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Nas coxias da ciência: a peça “Gutenberg - drama histórico em 5 atos e em prosa” de Juliette Figuier: práticas de vulgarização científica e invisibilização feminina no século xix

Resumo:

O objetivo deste artigo é abordar, a partir do caso de Juliette Figuier, a atuação frequentemente invisibilizada de mulheres intelectuais na disseminação da cultura científica entre França e Brasil. O objeto de estudo é a peça teatral Gutenberg (1869) da autora, que também circulou pelo Brasil através de uma tradução em português, de 1877. A peça, que trata da vida mitificada do inventor da imprensa, insere-se no rol de narrativas sobre a ciência realizada pelos vulgarizadores das ciências - como seu marido Louis Figuier. Muitas vezes confundida como obra do vulgarizador, Gutenberg, no entanto, foi originalmente escrita por Juliette Figuier. O artigo, com este caso, procura discutir como mulheres podiam participar da produção de bens culturais que projetaram a imagem sobre a “ciência”, em um papel de mediação.

Palavras-chave:
Teatro científico; Vulgarização científica; Escrita feminina

Abstract:

The aim of this article is to look at, through the case of Juliette Figuier, the often invisible role of intellectual women in the dissemination of scientific culture in France and Brazil. It focuses on her play Gutenberg (1869) which was translated into Portuguese in 1877 and circulated in Brazil. The play, which deals with the mythical life of the inventor of the printing press, is included in the list of narratives about science produced by popularizers of science - such as her husband, Louis Figuier. Often mistaken as a work of the latter, Gutenberg was originally written by Juliette Figuier. The article seeks to discuss through this case how women could participate in the production of cultural goods which projected the image of Science in a mediating role.

Keywords:
Scientific theatre; Science popularization; Women’s writing

O fenômeno da vulgarização científica do século XIX foi bastante debatido na história das ciências e na história dos livros e das edições dos países europeus e norte-americanos, como fruto da revolução industrial, do desenvolvimento de uma cultura de massas principalmente pelo mercado editorial, e da ampliação do sistema de ensino (Mollier, 2001MOLLIER, Jean-Yves. La lecture et ses publics à l’époque contemporaine. Paris: Puf, 2001.; Béguet, 1990BÉGUET, Bruno. La science pour tous: sur la vulgarisation scientifique en France de 1850 à 1914. Paris: Bibliothèque du Conservatoire National des Arts et Métiers, 1990.; Fyfe e Lightman, 2007LIGHTMAN, Bernard. Victorian popularizers of science: designing nature for new audiences. Chicago: The University of Chicago Press, 2007.; Secord, 2014SECORD, James A. Visions of science: books and readers at the dawn of the Victorian age. Oxford: Oxford University Press, 2014.; Bensaude-Vincent, 1993BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. Un public pour la science: l’essor de la vulgarisation au XIXe siècle. Réseaux, v. 11, n. 58, p. 47-66, 1993.). Estudos recentes sobre a circulação de impressos têm salientado a importância dos suportes midiáticos como foi a imprensa nos circuitos existentes entre França, Portugal e Brasil, que, via processos de “transferências culturais” (Espagne, 1999ESPAGNE, Michel. Les transfers culturels Franco-Allemands. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.), possibilitam observar a conformação da mundialização da cultura e de uma civilização transnacional dos jornais (Dutra, Mollier, 2006DUTRA, Eliane; MOLLIER, Jean-Yves. Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política - Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006.; Guimarães, 2012GUIMARÃES, Valéria (org.) Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Edusp, 2012.; Kalifa, Régnier, Thérenty, 2011KALIFA, Dominique; RÉGNIER Philippe; THÉRENTY Marie-Ève (eds.). La civilisation du journal: histoire culturelle et littéraire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011., entre outros).

Esse processo inclui também a disseminação da cultura científica, seja pela institucionalização das ciências, seja pela propagação de seus valores na sociedade mais ampla (como no debate da profissionalização) que passavam a ser defendidos como universais. Para o movimento de propagação de valores ligados aos discursos da ciência, como a ideia de invenção ou da descoberta, da dedicação profissional, do mérito e do exemplo do sábio abnegado, contribuíram de forma marcante os chamados “vulgarizadores da ciência”, ou “popularizadores”, na língua inglesa, que ampliaram, em diferentes regiões do planeta, como na América Latina, o espaço público da ciência (Cabrera, 1998CABRERA, Leoncio López-Ocón. La formación de un espacio público para la ciencia en la América Latina durante el siglo XIX. Asclepio, v. 50, n. 2, p. 205-225, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.3989/asclepio.1998.v50.i2.343. Acesso em: 23 maio 2023.
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; Nieto-Galán, 2011; Vergara, 2008VERGARA, Moema. Ensaio sobre o termo “vulgarização científica” no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 1, n. 2, p. 137-145, 2008.). Em grande medida, isso foi possível por causa da atuação de escritores na imprensa, incluindo as traduções de textos de vulgarizadores das ciências, principalmente franceses.

Analisamos em outra oportunidade a circulação dos escritos do vulgarizador das ciências francês Louis Figuier na imprensa brasileira (Kodama, 2018KODAMA, Kaori. Tornar a ciência popular: Figuier nos jornais e revistas do Brasil (1850-1870). Varia Historia, v. 34, n. 66, p. 601-636, 2018.). Conforme vimos, Louis Figuier pode ser considerado um caso interessante das práticas culturais de intelectuais mediadores para as ciências naturais (Gomes, Hansen, 2016GOMES, Ângela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Nome conhecido do leitorado dos jornais, seus textos foram amplamente utilizados tanto para o consumo das notícias sobre as novidades técnico-científicas como para os discursos de defesa da instrução popular a partir das ciências.

Neste artigo, procuraremos abordar a produção de Juliette Figuier e o processo de apagamento de sua escrita. Destacaremos como caso particular a circulação da peça teatral Gutenberg - drame historique em 5 actes et en prose de Juliette Figuier, publicada em 1869, e que recebeu uma versão em português no Rio de Janeiro em 1877. A peça, mais tarde, foi integrada ao projeto de Louis Figuier de divulgar a ciência por meio do teatro, no empreendimento denominado por ele de “teatro científico”. Embora Juliette Figuier tenha sido a verdadeira autora de diversas peças que fizeram parte do teatro científico, até recentemente, pouco reconhecimento foi dado a esse fato. As peças integradas ao teatro científico foram consideradas de autoria de Louis Figuier, e Juliette Figuier foi vista muitas vezes apenas como colaboradora (Cardot, 1989CARDOT, Fabienne. Le Théâtre scientifique de ­Louis Figuier. Romantisme, n. 65, p. 59-68, 1989. Disponível em: Disponível em: https://www.persee.fr/doc/roman_0048-8593_1989_num_19_65_5599 Acesso em: 4 mar. 2020.
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; Vautrin, 2018VAUTRIN, Guy. Histoire de la vulgarisation scientifique avant 1900. Les Ulis: EDP Sciences, 2018.). A peça, que circulou no Brasil em 1877, ganhou pequena repercussão nos jornais do período, sendo posteriormente esquecida e tendo sua autoria atribuída, erroneamente, a Louis Figuier.

Na quadra modernizante do último quartel do século XIX, a atuação de mulheres que participavam de práticas de mediação cultural, sobretudo nas ciências, é pouco conhecida. A partir da trajetória de Juliette Figuier e de seu texto teatral Gutenberg, procuramos refletir sobre a participação dessa autora nas práticas da vulgarização científica e, ao mesmo tempo, destacar o processo em que se deu seu apagamento e a posterior desassociação entre seu nome e sua obra. Recorremos à categoria de intelectuais mediadoras, conforme as proposições de Gomes e Hansen (2016GOMES, Ângela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.), para qualificar sua trajetória, bem como o tipo de produção por ela realizada. Como essas autoras afirmam, recorrentemente, as produções das intelectuais mediadoras tornam-se de difícil qualificação, em boa parte por se apresentarem em formas híbridas, em obras consideradas “menores”, tais como livros infantis, livros didáticos ou voltados para um público popular, e em textos na imprensa cotidiana. Se as obras de vulgarização científica por si se enquadram aí, e, em geral, eram tidas como “rebaixadas” porque voltadas ao público leigo, é de se notar que as mulheres tinham ainda menos espaço no terreno das ciências. Procuramos demonstrar neste artigo que as peças teatrais com temas científicos atribuídas ao vulgarizador Louis Figuier só puderam ser produzidas a partir da autoria original de Juliette Figuier.

