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Gênero, escravidão e religião: a liberdade de Flora Blumer sob a perspectiva da missionária norte-americana Martha Watts (1881-1892)

Gender, slavery and religion: Flora’s freedom from the perspective of American missionary Martha Watts (1881-1892)

Resumo:

O artigo busca abrir uma fresta para vislumbrar a história de uma mulher negra chamada Flora Maria Blumer de Toledo e da missionária Martha Watts, atentando nas questões de gênero, escravidão e religião. O estudo versa sobre o caso de alforria de Flora e sua prestação de serviço como cozinheira a uma escola metodista de Piracicaba (SP), dirigida por Watts. Embora diversos estudos mencionem determinadas questões relativas à prestação de serviços domésticos pelas libertas durante o Oitocentos, o caso de Flora amplia o leque de diversidade, dado que seu serviço era prestado a uma escola norte-americana. O artigo vale-se de variadas fontes documentais e bibliográficas, além da coletânea de correspondências de Martha Watts publicadas originalmente pelo Woman’s Missionary Advocate, periódico da Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas dos Estados Unidos.

Palavras-chave:
Gênero; Escravidão; Religião

Abstract:

The article seeks to open a crack to glimpse the story of a black woman named Flora Maria Blumer de Toledo and the missionary Martha Watts, focusing on issues of gender, slavery and religion. The study analyses the case of Flora’s manumission and her service as a cook to a Methodist school in Piracicaba (São Paulo), directed by Martha. Although several studies mentioned certain issues related to the domestic services of freedwomen during the 1800s, Flora’s case expands the range of diversity, given that her service was provided to an American school. The article draws on various documentary and bibliographic sources, in addition to the collection of Martha Watts’ correspondence originally published by the Woman’s Missionary Advocate, a periodical of the Methodist Women’s Missionary Society of the United States.

Keywords:
Gender; Slavery; Religion

No âmbito do domínio paternalista, as experiências das mulheres negras escravizadas se refaziam constantemente ao sabor dos interesses dos seus senhores, acarretando diversas vivências experienciadas sob a dominação senhorial. Nos estertores da escravidão, o contraponto entre escravizadas e senhores era polarizado em torno da fragilidade do “corpo feminino”, o qual sofria variadas formas de dominação por parte dos senhores, tais como o controle de gestação e parto, bem como a violação sexual.1 1 Os infortúnios vividos pelas mulheres escravizadas derivavam de variadas formas de dominação e resistência em virtude de sua centralidade, enquanto trabalhadoras e reprodutoras de mão de obra, na constituição do sistema escravista atlântico. Sobre esses temas, em especial as questões de maternidade, políticas de reprodução e infanticídio, ver Morgan (2004); Turner (2017); Cowling, Machado, Paton, West (2021).

Ao debruçar-nos sobre as experiências das mulheres escravizadas nas cidades, é possível verificar que suas atividades laborais estavam concentradas em torno do trabalho doméstico e do trabalho de “ganho”, de caráter ambulante e estruturalmente residual, o qual fora pertinente no processo de sociabilização dessas mulheres. De fato, as práticas de sociabilidade permitiram contornar determinadas questões relativas à participação de mulheres escravizadas na obtenção de suas alforrias, limitando o controle das senhoras, de modo a que atuassem como sujeitas autônomas da sua própria liberdade.2 2 No cenário urbano, o polo organizacional da vida das escravizadas baseou-se nos trabalhos de caráter residual, sobretudo ambulante, em suas diversas formas: quitandeiras; lavadeiras; mucamas; amas de leite; dentre outras. Em virtude de sua mobilidade, as mulheres escravizadas constituíam variadas formas de sociabilidade, estratégias de alforrias, e até mesmo redes de parentesco no intuito de gozar maior autonomia e liberdade. Para obter mais detalhes sobre as experiências urbanas das mulheres escravizadas e suas condições de agenciamento e trabalho, ver Ariza (2020); Telles (2013); Dias (1995). Ao realizarmos uma revisão bibliográfica sobre o assunto, verificamos que a historiografia brasileira que trabalha com a variável gênero trata o deslindamento das experiências e das agências das mulheres como fator fundamental na compreensão de suas “subjetividades”. Ao nos atentarmos à questão de subjetividade nos parâmetros de sua historicidade, explorar a “diversidade dos papéis informais femininos” é relevante para o enriquecimento da “historiografia feminista” (Dias, 1994DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica da diferença. Estudos Feministas. v. 24, n. 2, p. 373-382, 1994., p. 381).

Mais exatamente, os estudos da historiadora Maria Helena P. T. Machado apresentaram instigantes conclusões a respeito da pertinência de recolocar os escravizados(as) como “agentes sociais e sujeitos históricos”, ressaltando a relevante tarefa de resgatar seus comportamentos em sua multiplicidade de formas e configurações históricas (Machado, 2018MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2018., p. 17-18). Cabe ressaltar que, ao atentarmos às questões de subjetividade e agência das mulheres negras, é fundamental ter como foco de análise concepções de gênero, raça e religião, à luz da interseccionalidade.3 3 O conceito de “interseccionalidade” tem sido abordado em diversas pesquisas interdisciplinares nos campos de história, antropologia, sociologia, entre outros. Nos parâmetros das investigações histórico-antropológicas, os estudos de Verena Stolcke contornaram determinadas questões relativas aos debates da noção de interseccionalidade entre classe social, raça, sexo/gênero e sexualidade, ressaltando a ausência de estudos concretos e empíricos para fundamentar os debates em torno das teorias feministas. Os estudos de Leticia Gregorio Canelas foram igualmente relevantes, ao analisarem as experiências vivenciadas pelas mulheres escravizadas na Martinica (Antilhas Francesas) no século XIX. Sua perspectiva de interseccionalidade concentra-se em torno de classe, raça e gênero a partir de uma abordagem histórico-social de fontes documentais baseada na pesquisa em arquivos. O presente artigo segue a mesma linha de Canelas, dado que nossa abordagem interseccional está baseada em gênero, raça e religião, buscando desvendar a história de Flora e Martha Watts a partir de suas interações e dinâmicas históricas, nos moldes de escravidão e protestantismo, com base na pesquisa documental e bibliográfica. Sobre as diversas abordagens do conceito de interseccionalidade, ver Stolcke (1974; 1993); Canelas (2017); Crenshaw (1991).

Nesse prisma, o presente artigo busca abrir uma fresta para vislumbrar a experiência de uma mulher negra chamada Flora Maria Blumer de Toledo - escravizada alforriada pela missionária norte-americana Martha Hite Watts - que foi a primeira mulher afro-brasileira a ser admitida, por meio de pública profissão de fé, em uma igreja protestante no Brasil, em 1883. Considera-se, pois, que Flora nasceu escravizada na fazenda de Mathias Dias de Toledo, de Porto Feliz, em 1834, e foi vendida aos 41 anos para família Blumer, de Piracicaba, em 1875, obtendo enfim sua alforria aos 47 anos, em 1881. Flora passou o resto de sua vida no Colégio Piracicabano, entre pastores e professores norte-americanos, até a sua morte em 1892, aos 58 anos. Sua patroa, Martha, nascida em 1848, era oriunda de Bardstown, estado do Kentucky, e aos 33 anos, por orientação da Igreja Metodista Episcopal do Sul, partiu para o Brasil para divulgação do protestantismo e para fundar uma escola destinada a filhos de imigrantes4 4 Em termos de linguagem, usaremos a expressão “imigrante” ao longo do presente artigo, contrapondo-se a outras expressões existentes como “emigrante”, “migrante” e “expatriado”. Embora todas essas expressões sejam compatíveis, adotaremos a primeira pois é a mais utilizada no campo da historiografia da imigração confederada ao Brasil. confederados da região. Serviu sua vida como educadora e missionária até a sua morte em 1909, aos 61 anos.

