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VISITA DOMICILIÁRIA: TECNOLOGIA DE CUIDADO UTILIZADA PELO ENFERMEIRO NA DEFESA DA SAÚDE DA CRIANÇA1 1 Extraído da Tese - Em defesa da saúde da criança: o cuidado de enfermagem e o direito à saúde no contexto da atenção primária. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), Universidade de São Paulo (USP), em 2012.

Resumos

Este estudo objetivou identificar elementos do cuidado em favor da infância na visita domiciliária, a partir de narrativas de enfermeiros, na perspectiva do cuidado e da defesa do direito à saúde da criança. Trata-se de estudo exploratório com análise qualitativa temática dos dados, fundamentado em aspectos conceituais do cuidado e do direito à saúde, a partir de entrevistas com 14 enfermeiros atuantes na Estratégia Saúde da Família. As narrativas sobre as ações do enfermeiro na visita domiciliária evidenciaram medidas de proteção à saúde infantil, organizadas nos temas: Observação e intervenção para o cuidado da criança em casa; Apreensão de situações de violação de direitos; Vulnerabilidades na infância com pais usuários de álcool e outras drogas. A visita domiciliária mostrou-se como ferramenta fundamental para a prática clínica em atenção primária à saúde, constituindo espaço privilegiado para a atenção da enfermagem à criança e ao contexto familiar, na advocacia pela saúde infantil.

Saúde da criança; Visita domiciliar; Enfermagem pediátrica; Enfermagem em saúde comunitária; Direito à saúde


This study aimed to identify elements of care designed to protect children during home visits, from narratives of nurses, from the perspective of care and advocacy for the right to health of children. This is an exploratory study using qualitative thematic analysis, based on conceptual aspects of care and the right to health, from interviews with 14 nurses working in the Family Health Strategy. The narratives about the actions of nurses in home visits show protective measures of child health, organized into themes: observation and intervention for child care at home; arrest of situations of rights violation; child vulnerabilities with parental users of alcohol and other drugs. The home visit proved to be a fundamental tool for clinical practice in primary health care, constituting a privileged space for the nursing care of the child, and a family context for child health advocacy.

Child health; Home visit; Pediatric nursing; Community health nursing; Right to health


Este estudio tuvo como objetivo identificar elementos de cuidado favorables a la infancia en la visita domiciliaria, desde las narrativas de enfermeros, en la perspectiva de la atención y de la defensa del derecho a la salud de los niños. Estudio exploratorio con análisis temático cualitativo, basado en aspectos conceptuales del cuidado y derecho a la salud, a través de entrevistas con 14 enfermeros que trabajan en la Estrategia de Salud Familiar. Narrativas muestran las medidas de protección de la salud infantil, organizada por temas: Observación e intervención para el cuidado del niño en el hogar; Incautación de situaciones de violación de derechos; La vulnerabilidad en la infancia con padres usuarios de alcohol y otras drogas. La visita domiciliaria es una herramienta esencial de la práctica clínica en la atención primaria de salud, que constituye un espacio privilegiado para los cuidados de enfermería al niño y al contexto familiar en la defensa de la salud infantil.

Salud del niño; Visita domiciliaria; Enfermería pediátrica; Enfermería en salud comunitaria; Derecho a la salud


INTRODUÇÃO

O cuidado da criança, no âmbito da atenção primária à saúde, visa assegurar o seguimento e vigilância do crescimento e desenvolvimento infantil, de modo integral e longitudinal,11. Mello DF, Furtado MCC, Fonseca LMM, Pina JC. Seguimento da saúde da criança e a longitudinalidade do cuidado. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):675-9. sendo fundamentais a atenção às necessidades essenciais da criança e a análise das situações vulneráveis da mesma e da família, frente às condições adversas para seu desenvolvimento.22. Silva DI, Chiesa AM, Veríssimo MLOR, Mazza VA. Vulnerability of children in adverse situations to their development: proposed analytical matrix. Rev Esc Enferm USP. 2013; 47(6):1397-402.

Ressalta-se a relevância de que profissionais de saúde reconheçam as necessidades dos indivíduos e ofereçam recursos para que as mesmas sejam supridas, especialmente aqueles atuantes na Estratégia Saúde da Família, a qual se configura como uma proposta de reorientação do modelo assistencial, "com vistas à intervenção resolutiva e de qualidade para mudar suas condições de saúde".3:203

Considerando que o processo de interação da criança com o ambiente é fulcral para a saúde e desenvolvimento dela mesma, os cuidados familiares e as condições do domicílio são elementos que devem ser o foco de atenção do profissional de saúde. Nesse sentido, a visita domiciliária (VD) pode contribuir de forma valiosa para a promoção da saúde, prevenção de agravos, medidas terapêuticas e de recuperação da saúde.

A atenção à saúde da criança no domicílio e a VD têm sido temáticas relevantes e de interesse em pesquisas.44. Henderson S. Community Child Health (CCH) nurses' experience of home visits for new mothers: a quality improvement project. Contemp Nurse. 2009; 34(1):66-76.