Se a atuação feminina na imprensa tem sido ressaltada em pesquisas nos últimos anos (Duarte, 2016), são relativamente escassos os estudos sobre mulheres que atuaram na divulgação das ciências, levando-se em consideração ainda os obstáculos impostos às mulheres no acesso à formação científica. Não obstante, diversas mulheres têm sido reconhecidas nas práticas de popularização das ciências.1 1 Principalmente no mundo anglo-saxão, como Arabella Buckley, secretária de Charles Lyell, a sufragista Lydia Becker, Anne Pratt entre outras na Inglaterra, como aponta Bernard Lightman (2007). Muitas vezes, tal participação feminina dava-se através das traduções de textos de vulgarização científica, como no caso de Rosaria Orrego, que escrevia para o periódico feminino Revista de Valparaiso, no Chile (Errázuriz, 2019ERRÁZURIZ, Verónica Ramírez. Las mujeres y la divulgación de la ciencia em Chile: mediadoras de la circulación del saber en revistas culturales (1870-1900). Meridional: Revista Chilena de Estudios Latinoamericanos, n. 13, p. 15-40, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.5354/0719-4862.2019.54415. Acessado em: 23 maio 2023.
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), ou ainda, de Vitoria Colonna, tradutora do livro Francinet de Augustine Fouillé, no Brasil (Raffaini, 2016RAFFAINI, Patricia. A Livraria Garnier e a tradução e edição de livros para a infância (1890-1920). In: GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos. Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 66-91.). Outras, como no caso de Juliette Figuier, participaram em colaborações com homens, e ao mesmo tempo produziram, criativamente, bens culturais sobre as ciências voltados para o público amplo.

Desde já pontuamos que não se trata de considerar que Juliette Figuier tenha reivindicado para si o papel de uma especialista na vulgarização das ciências, como notoriamente fez seu marido Louis Figuier. A vulgarização científica, fruto da própria institucionalização das ciências (Vergara, 2008VERGARA, Moema. Ensaio sobre o termo “vulgarização científica” no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 1, n. 2, p. 137-145, 2008.), também se tornava uma especialização literária e jornalística, da qual Louis Figuier era uma das principais referências. Podemos ainda assim qualificar Juliette como uma intelectual mediadora, uma vez que, como mulher atuante na literatura, procurou a seu modo criar uma produção nova e híbrida, trazendo personagens da história das ciências e das técnicas para o público popular nas primeiras peças científicas imputadas a Louis Figuier.

O artigo também pretende retomar a discussão trazida por Valérie Narayana (2011NARAYANA, Valérie. Le Théâtre scientifique de Juliette Figuier/Jean Mirval: rhétorique d’une «œuvre masque»? In: BEAULIEU, Jean-Philippe; OBERHUBER, Andrea. Jeu de masques: les femmes et le travestissement textuel (1500-11940) Saint-Étienne: Presses Universitaires de Saint-Étienne, 2011. p.133-143.) sobre as “metamorfoses” sofridas pela produção intelectual de Juliette Figuier, em particular, seus trabalhos teatrais com temáticas científicas. Como essa autora afirma, a prática recorrente entre as mulheres escritoras de utilizar pseudônimos ou o nome do marido, como foi o caso de Juliette Figuier, se, por um lado, servira como “máscara” social, protegendo sua identidade e reputação, por outro, tornou possível seu próprio apagamento (Narayana, 2011NARAYANA, Valérie. Le Théâtre scientifique de Juliette Figuier/Jean Mirval: rhétorique d’une «œuvre masque»? In: BEAULIEU, Jean-Philippe; OBERHUBER, Andrea. Jeu de masques: les femmes et le travestissement textuel (1500-11940) Saint-Étienne: Presses Universitaires de Saint-Étienne, 2011. p.133-143.). Nesse conjunto de peças “confiscadas” e retrabalhadas pelo grande vulgarizador, encontra-se a peça que ora abordaremos.

Juliette como autora de romances e de peças teatrais, ou “o que é uma autora”?

Os debates de gênero sobre autoras romancistas e dramáticas do século XIX têm possibilitado melhor conhecimento dos trabalhos de muitas mulheres, entre as quais podemos contabilizar Juliette Figuier.2 2 Desde há algumas décadas, pesquisadoras e pesquisadores vêm trazendo à tona a escrita de diversas mulheres no espaço cultural francófono, em um movimento que busca recuperar sua agência e participação na vida cultural e científica. Mais recentemente, Rosselo-Rochet (2017), em um levantamento sobre mulheres na dramaturgia francesa, salienta um conjunto de 345 autoras dramáticas no século XIX, das quais 36 autoras tiveram mais de 5 peças estreadas nos teatros. Entre essas, encontra-se Juliette Figuier, com 12 peças publicadas. A condição de uma autora cujo nome público era o nome do marido precedido pela forma de tratamento para o gênero feminino, Madame Louis Figuier, foi uma das razões do apagamento de seus trabalhos ao longo do tempo. É conhecida a prática adotada pelas literatas de utilizarem pseudônimos ou um “nom de plume” masculino, fosse para a “proteção da reputação” da identidade da mulher escritora diante do público, fosse por estratégia feminina a fim de obter maior aceitação dos leitores. Assim fizeram Amantine Dupin, nome de George Sand; Eugénie Saffray, que se assina Raoul de Navery; as irmãs Brönte, que utilizam o pseudônimo de irmãos Bell; entre tantas outras.

Cabe lembrar que os direitos de propriedade da autora mulher em sua época dependiam do regime matrimonial e da propriedade “moral” emanada do cônjuge, que tinha o direito de consentir e de gerir as publicações das escritoras. O primeiro projeto na França que buscava regular os direitos da autora mulher datava de 1839 e ficou em suspenso, não havendo uma lei completa sobre a propriedade literária feminina até 1957 (Prassoloff, 1992PRASSOLOFF, Annie. Le statut juridique de la femme auteur. Romantisme, n. 77, p. 9-14, 1992. Disponível em: Disponível em: https://www.persee.fr/doc/roman_0048-8593_ 1992_num_22_77_6047 . Acesso em: 2 jun. 2021.
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). Concordamos com os questionamentos de Aina Pérez e Meri Torras (2019PÉREZ, Aina; TORRAS, Meri. ¿Qué es una autora? Encrucijadas entre género y autoria. Barcelona: Icaria, 2019., p. 9), de que introduzir o gênero da autoria, perguntando-se “o que é uma autora” retomando a crítica de Foucault, implica pensar sobre “como se definiram as relações entre gênero sexual e os atributos que qualificam a/o criador/a cultural”. Como afirmam, as marcas de gênero do “corpo que escreve”, utilizando a expressão de Barthes, “determinam os modos de produzir e de ler os corpora literários e artísticos”.

Louise Juliette Bouscaren nasceu em 4 de fevereiro de 1827, no departamento de Hérault.3 3 Certidão de nascimento de Louise Juliette Bouscaren. Archives Départamentales d’Hérault, 5MI 1:74, n.122. Disponível em: https://archives-pierresvives.herault.fr/ark:/37279/vta557bad2a09168/daogrp/0/35. Acesso em: 21 out. 2020. Pelo que contam os relatos de amigos próximos, recebera educação esmerada, “forte e independente, ao mesmo tempo liberal e científica”, completando seus estudos com cursos de literatura, história, física e botânica.4 4 Sans auteur. 1892. “L’auteur de ‘Savant de Pyrénées’, Mme Louis Figuier.” In: Le savant des Pyrénées, de Juliette Figuier (1892). Seu pai era Jean Jules Bouscaren, proprietário em Montpellier, e sua mãe, Sophie Cambon, neta de um industrial de tecidos e sobrinha do membro da Convenção Joseph Cambon. De família protestante, Juliette teve como preceptor o renomado pastor Charles Grawitz, que fora marcante em sua formação, inclusive em seu interesse pelo teatro. Em 1848, casou-se com Louis Figuier, doutor em medicina por Montpellier, e o casal se instalou em Paris em 1855, quando ele recebera o convite para redigir uma seção científica num dos jornais mais lidos da França do momento, o La Presse, de Émile de Girardin.