A pesquisa vale-se de variadas fontes documentais e bibliográficas, além das correspondências de Martha enviadas para Frank A. Butler - editora do periódico Woman’s Missionary Advocate, onde as cartas foram publicadas - da Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas (EUA). As cartas que utilizaremos, especialmente as do período da chegada de Martha à Piracicaba e da instalação do Colégio Piracicabano (1881-1895), foram reunidas em uma coletânea e publicadas por ZuleikaMesquita, da Universidade Metodista de Piracicaba (Mesquita, 2001MESQUITA, Zuleika. Evangelizar e civilizar: cartas de Martha Watts, 1881-1908. Piracicaba: Unimep, 2001.).5 5 Além do período mencionado, a coletânea contém cartas de outros períodos do trabalho de Martha no Brasil: 1) a vida em Petrópolis, quando fundou o Colégio de Petrópolis (1895-1900); 2) sua vida em Juiz de Fora, onde trabalhou no Colégio Mineiro (1902-1904); 3) último período da sua vida no país, quando trabalhou no Colégio Izabela Hendrix, em Belo Horizonte. Cumpre salientar que as missivas são importantes para compreender os principais eventos ocorridos nas localidades em que Martha atuava em sua época, oferecendo informações cruciais referentes à religião e à escravidão, para se visualizar a mentalidade de Martha, além de indícios de contextualização para se entender a figura de Flora.

A propósito, a história de Flora e Martha foi abordada brevemente por alguns pesquisadores (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011.; Ramires, 2009RAMIRES, Débora Costa. A contribuição de Mlle. Maria Rennotte na construção e implantação do projeto educacional metodista no Colégio Piracicabano. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2009.; Silva, 2008SILVA, Eliane Moura. Gênero, religião, missionarismo e identidade protestante norte-americana no Brasil ao final do século XIX e inícios do XX. Mandrágora: Gênero, Cultura e Religião, São Bernardo do Campo, n. 16, p. 25-37, 2008.), que discutiram a respeito das relações sociais e raciais dos imigrantes metodistas e do trabalho missionário das mulheres protestantes em Piracicaba, além da construção e implantação do projeto educacional do Colégio Piracicabano. Contudo, essas pesquisas não sondaram com clareza a intenção de Martha por trás da alforria de Flora, tampouco procuraram compreender com acuidade a subjetividade de Flora. Assim, o presente artigo busca lançar uma nova luz ao deslindamento da relação dessas duas mulheres. A nossa pesquisa baseia-se na hipótese de que a subjetividade de Flora foi constituída com o advento do protestantismo norte-americano, e sua alforria condicionava-se às visões de mundo de Martha, dado que a alforria de Flora fora realizada por ela aleatoriamente pertencer à família Blumer, que era protestante, levando a crer que a missionária dava primazia à religiosidade em vez de se pautar pela questão do combate à escravidão.

Imigrantes norte-americanos e o protestantismo

A trajetória de Flora é orientada pela dinâmica que se estabeleceu entre escravidão e protestantismo, o qual foi incorporado por meio do projeto missionário de uma igreja metodista norte-americana de Piracicaba, estado de São Paulo. Notadamente, a fundação da igreja imbrica-se com a história da imigração confederada ao Brasil, tendo o desfecho da Guerra Civil Americana, em 1865, redundado na expatriação desses imigrantes devido ao colapso econômico da Confederação e à abolição da escravatura, além do processo de restauração do Sul vencido, conhecido como “Reconstrução” (1863-1877).

A guerra, grosso modo, foi um confronto entre os estados escravistas do Sul dos Estados Unidos (Confederação) e os estados livres da União, fiéis a Washington. Seu estopim se deu quando as forças confederadas atacaram a fortificação de Fort Sumter, no estado da Carolina do Sul, em abril de 1861, pouco depois da cerimônia de posse do presidente Abraham Lincoln. A guerra chegou ao fim em abril de 1865, com a rendição dos exércitos confederados sob o comando do general Robert E. Lee após a campanha de Appomattox, no estado da Virgínia.6 6 Para obter mais detalhes sobre a Guerra de Secessão, ver Eisenberg (1982); Mcpherson (2003). A Reconstrução, liderada pelos nortistas e seus simpatizantes do Sul, foi relevante para a integração de afro-americanos na sociedade, atribuindo-lhes certas prerrogativas e direitos com as ratificações de novas emendas à Constituição dos Estados Unidos.7 7 Sobre os debates acerca do desenvolvimento das emendas constitucionais do período da Reconstrução, ver Foner (2002, 2019). Assim, fatores como o rancor e a repugnância perante a nova ordem controlada pelo governo da União, além da intolerância com relação à emancipação dos escravizados, motivaram muitos sulistas a deixarem os Estados Unidos rumo ao Brasil.

Cabe ressaltar que o motivo da vinda dos confederados ao Brasil se vincula ao apoio oferecido pelo imperador Dom Pedro II durante a guerra, que o governo brasileiro acompanhava cuidadosamente, atento ao desenrolar da política norte-americana, uma vez que estava em jogo o destino da escravidão naquele país, o que traria implicações para o sistema escravista brasileiro. De acordo com Clícea Maria Augusto de Miranda, dentre as possibilidades de resultado da guerra para o Brasil, a vitória da Confederação resultaria na “permanência do cativeiro” e, assim, “respaldaria a insistência na mão de obra escrava e concorreria para a continuidade do comércio de pessoas, mesmo sendo essa prática já condenada internacionalmente desde a primeira metade do XIX” (Miranda, 2017MIRANDA, Clícea Maria Augusto de. Repercussões da Guerra Civil Americana no destino da escravidão no Brasil, 1861-1888. Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017., p. 21). Por outro lado, a derrota da Confederação comprometeria a “sobrevivência do sistema servil no Brasil (…), o que exigiu não só simplesmente a extinção da instituição, mas principalmente a urgência no processo que encaminharia o seu fim” (Miranda, 2017MIRANDA, Clícea Maria Augusto de. Repercussões da Guerra Civil Americana no destino da escravidão no Brasil, 1861-1888. Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017., p. 21).

Nesse contexto, estima-se que algo entre 2 mil e 4 mil8 8 Não está claro o exato número de pessoas que imigraram para o Brasil depois da guerra porque acredita-se que um número indeterminado de imigrantes viajou por conta própria e, além disso, alguns deles não registravam seus nomes nas alfândegas. Porém, Frank Goldman e Lawrence Hill, estimam que entre 2 mil e 4 mil imigrantes deixaram os Estados Unidos para o Brasil. Para referências ver: Goldman (1972, p. 10); Hill (1932, p. 239). imigrantes chegaram ao Brasil entre 1865 e 1869 no intuito de reconstruir seu modo de vida rural e aristocrático no país. Entre os primeiros imigrantes estavam o coronel William Hutchinson Norris e seu filho, Robert Cicero Norris, vindos do Alabama, em 1865, para viver na região de Santa Bárbara, no estado de São Paulo. No ano seguinte, o coronel M. S. Swain e Horace Lane, da Louisiana, lideraram um grupo de imigrantes que se instalou na baía de Paranaguá, no Paraná. No ano de 1867, assistiu-se à chegada e à instalação do maior número de imigrantes: o coronel Charles G. Gunther, da Carolina do Norte, liderando o grupo na lagoa de Juparanã, no Espírito Santo; o reverendo Ballard Dunn, da Louisiana, e o major Frank MacMullan, do Texas, liderando os seus grupos nas regiões de Iguape e Juquiá, respectivamente; o major W. L. Hastings, de Ohio, trazendo duas levas de imigrantes naquele ano e no seguinte, para Santarém, no Pará. O ano de 1868 ainda presenciou a chegada de mais imigrantes que se juntaram às colônias já formadas. Alguns imigrantes estabeleceram-se nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, independentes de grupos imigratórios (Oliveira, 1995OLIVEIRA, Ana Maria Costa de. O destino (não) manifesto: os imigrantes norte-americanos no Brasil. São Paulo: União Cultural Brasil-Estados Unidos, 1995., p. 12-14).

Entre as várias colônias que se formaram no Brasil, o agrupamento que se constituiu em Santa Bárbara pela família Norris, conhecido como “Colônia Norris”, foi sem dúvida o de maior sucesso. A bibliografia disponível sobre o assunto é unânime quanto a essa questão e, mesmo Mark Jefferson, um autor muito crítico ao movimento e que o considera fracassado em sua maioria, reconhece o sucesso relativo do grupo que se estabeleceu em Santa Bárbara (Jefferson, 1928JEFFERSON, Mark. An American colony in Brazil. Geographical Review. v. 18, n. 2, p. 226-231, 1928., p. 228).

