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Quilombolas: história, memória e ficção

Quilombolas: history, memory and fiction

Resumo

O artigo analisa os usos e olhares que alguns historiadores têm do conto de Carmo Gama “Quilombolas - lenda mineira inédita”, publicado em 1904. Apresento inicialmente o líder quilombola Ambrósio, para em seguida verificar como são utilizados os fatos narrados na ficção de Gama. A forma da ficção e o conteúdo do documento informam aspectos da realidade que precisam ser perscrutados pelo historiador. A narrativa, ao tentar estabelecer-se pela escrita dinâmica da literatura, não perde o seu valor. Busquei confrontar o texto de Gama com a crítica historiográfica, comparando em seguida com as fontes sobre o Quilombo do Ambrósio, presentes no Arquivo Público Mineiro. Sobressaíram, assim, os elementos da história em diálogo com a literatura, elencados pelo esforço da memória do romancista. Procurei mostrar que o texto literário e o documento têm a função de ser referência, na qual a escrita da história pode ser ressignificada.

Palavras-chave:
Quilombo; Ficção; Documento

Abstract

The article analyzes the uses and views that some historians have of the short story by Carmo Gama “Quilombolas - lenda mineira inédita”, published in 1904. I initially present the quilombola leader Ambrósio, and then verify how the facts narrated in Gama’s fiction are used. The form of the fiction and the content of the document inform aspects of reality, which must be scrutinized by the historian. The narrative, in trying to establish itself through the dynamic writing of literature, does not lose its value. I sought to confront Gama’s text with historiographical criticism, comparing it with the sources about Quilombo do Ambrósio, present in the Arquivo Público Mineiro. The elements of history in dialogue with literature stood out, listed by the effort of the novelist’s memory. I tried to show that the literary text and the document have the function of reference, in which the writing of history can be re-signified.

Keywords:
Quilombo; Fiction; Document

Neste texto pretendo analisar os olhares de alguns historiadores sobre o conto de José Joaquim do Carmo Gama “Quilombolas - lenda mineira inédita” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904.). A narrativa de Carmo Gama é bastante favorável aos jesuítas, mostrando a harmoniosa e ao mesmo tempo classista sociedade quilombola, criada sob as ordens dos religiosos e conservada sob o domínio do grande líder negro Ambrósio, homem “inteligente, valente, esbelto e dotado de todas as qualidades próprias de um bom General” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 832). Gama esvazia a noção de quilombo ao colocar os jesuítas como fundadores da sociedade liderada por Ambrósio. Os calhambolas foram homens negros que resistiram ao sistema escravista. Segundo Gama, o quilombo funcionava com leis justas, conforme as qualidades dos membros. O jovem líder era um homem purificado de muitos vícios de sua nação e muito ilustrado. Em seu governo não podia haver pilhagens, roubos ou saques. Em “Quilombolas...” afirma que os novos membros do quilombo só eram admitidos se fossem adquiridos pela compra, remunerando os seus senhores. Os pesquisadores se debruçam sobre o conto para avaliar os seus limites e avanços, procurando compreender a perspectiva de Carmo Gama sobre o calhambola Ambrósio.

De acordo com a narrativa de Carmo Gama, na região de Araxá, em Minas Gerais, desenvolveu-se o Quilombo do Ambrósio, no final do século XVIII e início do século XIX. Gama diz que baseou a sua história no manuscrito “Apontamentos geográficos e históricos”, de Januário Pinto Moreira. Este, no entanto, ouviu a narrativa do padre Caturra, um dos protagonistas dos eventos do texto do escrivão. Segundo Gama, foi o padre Eusébio Nogueira Penido quem lhe forneceu o manuscrito para subsidiar a sua escrita, por isso, a narrativa não é fruto de “imaginação romanesca” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 827). O texto tem como personagens o valente João Wrumeia e o estrategista Hynnhanguera, nomeados Gerais Comandantes por Ambrósio, para proteger o reino quilombola. Para contrapor o bom Ambrósio, a narrativa projeta a tensão em Pedro Rebolo, um traidor dos próprios pretos. Catarina, a meiga mulher de confiança do líder, estabelecerá a justiça ao matar o traidor Rebolo, pois o seu marido, Manuel Cabinda, era fraco de espírito. O enredo termina com a esperança de novos tempos com os auspícios das ideias republicanas.

É necessário apresentar o líder Ambrósio para entendermos e ponderarmos as críticas dos historiadores. Ambrósio era um agricultor que resistiu como um guerreiro de armas e chefe das lutas quilombolas, enfrentando diversas batalhas nas povoações do Quilombo de Campo Grande, região oeste de Minas Gerais. Todavia, não se trata de um mito e sim de um líder quilombola. Naturalmente, os mitos são importantes e contribuem às vezes para a constituição de identidades de um povo, principalmente quando surgem da memória coletiva e da criação orgânica e tradicional das comunidades. De acordo com a documentação, o Quilombo de Campo Grande envolvia uma extensa região conhecida como “comarcas quilombolas”, que se iniciava à margem direita do Rio Grande e ao norte de São José Del Rei (hoje Tiradentes, MG) e São João Del Rei, entre os rios Pará e Paraopeba, chegando até a atual região de Ibiá/Serra da Saudade e Medeiros. As lutas quilombolas locais originaram-se a partir da destruição de povoados de negros livres ocorridas em 1746.

No dia 16 de junho de 1746, Gomes Freire de Andrade expede uma correspondência para as câmaras de Vila Rica, Mariana, São João Del Rei, São José Del Rei, Sabará e Vila Nova da Rainha. Nessa missiva o governador pediu dinheiro para financiar uma expedição para destruir o Quilombo do Ambrósio. Na narrativa da carta, o autor fala dos danos que causavam os negros aquilombados na capitania. Ele afirma que o remédio aplicado até aquele momento não fora suficiente contra os calhambolas, estando as comarcas de São João Del Rei e Vila Rica sujeitas às investidas dos “aquilombados no Campo Grande e serras que há entre esta Capitania e a Comarca de Goiases”.1 1 Arquivo Público Mineiro (A partir de agora, APM.). APM-Seção Colonial (SC): 84, fls. 108v a 109, de 16.06.1746. Publicado também na Revista do Arquivo Público Mineiro (A partir de agora, RAPM.). RAPM, 16.06.1746, p. 619. Gomes Freire registra “mais de seiscentos negros que consta estarem com rei e rainha nos quilombos, a quem rendem obediência e, com fortaleza, cautelas e petrechos tais, que se entende pretendem defender-se e conservar-se”.2 2 APM-SC 84, fls. 108v a 109, de 16.06.1746. RAPM, 16.06.1746, p. 619. Para a investida contra os seiscentos negros, foram alistados aproximadamente trezentas pessoas para compor as companhias,3 3 APM-SC 84, fls. 109v, de 01/06/1746. sob a liderança do capitão Antônio João de Oliveira. Na direção do quilombo com mais de seiscentos negros havia um rei e uma rainha, o que indica um poder político centralizado, próximo de uma monarquia, a quem todos “rendem obediência” (Guimarães, 2002GUIMARÃES, Carlos Magno. Os cabeças e as cabeças: quilombos, liderança e degola nas Minas setecentistas. Varia Historia, n. 26, p. 109-131, 2002., p. 119). A carta indica uma organização e liderança, o que significa sinal de racionalização das ações para determinados fins.

Gomes Freire de Andrade, estando no Rio de Janeiro no dia 8 de agosto de 1746, envia uma carta ao rei de Portugal informando-lhe que expedira umas tropas para atacar os quilombos de Campo Grande. Nessa carta, o autor retoma o conteúdo das outras missivas para atualizar as informações ao monarca. Ele diz que os quilombolas estão há mais de vinte anos no sertão de Campo Grande e a uma distância de cinquenta léguas da comarca de São João Del Rei. Ou seja, os negros fugidos estão na localidade de Campo Grande desde 1726, aumentando o número de membros ano a ano. De acordo com o governador, saem desse grupo partidas de vinte a trinta negros, executando “roubos e crudelíssimas mortes”.4 4 APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746. A carta diz que, no passado, foi dado algum castigo para “destruição de um tão prejudicial inimigo”,5 5 APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746. para que assim se conservasse a comarca de São João Del Rei. O receio era que, crescendo o quilombo, os calhambolas poderiam fazer “dano aos brancos daquela e outras comarcas”.6 6 APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746.