Em seu primeiro romance-folhetim, Mos de Lavène, publicado na Revue des Deux Mondes, em 1858, Juliette Figuier testa um pseudônimo feminino, Claire Sénart. Após obter uma boa recepção crítica do texto, Juliette se lança à carreira de escritora, assinando a partir de então como Mme. Louis Figuier. Ao ingressar no cenário intelectual parisiense, suas origens do sul da França tornaram-se uma marca de seus romances, o que lhe ajudará também a construir sua identidade como autora. Revestidos das fórmulas românticas da “cor local”, no ambiente sereno e simples, com um olhar cândido e ingênuo sobre a vida no campo, abordou nos primeiros trabalhos os contrastes da cena rural em relação à agitada vida urbana da capital parisiense.

Figura 1
Juliette Figuier

É de se notar que a rede de relações do marido com algumas das grandes figuras do mundo editorial foi importante para que Madame Figuier pudesse ingressar no universo das gens de lettres.5 5 Ela se tornou sócia da Société de Gens de Lettres em 1859. Bulletin de la Société des Gens de Lettres, ano 14, n. 3, mar. 1859. No jornal de Girardin, ela publicou o seu segundo romance-folhetim, Les ­soeurs de lait, scènes de la vie du Bas-Languedoc. Em inícios da década de 1860, seus romances estavam no catálogo popular do editor Hachette, que publicava o almanaque Année Scientifique de Louis Figuier.

Na esfera privada, Juliette movimentava um salão onde recebia figuras importantes do mundo intelectual ligadas à atividade de seu marido, que também abriam caminhos para a sua própria inserção como escritora. O salão dos Figuier foi considerado por alguns testemunhos como um dos mais reputados e agradáveis de seu tempo.6 6 Le Progrès de la Côte-d’Or, 2 dez. 1894, p. 9-12. No mundo burguês e intelectual parisiense ao qual passou a pertencer, o prestígio e o reconhecimento das femmes savantes só poderiam ser plenamente alcançados a partir dessa esfera de relações. Através dessas redes é que Juliette teve contato, por exemplo, com George Sand, personagem ímpar no cenário das mulheres-escritoras e fonte de inspiração para muitas escritoras. A Sand, Juliette enviou o romance Mos de Lavène, em um gesto de admiração, mas também como ritual que fazia parte do dever de ofício das iniciantes para alcançar sua própria posição como mulher escritora.7 7 Carta de Madame L. Figuier à George Sand, 6 fev. 1859 (Bibliothèque Historique de la Ville de Paris, Paris).

Juliette Bouscaren retratava em seu romance suas lembranças da paisagem entre Montpellier e o Gigean, terra natal de sua mãe e região de cultivo de vinhas. É esse cenário que circunda a personagem que dá título ao romance. Como explica no início do enredo, o termo Mos seria resquício da presença hispânica na França meridional, e significa Senhora ou Dona de Lavène. A Mos criada por Juliette é a síntese da “figura obcecante da Mãe, que absorve todas as outras”, como dizia Michelle Perrot (2017PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2017. [recurso eletrônico]) sobre o reforço que a imagem feminina no século XIX ganhava. O tratamento que faz das festas locais, hábitos, vestuário e técnicas manufatureiras denota a abertura ao “realismo” que já se evocou ser a contribuição de diversas obras femininas do período (Finch, 2000FINCH, Allison. Women’s writing in nineteenth century France. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.). A evocação romântica à natureza está presente em seus romances publicados entre 1858 e 1864: Fiancés de la Gardiole (1860), Le Franciman (1860), Le soeurs de lait (1861), Le gardian de la Camargue (1862), La prédicante des Cevennes (1864), e no relato de viagem, L’Italie d’après nature, que foi publicado em 1868 (ver Quadro 1). A figura feminina, sobretudo da mãe, mas também da esposa, filha ou irmã - é o motor da vida íntima que modela seus romances e peças. Essa característica preside as peças “científicas” escritas por Juliette, tal como se apresentara em Gutenberg, como veremos.

Quadro 1
Trabalhos publicados de Juliette Figuier

Quadro 1
continuação

Entretanto, um evento trágico marca sua vida: a morte do único filho do casal, com a idade de 17 anos, em 1867. A partir de então, aparentemente, ela deixa os romances. Segundo seus amigos próximos, ela se tornou menos ativa e se voltou à pintura de flores e à vida doméstica. Mas, ao seguirmos suas publicações no decorrer dos anos, é possível perceber que ela redirecionava sua carreira para a escrita teatral, primeiramente com a peça Gutenberg - drame historique em 5 actes, que envia ao teatro Odéon em 1869.

Figura 2
Capa de Gutenberg - drame historique en cinq actes.

Primeiro eclipse da autoria

A tentativa de estrear essa peça, no entanto, foi malograda, uma vez que, ao submeter seu texto ao Odéon, outra peça com título bastante semelhante concorria para subir aos palcos do Théatre-Français. A peça em questão era Gutenberg: drame en cinq actes et en vers, de Édouard Fournier. Por motivos não explicitados, segundo a autora, Fournier foi anunciado para estrear no Odéon, em vez de fazê-lo no Théatre-Français para onde ele havia apresentado seu texto. O concorrente era um experiente escritor que há muito se dedicava às peças teatrais e, além disso, era considerado especialista na história da imprensa, tendo sido colaborador de Paul Lacroix no livro Histoire de l’imprimerie et des arts et professions qui se rattachent à la typographie (1852).

Madame Figuier questionou no prefácio de Gutenberg o procedimento pelo qual sua peça teria sido preterida. Para evitar a suspeita de plágio, resolve publicar sua versão antes da estreia da peça de Fournier, a fim de que o público pudesse julgar a originalidade de seu trabalho (Figuier, 1869FOURNIER, Édouard. Gutenberg: drame en 5 actes et en vers. Paris: Dentu Libraire- Éditeur, 1869.).8 8 Sobre o fato, ela explica: “Devo aqui prestar homenagem à cortesia do sr. Eduardo Fournier, que teve a delicadeza de não querer ler o seu Gutenberg ao diretor do Odéon, antes que este senhor tivesse dado o seu parecer sobre a peça que escrevi. Dias depois o meu Gutenberg foi-me devolvido, e os jornais anunciaram que o Teatro Odéon acabava de receber o Gutenberg do sr. Eduardo Fournier. À vista de tal posição, tomei o partido de imprimir o meu drama antes que o do sr. Eduardo Fournier fosse representado. Desta explicação deve depreender-se que a ninguém pedi emprestado o assunto nem a concepção da minha peça” “Prólogo” (Figuier, 1869, p. II). Fournier, de sua parte, aguardou Madame Figuier receber primeiramente seu texto de volta pela censura para, então, se apresentar à diretoria do teatro, onde estreou em abril de 1869. No prefácio do Gutenberg de Fournier, o autor menciona o trabalho de Madame Figuier, reconhecendo seu valor como romancista, mas atribui a escolha do tema pela autora à influência das obras do marido, Louis Figuier (Fournier, 1869FOURNIER, Édouard. Gutenberg: drame en 5 actes et en vers. Paris: Dentu Libraire- Éditeur, 1869., p. V).9 9 “Madame Louis Figuier, qui est une romancière de valeur, ne pouvait vivre toujours auprès de tant de savoir sans que l’envie lui vint d’en mettre une partie en roman, en legende ou en drame”, escreve Fournier em seu prefácio (Fournier, 1869, p. V).

