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A “Ferrovia do diabo” no Ceará: aglomeração e disseminação de epidemias nas frentes de trabalho da Estrada de Ferro de Baturité

The “Devil’s Railroad” in Ceara: agglomeration and spread of epidemics on the work fronts of the Baturité Railroad

Resumo:

O artigo estuda a disseminação de epidemias ocorridas durante a construção da Estrada de Ferro de Baturité, no Ceará (sobretudo a epidemia de varíola em 1878-1879 e 1915-1916), para entender em que medida a aglomeração de pessoas nos acampamentos das frentes de trabalho, a propagação da peste, juntamente às secas, se constituíram numa tragédia para milhares de camponeses pobres. E em que medida os trabalhadores da ferrovia experimentaram o medo e a própria epidemia nesse período.

Palavras-chave:
Ferrovia; Epidemia; Ceará

Resume:

The article studies the spread of epidemics that occurred during the construction of the Baturite Railroad, in Ceara (especially the smallpox epidemic in 1878-1979 and 1915-1916), to understand the extent to which the agglomeration of people in the camps on the fronts of work, the spread of the plague, together with the droughts, were a tragedy for thousands of poor peasants. And to what extent railroad workers experienced fear and the epidemic itself in this period.

Keywords:
Railway; Epidemic; Ceará

Ferrovia e epidemia

Assim como ocorreu na Madeira-Mamoré,1 1 Os engenheiros Carlos Alberto Morsing e Júlio Pinkas, terminados seus contratos com a Estrada de Baturité, em 1880, seguiram com suas comissões para a região do rio Madeira, encarregados de reavaliar a possibilidade de uma ferrovia Madeira-Mamoré, cuja construção só foi iniciada em 1908. chamada “Ferrovia do diabo”, os trabalhadores da construção da Estrada de Ferro de Baturité (EFB),2 2 Linha de Fortaleza a Crato, no Ceará - construção iniciada em 1872 e a primeira etapa finalizada em 1882, em Canoa - Baturité. Primeira do mundo com justificativa filantrópica - socorrer camponeses na seca de 1877-1879. Nas frentes de trabalho, os camponeses foram alojados em abarracamentos às margens dos trilhos. ainda que em menor intensidade, experimentaram males e epidemias nos abarracamentos das frentes de trabalho. O discurso do então presidente do Ceará, José Júlio de Albuquerque Barros, em 14 de março de 1880, na inauguração da estação de Canoa, a última do que seria a primeira parte da EFB, já sugeria o horror vivido:

Mal haviam começado os trabalhos surgiu uma nova epidemia mais horrorosa, mais mortífera, que submeteu á dura prova a constancia e valor civico da illustre comissão [de engenheiros]. A varíola manifestou-se com um furor de que não há exemplo nos annaes da humanidade, fazendo milhares de vítimas por dia, atacando de chofre na Capital a 60.000 pessoas; em Maranguape a 6.000; em Pacatuba a 3.000; no percurso da linha férrea até Baturité a mais de 5.000; sem fallar em desenas de outras localidades mais a que o terrível mal estendeu os seus estragos cobrindo de luto a província.3 3 O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1.

José Júlio de Albuquerque Barros, que acompanhou a construção durante a primeira encampação pelo governo imperial, entre 1878 e 1880, fez um longo discurso exaltando o engenheiro Carlos Alberto Morsing, que chefiara os trabalhos, enfatizando as dificuldades enfrentadas por ele e sua equipe: em destaque, a ocorrência da epidemia de varíola, que vitimou dezenas de trabalhadores da Ferrovia de Baturité.

É certo que há uma tendência do presidente Albuquerque Barros em exagerar os fatos e o número de acometidos, até porque tal menção valorizava o trabalho dos engenheiros que, segundo ele, não desertaram de “seu posto de honra e, pelo contrario, muitos delles, affrontando a morte, deram testemunho de sua philantropia nos lazaretos de variolosos, em que supriam junto ao leito dos enfermos a falta de médicos”.4 4 O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1. Contudo, a referência ao surto de varíola evidencia os sinais de uma experiência dolorosa nos canteiros de obras da edificação de estradas de ferro. O próprio Morsing já havia feito referência à rudeza dos trabalhos na edificação da EFB nos relatórios enviados ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (Macop), no mesmo ano de 1880. Após discriminar as obras realizadas nos 20 meses e 13 dias em que chefiou a construção, o engenheiro enfatizou:

todos esses trabalhos foram executados em circumstancias excepcionaes, tendo sido necessário construir numerosos abarracamentos para abrigo de 10, 20 e 30.000 pessoas e prover a sua alimentação; estabelecer fabricas de cal e de materiaes de alvenaria, explorações de pedreiras, officinas de cantteiro, ferraria e carpentarias; e organizar muitos outros serviços, em luta com epidemias, com a escassez d’agua e com outros funestissimos effeitos da terrível calamidade que pesou sobre a região do prolongamento como sobre toda a provincia do Ceará.