Gomes Freire informa ao rei que o número de quilombolas chegou “a tanto que, segundo os melhores cálculos, passaram eles já de mil negros e grande número de negras e crias”.7 7 APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746. A partir das caracterizações dos quilombolas como coligação violenta, que desonra famílias e provoca perdas de propriedade, como no caso de escravizados que são recrutados, o governador resolve castigar “esta coleção de bárbaros” e, com os ouvidores de Vila Real e São João Del Rei, “depois de ouvidos os homens mais capazes e inteligentes, formar um corpo de quatrocentos homens e, dando-lhe munições de guerra e de boca, os mandei com cabos inteligentes destruir”,8 8 APM-SC cód. 84, p. 108v. e 109. não só o quilombo maior, “mas outros menores que se sabe conservarem-se em diferentes partes”.9 9 APM-SC cód. 84, p. 108v. e 109. Na Carta da Câmara de Tamanduá à rainha Maria I, está registrado que o capitão da Cavalaria Auxiliar, Antônio João de Oliveira, com mais de 750.000 réis, subsidiado pelas câmaras de Vila Rica, Sabará, São João Del Rei e São José Del Rei, marchou com o “esquadrão” em direção ao Quilombo do Ambrósio.10 10 Várias foram as expedições ordenadas pelo governador José Antônio Freire de Andrada. A primeira foi encarregada ao já conhecido capitão-mor Bartolomeu Bueno do Prado, residente no Pitangui. Ele, filho do famoso Domingos Rodrigues do Prado, neto do Anhanguera. “Aventureiro aceitou a incumbência, pôs-se à frente de quatrocentos sequazes e meteu-se pelos matos e serras em combate aos quilombos do Indayá e além da Marcela, dos quais os maiores foram os ditos do chefe negro chamado Ambrósio, e do Zundú, apelido de um outro” (Vasconcelos, 1974, p. 173). Uma carta de Bartolomeu Bueno do Prado, dirigida ao governador em exercício José Antônio Freire de Andrada, informa ao mesmo que, aos “dezoito do mês de agosto partimos de Piauí, procurando a parte donde o guia nos noticiava, donde chegamos no dito Quilombo (o Quilombo do Ambrósio de Ibiá) à noite do primeiro dia de setembro”.11 11 Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida (BMBCA) - Câmara de São João Del Rei (CSJR) -pap 144, fls. 68v-69, de 13.09.1759. Bartolomeu Bueno do Prado recebeu honras e sesmarias pelo serviço feito e ficou, depois da expedição de extermínio, como guarda-mor auxiliar dos Sertões do Jacuí, sediado em São Pedro de Alcântara e Almas (hoje, Jacuí, MG), onde continuou a residir também Constantino Barbosa da Cunha, companheiro da expedição de 1760, fazendo experiências minerais em Campo Grande, inclusive no antigo território do Quilombo do Ambrósio. A expedição oficial guerreou o grande quilombo e depois de sete horas de um vigoroso combate e violento fogo, ocorreu a morte de Ambrósio.12 12 RAPM, ano II, 1897, p. 230.

O historiador Tarcísio José Martins, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da seção de Minas Gerais, receberá uma atenção especial neste texto por se dedicar com grande afinco ao trabalho de Carmo Gama. Martins afirma que Carmo Gama tornou-se sócio correspondente do Arquivo Público Mineiro (APM) a partir de suas boas relações com José Pedro Xavier da Veiga, chefe do APM (Martins, 2008MARTIUS, Karl Friedrich Phillip von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 6, p. 381-403, 1844.). Por isso, ele conseguiu escrever e publicar na Revista do APM o texto “Quilombolas - lenda mineira inédita”. Gama era um homem contemporâneo do sistema escravista, defrontando-se diariamente com esta realidade.13 13 José Joaquim do Carmo Gama foi um menino pobre, o pai era comerciante em Minas Gerais e, com a falência dos negócios, transferiu-se com a família para Carmo da Cachoeira. O tio e padrinho, cônego Domingos, internou Carmo Gama no Seminário de Mariana, prestigiada instituição religiosa e de ensino. Ao concluir os estudos preparatórios, em 1882, o jovem matriculou-se na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro. No entanto, sem meios de subsistência na grande cidade, desistiu do curso. Mudou-se para Rio Novo, em Minas Gerais, onde começou a lecionar. Em 1890 foi nomeado, por concurso, para o cargo de 1º tabelião e oficial de Registros Gerais. As memórias do escrivão estão inseridas no deslocamento do tempo, em relação às crônicas de Olavo Bilac e Coelho Netto, por exemplo. Ele alterna um discurso de denúncia da violência da escravidão com uma narrativa contundente de feitos heroicos dos negros, bem característicos das visões de liberdade do início do século XX. De alguma forma, Gama está tentando entender os sujeitos históricos escravizados que almejavam a liberdade, bem como suas imersões no domínio político da escravidão (Chalhoub, 2011CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 316). As histórias ouvidas a respeito de escravizados, fugas e quilombolas ainda estavam vivas em sua memória, assim como na das outras pessoas de seu tempo, principalmente em Minas Gerais, onde o número elevado de quilombos, desde o século XVIII, era favorável a um “imaginário capaz de transformar quilombolas em mitos, heróis ou monstros” (Amantino, 2001AMANTINO, Márcia. O mundo das feras: os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais, século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001., p. 24).

Para que possamos entender o nosso locus histórico atual e o locus histórico da comunidade quilombola, precisamos falar do que calamos, evidenciar o oculto, analisar questões que nos perturbam ainda hoje e interromper uma história homogênea pela dialética. Para a compreensão dos quilombos, seguirei a linha teórica que os percebe como espaço de homens que forçam suas relações com o mundo ao seu redor (Gomes, 1995GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.). João José Reis e Eduardo Silva combatem a visão antiga, ainda presente em uma parte da historiografia, de que os quilombos eram agrupamentos marginais ao mundo da escravidão (Reis, Silva, 1989REIS, João José; SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras , p. 62-78, 1989., p. 17). Sílvia Hunold Lara propõe-se discutir as dimensões políticas das relações entre Palmares e autoridades coloniais em Pernambuco. Entendido como uma traição, o acordo de paz e deslocamento dos habitantes de Palmares para a região de Cucaú continuou sendo caracterizado como os anti-Palmares estabelecidos pelas autoridades coloniais. Cucaú parece ter se constituído como um caminho alternativo em muitos aspectos. Para alguns habitantes de Palmares, talvez fosse uma forma de obter liberdade, terra para trabalhar e segurança para sobreviver e crescer. A vila de Cucaú foi destruída em poucos meses, e a estratégia de Gangazumba, fracassada. Mas os acontecimentos e os conflitos não foram esquecidos, resistentes na memória e nos documentos (Lara, 2021 LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. São Paulo: Edusp, 2021.).

Carlos Magno Guimarães percebe os quilombos, pelo seu caráter de resistência ao sistema escravista, como resultado de ações históricas e políticas. Por isso o seu interesse em destacar os elementos representacionais de poder como líder, rei e rainha. Nesse sentido, Júlio Pinto Vallejos concorda com Guimarães ao destacar o poder significativo dos escravizados na moldagem do ambiente em que viviam (Vallejos, 1985VALLEJOS, Júlio Pinto. Slave control and slave resistance in colonial Minas Gerais, 1700-1750. Journal of Latin American Studies, v. 17, v. 1, p.1-34, 1985., p. 4-5). O ponto de vista de Guimarães pode ser resumido assim: primeiro, ele nega a tese da incapacidade política dos escravos; segundo, percebe os quilombos não só na sua dimensão econômica, mas também na sua dimensão política, como agente coletivo no jogo das contradições que dão a tônica à dinâmica social; o terceiro, ele compreende os quilombos como expressão da luta de classe entre senhores e escravos, mesmo levando em consideração as subdivisões entre estes últimos, como os pardos e crioulos; em quarto lugar, deve-se considerar a coesão da classe proprietária de homens diante do conflito entre brancos e escravos; e por fim, perceber o quilombo além da manifestação de rebeldia, ou seja, vê-lo como um projeto político que evidencia estratégias de autonomia por parte de seus membros (Guimarães, 2001GUIMARÃES, Carlos Magno. Mineração, quilombos e palmares: Minas Gerais no século XVIII. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 139-163, 2001., p. 156).