Ele também destaca as principais diferenças entre as duas peças, dentre as quais, o de ser a peça da autora um drama, uma “ficção doce, mas sempre verossímil” voltada mais para a biografia do herói, e que só superficialmente tratava dos fatos históricos ligados ao invento, enquanto a sua, além de ser em verso, se pautaria nos aspectos da invenção e do tempo histórico. Evocando o que Alexandre Dumas dizia sobre o caráter dos gênios - que um herói não poderia ter outra paixão do que sua própria obra - Fournier critica Madame Figuier, que tentou emprestar a Gutenberg dois outros amores. Um, pela “muito imaginária” filha de Lourenço Coster,10 10 Optamos por utilizar Lourenço Coster, conforme a tradução brasileira de Gutenberg, de 1877. Trata-se do impressor holandês Laurens Coster que viveu na primeira metade do século XV. , e outro, por Aninha (Ennel), para quem Gutenberg teria escrito uma promessa de casamento, mas que foi quase esquecida por ele nas suas distrações de inventor. Na opinião do autor, a peça teria sido melhor resolvida se se tratasse de uma comédia, e não de um drama, como ela pretendeu (Fournier 1869, p. XIII). Esta oscilação do personagem principal era para ele um ponto frágil na trama da autora. A crítica do autor-concorrente tocava nas próprias características da escrita de Juliette Figuier presentes em seus romances.

Não se pode desconsiderar, portanto, a possibilidade de que a condição feminina tenha sobrepesado na decisão da direção do Odéon. Afinal, tratava-se de uma mulher a discorrer sobre um tema prevalentemente masculino como o da invenção da imprensa e que fazia parte do repertório da história das ciências e das técnicas no século XIX. O teatro, afinal, era arena perigosa e de grande competição entre agentes, escritores e atores (Charle, 2008CHARLE, Cristophe. Théâtres en capitales: naissance de la société du spectacle à Paris, Berlin, Londres et Vienne, 1860-1914. Paris: Albin Michel, 2008.). No caso das mulheres, as diversas barreiras sociais seriam ainda mais resistentes. Ao longo do século XIX, como observou Alison Finch, o espaço cedido às mulheres no teatro era parco e mantido sob estreita vigilância. As espectadoras femininas não podiam frequentar o par terre, atrizes continuavam sendo minoria na Comédie Française, e não poderiam participar dos comitês de leitura nem treinar novos atores. A partir de 1824, as mulheres eram explicitamente proibidas de dirigir teatros (Finch, 2000, p. 63). Se alguns nomes teatrais femininos, pela condição mesma de exceção, tornaram-se famosos, a vasta maioria manteve-se incógnita, como demonstram levantamentos sobre autoras teatrais feitos nas últimas décadas.11 11 São muito recentes os trabalhos que procuram levantar a participação das mulheres na autoria das peças. Segundo Finch (2000), cerca de um quarto das setecentas peças que encontrou seriam feitas em coautoria. Ver também o levantamento feito mais recentemente por Rosselo-Rochet (2017).

Apesar de não conseguir estrear seu Gutenberg, a crítica pública na imprensa francesa foi-lhe bastante benevolente, apontando as características de seu estilo com adjetivos dirigidos ao feminino (encantador, gracioso), dando-lhe respaldo:

Mulher de espírito distinto, que tem escrito obras encantadoras com tanto bom senso quanto graça, Madame Louis Figuier deixou-se seduzir pela paixão às letras e resolveu escrever para o teatro. Ela escolheu de início um assunto histórico, que ainda não havia sido tratado, embora seja o mais considerável e o mais comovente do mundo, a história do inventor da imprensa, Gutenberg.12 12 Edmond Croset. La Presse, 22 ago. 1869.

Mesmo que esta sua primeira peça não tenha ganhado os palcos, Juliette Figuier não desistiria do projeto de investir no teatro. Assim, em abril de 1871, longe da capital parisiense, em Nice, ela estreou um vaudeville, Les pelotons de Clairette. Após a temporada que, nas palavras de seu marido Louis Figuier à escritora George Sand, obteve “um sucesso encantador”, a comédia seria encenada em Paris, em novembro do mesmo ano.

Essa atuação pela via do teatro deveria ser delicadamente tecida, de preferência com apoios importantes, como o de George Sand, como a missiva de Louis Figuier à escritora demonstra. Na carta, afirmava que sua esposa havia se lançado com ardor ao trabalho teatral, e que só faltaria uma “afortunada sorte” para que suas produções dramáticas vissem a luz da rampa em uma das cenas parisienses.13 13 “Madame Figuier s’est jetée avec ardeur dans le travail du théâtre et il ne faudrait qu’un hasard heureux pour que les productions dramatiques voient la lumière de la rampe par une de nos scènes parisiennes”. Correspondência de Louis e Juliette Figuier a G. Sand, Paris, 25 ago. 1871 (Bibliothèque Historique de la Ville de Paris, Paris).

A clivagem da atuação feminina no espaço público mantinha sob resguardo a identidade íntima de Juliette. Em nome do pudor, mas sobretudo por ser consciente das barreiras impostas à mulher que se lançava às letras, ela não revelaria seu nome ao público que fora assistir à sua terceira peça, o drama Le presbytère. O diretor Henri Larochelle, quando da estreia da peça em 1872 em Paris, indagado pela plateia sobre a autoria, afirmara aos espectadores que ignorava seu verdadeiro nome14 14 “Mesdames e Messieurs. Je voudrais pouvoir vous dire le nom de l’auteur de la pièce qui vient d’être représentée devant vous, mais je vous assure que je l’ignore. Je vous remercie d’avoir favorablement accueilli l’œuvre, en attendant que je puisse vous faire connître le nom de l’auteur.” e que ficaria devendo ao público uma explicação para esse mistério (Figuier, 1872FIGUIER, Louis . Le presbytère - drame en trois actes, en prose. Paris: Michel Lévy Frères, 1872., p. I). Assim, quando o drama ganhou uma versão impressa, em seu prefácio, Madame Louis Figuier se apresentava com a seguinte justificativa:

Mantive até hoje o anonimato porque pertenço ao sexo frágil. A desconfiança que existe contra qualquer autora mulher é universal. Para superar essa desconfiança, foi preciso romper com o costume. Normalmente, é o nome do autor que faz a peça ser aceita, aqui, a peça é que tinha que fazer o autor ser aceito. Por isso, esperei para assinar Le presbytère até que chegasse à sua décima quinta representação. Encenar Le presbytère sob o véu do anonimato foi uma tarefa difícil. Tratava-se de encontrar um diretor que estivesse disposto a ler, receber e representar esse drama sob sua própria responsabilidade (Figuier, 1872FIGUIER, Louis . Le presbytère - drame en trois actes, en prose. Paris: Michel Lévy Frères, 1872., p. II).

A condição feminina é o primeiro ponto para o qual a autora chama atenção nessa apresentação, questão essa que fora central em seus trabalhos, seja nos romances, seja nos textos para o teatro, como em Gutenberg.

Gutenberg, a peça

Gutenberg - drame historique en 5 actes pode ser enquadrado na longa lista de biografias e publicações pedagógicas dedicada aos sábios e inventores, que se avolumaram no século XIX. Como a historiografia demonstra, as biografias de inventores sofreram profundas mudanças ao longo dos séculos XVIII e XIX, passando a se enquadrar na construção dos discursos laicizados e republicanos sobre os grandes homens e “heróis da nação” (Agulhon, 2003AGULHON, Maurice. La statue de grand homme: critique politique et critique esthétique. Mil Neuf Cent: Revue d’histoire intellectuelle, v. 21, n. 1, p.9-19, 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-mil-neuf-cent-2003-1-page-9.htm . Acesso em: 2 fev. 2021.
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; Bonnet, 2001BONNET, Jean-Claude. Le culte des grands hommes en France au XVIIIe siècle ou la défaite de la monarchie. Modern Language Notes, v. 116, n. 4, french issue, p. 689-704, 2001. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3251754 . Acesso em: 7 jun. 2021.
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). É conhecida a importância das homenagens e préstitos ao inventor em diversas cidades da Europa, dentre as quais ganhou importância a inauguração da estátua de Gutenberg na cidade de Estrasburgo, em 1840, com a participação da Academia Francesa, cujo presidente de honra era Lamartine, e apoio dos representantes dos impressores-livreiros de Paris (Da Pasquale, 2015DA PASQUALE, Andrea. Gloire à Gutenberg: fêtes et commémorations à Strasbourg et en Europe pour célébrer l’invention de l’imprimerie jusqu’en 1840. Histoire et Civilization du Livre, v. 11, p. 175-188, 2015.).