Muitos desses imigrantes eram agricultores e possuíam um conhecimento agrário moderno, muitos fazendeiros brasileiros viam isso como “inovador e instigante” e buscavam usufruir desse know-how. Alguns dos confederados tornaram-se administradores e promoveram o crescimento da influência agrária norte-americana em suas regiões. Por exemplo, Lee Ferguson era administrador da fazenda de Luiz de Queiroz, de Piracicaba, que foi avaliada como bem gerida e administrada pelos oficiais e, posteriormente, doada ao estado de São Paulo, tornando-se anos depois a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Dawsey, Dawsey, 1995DAWSEY, Cyrus; DAWSEY, James M. The Confederados: Old South immigrants in Brazil. Alabama: The University of Alabama Press, 1995., p. 87). O arado americano que a família Norris trouxe em 1866 proporcionou resultados tão frutíferos que William Norris deu lições práticas sobre seu manejo na fazenda Ibicaba de Limeira, de José Vergueiro, que se tornou o maior produtor de algodão do país (Ribeiro, Ferreira, 1992RIBEIRO, Maria José F. de Araujo; FERREIRA, Melquesedec. Americana e sua história. Americana: Prefeitura Municipal, 1992., p. 4).

Em termos religiosos, a divulgação do protestantismo foi igualmente substancial para os imigrantes, tendo funções tanto religiosas quanto educacionais. De acordo com os estudos de Blanche Henry Clark Weaver, a primeira igreja presbiteriana sulista foi fundada em Campinas, em 1869, sob os auspícios dos reverendos J. N. Morton e. E. Lane, no intuito de oferecer “a proteção da Igreja” para seus conterrâneos e também por desejo de propiciar “escolas adequadas para seus filhos.” Assim, no mesmo ano, a primeira escola missionária norte-americana da América do Sul, conhecida como Colégio Internacional, foi fundada em Campinas. Ela funcionou até 1893, quando foi fechada devido à epidemia de febre amarela que se ampliou pela região, levando a instituição para Lavras, estado de Minas Gerais. Anos depois, a escola tornou-se agrícola, dando origem à Universidade Federal de Lavras (Weaver, 1952WEAVER, Blanche Henry. Confederate immigrants and evangelical churches in Brazil. Journal of Southern History, Lexington, v. 8, n. 4, p. 446-468, 1952., p. 454, 458).

Ademais, em 1870, o Colégio Mackenzie, hoje Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi fundado na cidade de São Paulo pelos missionários George e Mary Ann Annesley Chamberlain, e a maioria de seus alunos era parte da segunda e terceira gerações dos imigrantes. Nas décadas de 1880 e 1890 surgiram ainda mais escolas e igrejas patrocinadas pelos protestantes presbiterianos, calvinistas e batistas que para cá se deslocaram para atender aos imigrantes, que em seguida se espalharam por todo território brasileiro (Oliveira, 1995OLIVEIRA, Ana Maria Costa de. O destino (não) manifesto: os imigrantes norte-americanos no Brasil. São Paulo: União Cultural Brasil-Estados Unidos, 1995., p. 164).

Assim, é possível concluir que a chegada de imigrantes como William Norris e seu filho Robert, além de outros conterrâneos conhecidos como “confederados”, contribuiu para o desenvolvimento do conhecimento agrícola, da educação e do protestantismo, além da exploração da escravidão. Entretanto, pouco sabemos sobre a trajetória desses imigrantes e seu protagonismo na divulgação do protestantismo, uma vez que a análise historiográfica acerca desse tema ainda se encontra incipiente, dificultando a abordagem que temos interesse de analisar a respeito da trajetória de Flora Blumer, alforriada e empregada pela missionária Martha Watts.

Nesse prisma, a nossa pesquisa trata de reconstruir a história de Flora por meio da atuação de Martha, enviada ao Brasil para a divulgação do metodismo em virtude das demandas dos imigrantes pela disseminação do protestantismo.

A trajetória de Flora e a fundação do Colégio Piracicabano

Como mencionado, os imigrantes deram grande importância à formação e à sedimentação do protestantismo, elemento cultural fundante de suas formações. É lícito supor que sua visão pragmática e canônica fora igualmente relevante para sua unidade e solidariedade na sociedade de acolhimento. Apesar de variados ramos (calvinismo, presbiterianismo e batismo) que se enraizaram no Brasil, foi o metodismo e sua igreja em Piracicaba que se tornou palco de uma interação repentina, e sobretudo desafiante para análise historiográfica, entre a escravizada Flora e a missionária Martha.

A propósito, Flora era oriunda de Porto Feliz, estado de São Paulo, nascida em 1834 na fazenda de Mathias Dias de Toledo, filho de André Dias de Aguiar, senhor de engenho e capitão da 3ª Companhia da Ordenança de Porto Feliz (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 84). Detalhes da sua trajetória na fazenda são quase desconhecidos, contudo, sabe-se que Flora era uma das milhares de escravizadas da região. Sublinha-se que, ao atentarmos para a demografia local, vê-se que Porto Feliz gozou de um aumento brusco da sua população escravizada na primeira metade do século XIX por meio do tráfico atlântico. Em 1803 eram 1.193 escravizados na região, perfazendo 32% da população total da cidade. Já em 1829, no auge da produção canavieira na região, o número sobe para 4.982, aproximadamente 52% da população. Pouco antes do fim do tráfico, em 1843, o número é reduzido para 4.122 (46% do total), todavia, a relevância da mão de obra escravizada ainda era inconcussa (Guedes, 2011GUEDES, Roberto. Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, p. 233-263, 2011., p. 236).

No entanto, em vista do fim do tráfico negreiro em 1850, Porto Feliz sofre uma diminuição gradativa da sua população escravizada, tendo o número de cativos reduzido para 1.567 (35% da população) em 1854, 1.547 (20,2%) em 1874 e 594 (10%) em 1886 (Guedes, 2011GUEDES, Roberto. Parentesco, escravidão e liberdade (Porto Feliz, São Paulo, século XIX). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, p. 233-263, 2011., p. 236). De acordo com o historiador Roberto Guedes, “ações processuais movidas em prol dos escravos” e desagregação de “status senhorial” foram relevantes para a desintegração da escravidão de Porto Feliz, redundando na dificuldade da reprodução de mão de obra escravizada da região (Guedes, 2011, p. 236-237). Constata-se, pois, que a quebra de determinados padrões de dominação senhorial foi, ademais, fruto das tensões derivadas de movimentos abolicionistas e atos de consciente resistência à autoridade senhorial pelos escravizados, como mostram inúmeras pesquisas.9 9 Para detalhes sobre os movimentos abolicionistas e as crescentes rebeliões, crimes e fugas em massa cometidos pelos escravizados nos últimos anos da escravidão no Brasil, ver: Machado (2010); Alves (2015); Conrad (1978). Existe também o trabalho de Camillia Cowling (2013) que aborda a participação de mulheres escravizadas e libertas no processo de abolição no Rio de Janeiro e em Havana.

Embora a conjuntura final da escravidão tenha oferecido oportunidades para que escravizadas buscassem se libertar, esse não foi o caso de Flora, uma vez que ela foi vendida para Pedro Blumer, um imigrante alemão de Constituição (atual Piracicaba), no dia 19 de abril de 1875 (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 84). Embora tenha se mantido como escravizada, a mudança de senhor e a nova esfera foram marcantes para seu conhecimento do protestantismo.

Pedro Blumer era marceneiro e proprietário de uma hospedaria, além de produtor de algodão (Luné, Fonseca, 1873LUNÉ, Antônio José Baptista de; FONSECA, Paulo Delfino da. Almanak da província de São Paulo para 1873. São Paulo: Typographia Americana, 1873., p. 465; Torres, 2009TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Piracicaba no século XIX. Piracicaba: Equilíbrio; Instituto Histórico e Geográfico, 2009., p. 98). Ele era um dos 443 alemães de Constituição, o que consistia na nacionalidade estrangeira com o maior número de pessoas no município, seguida por portugueses (89), suíços (83), italianos (27) e outros. O número de escravizados da cidade em 1872 era de 5.142, 32,6% da população total, e estavam concentrados na produção de algodão, cana e café.10 10 Sobre a população escravizada e estrangeira de Constituição (Parochia de Santo Antonio da Constituição), ver: Recenseamento Geral do Império de 1872. São Paulo. p. 307-308. Disponível em: https://archive.org/stream/recenseamento1872spmode/2up. Acesso em: 24 abr. 2022. Vale a pena ressaltar que a cidade gravitava em torno de uma economia estruturalmente agrícola e escravista, compondo o traçado do “quadrilátero do açúcar” na primeira metade do Oitocentos e dedicando-se à cultura do café na segunda metade (Motta, 2006MOTTA, José Flavio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos em Constituição (Piracicaba), 1861-1880. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, p. 15-47, 2006., p. 16, 42). Adaptados ao contexto escravista, imigrantes como Pedro adquiriram cativos, inserindo-se no sistema econômico local. Flora torna-se, assim, propriedade de Pedro até a sua alforria em 1881.