Laura de Mello e Souza afirma que, dentro do incremento de empurrar a fronteira agrícola mais para oeste, está a dinâmica de ocupação do solo onde não havia ouro ou diamante. A historiadora procura chamar atenção para as questões culturais nas incursões pelo interior de Minas, pois estas disciplinavam os homens rudes das lides diárias, no desafio do contraste entre o homem civilizado e o inculto, como nos ensina Norbert Elias, revelando o outro lado da violência civilizadora (Souza, 2011SOUZA, Laura de Mello e. Violência e práticas culturais no cotidiano de uma expedição contra quilombolas. Minas Gerais, 1769. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , p. 193-212, 2011., p. 196). Na cruzada contra os infiéis, os quilombolas eram os alvos. O poder político de Ambrósio representava o outro lado da civilização, ao moldar o ambiente pela resistência. O locus histórico dos quilombolas é ressignificado, como os novos Josués que queriam parar o dia (Benjamin, 1990BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 691-704, 1990., p. 701-702), para que, assim, pudessem fazer justiça.

Ficção e história: olhares

Tarcísio Martins inicia sua crítica ao texto de Carmo Gama ponderando como pode uma lenda, que nasce do povo e da tradição, ser inédita? (Martins, 2008, p. 292). Ele acusa Gama de faltar com ética, pois se fundamenta numa fonte provavelmente inexistente: “falta com a ética, na medida em que alega ter em mãos um documento-fonte provavelmente inexistente; fantasia com as parcas informações sobre quilombos que obteve na obra de Xavier da Veiga” (Martins, 2008, p. 293). Martins passa o tempo todo questionando a veracidade das informações contidas no texto de Gama. No entanto, o folhetim, transmudado de verdade, acusa, causou grandes danos à historiografia. E, pior, o Arquivo Público Mineiro nunca procurou reparar esse erro, ou seja, de publicar uma obra de ficção numa revista de história. Esse historiador suspeita que o objetivo do texto tenha sido o de dar suporte aos interesses do estado de Goiás, pois foi antecedido pela matéria “Questão de limites entre os estados de Minas e Goiás”, publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro,14 14 “Questão de limites entre os estados de Minas e Goiás, transcrevendo carta datada do Gabinete do Estado de Minas Gerais em 18 de abril de 1904, onde Francisco Antônio Salles reafirma várias mentiras históricas ao Dr. Xavier de Almeida, presidente do estado de Goiás, para justificar o esbulho reinol mineiro de 1815 também sobre o Triângulo Goiano” (Martins, 2008, p. 293). nas páginas 795-826, registrando-se, na sequência, às páginas 827-866, o folhetim de Carmo Gama.

Deve-se criticar, segundo Martins, que dezenas de historiadores passaram a citar essa publicação do Arquivo Público Mineiro como se fosse história e, outros, conectam esse conto com os documentos e mapas contidos nas narrações das viagens de Inácio Correia Pamplona. Martins não perdoa Carlos Magno Guimarães (1988GUIMARÃES, Carlos Magno. A negação da ordem escravista. São Paulo: Ícone, 1988., p. 123) e Waldemar de Almeida Barbosa (1972BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1972., p. 31 e 32), ambos estudiosos dos quilombos de Campo Grande, por dar abrigo às ideias contidas no texto de Gama, já que se tratava de literatura e não de fonte historiográfica. Esses historiadores são acusados de matar a tradição que havia, até então, de que o Quilombo do Ambrósio se situara na região de Formiga e Cristais e não na localidade de Ibiá.

Eis o efeito mais danoso do uso político do APM: entre acreditar nos velhos e nas velhas do povo, principalmente sendo pretos, que contavam as histórias dos negros na região de Formiga a Cristais, as pessoas mais novas - a partir do início do século XX - se viram obrigadas a acreditar nos disparates gerados pelo “conto” do Carmo Gama, cujo potencial de virulência foi maximizado pelo fato de ter sido publicado por aquele órgão oficial que deveria ser o guardião da História de Minas (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 294).

Gama, ao seguir Xavier da Veiga, comete o erro geográfico de considerar a região de Araxá como lugar dos acontecimentos históricos do Quilombo do Ambrósio (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 828). Mais ainda, considera os fatos ocorridos no quilombo como sendo do final do século XVIII e começo do século XIX. No entanto, a sociedade organizada de quilombolas, sob a chefia de Ambrósio, foi destruída em 1746, portanto, em meados e não no final do século XVIII.15 15 APM-SC, cód. 84, p. 109-110v. Em relação à presença de sacerdotes em Minas Gerais, de fato, houve um padre Euzébio Nogueira Penido em Itatiaiuçu, que também foi vereador em Itaúna. No entanto, dificilmente alguém duvidaria do testemunho de um padre por volta de 1900, o que daria certa autenticidade ao texto. Também houve um certo padre Caturra, no período colonial, conforme atesta o Códice CostaMatoso (1999MATOSO, Caetano da Costa. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. 2v., p. 257). Contudo, que conotação poderia existir entre um frade terceiro que, “em 1694 dizia missas para os bandeirantes e pioneiros do arraial do Guarapiranga, por nome José de Jesus, por alcunha o Caturra, com o mencionado Pe. Caturra do folhetim de Carmo Gama?”, pergunta Martins (2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 970). Outro personagem, amigo do padre Caturra, foi um homem de nome Custódio Coelho Duarte. Um homônimo aparece no termo de Mariana, solicitando a confirmação de seu exercício no posto de capitão da Companhia Auxiliar de São Caetano.16 16 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) - Conselho Ultramarino. Brasil/MG, Cx. 117, doc. 41 Inventário MARMG-AHU, Col. Mineiriana, v. 2, p. 199.

Tarcísio Martins continua corrigindo Gama quando este afirma que, saindo do Quilombo do Ambrósio, os viajantes passavam por Santana de São João Acima, hoje Itaúna, para irem a Vila Rica. Ora, saindo de Cristais, em 1746 (Primeiro Quilombo do Ambrósio), ou de Ibiá, em 1758-1760 (Segundo Quilombo do Ambrósio), não se passava pela antiga Itaúna, a não ser que fosse pela Vila de Pitangui. Como se percebe, o historiador procura confrontar os fatos e os espaços geográficos com a realidade e, dessa forma, descaracterizar o texto do escrivão Carmo Gama. É necessário ter atenção para o fato de que a expedição que destruiu o Quilombo do Ambrósio não saiu de Ouro Preto e sim de São João Del Rei. Constata-se que, em 1746, Gomes Freire de Andrade enviou para São João Del Rei quatro barris de pólvora, balas, munições e armas que estavam nos armazéns reais de Vila Rica. Alguns anos depois, em janeiro de 1758, a Provedoria da Real Fazenda mandava mais 150 espingardas, 150 baionetas e material para os cavalos e bestas. No ano seguinte, 1759, quando o irmão do governador mudou-se com a comitiva para São João Del Rei, para poder acompanhar melhor os preparativos, conseguiu reunir 200 granadas para auxiliar nos combates. Os mantimentos, como a farinha de mandioca, o feijão e os porcos eram adquiridos por toda a capitania e enviados diretamente para as tropas.