Já na segunda metade do século, as histórias sobre Gutenberg multiplicam-se nas obras dos vulgarizadores das ciências. O próprio Louis Figuier escrevera um capítulo sobre a história da imprensa na Histoire des inventions anciennes et modernes, em 1854, e publicara uma biografia de Gutenberg na coleção de cinco volumes, Vies des savants illustres, de 1867. Não há dúvidas de que esse trabalho de Louis Figuier serviu de base para a criação da peça de Juliette, uma vez que há informações encontradas na biografia utilizadas no texto teatral. Mas, ao invés de supor que Juliette Figuier tenha somente absorvido os elementos da obra do marido, é possível supor que parte da biografia de Louis Figuier sobre Gutenberg tenha sido criada também em colaboração com a esposa. Há trechos de supostos diálogos entre Gutenberg e a irmã Hebèle que entram na biografia publicada em 1867 e são repetidos na peça quase literalmente, e que se diferenciam da narrativa biográfica mais linear preponderante no livro de Louis Figuier. Uma menção a um possível casamento de Gutenberg com Aninha da Porta de Ferro também é feita na biografia e explorada na peça. A hipótese levantada na biografia de 1867, de Louis Figuier, de que Gutenberg teria sido aprendiz em Harlem na estamparia de Lourenço Coster, é tratada por Juliette Figuier na peça, o que indica o diálogo entre os trabalhos. Destaca-se no trabalho dos Figuier a caracterização das origens familiares do herói que, advindo de uma condição social intermediária e criado em uma cidade livre, Mainz, obteve uma formação liberal que o fizera um empreendedor na invenção da imprensa.

Na peça, Gutenberg teria tido uma elevada educação, apesar de ter enfrentado dificuldades financeiras, explorando o tema de sua condição social, propícia à educação do cidadão: de origem familiar honrada, mas, sobretudo, trabalhador. O personagem também se adequava aos ideários industriais da invenção (Carnino, 2015CARNINO, Guillaume. L’Invention de la science: la nouvelle religion de l’âge industriel. Paris: Éditions du Seuil, 2015.). João [Johannes] Gutenberg era assim um ourives, de família modesta, mas de origem nobre. Seu único bem seria a casa paterna da família Gensfleisch.15 15 “Dans notre cité de Mayence, les titres de noblesse sont moins un héritage des ancêtres qu’un témoignage du mérite personnel, et nous sommes les enfants d’un artiste modeste, qui a su, par ses talents et sa vie exemplaire, s’élever au rang de patricien.” Mme. Louis Figuier (1869, p. 8).

O texto de Madame Figuier inicia com suas origens na antiga casa da família Gens­fleisch, junto a Frielo, seu fiel aprendiz,16 16 Louis Figuier atesta que Frielo era o nome do pai de Gutenberg. Cf. Louis Figuier (1867, p. 311). sua irmã Hebèle e Aninha da Porta de Ferro, de quem era noivo. Em Mainz, cria a técnica de imprimir cópias de manuscritos. Devido ao seu ofício, Gutenberg se vê obrigado a abandonar sua irmã Hebèle que, por falta de meios, se enclausura no convento de Santa Clara a pedido do irmão. Noivo de Aninha, Gutenberg anuncia à pretendente que não se casaria para se dedicar inteiramente à arte de “imitar os manuscritos”. No entanto, pressionado por ela, assina uma promessa de casamento.

A história segue com a acusação contra as primeiras impressões de Gutenberg, vistas como obras de feitiçaria por copistas e burgueses do principado, e ele passa a ser perseguido pelas corporações de artesãos locais. Por conselho do príncipe eleitor de Mainz, Gutenberg parte para Harlem. Lá, encontra o estampador Lourenço Coster, que lhe ensina a técnica de impressão com tipos móveis metálicos, e sua filha Marta, por quem se apaixona. Coster lhe promete ensinar sua técnica, tornando-o seu genro. Às vésperas de se casar com Marta, Gutenberg é obrigado por Aninha, que vinha lhe cobrar o compromisso de casamento, a partir com ela para Estrasburgo. De posse da técnica de Coster, Gutenberg monta no convento de Arbogasto uma sociedade com Pedro [Peter] Schoeffer e João [Johannes] Fust, um banqueiro de Mainz, para criar sua oficina tipográfica. Fust, no entanto, cobra a dívida de Gutenberg pelo empréstimo dado após a impressão de sua primeira bíblia e lhe retira o direito de continuar na empresa tipográfica, refazendo sociedade apenas com Schoeffer. Assim, Fust e Schoeffer se apropriam da empresa de Gutenberg e Fust se muda para Paris.

Após anos amargando na miséria, Gutenberg retorna a Mainz e finalmente é resgatado do esquecimento por seus conterrâneos e pelo príncipe eleitor, que passa a lhe conceder o direito a uma pensão vitalícia, declarando-o conselheiro do principado. Toda essa reviravolta na vida do herói acontece em boa parte por obra de Aninha, que, retornando à sua terra natal após a dissolução da sociedade de Gutenberg com Schoeffer, passara anos pleiteando junto aos notáveis locais que honrassem o nome de seu cidadão ilustre. Marta, filha de Lourenço Coster que havia se tornado freira após a morte do pai, peregrinara até a casa dos Gensfleisch para declarar a Gutenberg que encontrara João Fust antes de este morrer de peste em Paris. Em seus últimos momentos, arrependido, Fust teria confessado seu roubo e Marta seria a emissária do pedido de perdão do banqueiro a Gutenberg. A peça acaba com o reconhecimento do inventor e um louvor do povo ao “pai da imprensa”.

Gutenberg passeava pelo repertório popular, de fácil aceitação do público geral. À época, as peças de Juliette Figuier foram categorizadas como pertencentes ao deuxième théâtre, como eram pejorativamente chamadas as comédias ligeiras, vaudevilles e melodramas encenadas em salas de espetáculo mais acessíveis.

Os elementos do enredo no tom do melodrama corroboram esse pendor da peça: a promessa de casamento entre Gutenberg e Aninha da Porta de Ferro; o amor casto de Marta pelo aprendiz de seu pai; a submissão da irmã Hébèle em contraposição à paixão de sua cunhada; a traição de Schoeffer a Gutenberg por ciúme de Aninha; a ambição inescrupulosa do banqueiro Fust. Sobressaem na narrativa de Juliette Figuier as atitudes idealizadas das mulheres, seja em sua sujeição aos homens, seja em suas paixões, revelando pontos de fuga para uma liberdade parcial em sua criação, onde os limites encontram-se fixados pelos valores do casamento e do papel da esposa.

Embora exalte o personagem que dá nome à peça, Juliette destaca principalmente a personagem Aninha, que toma conta do desenrolar dos acontecimentos, às vezes animada por ciúmes, outras vezes, movida por um sentimento sublime de devoção ao seu amado. Voluntariosa e decidida, é Aninha quem apresenta o plano a Gutenberg para que funde uma oficina tipográfica em Estrasburgo, fazendo de conhecidos daquela cidade sócios do noivo: Fust, que o financiaria, e Pedro Schoeffer.

Pedro Schoeffer, sócio de Gutenberg na oficina tipográfica em Estrasburgo se apaixona por Aninha. Ao se ver rejeitado, por vingança, se casa com a filha de Fust, banqueiro que financiou a sociedade. Por inveja e por rivalidade, Schoeffer se alia a Fust retirando de Gutenberg os direitos sobre a invenção.