Notadamente, a alforria de Flora foi possível devido a uma conjuntura específica, decorrente da fundação de uma escola metodista norte-americana chamada Colégio Piracicabano, em 1881. Sob o estímulo da Igreja Metodista Episcopal do Sul, a origem da escola se vincula à vinda do reverendo Junius E. Newman ao Brasil, nomeado pela mesma igreja no intuito de “auxiliar na propaganda do Evangelho na ‘Terra de Santa Cruz’, pelos ca­naes da Egreja Methodista” (Kennedy, 1928KENNEDY, James L. Cincoenta annos de methodismo no Brasil. São Paulo: Imprensa Methodista, 1928., p. 16). Assim, Newman e sua família acompanharam seus conterrâneos confederados, desembarcando no Rio de Janeiro no verão de 1867, e residiram nas redondezas da mesma cidade até abril de 1869, quando se mudaram para Santa Bárbara a fim de “pregar aos colonos americanos espalhados por alli” ­(Kennedy, 1928, p. 16).

Enveredado pelo caminho do evangelho, o reverendo Newman fundou a primeira Igreja metodista de Santa Bárbara em agosto de 1871, contando com a complacência de alguns conterrâneos da região. Sua missão expandiu-se ao longo dos anos e, concentrando esforços na educação, o reverendo e suas filhas, Mary e Annie, abriram um internato e externato em Piracicaba em 1879, embrião do Colégio Piracicabano. Efetivamente, a escola progrediu de modo considerável com a chegada da missionária Martha Watts, em 19 de maio de 1881, após solicitação do reverendo Newman, iniciando as aulas do atual colégio no dia 13 de setembro do mesmo ano (Kennedy, 1928KENNEDY, James L. Cincoenta annos de methodismo no Brasil. São Paulo: Imprensa Methodista, 1928., p. 16-18, 319).

Com características distintas de uma escola metodista norte-americana, o colégio despertou a curiosidade dos cidadãos piracicabanos, tendo alcançado “grande desenvolvimento” nos exames em “portuguez, francez, inglez, arithmetica, algebra, geographia, historia, desenho, religião” e, sobretudo, na “educação moral” (Kennedy, 1928KENNEDY, James L. Cincoenta annos de methodismo no Brasil. São Paulo: Imprensa Methodista, 1928., p. 321-323). Embora existam diversas fontes a respeito do desenvolvimento do colégio, a história de vida de Flora se mantém desconhecida. Mesmo James L. Kennedy, autor da renomada obra Cincoenta annos de methodismo no Brasil, nada diz a respeito dela. Com o objetivo de recuperar, ao menos parcialmente, a história de vida de Flora, buscaremos ler as entrelinhas dos documentos disponíveis.

Flora e Martha se conheceram em 1881, ocasião em que a educadora norte-americana estava à procura de uma cozinheira para o colégio e, interessada em Flora, conseguiu meios de contratá-la (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 47). Martha comprou sua alforria mediante a indenização de 400$000 réis, negócio realizado por intermédio do advogado e futuro presidente da República Prudente de Morais, conforme mostra o trecho a seguir:

Pela presente concedemos liberdade à nossa escrava Flora, preta, solteira, de serviços domesticos, matriculada com a idade de quarenta e um annos, na Collectoria de Capivary, com os numeros oito centos e vinte e tres da matricula geral e quinse da relação, e averbada na Collectoria desta cidade em vinte de Abril de mil oito centos e setenta e cinco o que fasemos mediante a indennisação de quatro centos mil reis, dos quaes já recebemos tresentos e quarenta mil reis, ficando á vos dever sessenta mil reis, que pagará em dinheiro ou em serviços. Para servir de título passamos a presente carta. Piracicaba, vinte e cinco de Novembro de mil oito centos e oitenta e um. (…) Pedro Blumer - com poderes especiaes - Prudente Jose de Moraes Barros. - Maria Isabel Blumer. - Nada mais em dita carta que a pedido aqui fielmente registrei, conferi e entrego o original ao apresentante que é o primeiro signatario do mesmo e dou fé. Piracicaba, vinte e cinco de Novembro de mil oito centos e oitenta e um. Eu Joaquim Borges da Cunha, tabellião interino que escrevi e assigno. - [assinatura]11 11 2º Cartório de Notas de Piracicaba, livro 33, fls. 43.

Assim, Flora obteve sua liberdade aos 47 anos de idade, em 25 de novembro de 1881. Alforriada, a história de vida de Flora imbricou-se ao próprio desenvolvimento do colégio e à divulgação do protestantismo. Sublinha-se que Martha provavelmente conheceu a família Blumer e Flora por meio do missionamento, dado que eles eram protestantes e tornaram-se membros da Igreja Metodista Central de Piracicaba em 1883.12 12 Maria Blumer, Jacob Blumer, Pedro Blumer e Flora M. Blumer de Toledo, recebidos como membros da Igreja Metodista Central de Piracicaba em 21 de janeiro de 1883. O livro de rol de membros encontra-se no acervo da Igreja Metodista Central de Piracicaba. Sobre o livro, ver também Ramires (2009, p. 134-135). Desse modo, Flora tornou-se a primeira mulher afro-brasileira a ser admitida, por meio de pública profissão de fé, em uma Igreja protestante no Brasil (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 84).

Notadamente, o futuro presidente exibia atitudes amigáveis aos missionários norte-­americanos, o que pode ser comprovado pelo fato de que ele e seu irmão Manuel de Moraes Barros auxiliaram Martha na compra de terreno e na construção do edifício do colégio em 1881 (Kennedy, 1928KENNEDY, James L. Cincoenta annos de methodismo no Brasil. São Paulo: Imprensa Methodista, 1928., p. 319). Como mencionado anteriormente, o colégio tornou-se um dos centros educacionais mais importantes da região, tendo entre suas alunas a sobrinha de Prudente de Moraes de Barros, Ana Maria de Moraes (Weaver, 1952WEAVER, Blanche Henry. Confederate immigrants and evangelical churches in Brazil. Journal of Southern History, Lexington, v. 8, n. 4, p. 446-468, 1952., p. 462). À luz desses fatos, considera-se que a alforria de Flora contou com a participação de indivíduos relevantes da sua época, o que configurou a singularidade e excepcionalidade da sua experiência.

Desvelar a trajetória de Flora já foi objeto do interesse de outros estudiosos. Ao se atentar às relações entre gênero, religião e trabalho missionário de mulheres solteiras no Brasil, entre o final do século XIX e início do XX, a historiadora Eliane Moura da Silva destacou a figura de Flora, ressaltando que, durante o seu período no colégio, esta “aprendeu inglês e viajou aos Estados Unidos com o pastor americano da Igreja Metodista de Piracicaba, o reverendo William Koger” (Silva, 2008SILVA, Eliane Moura. Gênero, religião, missionarismo e identidade protestante norte-americana no Brasil ao final do século XIX e inícios do XX. Mandrágora: Gênero, Cultura e Religião, São Bernardo do Campo, n. 16, p. 25-37, 2008., p. 28).