Após as críticas geográficas e biográficas presentes na lenda sobre o quartel de Ambrósio, Martins enfrenta o juízo político de Carmo Gama quando este descreve a sociedade quilombola. Logo em seguida à descrição das leis penais, do sistema político e econômico, ao “mesmo tempo ditatorial e socialista”, dividido em classes sociais, Martins denuncia que tudo isso é da inventiva do autor, provavelmente monarquista e frustrado com a instalação da República. No entanto, no final do texto, o próprio Gama se mostra um entusiasta da nova República, referindo-se principalmente à igualdade de todos perante a lei e à liberdade de culto, assegurados na Constituição de 1891:

Eis na simples narrativa uma pálida imagem do que foi o absolutismo nos tempos coloniais. Ainda bem que ele, em Minas, alçou seu colo no fim do século passado e princípio deste, porque este o XIX, contra a tirania, contra a ignorância e o obscurantismo trouxe hasteada a auriverde bandeira da civilização, perfeitamente desfraldada, em todo a pujança de luz, na áurea Lei de 13 de Maio de 1888 e na aurora de 15 de Novembro de 1889, seguindo-se a promulgação da grande Carta, que ao convívio das nações cultas levou a Terra de Santa Cruz proclamado: “Todos são iguais perante a lei.” Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. “Constituição de 24 Fevereiro de 1891, Art. 72 §§ 2º e 3º” Rio Novo ­ Março de 1900. Carmo Gama. Cop. em Bicas aos 29 de outubro de 1903 (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 866).

Em relação aos aspectos morais, o historiador mineiro procura nos precaver dos insultos à memória de Ambrósio. Para isso, ele cita uma passagem do texto de Gama para mostrar a trágica e violenta atitude de Ambrósio: uma negra apavorada foge em uma corda pelas muralhas do quartel quilombola, e pede “proteção ao comandante das tropas atacantes, informando que Ambrósio mandara preparar facões e que estava matando todos os sobreviventes de seu povo, inclusive velhos, mulheres e crianças” (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 968-970). Segundo Martins, nada mais extemporâneo para caracterizar o sujeito Ambrósio e sua sociedade, pois o Quilombo do Ambrósio é referido em vários documentos como “lendário”, “afamado” e “célebre”. Nunca um covarde que matava os sobreviventes de seu povo. Nas Cartas chilenas o local é comparado a um espaço de festas e alegrias. Destaca-se que Ambrósio foi citado como “Pai” e como “Rei”, mas nunca como um “louco inventado pelo Carmo Gama” (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 970.) Havia uma tradição de honra, valentia, dignidade e bondade associados ao nome de Ambrósio, que infelizmente o autor da lenda não levou em consideração.

Como grande conhecedor da história e de seus objetos no tempo, Martins corrige Gama quando este afirma que Ambrósio carregava consigo “uma linda espada, um jogo de pistolas, rico punhal e uma espingarda inglesa de dois canos, tudo bordado a prata e ouro”. Ora, esse tipo de espingarda só passou a existir após a invenção da espoleta que, no entanto, “só foi inventada em 1804, na Europa. No Brasil, chegou bem mais tarde. Muitas das pistolas e espingardas de escorva (pederneira), antigas, voltaram para a forja, onde receberam essa modernidade” (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 971). Desse modo, esses objetos eram de outra forma na segunda metade do século XVIII, período do enredo da lenda. Igualmente, há anacronismos históricos nos filmes de Chica da Silva, de Chico Rei e de Tiradentes, quando os personagens portam pistolas de espoletas e espingardas com dois canos no século XVIII.

Um erro conceitual, acentuado por Tarcísio Martins, localiza-se no diálogo do comandante das tropas invasoras com Ambrósio, quando o calhambola foi interrogado. O comandante pergunta: “Quem és tu? - Sou Ambrósio, capitão deste quartel. - Capitão! ... Quem é o teu senhor, negro? - Sou livre e livre é toda a gente deste posto militar. Fui escravo, todos os adultos que aqui estão também o foram; mas somos todos livres” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 854). Este é mais um equívoco do autor de Quilombolas, pois pessoa livre é aquela nascida de ventre livre, enquanto um ex-escravizado era sempre um indivíduo forro e jamais livre, como era o caso de Ambrósio e de alguns de seus seguidores. Atento aos dialetos, Martins chama atenção para a inspiração e o equívoco do autor do “contozinho”, como chegou a classificar a escrita de Gama, quando este se refere ao rei dos índios comparado com Zumbi. De fato, num outro diálogo, Ambrósio corrige o interlocutor: “Perdão, senhor general! Cacique é rei dos índios e eu não sou índio; na minha terra o rei é Zambi, e lá cabe-me esse título” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 855). Imediatamente Martins corrige o autor da narrativa ao afirmar que Nzambi é deus e não rei, e Gama pegou uma carona em Zumbi, o último dos reis de Palmares (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 972).

Em relação aos jesuítas, mencionados na abertura do texto de Gama, há um bom libelo a seu favor. A Companhia de Jesus, depois de bons serviços ao Brasil, foi expulsa em 1759 pela lei sancionada por dom José I a pedido de dom Sebastião José de Carvalho e Mello, conde de Oeiras e marquês de Pombal.17 17 Decreto Real de 21 de julho de 1759 e Alvará Real de 3 de setembro de 1759, reforçando o primeiro. Fundamentando em Francisco Adolfo de Varnhagen, em sua História do Brasil, o autor da lenda diz que os jesuítas que permaneceram no Brasil só poderiam exercer atividades vis, trabalho simples na agricultura, ser soldados ou marinheiros. Isso mostra que a narrativa sobre o Quilombo precisava de uma referência intelectual importante do período. No final do texto, ao colocar os jesuítas como vencedores, diz que estes retornaram após a promulgação da Constituição do Império, depois de 1824. Eles foram voltando disfarçados de leigos.

Para caracterizar essa escrita como fictícia e com erros históricos, Martins, afiançado em Serafim Leite (1939LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939.), pondera que a Companhia de Jesus, restabelecida pela Santa Sé, em 1814, só voltou ao Brasil em 1841, reflorescendo com novo vigor. Se em uma parte do texto o crítico de Gama o chama de antirrepublicano, em outra ele diz que o autor da lenda dignifica a República e a Abolição. No final, ele acusa Gama de que o seu artigo, publicado na Revisa do Arquivo Público Mineiro, “passou a ser mais uma forja dos falsos pressupostos da interpretação que até hoje os historiadores têm dado à História dos Quilombos do Campo Grande” (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 979). Nesse sentido, ele coloca o autor de “Quilombolas...” num lugar de influência pouco comum aos demais historiadores. O membro do IHGB, seção de Minas, conclui suas reflexões afirmando que os inimigos da verdade, “além de serem antigos, sempre estiveram entranhados ao poder reinol mineiro” (Martins, 2008MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo. Contagem: Santa Clara, 2008., p. 979). Ele acusa Carmo Gama de má intenção em transformar o conto “Quilombolas” em história “oficial”. A crítica de Tarcísio Martins mostra-se desde o início muito ácida, questionando, inclusive, a permanência do autor, atuante na imprensa mineira, como membro de uma instituição preocupada com a história e memória de Minas Gerais.

Acredito que a narrativa de Gama, ao tentar estabelecer-se pela escrita corrente e dinâmica da literatura, não perde o seu valor. A capacidade imaginativa provoca tanto conhecimento como o trabalho intenso em um arquivo dinâmico, como é o Arquivo Público Mineiro. O ineditismo da lenda se refere à sua difusão em um meio impresso de grande circulação, o que não foi percebido por Martins. A crítica ao autor de “Quilombolas...”, de faltar com a ética, não nos parece razoável, pois a escrita se utiliza de vários artifícios para convencer o leitor. Ainda que Gama tenha ou não um manuscrito para utilizar como fonte, isso pouco importa num texto de cunho literário. Aqui está talvez o grande problema apontado, pois Martins não aceita esse gênero numa revista histórica. Nesse momento, vale lembrar que La Capra coloca em tensão a predominância do uso do texto literário e documento com a função de referencial, ou seja, como fonte na qual é possível desvelar algum fato do passado, observar a representação da vida social, suas características e temas pertinentes (La Capra, 1985LA CAPRA, Dominick. History and criticism. Ithaca: Cornell University Press, 1985., p. 19-20). Ele critica o modelo em que a escrita não parece ser uma questão em si, mas apenas um meio para a expressão de conteúdos - em uma total subserviência da primeira em relação à segunda. Essa abordagem não leva em conta que documentos são, eles mesmos, “textos” que “processam” a realidade, e seu uso requer uma leitura que vá além da simples crítica de fontes.