O elogio ao grande homem que a peça de Juliette Figuier buscava promover não se realizava sem a ação das figuras femininas que auxiliam o herói a obter seu reconhecimento como o verdadeiro inventor da imprensa.

Segundo eclipse: o apagamento da autoria de Juliette Figuier de Gutenberg e o teatro científico de Louis Figuier

Em 1879, uma versão bastante encurtada de Gutenberg apareceu com o título de Gutenberg em Harlem, numa coletânea de peças intitulada Théâtre scientifique, de um certo Jean Mirval (1879MIRVAL, Jean. Théâtre scientifique. Paris: Calman Levy, 1879.). Prefaciado por ninguém menos do que o próprio Louis Figuier, o livro deveria ser, como ele afirma, uma “difusão da ciência pelo teatro”. Encontravam-se na publicação diferentes textos para serem encenados em um único ato, dentre os quais a dramatização de Gutenberg. Mas apesar do disfarce da autoria, o volume Théâtre scientifique de Jean Mirval frisava a mesma presença das noivas, irmãs, sobrinhas e mães dos homens ilustres da ciência característicos das peças escritas por Juliette Figuier entre os anos de 1869 a 1877. Como no original Gutenberg, os dramas reunidos retratavam grandes vultos das ciências como personagens românticos e sonhadores, nobres e devotados ao trabalho.

Como os críticos teatrais entenderam à época, por trás de Jean Mirval estava o casal Figuier. “Jean Mirval é, acredito, um pseudônimo e creria facilmente que ele esconde, somente pela metade, a dupla personalidade do autor do Théâtre Scientifique e de Madame Louis Figuier”, escrevia um crítico.17 17 Léon Duprat, Revue Théâtrale. La Presse, 27 abr. 1879, p. 1.

No auge da fama de Júlio Verne no teatro, Louis Figuier parece ter buscado o mesmo sucesso, insistindo no empreendimento do teatro científico: “fazer amar a ciência... tal tem sido o alvo constante da minha vida [...] e me pergunto se não poderíamos imaginar popularizá-la por outra via: o teatro”, escreve no prefácio de Théâtre scientifique. Entretanto, sua esposa falece em dezembro daquele ano. Figuier, ao contrário de se desprender das sinalizações de fracasso do empreendimento, pareceu ainda mais firme em investir no teatro. Em 1882, aparece uma nova coletânea, La Science au théâtre, com algumas peças inéditas e outras retrabalhadas, como o drama Keppler - ou L’ Astrologie et l’Astronomie e as comédias La Femme avant le déluge, Le Voyage aérien e a République des abeilles.

Em 1886, Louis Figuier lança Gutenberg - pièce historique en 5 actes, pela Tress & Stock, e, dessa vez, aparecia como único autor. Bem mais longa do que a versão de Juliette Figuier, sua peça daria maior destaque aos acontecimentos da vida de Gutenberg e às guerras no principado de Mainz. Para a encenação da peça, o vulgarizador contratou equipe e pagou por toda a produção, que incluía efeitos de cenário com luzes elétricas e pólvora, procurando chamar a atenção do público.

Em 1889, a peça Gutenberg, editada por Louis Figuier, foi mais uma vez publicada na coletânea La science au théâtre sem qualquer menção à Madame Figuier. É interessante notarmos como o apagamento de Juliette Figuier das peças vai de par com a insistência de Louis Figuier em continuar o projeto do teatro científico, mesmo que os sinais do fracasso fossem óbvios. No fim de sua vida, seus recursos eram parcos, apesar de ter obtido muito sucesso ao longo de sua carreira como vulgarizador. Em uma entrevista para a jornalista estadunidense Ida M. Tarbell, refere-se ao teatro científico como sua missão inacabada, que levaria para além da vida. A jornalista e escritora, que esteve em Paris entre 1893 e 1894, visitara Louis Figuier em seu apartamento durante seus últimos anos de vida e, a partir desse encontro, recolhera diversas impressões sobre a carreira do vulgarizador, publicadas em uma matéria para a revista Popular Science Monthly, em 1897. Passando os olhos pelo salão no apartamento onde vivia só, cercado pelos retratos da família e em meio a uma decoração decadente, Tarbell não deixara de reparar nos quadros de flores pendurados nas paredes, alguns com um número de série etiquetado na borda, demonstrando que haviam participado de exposições. Eram os quadros de Juliette, que, segundo o depoimento de um de seus amigos íntimos, pintava de forma tão “graciosa” como escrevia. Ao final de sua vida, Juliette parece ter parado de se interessar em escrever e de se mostrar em público, e suas últimas aparições estavam ligadas aos quadros de flores que faria expor nos salões. Sem que fosse mencionado seu nome na matéria de Tarbell, aqueles quadros indicavam como era viva a presença de Juliette nas memórias do viúvo Louis, e quão importante era sua busca de fazer vingar o teatro pelas ciências. “Minha esposa continuará com suas pinturas e eu serei bem sucedido em meu teatro [...] porque esse é o consolo da minha vida!”, dizia Louis Figuier para a jornalista (Tarbell, 1897TARBELL, Ida. Sketch of Louis Figuier. Appleton’s Popular Science Monthly, n. 10, p. 834-841, 1897., p. 840).

Figura 3
Cartaz de Gutenberg.

Cada vez mais solitário, e mesmo sem obter retorno financeiro, o vulgarizador continuou a se dedicar ao teatro científico, criando outras peças por conta própria até o fim de sua vida. Possivelmente, havia nessa atitude considerada insana pelos seus contemporâneos uma busca velada de relembrar sua esposa. Mas o que não era mencionado na entrevista era o alijamento de Juliette Figuier da autoria das peças que compuseram o teatro científico de Louis Figuier. Afinal, era notório no próprio círculo de colegas e amigos que era Juliette Figuier quem se iniciara no teatro, publicando sua primeira peça, Gutenberg, em 1869, bem antes dos investimentos do marido.

A tradução de Gutenberg e sua circulação no Brasil

Não deixa de ser significativo o fato de que essa publicação original de Madame Figuier, lançada em 1869FIGUIER, Louis. Louis. Gutenberg - drame em 5 actes et en prose. Paris: A. Lacroix &, Verbockhoeven, 1869., seria traduzida no Brasil, em 1877, por um tipógrafo chamado Josino Chaves. Independentemente do malogro do projeto de divulgação das ciências pelo teatro levado por Louis Figuier, o imaginário científico que o animava estava presente em diversas produções culturais do período, atravessando países e oceanos. Alguns jornais no Brasil, como o Diário do Brasil e o Globo, noticiavam os espetáculos que Louis Figuier promoveu pela Europa, como a encenação de Denis Papin no teatro Gaité, com os efeitos especiais de vapores, bombas de fogo e explosões.18 18 No Diário, se lia: “Um sábio francês, muito conhecido nesta cidade pelas suas obras de divulgação da ciência, o sr. Luiz Figuier, propõe-se a dar em um dos teatros de Paris, espetáculos de peças científicas. A primeira peça anunciada é Denis Papin, que tem por herói o inventor da célebre marmita que demonstra força motora do vapor. Muitos franceses, porém, não acreditam na adoptação [sic] dos problemas científicos à cena, e, ou, mostram-se incrédulos, ou caçoam com o novo projeto do teatro vulgarizador da ciência”. Diário do Brasil, 17 dez. 1882, p. 4. A notícia n’O Globo é de 7 jun. 1882. A Gazeta da Tarde divulgava, em 1888, as encenações de Les six parties du monde (Figuier, s.dFIGUIER, Louis. Les six parties du monde - pièce en cinq actes, huit tableaux. Paris: Tresse, s.d..), traduzido como Sexta parte do mundo, pela empresa do Recreio no teatro da Trindade em Lisboa.