5. Appleton JV, Harris M, Oates J, Kelly C. Evaluating health visitor assessments of mother-infant interactions: a mixed methods study. Int J Nurs Stud. 2013; 50(1):5-15.

6. Monsen KA, Fulkerson JA, Lytton AB, Taft LL, Schwichtenberg LD, Martin KS. Comparing maternal child health problems and outcomes across public health nursing agencies. Matern Child Health J. 2010; 14(3):412-21.
-77. Monsen KA, Radosevich DM, Kerr MJ, Fulkerson JA. Public health nurses tailor interventions for families at risk. Public Health Nurs. 2011; 28(2):119-28. Em saúde da criança, a VD é apontada com as finalidades de promover saúde para o crescimento e desenvolvimento saudáveis,44. Henderson S. Community Child Health (CCH) nurses' experience of home visits for new mothers: a quality improvement project. Contemp Nurse. 2009; 34(1):66-76. de avaliar a interação mãe-filho e a atenção à criança,55. Appleton JV, Harris M, Oates J, Kelly C. Evaluating health visitor assessments of mother-infant interactions: a mixed methods study. Int J Nurs Stud. 2013; 50(1):5-15. de identificar situações vulneráveis,66. Monsen KA, Fulkerson JA, Lytton AB, Taft LL, Schwichtenberg LD, Martin KS. Comparing maternal child health problems and outcomes across public health nursing agencies. Matern Child Health J. 2010; 14(3):412-21. bem como para colaborar com a melhoria das trajetórias de mulheres, crianças e famílias.77. Monsen KA, Radosevich DM, Kerr MJ, Fulkerson JA. Public health nurses tailor interventions for families at risk. Public Health Nurs. 2011; 28(2):119-28.

Contudo, aspectos da VD no contexto da defesa do direito à saúde da criança são pouco difundidos, particularmente na área da enfermagem.88. Andrade RD, Santos JS, Pina JC, Furtado MCC, Mello DF. Integrality of actions among professionals and services: a necessity for child's right to health. Esc Anna Nery. 2013; 17(4):772-80.-99. Ventura CAA, Mello DF, Andrade RD, Mendes IAC. Aliança da enfermagem com o usuário na defesa do SUS. Rev Bras Enferm. 2012; 65(6):893-8. Assim, o presente estudo teve como objetivo identificar elementos do cuidado em favor da infância na VD, a partir de narrativas de enfermeiros, na perspectiva do cuidado e da defesa do direito à saúde da criança.

MÉTODO

Estudo exploratório com análise qualitativa dos dados, fundamentado no cuidado, compreendido como uma interação entre os sujeitos, buscando uma atenção à saúde de base dialógica,1010. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro (RJ): CEPESC/IMS-UERJ: ABRASCO; 2009. e no direito à saúde, vislumbrado como um direito fundamental que pressupõe iniciativas concretas do Estado para a sua garantia.1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9.

A pesquisa foi realizada no município de Passos-MG, com enfermeiros que atuam em unidades de saúde da família (USF). O município conta com 17 equipes de saúde da família, cada uma com um enfermeiro, e cobre precisamente 73% da população local. O convite para o estudo foi efetuado a todos os enfermeiros atuantes em unidade com ESF. Houve recusa de um e dois estavam em licença-saúde, resultando um total de 14 enfermeiros participantes.

Em uma breve descrição das características dos participantes deste estudo, pontua-se que 12 eram do sexo feminino, oito tinham entre 30 a 34 anos, seis haviam concluído a graduação em enfermagem entre quatro a seis anos, e sete possuíam entre quatro a seis anos de atuação na Estratégia Saúde da Família.

A coleta de dados foi realizada em 2012, por meio de entrevistas semiestruturadas e gravadas, dando estímulo aos relatos de forma livre,1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo (SP): Hucitec; 2010. com duração por volta de 40 a 80 minutos, permitindo que narrassem sobre o cuidado da criança e sua família, com ênfase na defesa da saúde da criança, no contexto da VD. As entrevistas foram realizadas nas USF, e iniciadas pela seguinte questão norteadora: "Você poderia me contar alguma situação em que vivenciou a necessidade de algum tipo de defesa em favor da saúde da criança?"

Todo o material foi digitado e organizado em arquivos individuais. Na análise, buscou-se identificar e discutir significados organizadores nas narrativas dos enfermeiros, acerca de situações e ações relativas à prática em VD, na perspectiva do cuidado e da defesa do direito à saúde.1010. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro (RJ): CEPESC/IMS-UERJ: ABRASCO; 2009.-1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9. Para tanto, foram percorridas as seguintes etapas da análise de conteúdo modalidade temática:1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo (SP): Hucitec; 2010. a) leitura preliminar do material, buscando mapear os sentidos atribuídos pelos sujeitos; b) interpretação dos conteúdos frente aos sentidos orientadores de seus relatos; c) elaboração de síntese interpretativa e organização em unidades temáticas de significados. Na descrição dos resultados, os participantes foram denominados como E1, E2 até E14.