Martins talvez poderia compreender que a atitude do historiador em relação à evidência histórica pode ser medida pelo não dito de uma era. Uma determinada época pode ser compreendida pelo que não diz de si mesma: “assim como o peixe não sabe que está nadando em água, o que é mais característico, onipresente em uma época, não é do conhecimento desta mesma época. Não é revelado até esta época se concluir” (Ankersmit, 2001ANKERSMIT, F. R. Historiografia e pós-modernismo. Topoi, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 113-135, mar. 2001., p. 124). Essa imagem mostra que a essência do período é determinada pelo destinatário, pelo historiador que precisa ouvir o que foi sussurrado ou manifesto pelo detalhe insignificante. O historiador pode ser aquele que reconhece o artista não pelo que lhe é característico, mas pelo que espontaneamente lhe escapa, onde o esforço pessoal é menos intenso. É esse esforço que nos carece fazer com o conto de Gama, precisamos entender o sentido e os objetivos ocultos de seu tempo, os temas e a forma de sua linguagem, com seus significados e significantes.

A prática incessante da escrita é o que consagra a literatura, e a faina intensa desta está na não conformidade entre o real e a linguagem. Segundo Costa Lima, na ficção, o material histórico entra para que permita a revisão de seu significado, o que faz com que adquira a possibilidade de “se desdobrar em seu próprio questionamento” ( Lima, 1989LIMA, Luiz Costa. Narrativa e ficção. In: LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 68-121., p. 106). Sendo assim, ao se utilizar de fontes históricas, por se tratar de uma ficção e estar no campo do como se, a metaficção historiográfica, por exemplo, abre portas para uma nova interpretação do passado, problematizando-o e colocando em evidência questões que antes não eram levadas em consideração. Para Hutcheon (1991HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991., p. 122), a história e a ficção são discursos que podem ser entendidos como formas diferentes de narrar o real.18 18 Esse real é diferente do concebido na psicanálise. O real lacaniano diz de algo incapaz de um dito, um não dito, um impossível de ser apreendido, entendido, compreendido, a coisa em si. Contudo, tentamos narrar, semelhante a um dejà vu, que também é difícil de capturar e narrar, mas tentamos, pois nos invade como algo próximo de “uma verdade”. É por isso que falamos, escrevemos e relembramos tanto. Para dar conta do impossível de ser consumado (Lacan, 2018).

Para Costa Lima, os discursos dos historiadores e dos ficcionistas são entendidos como próximos, porém distintos, uma vez que se diferenciam tanto pela maneira como suas narrativas se relacionam com o mundo quanto pelo modo como neles atua o narrador. Dessa forma, o discurso ficcional, ao mudar a sua forma de relação com o mundo, também acaba por mudar a sua relação com a verdade. Para Caragea, na ficção que faz uso da historiografia, existe um reconhecimento “honesto de que se fala a partir do presente e de que o passado considerado não existe por si próprio, mas é aquele que este presente construiu para o seu próprio uso e em função de desejos e intenções muitas vezes inconfessáveis” (Caragea, 2020CARAGEA, Mioara. Metaficção historiográfica. In: CEIA, Carlos(org.). E-Dicionário de termos literários. 2010. Disponível em:Disponível em:https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/metaficcao-historiografica . Acesso em: 30 jan. 2020.
https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/me...
, s./p.). Na ficção é possível percebermos as brechas deixadas pelo discurso histórico e, com essa volta ao passado, é factível destrinchar eventos que já foram revisitados em torno deles, que se acreditava já estarem concluídas.

De acordo com Jacomel, o que distingue a ficção historiográfica de um romance histórico, sendo este comprometido apenas em retratar o passado da forma mais fiel possível, é a autorreflexão acarretada pelo questionamento dessas “verdades” consideradas históricas e, por esse motivo, muitas vezes inquestionáveis (Jacomel, 2008JACOMEL, Mirele Carolina Werneque. Tecendo o avesso da história pela metaficção historiográfica. Uniletras, Ponta Grossa, v. 30, n. 2, p. 421-460, 2008.). É exatamente na inadequação da linguagem ao real que se revelam as múltiplas tensões que a constituem, na qual pairam seus autores, entendidos como sujeitos de uma prática. “Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz uma faina incessante, a literatura” (Barthes, 2002BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2002., p. 22-23). A eficácia da ficção reside em projetar um olhar diferenciado e mais atrativo ao real. De acordo com Paul Ricouer (1983RICOUER, Paul. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. v.1. São Paulo: Martins Fontes, 1983.), é a narrativa que dá forma aos acontecimentos históricos. É por meio dela que se torna possível remontar os fatos do passado pois, na análise do jogo entre o campo de experiência e o horizonte de expectativa reside a nossa tarefa de historicizar o acontecido. Apesar de não ter mais como intervir nos acontecimentos, é na rememoração do passado que encontramos múltiplas possibilidades interpretativas no presente, as quais podem nortear aquilo que não queremos que ocorra novamente no futuro (Koselleck, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006., p. 310).

Imaginação e verdade: perspectivas

Tarcísio Martins faz uma pequena consideração ao texto de Gama ao afirmar que ele não tão é ruim. A partir da crítica do juízo de Kant, ele está com o veredicto, no entanto, o texto deixa a desejar, tanto pelo aspecto da forma quanto da estética da apresentação do enredo. Nesse sentido, não há por que dizer dano à historiografia, pois os leitores especializados não se deixam levar pela sutileza ideológica da escrita. A narrativa “Quilombolas...”, ao se caracterizar como literatura, não precisa se prender às datas, à fidelidade de topônimos ou nomes próprios, como quer Martins. O seu interesse está em ser apenas literatura, pois demarca um pensamento de uma época e seus valores. Talvez o fato mais crítico do texto de Carmo Gama seja o seu racismo estrutural sobressaindo em vários momentos da escrita como, por exemplo, quando fala dos homens africanos que eram desembarcados aqui. Ao pretender fazer do escravizado, senão um “sócio, pelo menos um amigo e um braço forte e pronto para as emergências da vida, os jesuítas educaram-nos, ilustrando-os quanto possível, aproveitando as boas qualidades que ressaltavam, transpareciam por entre os bárbaros costumes africanos” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 831). O texto de Gama é permeado por elementos da memória que o ajudam na configuração do enredo. A memória é um processo seletivo no qual os elementos integrantes de uma história estão presentes na sociedade (Halbwachs, 1989HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: PUF, 1989.), possibilitando a apropriação por alguém e sendo transformados numa narrativa exatamente porque continham fatos importantes para esta mesma sociedade. Segundo Halbwachs, a memória individual é um ponto de vista da memória coletiva, e esse ponto de vista varia de acordo com o lugar social que é ocupado. “Este lugar, por sua vez, muda em função das relações que se tem com outros meios sociais” (Halbwachs, 1989HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: PUF, 1989., p. 31). Dessa forma, a memória de Carmo Gama expressa os anseios e preconceitos de seu tempo, e a sua memória individual expressa também os elementos da memória coletiva do interior de Minas Gerais.

