o autor faz um levantamento dos benefícios obtidos pela classe trabalhadora no Brasil. Citam-se (p. 140): as caixas de socorro; a Lei Eloy Chaves, a qual cria as primeiras Caixas de Aposentadorias e Pensões; os institutos previdenciários; a Lei Orgânica de Políticas Sociais; o Instituto Nacional de Previdência Social; o Sistema de Previdência e Assistência Social; a Assembleia Constituinte de 1988, onde ganha uma definição, a qual contempla a integração de ações do Estado e da sociedade, voltada a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência.

No terceiro capítulo, o autor trata do orçamento e do financiamento tributário do fundo público pós-real, o qual contempla o processo e o ciclo orçamentário no Brasil, considerando o orçamento antes de 1988, em que o orçamento estava centralizado no Orçamento Geral da União (OGU), sob a responsabilidade do Tesouro Nacional.

A Constituição de 1988 deu um reordenamento e unificação nas finanças públicas e a unificação do orçamento. Ampliou e fortaleceu o papel do Congresso Nacional. Institucionalizou, por meio do planejamento, o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O ciclo orçamentário é composto pelo Plano Plurianual (PPA), pela LDO e pela LOA, visando a integração e a execução das atividades planejadas e orçadas, das políticas governamentais, no âmbito municipal, estadual e nacional.

No quarto capítulo, Evilasio trata do orçamento virtual da seguridade social no Brasil. Problematiza o tema orçamento na política de seguridade social, diante da legislação e o que de fato acontece na prática. Quem financia a seguridade social brasileira? Qual é o destino dos recursos da seguridade social: análise dos grandes gastos, a consequência da reforma tributária e o desmonte do financiamento da seguridade social. O orçamento da seguridade social deve ser entendido no contexto das políticas econômicas, particularmente no sistema tributário e fiscal.

Do ponto de vista orçamentário, a Constituição, em seu artigo 165, definiu a aplicação da Lei Orgânica da Assistência, composta pelo Orçamento Fiscal, Orçamento de Investimentos das Empresas Estatais e Orçamento da Seguridade Social. Apesar de ser constitucional, ainda é pouco cumprida por parte do governo.

Cabe registrar outro aspecto importante, que se refere à substancial falta de respeito do governo em tratar dos direitos sociais com a população. Diante das informações repassadas pelo governo, referindo-se à deficiência orçamentária relativa à política de seguridade social, alguns órgãos tomaram a iniciativa de fazer um balanço sobre a questão da seguridade social, os quais são: Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), Tribunal de Contas da União (TCU), entre outros. E então, "como resultado da pesquisa, os dados demonstram que o sistema de seguridade social é viável". Portanto, por meio da DRU, ocorre uma perversa "alquimia", que transforma os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário. Por consequência, esses recursos são utilizados para pagar os juros da dívida (p. 232).

Evilasio Salvador traz com cuidado e riqueza de detalhes o estudo que mostra as receitas e despesas específicas das políticas da seguridade social e dos subprogramas contidas no Plano Plurianual — 2000 a 2003 e 2004 a 2007. Pode-se concluir que o Estado não põe em discussão tal tema pela ausência de compromisso com a defesa dos direitos dos cidadãos, bem como não trata da retração orçamentária na política de seguridade social. Ao mesmo tempo, incentiva a população a buscar soluções no âmbito privado.

No sexto e último capítulo, o capital portador de juros: sócio privilegiado do fundo público no Brasil. Segue como eixo de análise a política fiscal e monetária a serviço do capital portador de juros; DRU: apropriação do fundo público da seguridade social para a valorização do capital financeiro; LRF: o instrumento de apropriação financeira do orçamento brasileiro.

Segue o autor, no lado dos gastos, a prioridade do fundo público tem sido o pagamento de juros e a amortização da dívida. As despesas financeiras, que representavam 26,86% dos orçamentos de seguridade social e fiscal, em 2004, subiram para 30,77% em 2007. O valor pago com juros e amortizações da dívida, nos quatro anos de PPA — 2004/2007 — é duas vezes superior ao montante dos gastos da União com assistência social, saúde, trabalho, educação, cultura, direitos da cidadania, habitação, saneamento, gestão ambiental, organização agrária, desportos.

A política econômica adotada, entretanto, sustenta-se, de forma articulada, em três setores produtivos: privado nacional, privado estrangeiro e estatal. Articulados entre si, esses setores definem a política monetária brasileira (desenvolvimento interno e na distribuição baseada no crescimento de renda). Não conta apenas com o apoio da Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp), mas também com o apoio da Central Única de Trabalhadores (CUT). Mais do que isso, o lugar em que se decide a política monetária é o Comitê de Política Monetária (Copom), composto por sete técnicos, dentre os quais integrantes do Banco Central e consultor do FMI. Esse grupo define os rumos da economia brasileira, assim como as taxas de juros usadas para o pagamento da dívida pública, cujos resultados são a criação do superávit primário e a elevada carga tributária, o que atende aos interesses das grandes fortunas.

A dívida pública é o resultado da política de controle da inflação, adotada pelo governo federal. Diante da crise da década de 1990, o governo brasileiro recorreu ao FMI (1998). O regime imposto por esse Fundo (Decreto n. 3.088, em junho de 1999) era a sistemática de "metas de inflação". Como solução, o Banco Central criou a taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) — com uma taxa de juros como instrumento de controle inflacionário. Tal opção tem comprometido o orçamento público, aplicando a DRU, e prejudicado fortemente as políticas sociais, em especial a seguridade social.

Certamente esta resenha não contempla a riqueza do estudo feita pelo autor. Portanto, não se esgota aqui. Ao contrário, pode-se dizer que pelo tema, pela forma elucidativa, pela riqueza de detalhes da obra de Evilasio Salvador, torna-se sabido: não seremos os mesmos. É impossível tornar-se indiferente. Não se trata do verdadeiro e do falso, nem da luta de classes entre dominantes e dominados. Trata-se de analisar, com responsabilidade, o nível de comprometimento do Estado brasileiro junto à classe econômica brasileira, constituída de um dilaceramento dos recursos públicos para manter-se no poder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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