A investigação obteve autorização da Secretaria Municipal de Saúde e aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, sob o parecer nº 25/2011 da Fundação de Ensino Superior de Passos (FESP), e seguiu as recomendações para a pesquisa com seres humanos, com aceite explícito dos participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Os resultados foram agrupados em unidades temáticas que traduzem os aspectos relativos à prática dos enfermeiros no contexto da VD, a saber: Observação e intervenção para o cuidado da criança em casa; Apreensão de situações de violação de direitos; Vulnerabilidades na infância com pais usuários de álcool e outras drogas.

Observação e intervenção para o cuidado da criança em casa

A VD configura-se, na concepção dos enfermeiros, como um momento propício para a vigilância à saúde, pois possibilita observação e avaliação não somente das condições da criança, mas de sua situação de vida, da identificação de vulnerabilidades e realização de orientações preventivas, solicitação da atuação de outros profissionais e serviços, bem como proporcionar comunicação entre a equipe.

Quando a família não utiliza com regularidade os serviços de saúde, torna-se ainda mais importante a atitude de vigilância e de proteção da saúde infantil por parte dos profissionais.

Aquelas mães rebeldes, que não trazem para pesar, a gente vai, eu mesma vou atrás, vou conversar, saber por quê. A gente, só de ver a casa, já vê que é situação mais precária mesmo, esses casos que as mães não trazem precisam ser analisados (E6).

Contudo, o reconhecimento das condições de vida da criança possibilitado pela VD, especialmente das famílias que comparecem pouco ao serviço, gera demandas adicionais de busca a outros recursos que são necessários para garantir os direitos da criança.

Uma senhora tem quarenta e dois anos e já está no décimo filho. Os filhos dela estão sem assistência, só recebem visita. Para dar assistência, o médico tem que ir lá, ela não vem aqui. As diretoras de escolas ligam aqui, perguntando o que eu posso fazer. Eu estou meio de mãos atadas. Eu pedi ajuda ao NASF [Núcleo de Apoio à Saúde da Família] e estamos unidos em prol disso, mas depende muito da mãe. Eu acho que vai ter que entrar promotor, porque a mãe, mesmo que ela queira, não tem como. Ela está com um neném novo de menos de dois meses, não fez teste de pezinho, não fez nada, está sem vacina, sem tudo. E é um atrás do outro, uma escadinha. Então, ela nem sai de casa. A nossa equipe tem que ir atrás. A necessidade dela é tudo, é alimento, é social, econômico, tudo que você imaginar, é um caso grave (E10).

A VD institucionalizada é introjetada pelo profissional e a ele refere autonomia para estar mais próximo e atuar nos domicílios. A permanência do enfermeiro na área de abrangência é também um fator facilitador para conhecer e ter proximidade das famílias.

Eu tenho liberdade de ir à casa. Então, eu acho muito bom, porque quanto mais a gente vai ficando na área, aí você vai conhecendo mais e tendo mais liberdade (E3).

A VD também é vista como uma boa resposta do serviço a uma demanda previsível de cuidado, como a necessidade de atenção e apoio à nutriz na amamentação, ação esta articulada a outras, como o pré-natal, na direção de um cuidado longitudinal e integral.

A gente tem trabalhado a amamentação no curso de gestante. E elas têm ficado empolgadas a amamentar. E a gente já deixa a abertura, porque a dificuldade vai vir quando o neném chegar, quando o peito rachar, quando ficar todo ingurgitado. E aí vai precisar do apoio do profissional, e se o profissional não estiver ali naquela hora, é ali que ela vai parar. Então, a gente tem que estar preparado para dar assistência na hora que isso acontecer, fazer visita e ajudar (E8).

A visita no período do puerpério configurou-se como importante espaço de cuidado à criança e à mulher, com extensão à família. Destacou-se o apoio à mãe-mulher, na compreensão do período pós-parto, como um momento de sensibilidade emocional e complexidade familiar.

Tive um caso de uma mãe que não estava conseguindo amamentar de jeito nenhum. Ela estava nervosa e falando até em separação do marido. Aí cheguei, sentei, ajudei-a a amamentar, a criança demorou um pouco, mas conseguiu... conversando com ela, dizendo: olha é uma coisa nova, é família, você tem que ir com paciência'. É um momento de muita sensibilidade, tanto pra mulher quanto pra família (E1).

Há situações em que as decisões maternas são difíceis de serem aceitas pelos profissionais, como casos em que a mãe se recusa a amamentar, a despeito de não ter recursos para alimentar bem sua criança de outra forma. Isso exige dos profissionais que realizam a VD um posicionamento mais sensível, sem emissão de juízo de valor, uma melhor compreensão da complexidade e singularidade que envolve cada binômio mãe-filho e sua família, além de providências para que os direitos da criança sejam garantidos de alguma forma.