Claro que Gama queria dar um ar de história científica ao seu “Quilombolas...”, pois não foi por outro motivo que afirmou ter se fundamentado no manuscrito “Apontamentos geográficos e históricos”. Dessa maneira, pretendia estar em consonância com as linhas do IHGB e suas filiais pelo Brasil afora. Além das citações em latim, decoradas durante a sua formação elementar, Gama procura citar Cândido Mendes, Pereira da Silva, Mello Morais e o já consagrado Varnhagen, para dar autenticidade e autoridade ao texto. Para mim, o texto de Gama possui valor em si, não precisando desses subterfúgios para reconhecimento entre seus pares. Em 1966, Hayden White publicou um artigo intitulado “The burden of history”, no qual questionava o argumento de que o historiador ocuparia uma espécie de meio do caminho em que arte e ciências sociais encontram uma síntese harmoniosa (White, 1966WHITE, Hayden. The burden of history. History and Theory, v. 5, n. 2, p. 111-134, 1966., p. 111). Para o autor, a narrativa do historiador era devedora de uma concepção novecentista de história, que dialogava com uma noção de arte romântica e de ciência positivista. Na sua concepção, uma má arte e uma má ciência social, ambas fundamentadas em referenciais que há muito tempo haviam mostrado sua insuficiência para a compreensão do mundo contemporâneo. Carmo Gama não era historiador, mas quis fazer essa síntese entre a literatura e a história, dialogando com uma arte e uma ciência positiva ultrapassadas. Talvez acreditasse que o historiador não apenas seria o principal mediador entre passado e presente, mas o único tipo de intelectual capaz de combinar esses dois modos distintos de compreensão do mundo.

Tarcísio Martins não percebe que do anacronismo da história tradicional surgiria a desconfiança, tanto da arte quanto da ciência social, rejeitando a primeira como carente de imaginação e sensibilidade e, a segunda, como portadora de ambiguidade metodológica. A condição privilegiada em que se coloca o historiador mais tradicional não parece dialogar com nenhum dos critérios críticos desses saberes, mas a própria premissa de separação entre ciência e arte, em que se baseia essa assunção, estaria em xeque frente à descoberta do caráter construtivo comum de ambas enquanto discursos da sociedade no século XX. Carmo Gama, preocupado em pertencer a uma comunidade de intelectuais, não percebe que artistas e intelectuais chegam a “verdades” diferentes dos historiadores.

Hayden White nos ajuda a entender a obra de Gama como produto de seu tempo, inserida no tropo linguístico de sua era. Nesse sentido, o realismo histórico era o seu guia, combinando o heroísmo dos românticos à individualidade criativa.19 19 Em Meta-história White propôs a compreensão de textos históricos a partir de metáforas explicativas, capazes de articular diferentes temporalidades, oferecendo uma visão da realidade que não quer ser completa. O exemplo paradigmático seria o de Burckhardt (A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), que parte do que entendeu ser a metáfora do individualismo como eixo estrutural a partir do qual constrói sua visão, sugerindo algumas perspectivas e ignorando outras. Assim, o texto adquire um valor quase autorreferente, em que a medida de validação é a coerência com o próprio argumento central. Enfatizando uma espécie de ficcionalidade discursiva estrutural, esse modelo aproxima o texto histórico da ficção ou da arte, em que não apenas a forma seria indissociável do conteúdo, mas, muitas vezes, seria seu acesso preferencial (White, 2008). A narrativa de Carmo Gama é importante porque demarca um imaginário de uma sociedade. Nesse sentido, adverso do que pretende a historiadora Márcia Amantino, a história possui algumas visões de mundo do próprio Gama e não de padre Caturra e de Januário Pinto Moreira, já que esses personagens são construções fictícias (Amantino, 2001, p. 24). Não esqueçamos que o texto também é uma construção individual permeada por conceitos e valores da época de Carmo Gama, entrecortado pelos discursos presentes em seu tempo. Ao contrário de Amantino, a narrativa de Gama, embora se volte para o século XVIII, fornece-nos elementos significantes, valores e visão de mundo mais concernentes ao final do século XIX e início do XX. No entanto, no discurso das referências de Gama e de sua memória, conseguimos perceber continuidades e rupturas importantes para identificar a compreensão que a sociedade tinha sobre os escravizados, as elites, o poder, as mulheres, os quilombolas e sobre seus poderes e limites.

Parece-me inútil tentar identificar, no emaranhado de informações presente no texto de Gama, aquilo que é verdadeiro e o que é falso, o que é senso comum e o que é opinião do próprio autor. O que mais importa é o uso que fazemos do texto, o que este apresenta e como representa as imagens do cotidiano dos quilombolas (Amantino, 2001AMANTINO, Márcia. O mundo das feras: os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais, século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001., p. 25), pois ainda que uma lenda ou história possua elementos que não sejam verdadeiros, isso não impede que contenha uma interpretação do acontecimento a que faz referência (O’Gorman, 1992O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. São Paulo: Unesp, 1992., p. 29). Compreender como as interpretações, os significados e as representações são expressos no texto nos ajuda a entender as relações e o dia a dia dos quilombolas, pois o imaginário de uma sociedade é um extrato privilegiado para a pesquisa do historiador. O conto de Carmo Gama descreve a vida, o reinado e a trágica morte do líder quilombola Ambrósio dentro de seu quartel. O autor da lenda parece ter influenciado o historiador Waldemar Barbosa, pois este afirma que:

O mais famoso dos quilombos em Minas Gerais, o Quilombo do Ambrósio, era oficialmente designado como Quilombo Grande. Depois da destruição do Quilombo e morte de Ambrósio, renasceu mais forte e mais poderoso, com a mesma denominação de Quilombo Grande, embora, às vezes, aparecesse na correspondência oficial a designação popular de Quilombo do Ambrósio (Barbosa, 1972BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1972., p. 31).

No entanto, vários documentos não concluem a questão da morte do líder do quilombo, o que dá margem a afirmar que Ambrósio não só escapou, mas fundou um segundo quilombo no sertão de Campo Grande. É importante destacar que Ambrósio, o líder destemido e seu grupo resistente, permaneceram no imaginário da população, o que reforça o sentimento e a resiliência dos afrodescendentes do lugar até hoje. De acordo com a narrativa de Gama, o ataque ao Quilombo do Ambrósio deveu-se à delação de Pedro Rebolo, negro rebelde e fujão que descreveu a estrutura social e indicou o caminho do quartel em Campo Grande para ser destruído pelas tropas oficiais. Pedro Rebolo, personagem fictício, possui as características da maldade, pois não sofreu o processo de aculturação e urbanização de Ambrósio. No texto de Gama, o bem e o mal são representados por Ambrósio e Pedro Rebolo, e não o sistema escravista e seu corolário europeu. Ele passa longe de reconhecer a luta de mulheres e homens contra a humilhação, a batalha diuturna contra a morte social e física dos escravizados.

Em 1990, o historiador Carlos Magno Guimarães, ao tentar recuperar a história e a arqueologia do Quilombo do Ambrósio, utilizou a narrativa de Carmo Gama para auxiliar suas pesquisas. Salientou a importância da lenda como meio de resgatar questões essenciais ligadas ao cotidiano, à organização e à dinâmica da sociedade quilombola e nela reconheceu fatos verídicos e fictícios. Carlos Guimarães aponta o problema da fonte da lenda quilombola ser pouco objetiva, o que não significa ser inutilizável. A partir daí o autor se debruça para apreender a identificação dos elementos que possuem uma base real, ao lado dos aspectos imaginários (Guimarães, 1990, p. 162). Guimarães procura chamar atenção para a visão de mundo de Carmo Gama e da sua época, anotando a tentativa do escrivão de diluir as contradições expressas numa sociedade escravista permeada por negros quilombolas em busca de liberdade. Gama, ao tentar conectar o surgimento do Quilombo do Ambrósio à expulsão dos jesuítas, em 1759, comete o erro histórico de datação, já que o quartel ambrosiano teria sido destruído em 1746. Nesse ponto, Guimarães segue o erro de Martins e Amantino, ou seja, o de tentar colocar o conto como veículo de comprovação de fatos históricos, esquecendo que o elemento fictício possui outros vetores que promovem o conhecimento além de delimitação de datas e nomes verdadeiros.