A divulgação da publicação de Gutenberg nos jornais no Brasil indica que Madame Figuier não era conhecida dos leitores, diferentemente do vulgarizador Louis Figuier, como dá a entender a notícia do Diário do Rio de Janeiro:

Uma escritora que assina com um nome ilustre na ciência europeia, a Sra. Louis Figuier, inspirando-se na vida acidentada do imortal inventor da imprensa, escreveu sobre ela um drama histórico em 5 atos, que intitulou Gutenberg. [...] O Sr. Josino Chaves, no intuito de vulgarizar o Gutenberg da Sra. Louis Figuier, verteu-o para o nosso idioma, e acaba de publicá-lo.19 19 Diário do Rio de Janeiro, n. 194, 20 jul. 1877.

Como a assinatura de Mme. Louis Figuier era de fato uma “máscara” que não revelava plenamente a autora (Narayana, 2011NARAYANA, Valérie. Le Théâtre scientifique de Juliette Figuier/Jean Mirval: rhétorique d’une «œuvre masque»? In: BEAULIEU, Jean-Philippe; OBERHUBER, Andrea. Jeu de masques: les femmes et le travestissement textuel (1500-11940) Saint-Étienne: Presses Universitaires de Saint-Étienne, 2011. p.133-143.), sua identificação ficava por conta do nome afamado de Louis. O jornal O Globo apresentava a nova publicação em português com uma nota jocosa, que brincava com o gênero do nome autoral, flexionando propositalmente para o feminino o nome do tradutor, como se pode perceber na menção seguinte:

Gutemberg é o título de um drama histórico em 5 atos, original de Mme. Louise Figuier e que foi vertido para a nossa língua pela Sra. Josina Chaves. Diz a autora, que entre todas as cópias fisionômicas da história dos homens, Gutenberg maravilhou-a, não só por haver mudado a ordem da sociedade moderna, como porque a vida do ilustre inventor, foi, além disso, fértil em peripécias de toda a qualidade. Este livro foi impresso na tipografia dos Srs. Brown & Evaristo.20 20 O Globo, 19 jul. 1877, p. 2.

Salvo equívoco, os jornalistas devem ter considerado que havia certa graça em apresentar o tradutor da peça Josino Chaves travestido de mulher, como Senhora Josina Chaves, imitando o caso da autora, que, supostamente sendo um homem, viria a se tornar Louise Figuier.

Não temos notícias que evidenciem que a peça tenha subido aos palcos no Brasil. Mas é possível salientar alguns sentidos de sua tradução, bem como da atuação de Madame Figuier como uma intelectual mediadora.

Algumas apropriações e a circulação de Gutenberg são visíveis, como no jornal O Heroe, que evoca o texto de Madame Figuier sobre a história da imprensa enfatizando a entrada dos mais humildes na narrativa sobre o progresso das ciências:

se aos mestres somente fosse permitido a realização completa de tudo, não se teria acentuado na história fatos de tantas e tão sublimes produções que têm surgido também do centro menos cultivado de instrução e que compõe o proletariado de todas as nações; e, no caso de ser necessário apresentar um fato, temos na história um Gutenberg, que surgiu do centro do proletariado para atirar à civilização o livro universal do ensino e da confraternização dos povos - a imprensa.21 21 O Heroe, 15 set. 1880, p. 4.

Os nexos entre a narrativa da ciência e da técnica se explicitam no exemplo da invenção da imprensa, que democratiza o conhecimento, sendo ela própria a condição desse conhecimento. Citando Madame Figuier, o artigo acrescenta: “[a imprensa] tem o poder de exprimir todas as opiniões; os sentimentos diferentes e contrários à consciência humana”. O artigo de O Heroe escrito por Guilherme Vasques retira da peça de Juliette Figuier a valorização do ofício “artístico”, pautado na imagem do humilde trabalhador tipógrafo e seu anseio pelo conhecimento e pela instrução.

As biografias de heróis inventores ganhavam impulso por seu caráter simbólico e muitas vezes representativo para diferentes grupos sociais. Gutenberg era assim o símbolo dos impressores, tipógrafos, jornalistas e também da ciência industrial nascente como uma das personificações do “inventor”. “Filhos de Gutenberg”, como se autoproclamavam aqueles que trabalhavam com as palavras e seus impressos, criaram nas principais capitais do Brasil diversas publicações em defesa da sua profissão e de assuntos como a instrução popular, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Como salienta Tania de Luca, a categoria, que incorporava ofícios como os de compositor, paginador e impressor tipógrafo, esteve presente no espaço público por meio de jornais de defesa de sua classe (Luca, 2020LUCA, Tania de. «Revista Tipográfica» (1888-1890): identidade profissional e condições técnicas nas oficinas tipográficas do Rio de Janeiro. Estudos Ibero-Americanos, v. 46, n. 2, p. 1-17, 2020.). Em um momento de crescimento do associativismo da categoria, a invocação ao pai ou inventor do impresso parecia estar em todos os lugares.22 22 De certa forma, podemos indicar que essa figura do “pai” é tributária do processo que foi estudado por Jean-Claude Bonnet na criação do panteão nacional. Segundo Bonnet, a importância da imagem paternal - a cristalização em torno dessa imagem - recorrentemente utilizada no Iluminismo é ambivalente, pois tratava-se de um lado de uma contestação e retomada da figura do pai principal, o rei; e de outro, o de uma apropriação que multiplicaria e teatralizaria essa imagem (Bonnet, 1998, p. 19). As publicações de associações de profissionais e das sociedades mutualistas (Batalha, 2010BATALHA, Claudio. Relançando o debate sobre o mutualismo no Brasil: as relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção recente. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, n. 4, p. 12-22, 2010.) representavam os interesses dos artífices e operários e uma concepção de trabalho integrada aos ditames da modernização. Algumas dessas publicações abordaram temas da ciência prática e industrial como instrumento legitimador, educativo e moralizador para suas categorias. Nelas, se discutia o ensino científico, e em suas páginas encontram-se diversos artigos de vulgarização científica. Como afirma Tania de Luca, os tipógrafos formaram uma das primeiras categorias profissionais a ganhar expressividade e buscar representação na esfera pública (Luca, 2020LUCA, Tania de. «Revista Tipográfica» (1888-1890): identidade profissional e condições técnicas nas oficinas tipográficas do Rio de Janeiro. Estudos Ibero-Americanos, v. 46, n. 2, p. 1-17, 2020.). Sem querer homogeneizar tais impressos, é interessante observar que muitos evocavam justamente Gutenberg, tanto nos títulos como nos artigos.

Tal apropriação política da história da imprensa estaria presente em diversos jornais de associações de tipógrafos que defendiam em suas páginas a conscientização de seus trabalhadores por meio da instrução. O texto Gutenberg de Madame Figuier retomava o repertório de narrativas sobre a história da invenção da imprensa, que se incorporou fortemente à história da ciência no século XIX, sobretudo na divulgação científica. A valorização do inventor compõe os discursos sobre a ciência que participavam da “aclimatação industrialista das populações operárias, e constituía uma forma de pacificação ideológica” (Carnino, 2015CARNINO, Guillaume. L’Invention de la science: la nouvelle religion de l’âge industriel. Paris: Éditions du Seuil, 2015., p. 210). A suposta humilde origem de Gutenberg endossava esse discurso, mobilizado também na imprensa brasileira por categorias profissionais, como a do tradutor de Gutenberg.

Considerações finais

De modo um tanto tortuoso, a trajetória da peça Gutenberg permite desvelar como oscilações e fragilidades se interpuseram na afirmação autoral de Juliette Figuier, repercutindo no próprio conhecimento dessa autora.