Eu tive uma mãe adolescente [...] eu fui lá, o leite caía, estava ingurgitada. A casa, uma sujeira, uma pobreza, não sabia quem era o pai. Eu fui lá, o peito não tinha nem condição, falei: 'Vamos lavar essa mama primeiro'. Ela falou: 'Não adianta, não vou dar o peito!' Eu falei: 'Mas por quê? Olha o tanto de leite que você tem!'. Ela falou: 'Mas eu não tenho bico...' Aí falei: 'Mas eu também não tinha, eu amamentei. Eu vou te ajudar.' 'Não, eu não vou amamentar', insistia ela. E foi mesmo, ela não deu o peito. Mesmo com a condição difícil, pobreza, paupérrimo, não tinham nada! Mas, aí ganhou leite, entrou na bolsa família. Isso deve ter um ano, que até a doutora ficou muito brava com ela, mas ela continuou: 'Não, não tem bico, dói demais, eu não gosto'. Aí não tem como! (E7).

A VD tem sido um momento destinado a observar e avaliar questões culturais e atuais, impactadas pela realidade social, assim como tem possibilitado identificar tendências à maior vulnerabilidade em relação à qualidade da alimentação na infância. Os profissionais alegam que, atualmente, mães e pais dedicam menos tempo a seus lares. Apontam também que os cuidados para com a alimentação têm influência da mídia e de um consumo de alimentos de fácil e rápido preparo em detrimento ao natural e saudável.

A gente percebe dentro das casas que a alimentação saudável é algo muito distante. É difícil, porque a indústria pega muito pesado. Nos casos de sobrepeso, a gente tenta também ver o que está acontecendo em casa. Se a mãe está usando mais produtos industrializados a gente orienta a cortar. Se a gente vê que não obtêm resultado, a nutricionista também vai (E9).

A gente tem observado, através das visitas, que as adolescentes não se preocupam muito nem com a alimentação delas e muito menos com a da criança. Porque até certa idade é uma alimentação diferenciada da alimentação da família, e elas ficam desanimadas de preparar. Tem uma que está perdendo peso porque a mãe fica com preguiça de ir para a cozinha. Então, acaba deixando a criança só com leite, que é fácil, você coloca na mamadeira e põe na boca do neném, ele mama sozinho. Quando chegamos na residência é isso que encontramos. Sem contar a dificuldade para você dar a alimentação para o neném, o tempão que leva. Adolescentes não têm paciência (E8).

Para garantir o direito da criança, é imprescindível caracterizar as causas das dificuldades da família em prover o cuidado adequado a ela e direcionar ações compatíveis, o que é favorecido com a VD.

A alimentação da criança, às vezes, é deficiente por falta de condição, outras vezes por falta de vontade da mãe. A gente avalia melhor isso na visita. Quando é caso de falta de vontade, a gente tenta orientar que só o leite não vai ser suficiente para um bom desenvolvimento. Agora, quando você vê que é caso de carência, a gente encaminha para conseguir cestas nas igrejas, multimistura com a Pastoral, a gente procura esses suportes (E8).

Apreensão de situações de violação de direitos

A VD é valorizada pelos enfermeiros e vista como uma forma de promover a garantia dos direitos da criança, com possibilidade de identificar situações de vulnerabilidade. Um dos aspectos de vulnerabilidade destacado, decorre das mudanças sociais e funcionamento das famílias, e nem sempre são acompanhadas de medidas compatíveis ao cuidado cotidiano das crianças, o que gera preocupação aos profissionais.

A gente vê que a população, de um modo geral, está passando por uma mudança, as mães estão trabalhando, está mudando a cultura de mãe ficar em casa e homem ir trabalhar. Então, eu acho que são muitas coisas interligadas. A mãe, às vezes, não tem tempo de ficar com a criança e, de repente, não dá uma educação como deveria, e fecha os olhos para as coisas que possam estar acontecendo. E aí vão acontecendo uma avalanche de coisas (E12).

Na VD é possível não somente detectar situações de negligência e suas consequências, como também prover cuidados adequados à criança. Em uma situação de ferimento infantil grave, o procedimento de curativo domiciliar pode favorecer um maior conforto numa situação já traumática e dolorosa, resultando em maior humanização do atendimento realizado no espaço particular da criança, por meio de VD.

A mãe deixava a criança muito desleixada. Um dia, ela foi dar banho, esquentou a água e depois pôs no chão, dentro da banheirinha. Não sei o que a mãe foi fazer, a menina caiu dentro da banheira, nem dois anos ela tinha. Eu e minha auxiliar íamos a casa fazer o curativo, a gente fazia chorando. Essas mães estão muito desatentas. Já era uma família que não está muito aí das crianças só ficarem na rua, jogadas (E11).

A VD tem sido uma prática para investigar casos de possíveis maus-tratos à criança. Contudo, o enfermeiro percebe um limite nessa ação, uma vez que pode haver ocultação do comportamento danoso pela própria família.

Tem uma criança de um ano, estamos fazendo visitas, também a pedido do Conselho Tutelar, a mãe já tinha três filhos, que já tinham sido tirados a guarda dela. Só que essa criança que a gente estava acompanhando, pelo que a gente observava, a mãe estava cuidando bem. Geralmente, quem presencia mais essas coisas são os vizinhos. Quando precisa, a gente tenta arrancar alguma coisa dos vizinhos (E4).

A VD tem um grande potencial de descortinar para os profissionais, indícios de situações de vulnerabilidade da criança e violação de direitos, que precisam ser confirmadas. Tais situações geram angústia aos profissionais que se veem responsáveis por atuar em defesa da criança.