Um aspecto informado por Guimarães, que merece a nossa atenção, é o fato de Gama esvaziar a noção de quilombo ao colocar os jesuítas como fundadores do quartel, o que retira o papel de sujeitos históricos de um grupo de homens negros que resistiram ao sistema escravista (Guimarães, 1990GUIMARÃES, Carlos Magno. O Quilombo do Ambrósio: lenda, documento e arqueologia. Estudos Ibero-Americanos, v. XVI, n. 1-2, p. 161-174, jul.-dez. 1990., p. 163). O ponto de vista de Carmo Gama sobre a organização do quilombo diz muito sobre a sua compreensão da escravidão. Segundo Gama, o quilombo funcionaria de forma harmoniosa e com leis justas, segundo a divisão dos habitantes em classes, conforme as qualidades de que eram dotados, sob a liderança de Ambrósio, chefe nobre e sábio, descendente de uma família real africana. Em seu governo não podia haver roubo ou saques, e os novos escravos só eram admitidos se fossem adquiridos pela compra. No entanto, em muitas expedições dos quilombolas, havia roubos, depredações e correrias, tudo reprovado pelas leis ambrosianas (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 838). Por esse aspecto, percebe-se a contradição da escrita de Gama, pois ele quer harmonia numa comunidade sob o jugo do sistema escravista. Ambrósio era nobre e tinha estirpe, diferente de Pedro Rebolo, africano vingativo e não sujeito às regras da colônia. Conforme Gama, os escravizados deveriam ser aceitos nos quilombos, desde que seus donos fossem indenizados. No reduto ambrosiano, além de poucos heróis, havia muitos escravizados que tinham embebido de sangue humano o ferro homicida de suas espadas e de seus alfanjes (Gama, 1904, p. 832). Os homens da paz deixaram com Ambrósio todos os criminosos, pois este os administraria como os jesuítas o faziam. Nesse sentido, a boa moral e o comportamento adequado dos negros necessitariam ter inspiração na conduta reta dos “bons” jesuítas.

O aspecto a ser considerado por Guimarães, e que tem uma linhagem na historiografia que vem desde o ensaio de Von Martius (1843), sendo retomado por Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (Freyre, 2005FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.), que é o retrato idealizado por Carmo Gama do povo brasileiro, formado pelo amálgama de três culturas: o português, representado pelos jesuítas; os índios, formados pelo corpo de generais e pessoas de confiança do quilombo; e os africanos, representados por Ambrósio e pelo dissidente Pedro Rebolo. No lugar do heroísmo do indígena, configurado na literatura romântica do final do século XIX, temos um negro valente e instruído, transformado em mito por alguns e em herói por outros. Nota-se que a narrativa foi construída apenas alguns anos depois da Abolição. Percebamos que a recuperação da imagem do negro é feita de forma parcial, pois toda herança africana é depurada pelo homem português. Este contraste e preconceito em relação ao africano, também lembrado por Guimarães, afirma o seguinte sobre o líder Ambrósio no “Quilombolas”: o “escravo” jovem tornou-se “homem purificado de muitos vícios de sua nação e ilustrado o quanto possível, para o realce dos dotes que possuía ingênitos, ressaltando entre todos, o tino administrativo, a intrepidez, e mais que todos, a gratidão para com seus benfeitores” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 834). O negro é bom, é inteligente para a administração e intrépido para com os seus porque recebeu boa ilustração de seus benfeitores.

Assim como os homens, as mulheres também se tornaram mais inteligentes e letradas pela ação benevolente dos brancos e mestiços portugueses e seus descendentes. Um exemplo era Cândida, a esposa de Ambrósio, mulher guerreira e forte. Ela era muito inteligente, talvez “até mais que Ambrósio”, porque foi educada pelos padres. Segundo Gama, ela tinha habilidade nas letras, saindo de sua condição de “boçal africana” para donzela educada. Gama diz que “a bela planta não depende tanto, em certos casos, da natureza do solo, como dos cuidados do horticultor” (Gama, 1904GAMA, Carmo. Quilombolas - lenda mineira inédita. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 9, fasc. I e II, p. 827-866, jan.-jun. 1904., p. 834). Aquela planta bela só se torna bela porque deixou a sua terra, a África, e veio a ser cultivada entre os educados colonos. Os homens e as mulheres só se tornam sujeitos de admiração e educados se esquecerem das heranças africanas e mergulharem nos elementos da nova cultura dos colonizadores. Nesse sentido, Gama antecede o psicólogo Skinner com sua ênfase na capacidade de maleabilidade de condicionamento do comportamento do homem.

O professor Guimarães é um otimista em relação ao texto de Gama, pois o vê, ainda que dentro de certo limite interpretativo, como veículo de informações importantes sobre a prática da religião católica entre os quilombolas e suas relações com os índios do lugar. Guimarães ainda levanta a possibilidade de o texto ajudar na orientação documental, ou seja, indicando nomes, datas e lugares, bem como na descrição das atividades agrícolas e do manuseio dos instrumentos e suas técnicas. Na leitura do texto, acredito que ele deixa pouco espaço para avançarmos na questão das relações travadas entre os vários povos e grupos étnicos. Em relação às datas e lugares, o texto mais confunde do que informa, sendo, por isso, de pouco uso para um trabalho arqueológico. Para o uso documental e arqueológico, as fontes do Arquivo Público Mineiro são mais orientadoras e eficientes. As autoridades coloniais deixaram muitos registros oficiais sobre a organização, desenvolvimento e campanhas contra os grupos quilombolas. Muitas cartas e correspondências oficiais de governadores, ouvidores, juízes e camaristas trocadas entre si e com o conselho Ultramarino, bem como direcionadas aos reis de Portugal, estão disponíveis nos arquivos regionais. Existem também vários documentos descrevendo ações de militares e civis nas tropas repressoras, além de um vasto catálogo de leis e bandos disciplinando os atos ordinários.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho consistiu em trazer ao debate a querela de a ficção dialogar com a história, trazendo como modelo epistemológico as análises do conto “Quilombolas”, de Carmo Gama. Acreditamos que esse debate pode ampliar o conhecimento do mundo da vida. É na tessitura da ficção que se torna possível criar mecanismos de enunciação para dar voz aos personagens emudecidos ou silenciados pelos detentores de poder. Alguns sujeitos históricos do passado, estabelecidos nos postos de domínio, não queriam ver os seus interesses abalados e, por consequência, sustentaram os jogos dos imaginários sociais e do esquecimento, buscando mascarar eventos históricos que contradissessem os seus discursos. Nesse sentido, Ambrósio foi mais que uma lenda e menos que um revolucionário espartano, mas um homem de uma prática societária que visava o fortalecimento grupal e a resistência coletiva para os que buscavam a liberdade.

A trama histórica ganha forma por meio de fatos reais que se encontram nos registros das memórias de uma dada época. A força da ficção está na capacidade de rememorar fatos reais, recriando-os com leveza, sobretudo aqueles que promoveram dores e violências em uma dada sociedade. Nesse fato reside uma das diferenças entre a forma de trabalho do escritor e a do historiador, pois enquanto o historiador lida com a veracidade dos fatos, o romancista parte do real, mas não tem a preocupação em se manter no limiar deste real, pois a sua função consiste justamente em criar artifícios que despertem a curiosidade e prendam a atenção do seu leitor. Essa estratégia leva tanto ao conhecimento da realidade quanto o dado puro levantado pelo historiador.

O estilo do homem é o lugar onde ele menos pensa sobre ele mesmo. Quando o historiador se atém ao que é suprimido, às lacunas da história, ele se relaciona, de forma inconsciente ou não, com o método de trabalho da psicanálise. Se somos o que não somos aparentemente (para LacanLACAN, Jacques. Os não tolos erram: os nomes do pai. Trad. e org. de Frederico Denez e Gustavo Capobianco Volaco. Porto Alegre: Editora Fi, 2018., existo onde não penso), também o passado é naquilo que não foi. O historiador, assim como o psicanalista, empenha-se em fazer falar o que está escondido nas lembranças suprimidas ou apagadas, escrutinando pequenos detalhes que parecem irrelevantes nos recalques perpetrados pela história dominante. O comportamento do indivíduo, como o do personagem de uma lenda, carece de ser perscrutado, observando o que é raro e fugidio por detrás do que é exposto, como é apresentado o Ambrósio no conto de Carmo Gama. Da mesma forma, segundo Benjamin, a história dos vencidos precisa levar em consideração o que não foi narrado, o que foi ocultado pela cronologia, pela narrativa, pelo quadro estatístico. Com afirma Freud, a verdade pode estar onde esquecemos ou não queremos ver. Pode estar nas lembranças encobertas. Assim como o sonho só é interpretado após o despertar, ou seja, após a interrupção do dormir, a história só poderá ser fiel ao seu estatuto gnoseológico se levar em consideração também as rupturas e suspensões ocorridas no mundo da vida.