José Roberto Alves Loiola investigou as relações entre imigrantes metodistas norte-­americanos e a população afro-brasileira de Piracicaba entre 1867 e 1930 e apresentou instigantes conclusões a respeito de Flora, a qual “permaneceu na Igreja até 1892, quando morreu, causando muita comoção entre o alunato da escola onde era conhecida como tia Flora” (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 85). Ademais, Loiola ressaltou as dificuldades encontradas para análise das fontes documentais de registro da membresia e fluxo das atividades de afro-brasileiros da Igreja metodista e, nesse ponto, arrematou citando José Gonçalves Salvador: “Os róis, via de regra, não especificam a categoria social ou material dos crentes, porque na família de Deus todos são iguais” (Loiola, 2011LOIOLA, José Roberto Alves. Metodismo de imigração e afro-brasileiros: análise de alguns aspectos importantes da relação entre imigrantes metodistas estadunidenses e população afro-brasileira na região de Piracicaba no período de 1867 a 1930. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011., p. 85). Baseado nas interpretações de Loiola, apesar da singularidade e da pertinência de Flora ser a primeira afro-brasileira da Igreja protestante do Brasil, envencilhada a razões dogmáticas e institucionais, detalhes da sua vida permaneceram tratados de forma superficial ao longo dos anos. Aparentemente, para Martha e conterrâneos norte-americanos, os membros daquele grupo eram todos “iguais”, questão que enfocaremos abaixo.

A liberdade de Flora e as concepções de gênero, escravidão e religião de Martha Watts

Apesar da avaliação de Loiola, ao estabelecermos uma necessária intersecção entre Flora e Martha Watts, novas realidades poderão ser detectadas com base nas fontes existentes. Martha Watts havia enviado numerosas cartas relativas a sua vida e experiência no Brasil para a Sociedade Missionária de Mulheres Metodistas (EUA) entre 1881 e 1904, publicadas pelo Woman’s Missionary Advocate, periódico da mesma sociedade. Nessas cartas não é possível identificar o nome Flora nem mesmo a família Blumer, contudo, uma pessoa descrita simplesmente como “nossa cozinheira” é mencionada nas correspondências. Em nosso entender, essa pessoa certamente é Flora, e suas descrições servem como gancho para refletir sobre sua vida no colégio. Em uma dessas cartas, Martha deixa a seguinte descrição:

Nossa cozinheira parece saber preparar todos os pratos brasileiros e está evidentemente ansiosa em nos agradar; entretanto outro dia, quando lhe declaramos que gostaríamos que o assoalho fosse esfregado, ela disse que não sabia como. [...] Temos recebido apenas gentileza e cortesia daqueles que temos conhecido.13 13 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, jul. 1881), in Mesquita (2001, p. 24).

Esteada no trabalho doméstico, é possível verificar que Flora era uma cozinheira experiente, contudo, um tanto negligente no que tange à questão de limpeza. Decerto, essa negligência de Flora, ao seu ver, emanava de sua resistência às margens de trabalho na cozinha, buscando adestrar seu próprio ritmo de trabalho e autonomia. Todavia, é plausível supor que, aos olhos de Martha, Flora era, de modo geral, uma trabalhadora satisfatória. A interação entre a missionária e a cozinheira pode ser conferida em outra carta:

O culto terminou e voltamos em direção à nossa casa através do terreno da Igreja de São Benedito e (…) em casa, onde tentamos manter o dia de domingo sagrado, mas nossos ouvidos são ofendidos pelo som de conversas em tom alto e risadas em uma mercearia e bar no caminho; e nossa cozinheira vem com uma “barganha” especial em ovos, e pede o privilégio de comprá-los para nós, já que estão tão baratos.14 14 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, mar. 1882) in Mesquita (2001, p. 44).

Por meio desses registros, é possível verificar Flora, cozinheira, procurando obter a permissão de Martha para fechar a barganha de ovos, sendo possível supor que ela constantemente solicitava o consentimento de Martha para organização e direção da cozinha. Sublinha-se que, enveredando pelo campo do gênero na escravidão, vários estudos tocaram em determinadas questões relativas à prestação de serviços domésticos pelas mulheres libertas durante o Oitocentos, dado que estas procuravam atingir melhores condições de trabalho, desvencilhando-se do excessivo atrelamento ao poder patronal para manter suas “autonomias”. Ademais, a constante improvisação de mecanismos de resistência e acomodação ou formas de “resiliência” têm sido ressaltadas consideravelmente nos parâmetros da historiografia de gênero e escravidão.15 15 Nos últimos anos da escravidão, as mulheres libertas estavam sempre em busca de maior autonomia e melhores condições de trabalho no intuito de superar a exploração e o controle do poder senhorial, dado que elas formavam uma camada que despertava especial suspeição entre a “boa sociedade” da cidade de São Paulo. A propósito, a busca de mulheres alforriadas por autonomia não era nada incomum na época, conforme pode ser verificado em Bertin (2004); Telles (2013); Ariza (2014); Soares (1996); Faria (2000). Sobre as formas de “resiliência”, ver também Machado (2019); Machado, Ariza (2019).

Nesse contexto, o caso de Flora amplia o leque de diversidade das experiências das mulheres libertas no âmbito doméstico. Sua excepcionalidade deriva do fato de que a vida de Flora era condicionada à função de “cozinheira” de uma escola religiosa, constituída através da complementaridade de Martha e de sua práxis religiosa. Porém, quando buscamos avaliar sua experiência, é problemático inferir que Flora era mais “autônoma” apenas pelo fato de vincular-se a uma instituição religiosa. Nesse ponto, refiro-me aqui à perspectiva de Lydia Maria Child, cuja visão acerca da mentalidade de mulheres escravizadas no âmbito doméstico exibiu que estas não tinham o domínio de sua “consciência” ou “senso de humilhação” em virtude da disciplina e vigilância da autoridade senhorial (Child, 1833CHILD, Lydia Maria. An appeal in favor of that class of Americans called Africans. Boston: Allen & Ticknor, 1833., p. 23).

É evidente, porém, que constatar a problemática de Flora em torno de sua “consciência” ou mesmo de sua “autonomia” é uma questão bastante complexa e nebulosa. Todavia, ao mudarmos a nossa baliza para Martha, é possível vislumbrar parcialmente sua perspectiva sobre a escravidão e, ademais, sua mentalidade por trás da alforria de Flora. A propósito, a alforria de Flora certamente condicionou-se ao fator circunstancial do “ser mulher”, aspecto ressaltado pela missionária em algumas de suas cartas:

(…) a todas as mulheres; pois a elas é especialmente ensinado o cuidado e a educação para com as crianças, a preocupação com seu desamparo, sua necessidade de paciência; a gentileza e o amor acharão nelas todos os elementos necessários. Foi dito, “Toda mulher verdadeira nasce com instinto maternal”.16 16 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Rio de Janeiro, maio 1881) in Mesquita (2001, p. 22).

Mais exatamente, sua visão disciplinar e pragmática, prenunciava uma imediata emancipação das mulheres:

(…) a emancipação da mulher, fazendo alguns comentários no início sobre a necessidade de “liberdade” em todas as leis físicas e levando ao máximo sua ideia de liberdade feminina. As mulheres aí na América chamam pelo direito ao voto, mas aqui a necessidade é de liberdade.17 17 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, ago. 1884) in Mesquita (2001, p. 72).

Salientando com acuidade a sua visão, Martha também ressaltava a existência de uma íntima complementaridade entre as mulheres: “Com amor a todas as mulheres que estão trabalhando pelas mulheres e para todas aquelas que proclamam o nome do Senhor”.18 18 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Santos, s.d.) in Mesquita (2001, p. 56). Calcados nas diversas conjunturas do papel de mulher, é lícito supor que a alforria de Flora condicionava-se a essas visões de Martha, dado que expressões como “instinto maternal”, “liberdade” e “emancipação da mulher” gravitavam em torno de seu dogma e de sua lógica institucional.

Considera-se, pois, que calcados em sua reflexão do “ser mulher”, nos parâmetros da questão de gênero, é relevante compreender a interpretação de Martha por intermédio da representação de mulher nos Estados Unidos do século XIX e intercalar a experiência de Flora nessa ventura. Nesse ponto, é importante ressaltar que a visão de Martha era civilizatória em comparação com feministas brancas norte-americanas de sua época, como Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton, dado que suas constantes apelações pelos “direitos das mulheres” excluíam em geral as mulheres brancas pobres e também as negras. Em contrapartida, feministas como Frances Dana Barker Gage e Sojourner Truth tinham enfoques mais abrangentes, procurando compor um grupo coerente de mulheres, sem considerar raça ou classe, em luta por seus direitos (Yellin, Van Horne, 1994YELLIN, Jean Fagan; VAN HORNE, John C. The abolitionist sisterhood: women’s political culture in antebellum America. Ithaca: Cornell University Press, 1994., p. 157-158).