Teve caso de suspeita de violência doméstica e quem me alertou foi a agente de saúde. Isso era uma suspeita que nasceu nas visitas. Ela ficou com medo porque a criança ficava muito sozinha. A família já tem um histórico de problema mental, a gente ficou com medo do tio, que morava perto, estar molestando a criança. São visitas complicadas para nós (E1).

O entendimento de que a criança é um ser extremamente vulnerável e frágil na sua autoadvocacia, mostra que a ampliação da compreensão de situações de violação de direitos vivenciadas pela criança, assim como o exercício da defesa, configura-se como desafios relevantes para os profissionais de saúde.

Vulnerabilidades na infância com pais usuários de álcool e outras drogas

Situações de dependência química dos pais, que repercutem negativamente na saúde e na qualidade de vida das crianças, são apontadas como limitantes às ações de proteção à criança. As circunstâncias relatadas retratam dificuldades familiares, em que coexiste o uso de drogas com outras problemáticas, as quais interferem na saúde e no bem estar da criança, colocando-a em situação de vulnerabilidade, além do que se mostra comprometido o potencial de parceria com essa família. Esse quadro torna o cuidado complexo e a VD de extrema importância.

A mãe é totalmente descompensada, tem só dezesseis anos e o parceiro quarenta e tantos. A menina está bem descuidada, está desnutrida. Estamos tentando orientar, conscientizar. O pai é caminhoneiro, fica mais na estrada do que aqui e quando vem está tonto [alcoolizado]. Ela mora no fundo da casa da sogra. A gente chamou a sogra para conversar. A sogra falou que estava tentando ajudar, só que ela não aceita ajuda. O pai bebe muito. A menina está só perdendo peso (E7).

Uma avó que tem um transtorno psiquiátrico grave tinha a guarda de uma menina. O avô é alcoólatra. Um dia ligaram do CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social] para perguntar a respeito da mãe da menina, mas ela não mora na residência. A mãe teve uma tentativa de autoextermínio, recente. Aí, à medida que a gente foi acompanhando a família, a gente descobriu que a mãe é dependente de crack. Então, a gente enfrenta situações muito complexas (E2).

Assim, o enfermeiro depara-se com casos em que a família não só é incapaz de prover segurança à criança, como é fonte de alto risco à sua integridade. Nessas situações, a defesa da criança demanda ações de outros setores, como a justiça e a assistência social, com intervenções que estão fora do âmbito de ação exclusiva da saúde.

Ela ganhou o bebê e era usuária de drogas e de álcool, e o parceiro também. A gente via que não existia possibilidade. Eles não tinham parentes. A nossa alternativa foi passar o caso para o serviço social, na época ainda não tinha CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] CREAS, nem o NASF [Núcleo de Apoio à Saúde da Família]. A gente passou para a assistente social do Fórum mesmo. Ela conseguiu tomar as providências, e acabou que as crianças tiveram que ser retiradas da mãe, por causa do risco, o risco muito alto, não existia possibilidade. Eu acho que no nosso trabalho aqui, a gente tem que tomar bastante cuidado nessas questões, porque envolve muitos fatores. São usuários ligados a traficantes, mas, ao mesmo tempo, a gente tem que tentar preservar a integridadedas crianças (E9).

As consequências de dependência química em detrimento à qualidade de vida dos filhos foram apontadas, e contribuem para que a criança fique exposta às situações de vulnerabilidade de difícil resolução.

Temos um menininho de cinco anos, é filho de mãe que usa crack. Quando nasceu ela deu para uma mulher aqui da área. Coitadinho, saiu de uma e entrou em outra. Ela tem um namorado que mexe com drogas. O menino é desorientadíssimo, não tem limites, faz o que quer, é tudo atrapalhado. Acompanhamos em visita, em consultas e encaminhamos para o neurologista, faz acompanhamento com pediatra especializado em hiperativos, toma remédio. Mas, é o ambiente deles, você vê que o menino vai se perder, está crescendo nesse meio. É muito difícil (E13).

A mãe da menina bebe. Ela é muito educada. Na semana passada, falou que iria se suicidar, que não estava aguentando. Foi complicado. Falei com ela: 'senta, vamos conversar. Você não pode fazer isso, você tem sua filha pra cuidar, sua filha precisa de você'. E a mãe gosta dela, ela fala assim: 'essa menina é tudo para mim'. É um caso, assim, super complicado, porque é a família inteira com problema (E3).

As narrativas destacam aspectos emocionais e sociais complexos e evidenciam a criança em um contexto de fragilidade e completa dependência de cuidado e de proteção de adultos. O uso do álcool e outras drogas ilícitas mostra-se como sério agravante na violação dos direitos da criança.

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo enfatizam a necessidade de intensificar a vigilância à saúde, com aprimoramento na identificação das situações de vulnerabilidade e de mecanismos articulados para efetivar ações em rede e, desse modo, incrementar a defesa da saúde da criança e a garantia de seus direitos fundamentais, em especial o direito à saúde. Ainda, a VD na visão dos enfermeiros, reafirma-se como um diferencial no trabalho com famílias, como é o caso da ESF brasileira, e pode representar, muitas vezes, um peculiar contato da criança-família com os profissionais de saúde, a fim de identificar situações vulneráveis complexas, assim como, disparar ações necessárias.