Como alternativa para o problema da relação entre literatura e história, La Capra coloca-se no meio do caminho entre a abordagem historiográfica tradicional, de paradigma documental e as propostas formalistas de leitura de textos, históricos ou não, como unidades autorreferentes. O autor procura situar-se e negociar com os aspectos de ambas as abordagens, sem, contudo, determinar um caminho fechado a seguir.

Um movimento em uma direção desejável é, penso eu, feito quando os textos são entendidos como usos variáveis da linguagem que atingem - ou “inscrevem” - contextos de várias maneiras - maneiras que engajam o intérprete, como historiador e como crítico, em uma troca com o passado por meio da leitura de textos (La Capra, 1985LA CAPRA, Dominick. History and criticism. Ithaca: Cornell University Press, 1985., p. 127).

Existe o pressuposto, para a análise de textos, de que eles sempre são portadores de um discurso, portanto não podem ser lidos como algo transparente, e que basta uma boa leitura do código expresso para assimilá-lo imediatamente, como fizeram alguns historiadores elencados por mim. Qualquer narrativa, histórica ou ficcional, sempre se depara com a questão do fluxo do tempo. Observemos que essa preocupação se coloca tanto na escrita como também na exigência de interpretação de um texto. O modo como o documento se apresenta, seus enunciados e seu vocabulário exigem do historiador um manejo sensível e rigoroso para destacar seu conteúdo histórico. A partir daí, o pesquisador inicia a sua escrita (Cardoso, 1997CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo(orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, p. 1-23, 1997., p. 377).

Um texto literário como “Quilombolas...” torna-se uma obra de estudo para os historiadores que vão além do fato, das datas e das descrições geográficas. Signos e símbolos, sentimentos e horizontes dos personagens servem tanto aos historiadores quanto os dados coletados num arquivo. O texto literário e o documento têm a função de ser referência, com a qual a escrita da história pode ser tecida. Na ficção podemos perceber as lacunas deixadas pelo discurso histórico, revisitando temas que se acreditavam elucidados e questionando verdades antes inabaláveis. Como afirma Jacomel, a inadequação da linguagem ao real pode revelar as múltiplas tensões dessa realidade. O texto “Quilombolas...” informa momentos de uma prática que necessitam ser analisados também nos seus sentidos.

Referências

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  • WHITE, Hayden. Meta-história: imaginação histórica no século XIX São Paulo: Edusp, 2008.
  • 1
    Arquivo Público Mineiro (A partir de agora, APM.). APM-Seção Colonial (SC): 84, fls. 108v a 109, de 16.06.1746. Publicado também na Revista do Arquivo Público Mineiro (A partir de agora, RAPM.). RAPM, 16.06.1746, p. 619.
  • 2
    APM-SC 84, fls. 108v a 109, de 16.06.1746. RAPM, 16.06.1746, p. 619.
  • 3
    APM-SC 84, fls. 109v, de 01/06/1746.
  • 4
    APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746.
  • 5
    APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746.
  • 6
    APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746.
  • 7
    APM-SC 45, fls. 64v a 65, de 08/08/1746.
  • 8
    APM-SC cód. 84, p. 108v. e 109.
  • 9
    APM-SC cód. 84, p. 108v. e 109.
  • 10
    Várias foram as expedições ordenadas pelo governador José Antônio Freire de Andrada. A primeira foi encarregada ao já conhecido capitão-mor Bartolomeu Bueno do Prado, residente no Pitangui. Ele, filho do famoso Domingos Rodrigues do Prado, neto do Anhanguera. “Aventureiro aceitou a incumbência, pôs-se à frente de quatrocentos sequazes e meteu-se pelos matos e serras em combate aos quilombos do Indayá e além da Marcela, dos quais os maiores foram os ditos do chefe negro chamado Ambrósio, e do Zundú, apelido de um outro” (Vasconcelos, 1974VASCONCELOS, Diogo. História média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974., p. 173).
  • 11
    Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida (BMBCA) - Câmara de São João Del Rei (CSJR) -pap 144, fls. 68v-69, de 13.09.1759. Bartolomeu Bueno do Prado recebeu honras e sesmarias pelo serviço feito e ficou, depois da expedição de extermínio, como guarda-mor auxiliar dos Sertões do Jacuí, sediado em São Pedro de Alcântara e Almas (hoje, Jacuí, MG), onde continuou a residir também Constantino Barbosa da Cunha, companheiro da expedição de 1760, fazendo experiências minerais em Campo Grande, inclusive no antigo território do Quilombo do Ambrósio.
  • 12
    RAPM, ano II, 1897, p. 230.
  • 13
    José Joaquim do Carmo Gama foi um menino pobre, o pai era comerciante em Minas Gerais e, com a falência dos negócios, transferiu-se com a família para Carmo da Cachoeira. O tio e padrinho, cônego Domingos, internou Carmo Gama no Seminário de Mariana, prestigiada instituição religiosa e de ensino. Ao concluir os estudos preparatórios, em 1882, o jovem matriculou-se na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro. No entanto, sem meios de subsistência na grande cidade, desistiu do curso. Mudou-se para Rio Novo, em Minas Gerais, onde começou a lecionar. Em 1890 foi nomeado, por concurso, para o cargo de 1º tabelião e oficial de Registros Gerais. As memórias do escrivão estão inseridas no deslocamento do tempo, em relação às crônicas de Olavo Bilac e Coelho Netto, por exemplo.
  • 14
    “Questão de limites entre os estados de Minas e Goiás, transcrevendo carta datada do Gabinete do Estado de Minas Gerais em 18 de abril de 1904, onde Francisco Antônio Salles reafirma várias mentiras históricas ao Dr. Xavier de Almeida, presidente do estado de Goiás, para justificar o esbulho reinol mineiro de 1815 também sobre o Triângulo Goiano” (Martins, 2008, p. 293).
  • 15
    APM-SC, cód. 84, p. 109-110v.
  • 16
    Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) - Conselho Ultramarino. Brasil/MG, Cx. 117, doc. 41 Inventário MARMG-AHU, Col. Mineiriana, v. 2, p. 199.
  • 17
    Decreto Real de 21 de julho de 1759 e Alvará Real de 3 de setembro de 1759, reforçando o primeiro.
  • 18
    Esse real é diferente do concebido na psicanálise. O real lacaniano diz de algo incapaz de um dito, um não dito, um impossível de ser apreendido, entendido, compreendido, a coisa em si. Contudo, tentamos narrar, semelhante a um dejà vu, que também é difícil de capturar e narrar, mas tentamos, pois nos invade como algo próximo de “uma verdade”. É por isso que falamos, escrevemos e relembramos tanto. Para dar conta do impossível de ser consumado (Lacan, 2018).
  • 19
    Em Meta-história White propôs a compreensão de textos históricos a partir de metáforas explicativas, capazes de articular diferentes temporalidades, oferecendo uma visão da realidade que não quer ser completa. O exemplo paradigmático seria o de Burckhardt (A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), que parte do que entendeu ser a metáfora do individualismo como eixo estrutural a partir do qual constrói sua visão, sugerindo algumas perspectivas e ignorando outras. Assim, o texto adquire um valor quase autorreferente, em que a medida de validação é a coerência com o próprio argumento central. Enfatizando uma espécie de ficcionalidade discursiva estrutural, esse modelo aproxima o texto histórico da ficção ou da arte, em que não apenas a forma seria indissociável do conteúdo, mas, muitas vezes, seria seu acesso preferencial (White, 2008).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2022
  • Aceito
    08 Jun 2022
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