Dessa maneira, a visão civilizatória de Martha circunscrevia as mulheres negras no seu quadro de representação de mulher, imbricando-se às visões de Gage e Truth e mesclando-as com seu dogma protestante. Além disso, a notável interpelação - “E não sou uma mulher?”19 19 A renomada interpelação foi mencionada por Sojourner Truth em 1851, na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, nos Estados Unidos, revelando a mentalidade da abolicionista e ativista afro-americana acerca dos direitos das mulheres, diante de diversos obstáculos que negavam às mulheres seus direitos civis. Sua trajetória é instigante, sendo que ela procura obter reconhecimento de mulheres negras na participação de suas lutas por direitos, ainda na época da escravidão, num período em que mesmo mulheres brancas de elite não gozavam de suas prerrogativas. Para obter o discurso completo de Truth ver: Sojourner Truh. E não sou uma mulher?, Portal Geledés, 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 10 maio 2022. - de Truth, espelha o acirramento das tensões que envolviam as mulheres negras norte-americanas, cuja inserção na questão certamente ocorria por racha também no interior do complexo quadro da mentalidade de mulheres negras brasileiras, fossem elas escravizadas ou libertas. Nesse ponto, Flora provavelmente defrontou-se com a mesma questão, dado que o colégio era um internato feminino20 20 Grosso modo, o objetivo principal do colégio era promover a educação feminina no Brasil e, por essa razão, até a década de 1930 a escola abrigava apenas alunas. A educação para meninos era em regime de externato, sendo o internato masculino criado somente em 1934. Para obter mais detalhes sobre a trajetória histórica do colégio ver Vieira (2011). e, por esse prisma, é plausível supor que ela produziu seu próprio senso de “ser mulher” dentro de uma comunidade educacional religiosa constituída apenas por mulheres.

Ademais, ao penetrar nas entranhas da escravidão, é possível compreender com sutileza outra perspectiva de Martha, conforme pode ser visto na seguinte descrição:

Imaginem uma mãe, com uma criança inocente nos braços, brincando com tudo que suas mãozinhas podem tocar. Imagine essa mãe, de pé, em atitude desesperada e dasariadora, o rosto em lágrimas. (…) Imagine, completando esta cena, uma senhora idosa, a mãe da primeira, entre protesto e súplicas e ainda uma outra jovem, irmã da primeira, também em lágrimas. Eu, diante desta situação, sentindo-me impotente e muda. Por trás desta cena, está o drama da escravidão. O velho e bom senhor proprietário desta escrava morreu recentemente e a mulher e as crianças eram parte da herança de uma das filhas dele, que não é boa pessoa. Infelicidade, insatisfação e vários problemas se seguiram; e esta manhã, a pobrezinha sentiu que a vida era um peso grande demais, deixou sua casa e foi dar um último adeus a sua mãe antes de atirar-se com o bebê no rio. Foi lamentável, foi trágico, e o final ainda não chegou, posto que ela foi persuadida a voltar e aguentar o peso do sofrimento por mais algum tempo, com a esperança de encontrar alguém para comprá-la.21 21 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, nov. 1881) in Mesquita (2001, p. 37).

Ao debruçar-se sobre relato de uma escravizada desconhecida, Martha constatou uma realidade obcecada e impiedosa da escravidão, defrontando-se com a questão no interior de sua mentalidade. Considera-se, pois, que ela certamente captou os efeitos deletérios que a escravidão causava na sua sociedade de acolhimento e, procurando esboroar essa situação, propiciou a manumissão de Flora. Significativamente, essa visão de Martha deriva do “sentimento cristão” que gravitava em torno de diversas organizações abolicionistas norte-americanas, como a American Anti-Slavery Society (AASS) e a Philadelphia Female Anti-Slavery Society, na primeira metade do século XIX, as quais contavam com muitas membras que retratavam a escravidão como violação da “castidade feminina” e da “santidade da família cristã” (Yellin, Van Horne, 1994YELLIN, Jean Fagan; VAN HORNE, John C. The abolitionist sisterhood: women’s political culture in antebellum America. Ithaca: Cornell University Press, 1994., p. 35). As ilustrações “incendiárias” que AASS difundia para o público norte-americano na década de 1830, retratavam cenas de tortura de mulheres negras no intuito de expor a brutalidade da escravidão (Yellin, Van Horne, 1994YELLIN, Jean Fagan; VAN HORNE, John C. The abolitionist sisterhood: women’s political culture in antebellum America. Ithaca: Cornell University Press, 1994., p. 207).

Ademais, essas visões sentimentalizadas foram igualmente orientadas pela literatura abolicionista norte-americana. Nesse sentido, a renomada obra A cabana do Pai Tomás (1852), de Harriet Beecher Stowe, havia entusiasticamente esposado a ideia da desintegração da escravidão através de suas descrições sentimentalizadas, bíblicas e sobretudo abolicionistas, atreladas ao sentimento de piedade com relação aos escravizados, retratando-os sempre como vítimas da escravidão. Nesse contexto, a visão de Martha deriva dessas lutas abolicionistas norte-americanas e da literatura abolicionista, dado que, já em contexto brasileiro, ela evidenciou novamente um enorme hiato entre a sua visão religiosa e a escravidão, revelando outras realidades desconcertantes:

Dizem que o suicídio é muito comum entre os escravos aqui, pois eles são de natureza muito sensível. Eles não aguentam o sofrimento físico, ao que parece. Eles são conhecidos por assassinarem seus donos a fim de ficarem presos pelo resto da vida, livrando-se da vida de escravidão. (…) Caros amigos, pensem no Brasil como herança de nosso Senhor e de Cristo, e orem para que ele seja libertado da escravidão, que afeta o corpo, e da escravidão da alma.22 22 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, nov. 1881) in Mesquita (2001, p. 37-38).

Martha relata algumas características instáveis dos escravizados e sobretudo suas tendências revoltosas contra senhores a fim de desvencilharem-se da vida de escravidão. Todavia, é importante destacar que a resistência por parte dos escravizados não era nada incomum na época, sobretudo nas décadas de 1870 e 1880, contexto no qual, de acordo com os estudos da Maria Helena Machado, o processo de desagregação da instituição escravista no país exigia “estratégias” por parte dos senhores para “preservação da mão de obra escrava associada ao controle do ritmo de trabalho dela, com vista ao aumento da produtividade”. Nesse ponto, Machado frisa que a exigência de alta produtividade do trabalho escravizado direcionava cada vez mais a dedicação única e exclusiva à produção comercial por parte dos cativos, limitando a autonomia que assegurava a produção de subsistência em suas pequenas roças (Machado, 2018MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2018., p. 119-120).

Dessa forma, os escravizados procuraram responder a essa mudança com suas “contraestratégias”, visando defender seus tempos e espaços de autonomia por meio de furtos, suicídios, desvios da produção agrícola, e por vezes, envolvendo-se em ataques violentos, como homicídios contra senhores, feitores e capatazes (Machado, 2018MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2018., p. 119-120). Nessa perspectiva, é plausível inferir que Martha não estava indiferente à vicissitude da sociedade, ainda mais em Piracicaba, onde a escravidão estava firmemente enraizada.

Dualidades de Martha Watts e subjetividade de Flora

Apesar da objeção de Martha à escravidão, acima relatada, em nosso entender dualidades também subsistiam em sua mentalidade. Em primeiro lugar, ela aprofundou seu conhecimento a respeito do sistema escravista nacional e da função do escravizado na sociedade brasileira, todavia, nunca interferiu no sistema per se nem mesmo realizou atos de denúncia à autoridade senhorial. Nesse ponto, esteada na direção do colégio, orientada pela Igreja Metodista de Piracicaba, é lícito supor que a questão de escravidão era secundária para a missionária norte-americana e, somando-se a isso, a Igreja privilegiava sua missão e educação para seus conterrâneos e, posteriormente, para as elites brasileiras. A população afro-brasileira, fosse ela livre ou escravizada, não era considerada como alvo missionário. José Carlos Barbosa estigmatizou a ética protestante como conservadora e, sobretudo, paternalista (Barbosa, 2002BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na igreja: espia da banda de for a: protestantismo no Brasil império. Piracicaba: Unimep, 2002., p. 154-155).