No Brasil, o modelo da ESF propõe a reorientação da atenção básica à saúde, baseada na garantia dos princípios de universalidade, equidade, integralidade e participação, em um contexto de descentralização e controle social, buscando um cuidado longitudinal aos indivíduos e famílias territorializadas.1313. Souza MG, Mandu ENT, Elias NA. Percepções de enfermeiros sobre seu trabalho na Estratégia Saúde da Família. Texto Contexto Enferm [online]. 2013 [acesso 2014 Mar 20]; 22(3):772-9. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072013000300025&script=sci_arttext No contexto da ESF, a VD é vista enquanto tecnologia de interação no cuidado à saúde da família, com atividades potenciais para uma atenção mais humana e acolhedora, a qual permite vínculo, laços de confiança e conhecer o usuário no seu ambiente familiar, com a análise das necessidades de cada indivíduo e família,1414. Santos EM, Morais SHG. A visita domiciliar na Estratégia Saúde da Família: percepção de enfermeiros. Cogitare Enferm. 2011; 16(3):492-7.efetivando assim a realização da educação em saúde.1515. Kebian LVA, Acioli S. Visita domiciliar: espaço de práticas de cuidado do enfermeiro e do agente comunitário de saúde. Rev Enferm UERJ. 2011; 19(3):403-9.

Assim, o fato de a ESF prever a VD como uma de suas práticas cotidianas, favorece a possibilidade de que a criança e a família recebam o apoio necessário, de um modo mais próximo, contribuindo, de modo ativo, para o respeito ao direito à saúde da criança no contexto da família. Esse é um avanço da ESF, em consonância com os preceitos do direito à saúde.

Os enfermeiros têm uma intensa atuação na ESF do Brasil e, de acordo com os princípios que norteiam a ampliação e reorganização das práticas nesse âmbito, os profissionais podem ser considerados agentes para respeitar, proteger e efetivar direitos humanos.88. Andrade RD, Santos JS, Pina JC, Furtado MCC, Mello DF. Integrality of actions among professionals and services: a necessity for child's right to health. Esc Anna Nery. 2013; 17(4):772-80.-99. Ventura CAA, Mello DF, Andrade RD, Mendes IAC. Aliança da enfermagem com o usuário na defesa do SUS. Rev Bras Enferm. 2012; 65(6):893-8.,1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9.

No presente estudo, as intervenções de enfermeiros em VD, relatadas para o período do puerpério, focam na proteção do aleitamento materno e qualidade de vida da criança. Na defesa da amamentação, evidenciou-se que a conexão de múltiplas ações pode alcançar impacto positivo, sendo citado, por exemplo, o curso de gestantes e a visita de puerpério. Também, a participação dos profissionais no acompanhamento do pré-natal mostrou-se um elemento diferencial na qualidade do vínculo que se estende depois do nascimento, e que é fundamental no potencial de defesa da saúde da criança.

Estudos sobre os benefícios da VD abordam as experiências de enfermeiros com mães jovens,44. Henderson S. Community Child Health (CCH) nurses' experience of home visits for new mothers: a quality improvement project. Contemp Nurse. 2009; 34(1):66-76. com incremento da saúde da mulher e da criança, das habilidades parentais e com contribuições para avaliar a interação mãe-filho.55. Appleton JV, Harris M, Oates J, Kelly C. Evaluating health visitor assessments of mother-infant interactions: a mixed methods study. Int J Nurs Stud. 2013; 50(1):5-15. Outro estudo demonstrou que as mães que receberam VD de enfermeiros, foram emocionalmente e verbalmente mais responsivas durante os dois primeiros anos de vida de seus filhos, como também a duração da amamentação tivesse sido mais longa, enquanto que àquelas mães que não receberam tais visitas regularmente, não mostraram bom resultado.1616. Kemp L, Harris E, McMahon C, Matthey S, Vimpani G, Anderson T, et al. Child and family outcomes of a long-term nurse home visitation programme: a randomised controlled trial. Arch Dis Child. 2011; 96(6):533-40.

Alguns relatos sugeriram atitudes profissionais na amamentação, de certa forma, autoritárias, tanto da enfermeira quanto da médica. Nem sempre o modo como os profissionais de saúde defendem o aleitamento materno obtém o resultado esperado. Emissões de juízos de valor devem ser analisadas como a escolha da pessoa por amamentar ou não, entendida como direito da mulher. O aconselhamento em aleitamento materno exige que se reconheça a mulher como pessoa, buscando compreender seus problemas e dificuldades.