A epidemia não estava restrita aos locais de trabalho na construção da Estrada de Ferro de Baturité. A varíola foi disseminada em muitas localidades do território cearense: os relatórios de comissões de socorro, sobretudo no final de 1870, indicaram situação de calamidade em várias partes da província. Segundo Mike Davis, esta moléstia atingiu o Ceará em 1878 “após assolar a capital paraibana, João Pessoa” e teria aniquilado um terço da população de Fortaleza entre novembro e dezembro do referido ano. Entre os mortos estaria, inclusive, a esposa do presidente Albuquerque Barros (Davis, 2001DAVES, Mike. Holocaustos coloniais: clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002., p. 100). No Cariri, região na qual a EFB só chegaria no final de 1926, a epidemia de varíola foi relatada com acentos dramáticos. Sobre o estado sanitário de Crato, para citar um exemplo, o relatório médico de maio de 1879 informou que “a variola tem accomettido a metade da população, sendo raros os casos em que se manifesta benigna”. E, ainda: “a mortalidade diaria antes da minha chegada era de trinta, termo medio, tendo no dia 8 deste attingido a cinqüenta e cinco; em quanto que atualmente, sem embargo de manter-se a epidemia no mesmo gráo de intensidade regula vinte”.5 5 AN - Arquivo Nacional - Governo do Ceará. Ofício n. 3.683 [com cópia anexa de relatório médico], 16 jun. 1879.

Esta situação, contudo, não se constituía numa novidade. Reis Junior (2014REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2014., p. 270), em estudo sobre a pobreza no Cariri nesse período, destacou a ocorrência de outras epidemias no Ceará, a partir da atuação do médico Antonio Manoel de Medeiros, que percorreu parte do território cearense, juntamente às comissões de socorro: foram duas visitações do clínico, na epidemia de cólera, por volta de 1862, e na epidemia de varíola, em 1879. Segundo os relatórios de Medeiros, a epidemia de cólera foi devastadora, com a cifra diária de mortes na cidade de Crato, para continuar usando-a como exemplo, chegando a alarmantes 48 óbitos, entre 26 de junho e 7 de julho de 1862 - ele mesmo foi infectado e morreu de varíola, já de volta ao Rio de Janeiro. Conforme Reis Junior, a intensidade do contágio dessa moléstia era tamanha que “até os coveiros faleciam após terem contatos com os defuntos” (Reis Junior, 2014REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Senhores e trabalhadores no Cariri cearense: terra, trabalho e conflitos na segunda metade do século XIX. Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2014., p. 274). De outro lado, Jucieldo Alexandre (2010ALEXANDRE, Jucieldo F. Quando o “anjo do extermínio” se aproxima de nós: representações sobre o cólera no semanário cratense “O Araripe” (1855-1864). Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2010.) destacou o horror dessa experiência na análise das representações da doença, estampadas nas páginas do jornal O Araripe, entre outras, tomada como castigo divino.

Os surtos de doenças ocorridos no Brasil entre trabalhadores da edificação de vias férreas, como foi o caso da epidemia de varíola6 6 Vitimou muitos trabalhadores da EFB, entre 1870 e 1880. Os doentes, ao que indicam os registros, foram tratados com água inglesa fornecida ao tempo das bexigas. que vitimou empregados da construção da EFB, não tinham necessariamente uma relação direta com a experiência dos trabalhadores nos abarracamentos da estrada de ferro. As causas de uma epidemia e sua propagação são as mais diversas, sendo impossível restringir esse quesito a um ou dois aspectos explicativos. Isso é fato. Contudo, ao que indicam relatos sobre condições de vida e trabalho nessas obras,7 7 Também percebida em frentes na construção de açudes e estradas de rodagem, no início do século XX: a aglomeração já entendida como fator ligado ao surgimento e à disseminação de moléstias. no começo da experiência de edificação de ferrovias no Brasil foi estabelecida uma associação estreita entre os canteiros de trabalho das vias férreas e a existência de surtos epidêmicos. O apelo do redator do jornal O Araripe, para sensibilizar moradores do Cariri Cearense à adesão aos trabalhos de construção da estrada de ferro de Pernambuco, solicitados pelo sr. Fernando Eiras, evidenciava sinais da associação entre o trabalho na construção de ferrovia e surtos de doenças.

Pedimos lhes pois e em particular a cada um dos nossos amigos empenhem todos os seus exforços (sic), a fim de que o Sr. Eiras consiga engajar o maior numero de trabalhadores, fazendo ver aos moradores de suas terras as vantagens de um tal engajamento para cada um delles, e procurando desvanecer alguns terrores estúpidos, com que gentes miseravelmente ignorantes procuraõ [sic] prevenil-os, como seja esse de captiveiro. O governo e os directores do serviço protegem os trabalhadores da estrada em todo o que é possível, levando seo zelo a ponto de os tratar delicadamente em qual quer molestia que appareça: moléstias dizemos nos destas que ha em toda parte; pois nos lugares, onde já está o serviço, não existem febres ou outra qual quer epidemia, como por malignidade se tem dito.8 8 O Araripe, 26 jun. 1858, p. 3.