Em segundo lugar, ao deslindar o papel que Martha desempenhou na alforria de Flora, é pertinente notar que esta foi a primeira e última alforriada por aquela durante a última década de escravidão, e essa realidade nos leva a indagar a mentalidade de Martha, de modo que sua perspicácia era provavelmente tingida de duplicidade. À guisa de complementar tal hipótese, torna-se relevante dizer que Martha ora tinha uma visão benigna que erigia “liberdade” e “emancipação da mulher” diante da iniquidade da escravidão, ora tinha uma visão arbitrária e ocasional referente à cadência de trabalho das mulheres negras. A propósito, é possível constatar descontentamento por parte de Martha num trecho de sua carta:

(…) por quatro longas semanas fiquei sem um empregado. Não pude empregar ninguém porque não há alemães precisando de lares e não pude admitir uma negra porque eu gosto de casa limpa e elas não gostam de fazer este tipo de trabalho. Mas consegui, por fim, uma boa pessoa - membro de nossa igreja e uma humilde cristã.23 23 Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Santos, jul. 1883) in Mesquita (2001, p. 56).

O confronto com a carta nos auxilia a elucidar que Martha, em certa medida, tinha uma visão preconceituosa e racista contra mulheres negras porque ela “gosta de casa limpa e elas [mulheres negras] não gostam de fazer este tipo de trabalho” e, por conta disso, exprimiu sua preferência pelo “membro de nossa igreja” ou “alemães”, isto é, “protestantes” para serviços domésticos. Embora Martha não explicite detalhes de sua interpretação contra as mulheres negras, ela nos auxilia a elucidar que os pontos nodais do seu Evangelho derivam significativamente do “ser protestante” e “ser mulher”, salientando-se que, além de Flora ser uma mulher negra, sua alforria fora quiçá realizada por ela pertencer à família Blumer, que era protestante. Mais exatamente, se acaso Flora pertencesse a uma família católica,24 24 Em geral, para muitos missionários protestantes norte-americanos, demonstrar uma nova fé e sua difusão frente ao catolicismo era também uma prioridade, além da educação. Porém, de acordo com os estudos de Juliano Custódio Sobrinho, os protestantes sofriam da “perseguição católica” ao realizar suas divulgações, pois o seu dogma não se imiscuía com o do catolicismo. Nesse ponto, existia uma rivalidade entre os dois grupos, e Martha provavelmente demonstrava uma postura negligente ou ao menos passiva para com as famílias católicas. Para obter mais detalhes sobre o tema, ver: Sobrinho (2018); Mansur (1999); Vieira (1980). seu destino provavelmente teria sido outro, compartilhando o destino de milhares de mulheres negras desconhecidas e esquecidas, vítimas da escravidão.

Assim, a subjetividade de Flora derivou de uma experiência sui generis em que ela desvencilhou-se da escravidão com o auxílio de uma missionária branca norte-americana em Piracicaba, tornando-se visível diante das múltiplas subjetividades femininas ainda inexploradas pela historiografia de gênero e da escravidão. Considera-se, pois, que o mecanismo de construção de subjetividade ou individualidade provém da formação de experiências e relações pessoais do sujeito com outros indivíduos ao seu redor nos parâmetros de sua historicidade. O processo de construção da subjetividade25 25 Existe o estudo de Luciana Martins Diogo, no qual ela analisou a questão da construção de subjetividade negra por uma perspectiva literária a partir das obras Úrsula e A escrava, de Maria Firmina dos Reis, discutindo as experiências de subjetivação dos escravizados ou dos libertos e suas relações com os personagens brancos que foram determinantes para a construção de suas individualidades. Em suas peculiaridades históricas, o debate da construção de subjetividade é bastante amplo e diversificado, dadas as variadas formas de experiência e relações interpessoais que são tecidas. Sobre esses temas, em especial as questões de subjetividade no mundo da escravidão, ver Diogo (2016); Machado (2019); Nascimento (2009). de Flora era obviamente dotado de desventuras e solitude em virtude de sua experiência e de suas relações contraditórias, além de diversas admoestações inerentes ao mundo da escravidão. Conquanto as dificuldades para compreensão de sua agência na esfera de subjetividade sejam consideráveis e ainda que Flora não tenha deixado nenhum relato de sua vida por escrito, ao vislumbrarmos sua experiência com um olhar objetivo, é possível inferir, na pior das hipóteses, que sua posse de liberdade como cozinheira e a presença de Martha certamente foram elementos conformadores para a construção de sua subjetividade.

Enfim, como a primeira mulher afro-brasileira a ser admitida pela Igreja protestante, a história de Flora fez convergir dois antigos países escravistas numa relação contraditória, guiada por um fio invisível, entre uma escravizada e uma missionária norte-americana trazida ou convidada pelos imigrantes confederados.

Considerações finais

O quadro em que se delineou a alforria de Flora foi fruto de manifestação dos imigrantes confederados, os quais, inseridos no framework do regime escravista brasileiro, procuraram tecer estratagemas de reconstrução da sua vida rural, religiosa e aristocrática no país. Porém, uma vez que a sua religião (protestantismo) não se alinhava com o catolicismo, por funções tanto religiosa quanto educacional a missionária Martha Watts fora enviada ao Brasil para contentá-los e, durante sua missão, conheceu Flora por intermédio de uma família alemã protestante.

Assim, este artigo tratou de reconstruir a história de Flora, salientando que a construção de sua subjetividade foi dotada de infortúnios em virtude da escravidão e, ao procurarmos compreender a sua agência na esfera da subjetividade através de um olhar objetivo, revelamos que sua experiência de liberdade como cozinheira e a presença de Martha, acrescida paralelamente ao advento do protestantismo norte-americano, certamente funcionaram como elementos relevantes da construção de sua subjetividade. Foi possível constatar ainda que a alforria de Flora foi condicionada às visões da missionária, dado que expressões como “instinto maternal”, “liberdade” e “emancipação da mulher” gravitavam em torno de seu dogma e da lógica institucional.

No entanto, a mentalidade da missionária deixava transparecer uma dualidade enquanto uma figura benigna que erigia “liberdade” e “emancipação da mulher” diante da iniquidade da escravidão, ao mesmo tempo em que tinha uma visão preconceituosa com relação à cadência de trabalho das mulheres negras. Por fim, os pontos nodais do ideário de Martha derivam significativamente do “ser protestante” e “ser mulher”, conotando-se que apesar de Flora ser uma mulher negra, sua alforria fora quiçá realizada por ela pertencer à protestante família Blumer, o que nos leva a crer, afinal, que Martha dava primazia à religiosidade em vez de se pautar pela questão do combate à escravidão.

Por fim, apesar de Flora ser a primeira mulher afro-brasileira admitida por uma igreja protestante norte-americana, muitos fatos de sua agência permanecem ainda desconhecidos. Existe o silêncio do arquivo e a ausência de registros de sua vida pessoal. Assim, imaginamos que ela não foi vista como uma pessoa completa, mas apenas como uma escravizada liberta e cozinheira. O deslindamento de maiores detalhes continuará a ser nossa tarefa; contudo, a história dessas duas mulheres decerto comprovou o quanto as vidas das mulheres negras e das mulheres brancas podem se tornar intercaláveis e excepcionais no mundo da escravidão.