A adesão ao aleitamento materno e as abordagens dos profissionais sobre essa adesão, se forem realizadas de modo dogmático, podem criar um afastamento das mulheres e famílias dos serviços de saúde. Dessa forma, se tomarmos o aleitamento materno como direito exclusivo da criança, pode-se criar uma situação danosa,1717. Souza SDH, Mello DF, Ayres JRCM. O aleitamento materno na perspectiva da vulnerabilidade programática e do cuidado. Cad Saúde Pública. 2013; 29(6):1186-94. porque faz com que a mulher-mãe passe de detentora de prerrogativas para cumpridora de deveres, podendo gerar conflitos emocionais. Assim, o desenvolvimento de ações de saúde poderia ser visto como autoritário, e as mulheres ficariam vulneráveis à restrição de liberdade, à discriminação, entre outras violações.1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9.

No tocante à alimentação da criança, as narrativas dos enfermeiros entrevistados apontam que fatores como baixa escolaridade materna, a ausência do pai no domicílio e o hábito de não realizar as refeições à mesa, sugerem aumentar a possibilidade de a criança consumir uma alimentação precária. Estudo destaca que a baixa escolaridade materna pode vir atrelada à falta de acesso a alimentos saudáveis e informações adequadas, bem como à menor capacidade de discernir o que é saudável, refletindo na infância, fase de consolidação de hábitos alimentares e estilos de vida.1818. Molina MCB, Lopéz PM, Faria CP, Cade NV, Zandonade E. Preditores socioeconômicos da qualidade da alimentação de crianças. Rev Saude Publica. 2010; 44(5):785-92. Outro aspecto importante a destacar são as intervenções destinadas a educar e capacitar os pais, para que exerçam estratégias parentais positivas, as quais permitam promover alimentação e atividade física saudáveis.1919. Flores-Pena Y, Ortiz-Félix RE, Cárdenas-Villarreal VM, Ávila-Alpirez H, Alba-Alba CM, Hernández-Carranco RG. Maternal eating and physical activity strategies and their relation with children's nutritional status. Rev Latino-am Enfermagem. 2014; 22(2):286-92.

Situações de privação de crianças em domicílio foram narradas pelos enfermeiros, contrapondo à ideia da família como lugar de proteção, segurança e cuidado. O uso de álcool e drogas pelos pais apresentou-se como uma situação complexa e delicada, de difícil intervenção e altamente negativa para o bem estar infantil. As ações desenvolvidas pelo enfermeiro devem estar voltadas para prevenir o uso de substâncias químicas entre diversas clientelas, tornando-se, em última instância, uma ação em defesa da saúde e qualidade de vida das crianças. Nesse sentido, é preciso reconhecer o fato de que a família pode tornar-se o foco do conflito, revelando-se como o espaço silencioso da violação de direitos da criança, onde há violências de diversas ordens (psicológica, negligente, física ou sexual), com agressão, exploração, e/ou drogadição, podendo desencadear sequelas e até a morte.2020. Nery MA. A convivência familiar e comunitária é direito da criança e do adolescente e uma realidade a ser repensada pela escola. Cad Cedes. 2010; 30(81):189-207.-2121. Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Jorge MHM, Silva CM, Minayo MCS. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet. 2011; 377(9781):1962-75.

No compromisso de fazer o máximo para descortinar o que se passa com a criança, os profissionais criam suas próprias ferramentas, como buscar informações complementares com os vizinhos, reconhecendo-os como fontes de relatos importantes, o que pode ser o ponto de partida para ações, muitas vezes urgentes, de proteção e defesa da criança. Mas a equipe precisa ser cuidadosa e desenvolver a habilidade de comunicação, tornando-se capaz de obter informações de forma humanizada, respeitando os preceitos éticos do trabalho com famílias. A abordagem da violência infantil requer intervenção interdisciplinar e intersetorial, e a notificação pode levar o problema identificado no serviço de saúde para outros espaços, estabelecendo parcerias, cuja ação tem se mostrado imprescindível.2222. Luna GLM, Ferreira RC, Vieira LJES. Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes por profissionais da equipe saúde da família. Cienc Saude Colet. 2010; 15(2):481-91.

Na visão dos enfermeiros, as situações de dependência química dos pais limitam o impacto das ações em prol das crianças, tornando a vulnerabilidade ainda maior. No entanto, mesmo diante de inúmeras dificuldades, as VDs podem contribuir muito com ações necessárias nos sérios problemas relacionados à saúde.66. Monsen KA, Fulkerson JA, Lytton AB, Taft LL, Schwichtenberg LD, Martin KS. Comparing maternal child health problems and outcomes across public health nursing agencies. Matern Child Health J. 2010; 14(3):412-21. De certo modo, os resultados apresentados sugerem a necessidade de incremento de diretrizes políticas que caminhem de maneira atrelada ao trabalho das equipes de ESF locais e as necessidades de saúde das famílias, como o caso da atuação de um Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), com vistas à integração das ações desenvolvidas em rede.2323. Ventura CAA, Araújo AS, Moll MF. Dimensões organizacionais de um Centro de Atenção Psicossocial para dependentes químicos. Acta Paul Enferm. 2011; 24(5):650-5.