Sua peça se situava, como boa parte das produções de vulgarização científica, entre uma visão enaltecedora da ciência e dos ofícios mais humildes, prezando por “ciência para todos”, e o esvaziamento da contestação, fornecendo assim somente um acesso restrito ao público às ciências em si mesmas. O fracasso de público das peças do teatro científico, já bem apontado por autores que se detiveram à temática (Cardot, 1989CARDOT, Fabienne. Le Théâtre scientifique de ­Louis Figuier. Romantisme, n. 65, p. 59-68, 1989. Disponível em: Disponível em: https://www.persee.fr/doc/roman_0048-8593_1989_num_19_65_5599 Acesso em: 4 mar. 2020.
https://www.persee.fr/doc/roman_0048-859...
; Vautrin, 2018VAUTRIN, Guy. Histoire de la vulgarisation scientifique avant 1900. Les Ulis: EDP Sciences, 2018.), deveu-se ao caráter moralizante, descolado do próprio conhecimento científico. Mas, ao mesmo tempo, o gênero misto ao qual pertencia o teatro de Madame Figuier negociava no discurso sobre a ciência o “divertido” e o ameno que a dramatização possibilitava. As peças de Madame Figuier exploraram o lado anedótico da vida dos cientistas, aqueles aspectos que mais facilmente se ligaram a uma expressividade do “popular” sobre as ciências. A partir delas, pôde ressaltar a presença feminina, que se tornou mais diluída sob a pluma de Louis Figuier. São essas as características de uma mediação realizada por Juliette Figuier.

Sua tradução e algumas leituras apropriadas que circularam nos jornais brasileiros apontam que esses ideais do mito do herói ganhavam repercussão para alguns segmentos sociais da nova era “científica”. Com sua pena, Juliette Figuier auxiliou a tecer, pelas margens ou pelas “coxias” da ciência, o próprio mito científico do sábio-inventor que se fortalecia nos discursos pedagógicos sobre a ciência e no processo de profissionalização que passou a dominar o século seguinte.

Referências

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  • BATALHA, Claudio. Relançando o debate sobre o mutualismo no Brasil: as relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção recente. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, n. 4, p. 12-22, 2010.
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  • 1
    Principalmente no mundo anglo-saxão, como Arabella Buckley, secretária de Charles Lyell, a sufragista Lydia Becker, Anne Pratt entre outras na Inglaterra, como aponta Bernard Lightman (2007).
  • 2
    Desde há algumas décadas, pesquisadoras e pesquisadores vêm trazendo à tona a escrita de diversas mulheres no espaço cultural francófono, em um movimento que busca recuperar sua agência e participação na vida cultural e científica. Mais recentemente, Rosselo-Rochet (2017), em um levantamento sobre mulheres na dramaturgia francesa, salienta um conjunto de 345 autoras dramáticas no século XIX, das quais 36 autoras tiveram mais de 5 peças estreadas nos teatros. Entre essas, encontra-se Juliette Figuier, com 12 peças publicadas.
  • 3
    Certidão de nascimento de Louise Juliette Bouscaren. Archives Départamentales d’Hérault, 5MI 1:74, n.122. Disponível em: https://archives-pierresvives.herault.fr/ark:/37279/vta557bad2a09168/daogrp/0/35. Acesso em: 21 out. 2020.
  • 4
    Sans auteur. 1892. “L’auteur de ‘Savant de Pyrénées’, Mme Louis Figuier.” In: Le savant des Pyrénées, de Juliette Figuier (1892).
  • 5
    Ela se tornou sócia da Société de Gens de Lettres em 1859. Bulletin de la Société des Gens de Lettres, ano 14, n. 3, mar. 1859.
  • 6
    Le Progrès de la Côte-d’Or, 2 dez. 1894, p. 9-12.
  • 7
    Carta de Madame L. Figuier à George Sand, 6 fev. 1859 (Bibliothèque Historique de la Ville de Paris, Paris).
  • 8
    Sobre o fato, ela explica: “Devo aqui prestar homenagem à cortesia do sr. Eduardo Fournier, que teve a delicadeza de não querer ler o seu Gutenberg ao diretor do Odéon, antes que este senhor tivesse dado o seu parecer sobre a peça que escrevi. Dias depois o meu Gutenberg foi-me devolvido, e os jornais anunciaram que o Teatro Odéon acabava de receber o Gutenberg do sr. Eduardo Fournier. À vista de tal posição, tomei o partido de imprimir o meu drama antes que o do sr. Eduardo Fournier fosse representado. Desta explicação deve depreender-se que a ninguém pedi emprestado o assunto nem a concepção da minha peça” “Prólogo” (Figuier, 1869, p. II).
  • 9
    “Madame Louis Figuier, qui est une romancière de valeur, ne pouvait vivre toujours auprès de tant de savoir sans que l’envie lui vint d’en mettre une partie en roman, en legende ou en drame”, escreve Fournier em seu prefácio (Fournier, 1869, p. V).
  • 10
    Optamos por utilizar Lourenço Coster, conforme a tradução brasileira de Gutenberg, de 1877. Trata-se do impressor holandês Laurens Coster que viveu na primeira metade do século XV.
  • 11
    São muito recentes os trabalhos que procuram levantar a participação das mulheres na autoria das peças. Segundo Finch (2000), cerca de um quarto das setecentas peças que encontrou seriam feitas em coautoria. Ver também o levantamento feito mais recentemente por Rosselo-Rochet (2017).
  • 12
    Edmond Croset. La Presse, 22 ago. 1869.
  • 13
    “Madame Figuier s’est jetée avec ardeur dans le travail du théâtre et il ne faudrait qu’un hasard heureux pour que les productions dramatiques voient la lumière de la rampe par une de nos scènes parisiennes”. Correspondência de Louis e Juliette Figuier a G. Sand, Paris, 25 ago. 1871 (Bibliothèque Historique de la Ville de Paris, Paris).
  • 14
    “Mesdames e Messieurs. Je voudrais pouvoir vous dire le nom de l’auteur de la pièce qui vient d’être représentée devant vous, mais je vous assure que je l’ignore. Je vous remercie d’avoir favorablement accueilli l’œuvre, en attendant que je puisse vous faire connître le nom de l’auteur.”
  • 15
    “Dans notre cité de Mayence, les titres de noblesse sont moins un héritage des ancêtres qu’un témoignage du mérite personnel, et nous sommes les enfants d’un artiste modeste, qui a su, par ses talents et sa vie exemplaire, s’élever au rang de patricien.” Mme. Louis Figuier (1869, p. 8).
  • 16
    Louis Figuier atesta que Frielo era o nome do pai de Gutenberg. Cf. Louis Figuier (1867, p. 311).
  • 17
    Léon Duprat, Revue Théâtrale. La Presse, 27 abr. 1879, p. 1.
  • 18
    No Diário, se lia: “Um sábio francês, muito conhecido nesta cidade pelas suas obras de divulgação da ciência, o sr. Luiz Figuier, propõe-se a dar em um dos teatros de Paris, espetáculos de peças científicas. A primeira peça anunciada é Denis Papin, que tem por herói o inventor da célebre marmita que demonstra força motora do vapor. Muitos franceses, porém, não acreditam na adoptação [sic] dos problemas científicos à cena, e, ou, mostram-se incrédulos, ou caçoam com o novo projeto do teatro vulgarizador da ciência”. Diário do Brasil, 17 dez. 1882, p. 4. A notícia n’O Globo é de 7 jun. 1882.
  • 19
    Diário do Rio de Janeiro, n. 194, 20 jul. 1877.
  • 20
    O Globo, 19 jul. 1877, p. 2.
  • 21
    O Heroe, 15 set. 1880, p. 4.
  • 22
    De certa forma, podemos indicar que essa figura do “pai” é tributária do processo que foi estudado por Jean-Claude Bonnet na criação do panteão nacional. Segundo Bonnet, a importância da imagem paternal - a cristalização em torno dessa imagem - recorrentemente utilizada no Iluminismo é ambivalente, pois tratava-se de um lado de uma contestação e retomada da figura do pai principal, o rei; e de outro, o de uma apropriação que multiplicaria e teatralizaria essa imagem (Bonnet, 1998, p. 19).
  • **
    Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. Meus agradecimentos póstumos ao professor Dominique Kalifa, que me recebeu como professora visitante durante a realização das pesquisas ora apresentadas no artigo. Agradeço ainda o gentil acolhimento de Patrice Bret, Anne Rasmussen e de Kapil Raj nessa mesma estadia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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