Referências

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  • ARIZA, Marília Bueno de Araújo. O ofício da liberdade: trabalhadores libertandos em São Paulo e Campinas (1830-1888) São Paulo: Alameda, 2014.
  • ARIZA, Marília Bueno de Araújo. Mães infames, filhos venturosos: trabalho, pobreza, escravidão e emancipação no cotidiano de São Paulo (século XIX) São Paulo: Alameda, 2020.
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  • 1
    Os infortúnios vividos pelas mulheres escravizadas derivavam de variadas formas de dominação e resistência em virtude de sua centralidade, enquanto trabalhadoras e reprodutoras de mão de obra, na constituição do sistema escravista atlântico. Sobre esses temas, em especial as questões de maternidade, políticas de reprodução e infanticídio, ver Morgan (2004); Turner (2017); Cowling, Machado, Paton, West (2021).
  • 2
    No cenário urbano, o polo organizacional da vida das escravizadas baseou-se nos trabalhos de caráter residual, sobretudo ambulante, em suas diversas formas: quitandeiras; lavadeiras; mucamas; amas de leite; dentre outras. Em virtude de sua mobilidade, as mulheres escravizadas constituíam variadas formas de sociabilidade, estratégias de alforrias, e até mesmo redes de parentesco no intuito de gozar maior autonomia e liberdade. Para obter mais detalhes sobre as experiências urbanas das mulheres escravizadas e suas condições de agenciamento e trabalho, ver Ariza (2020); Telles (2013); Dias (1995).
  • 3
    O conceito de “interseccionalidade” tem sido abordado em diversas pesquisas interdisciplinares nos campos de história, antropologia, sociologia, entre outros. Nos parâmetros das investigações histórico-antropológicas, os estudos de Verena Stolcke contornaram determinadas questões relativas aos debates da noção de interseccionalidade entre classe social, raça, sexo/gênero e sexualidade, ressaltando a ausência de estudos concretos e empíricos para fundamentar os debates em torno das teorias feministas. Os estudos de Leticia Gregorio Canelas foram igualmente relevantes, ao analisarem as experiências vivenciadas pelas mulheres escravizadas na Martinica (Antilhas Francesas) no século XIX. Sua perspectiva de interseccionalidade concentra-se em torno de classe, raça e gênero a partir de uma abordagem histórico-social de fontes documentais baseada na pesquisa em arquivos. O presente artigo segue a mesma linha de Canelas, dado que nossa abordagem interseccional está baseada em gênero, raça e religião, buscando desvendar a história de Flora e Martha Watts a partir de suas interações e dinâmicas históricas, nos moldes de escravidão e protestantismo, com base na pesquisa documental e bibliográfica. Sobre as diversas abordagens do conceito de interseccionalidade, ver Stolcke (1974; 1993); Canelas (2017); Crenshaw (1991).
  • 4
    Em termos de linguagem, usaremos a expressão “imigrante” ao longo do presente artigo, contrapondo-se a outras expressões existentes como “emigrante”, “migrante” e “expatriado”. Embora todas essas expressões sejam compatíveis, adotaremos a primeira pois é a mais utilizada no campo da historiografia da imigração confederada ao Brasil.
  • 5
    Além do período mencionado, a coletânea contém cartas de outros períodos do trabalho de Martha no Brasil: 1) a vida em Petrópolis, quando fundou o Colégio de Petrópolis (1895-1900); 2) sua vida em Juiz de Fora, onde trabalhou no Colégio Mineiro (1902-1904); 3) último período da sua vida no país, quando trabalhou no Colégio Izabela Hendrix, em Belo Horizonte.
  • 6
    Para obter mais detalhes sobre a Guerra de Secessão, ver Eisenberg (1982); Mcpherson (2003).
  • 7
    Sobre os debates acerca do desenvolvimento das emendas constitucionais do período da Reconstrução, ver Foner (2002, 2019).
  • 8
    Não está claro o exato número de pessoas que imigraram para o Brasil depois da guerra porque acredita-se que um número indeterminado de imigrantes viajou por conta própria e, além disso, alguns deles não registravam seus nomes nas alfândegas. Porém, Frank Goldman e Lawrence Hill, estimam que entre 2 mil e 4 mil imigrantes deixaram os Estados Unidos para o Brasil. Para referências ver: Goldman (1972, p. 10); Hill (1932, p. 239).
  • 9
    Para detalhes sobre os movimentos abolicionistas e as crescentes rebeliões, crimes e fugas em massa cometidos pelos escravizados nos últimos anos da escravidão no Brasil, ver: Machado (2010); Alves (2015); Conrad (1978). Existe também o trabalho de Camillia Cowling (2013) que aborda a participação de mulheres escravizadas e libertas no processo de abolição no Rio de Janeiro e em Havana.
  • 10
    Sobre a população escravizada e estrangeira de Constituição (Parochia de Santo Antonio da Constituição), ver: Recenseamento Geral do Império de 1872. São Paulo. p. 307-308. Disponível em: https://archive.org/stream/recenseamento1872spmode/2up. Acesso em: 24 abr. 2022.
  • 11
    2º Cartório de Notas de Piracicaba, livro 33, fls. 43.
  • 12
    Maria Blumer, Jacob Blumer, Pedro Blumer e Flora M. Blumer de Toledo, recebidos como membros da Igreja Metodista Central de Piracicaba em 21 de janeiro de 1883. O livro de rol de membros encontra-se no acervo da Igreja Metodista Central de Piracicaba. Sobre o livro, ver também Ramires (2009, p. 134-135).
  • 13
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, jul. 1881), in Mesquita (2001, p. 24).
  • 14
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, mar. 1882) in Mesquita (2001, p. 44).
  • 15
    Nos últimos anos da escravidão, as mulheres libertas estavam sempre em busca de maior autonomia e melhores condições de trabalho no intuito de superar a exploração e o controle do poder senhorial, dado que elas formavam uma camada que despertava especial suspeição entre a “boa sociedade” da cidade de São Paulo. A propósito, a busca de mulheres alforriadas por autonomia não era nada incomum na época, conforme pode ser verificado em Bertin (2004); Telles (2013); Ariza (2014); Soares (1996); Faria (2000). Sobre as formas de “resiliência”, ver também Machado (2019); Machado, Ariza (2019).
  • 16
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Rio de Janeiro, maio 1881) in Mesquita (2001, p. 22).
  • 17
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, ago. 1884) in Mesquita (2001, p. 72).
  • 18
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Santos, s.d.) in Mesquita (2001, p. 56).
  • 19
    A renomada interpelação foi mencionada por Sojourner Truth em 1851, na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, nos Estados Unidos, revelando a mentalidade da abolicionista e ativista afro-americana acerca dos direitos das mulheres, diante de diversos obstáculos que negavam às mulheres seus direitos civis. Sua trajetória é instigante, sendo que ela procura obter reconhecimento de mulheres negras na participação de suas lutas por direitos, ainda na época da escravidão, num período em que mesmo mulheres brancas de elite não gozavam de suas prerrogativas. Para obter o discurso completo de Truth ver: Sojourner Truh. E não sou uma mulher?, Portal Geledés, 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 10 maio 2022.
  • 20
    Grosso modo, o objetivo principal do colégio era promover a educação feminina no Brasil e, por essa razão, até a década de 1930 a escola abrigava apenas alunas. A educação para meninos era em regime de externato, sendo o internato masculino criado somente em 1934. Para obter mais detalhes sobre a trajetória histórica do colégio ver Vieira (2011).
  • 21
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, nov. 1881) in Mesquita (2001, p. 37).
  • 22
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Piracicaba, nov. 1881) in Mesquita (2001, p. 37-38).
  • 23
    Carta de Martha Watts para Frank A. Butler (Santos, jul. 1883) in Mesquita (2001, p. 56).
  • 24
    Em geral, para muitos missionários protestantes norte-americanos, demonstrar uma nova fé e sua difusão frente ao catolicismo era também uma prioridade, além da educação. Porém, de acordo com os estudos de Juliano Custódio Sobrinho, os protestantes sofriam da “perseguição católica” ao realizar suas divulgações, pois o seu dogma não se imiscuía com o do catolicismo. Nesse ponto, existia uma rivalidade entre os dois grupos, e Martha provavelmente demonstrava uma postura negligente ou ao menos passiva para com as famílias católicas. Para obter mais detalhes sobre o tema, ver: Sobrinho (2018); Mansur (1999); Vieira (1980).
  • 25
    Existe o estudo de Luciana Martins Diogo, no qual ela analisou a questão da construção de subjetividade negra por uma perspectiva literária a partir das obras Úrsula e A escrava, de Maria Firmina dos Reis, discutindo as experiências de subjetivação dos escravizados ou dos libertos e suas relações com os personagens brancos que foram determinantes para a construção de suas individualidades. Em suas peculiaridades históricas, o debate da construção de subjetividade é bastante amplo e diversificado, dadas as variadas formas de experiência e relações interpessoais que são tecidas. Sobre esses temas, em especial as questões de subjetividade no mundo da escravidão, ver Diogo (2016); Machado (2019); Nascimento (2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2022
  • Aceito
    01 Nov 2022
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