Leis e políticas públicas brasileiras, a exemplo da Constituição Brasileira de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente, Política Nacional do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, preconizam que toda criança e adolescente têm direito a uma família, cujos vínculos devem ser protegidos pelo Estado e pela sociedade; sendo que diante da vulnerabilidade social ou pessoal e da fragilização familiar, as estratégias de intervenção junto à família devem priorizar ações para fortalecer ou refazer vínculos, ou ainda estimular a formação deles, aliando apoio socioeconômico à elaboração de novas formas de interação e de acesso aos bens e serviços públicos; reconhecendo a necessidade de visão multidisciplinar e intersetorial para dar respostas à complexidade das situações.2020. Nery MA. A convivência familiar e comunitária é direito da criança e do adolescente e uma realidade a ser repensada pela escola. Cad Cedes. 2010; 30(81):189-207.

As relações entre saúde pública e direitos humanos precisam ser efetivas para garantir que o cuidado em saúde seja um direito humano, e reafirmar que a percepção e a construção radical de nossa comunidade humana de destinos configuram-se como uma tarefa possível e necessária na saúde tanto quanto no direito.1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9.

Há ainda que se destacar que o direito à saúde, enquanto um direito fundamental, deve ser conjeturado sob a ótica do princípio da proteção integral, conformado a partir de uma rede de proteção específica, com direitos e garantias amplos e especiais, e uma ressignificação da visão do sujeito criança e da infância enquanto um processo de absoluta prioridade.2424. Oliveira CGS, Beithum DF, Lima DT. O direito fundamental à saúde e o princípio da proteção integral da criança e do adolescente. Rev Direito Publico. 2011; 6(2):184-201.

A família é um espaço onde a criança tem o direito de crescer com proteção, afeto e cuidados, aspectos que importantes para diferentes categorias de profissionais que atuam junto à população infantil, mas deve ser relevante também, o reconhecimento de que na abordagem familiar pode envolver experiências diversas, carregadas de representações, opiniões e reações.2020. Nery MA. A convivência familiar e comunitária é direito da criança e do adolescente e uma realidade a ser repensada pela escola. Cad Cedes. 2010; 30(81):189-207.

Os pais e a família são considerados figuras primárias de cuidado e proteção da criança; e os profissionais que atendem essa clientela podem ter condições e conhecimentos ligados à defesa dos direitos das crianças, além de ocuparem espaço de proximidade que permite a identificação de demandas, necessidades e ou violações, compondo uma posição de grande responsabilidade em relação ao bem-estar infantil.88. Andrade RD, Santos JS, Pina JC, Furtado MCC, Mello DF. Integrality of actions among professionals and services: a necessity for child's right to health. Esc Anna Nery. 2013; 17(4):772-80.,1111. França Júnior I, Ayres JRCM. Saúde pública e direitos humanos. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo (SP): Edições Loyola; 2009. p. 63-9.

É importante que os enfermeiros direcionem seu trabalho para os princípios da atenção básica, contemplando a integralidade e o vínculo com a população adstrita, tendo em vista a realização de acompanhamento longitudinal e o desenvolvimento de ações de cuidado e responsabilização compartilhada com o usuário para a resolução dos problemas.2525. Matumoto S, Vieira KCS, Pereira MJB, Santos CB, Fortuna CM, Mishima SM. Production of nursing care in primary health care services. Rev Latino-am Enfermagem. 2012; 20(4):710-7. A partir da análise das narrativas dos enfermeiros, notam-se diferentes aspectos sobre os direitos das crianças, com enfoques centrados na proteção à vida, direito à convivência familiar e na comunidade, exercício da cidadania e liberdade.

CONCLUSÃO

A visita domiciliária mostrou-se como uma ferramenta fundamental para a prática clínica em atenção primária à saúde, constituindo-se espaço privilegiado para a atenção de enfermagem à criança e seu contexto familiar na advocacia pela saúde infantil. Notou-se uma prática que exige adensamento da vigilância à saúde, identificação e clareza de situações de vulnerabilidade e mecanismos cooperativos das ações em rede, para favorecer as intervenções em defesa do direito à saúde da criança. Também constitui momento de cuidado complexo, particularmente em situações que envolvem hábitos de vida construídos socialmente e na história particular e cultural da família.

Essas questões exigem atitudes profissionais de cuidado longitudinal, pautadas na ponderação, na ética e na postura perseverante, que são aspectos importantes no trabalho com famílias. Assim, na prática profissional do enfermeiro, são vitais a habilidade, a iniciativa e a ação de defesa, que implicam estabelecimento de interações intersubjetivas. O domicílio representa um espaço privilegiado para a atenção de enfermagem à criança, com ênfase no cuidado integral da família, buscando subsídios para a constituição de saberes, e práticas no contexto da advocacia em saúde, no âmbito da atenção primária em saúde.

Cabe ressaltar que as situações evidenciadas nas narrativas dos enfermeiros são complexas e relevantes para a prática clínica na atenção primária à saúde. O presente estudo apresenta a limitação de ter abordado apenas a percepção dos enfermeiros que atuam em unidades com a ESF, sendo importante expandir para pesquisas que investiguem a visão das famílias e de outros agentes sociais, bem como a observação do cuidado e a análise de mecanismos para ampliar a defesa da saúde da criança em diferentes cenários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Nov 2015
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2015
  • Aceito
    17 Ago 2015
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