A necessidade de desvincular a presença ou a certeza da enfermidade dos serviços em ferrovias, na compreensão dos leitores do jornal, assim como o empenho em garantir a proteção “em qualquer moléstia” que aparecesse, já significava um forte indício da relação aproximada entre via férrea, aglomeração de seus abarracamentos e epidemias. A necessidade de “desvanecer terrores estúpidos” implicava a consciência dela entre homens e mulheres, cujo trabalho esperava-se aproveitar em tais obras.

Na historiografia sobre a expansão da malha férrea no Brasil, é possível identificar a referência a associações entre ferrovia e surtos de moléstias. Rodolpho Telarolli Junor, no estudo Imigração e epidemias no estado de São Paulo, analisou o papel da expansão ferroviária “na epidemiologia e na operacionalização do combate à febre amarela”. Conforme o autor, “os sucessivos episódios em que o avanço da linha férrea foi seguido da ocorrência de epidemias, em especial de febre amarela, não passaram despercebidos às autoridades sanitárias estaduais” (Telarolli Junior, 1996, p. 275). Nesse sentido,

a rapidez nos transportes favoreceu a disseminação das epidemias na década de 1890 através da zona cafeicultora, levando doentes e vetores a locais ainda não contaminados. Primeiro vinha o café, seguido pelos trilhos da ferrovia, sucedida pela febre amarela, roteiro que se repetiu à exaustão, indicando para as autoridades sanitárias a existência de uma íntima relação entre o transporte ferroviário e a situação sanitária (Telarolli Junior, 1996TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Imigração e epidemias no estado de São Paulo. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 3, n. 2, p. 265-283, 1996., p. 275).

Em Goiás, já no século XX, conforme artigo de Leandro Carvalho Damacena Neto, é possível perceber uma íntima relação entre ferrovia e males do estado sanitário. Segundo o autor, a gripe espanhola entrou no referido estado no “caminho percorrido pela estrada de ferro, ou seja, no final do ano de 1918 ela grassa primeiramente nas cidades que fazem parte do itinerário da ferrovia: Catalão, Ipameri e, em outras cidades” (Damacena Neto, 2009DAMACENA NETO, Leandro Carvalho. A epidemia de gripe espanhola de 1918/1919 na Cidade de Goiás-GO. In: Simpósio Nacional de História, 25., 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza: Anpuh, 2009. p. 110-120., p. 2). Sobre Pernambuco, há menções a epidemias que teriam vitimado muitos trabalhadores da estrada de ferro, como a de cólera-morbo em 1856, que teria sido, inclusive, fatal para muitos engenheiros ingleses empregados na obra. Provavelmente, foi a esta moléstia que se referiu o autor da nota publicada n’O Araripe, citada anteriormente, ao tentar debelar qualquer vinculação entre ferrovia e alastramento de doenças.9 9 Portal Pernambuco de A-Z: história da ferrovia em Pernambuco. Disponível em: http://www.pe-az.com.br/. Acesso em: 13 dez. 2014. Mesmo para a EFB, é possível identificar referências como a do presidente do estado do Ceará, no início do século XX, que afirmou:

da Capital a epidemia alastrou-se ao interior, ao longo da Estrada de Ferro de Baturité, até o extremo sul do Estado; dahi, fez a moléstia uma dupla derivação para os lados, voltando em sentido inverso, por duas parallelas ao primeiro caminho seguido até o littoral.10 10 BR. APEC - Arquivo Público do Estado do Ceará. Documentos da ALC - Assembleia Legislativa do Ceará. Mensagem à Assembleia Legislativa do Ceará, 1919, p. 31.

A associação entre ferrovia e epidemias estava centrada na facilidade e na rapidez da comunicação estabelecida entre diferentes regiões com a construção de estradas de ferro. Telarolli Junior enfatizou a própria facilidade de disseminação dos vetores das doenças, transportados entre as bagagens e os passageiros, como também por pessoas já infectadas. Tal contexto acabou por dar celeridade ao processo de contágio, atingindo cidades e regiões afastadas e, às vezes, isoladas dos circuitos mais costumeiros de doenças - locais com grande fluxo de pessoas, entrepostos comerciais ou cidades localizadas nas confluências de estradas. A constatação dessa realidade, em São Paulo, levou o serviço sanitário estadual, em momentos de grandes epidemias, a recorrer à interrupção da comunicação ferroviária entre alguns trechos, proibindo também baldeações de cargas e passageiros (Telarolli Junior, 1996TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Imigração e epidemias no estado de São Paulo. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 3, n. 2, p. 265-283, 1996., p. 277).

No Ceará, essa referência é nítida nas mensagens do governo do estado, principalmente no início do século XX, quando a EFB estava muito perto de ser concluída. Nelas, é possível encontrar afirmações como a expressa em uma mensagem de 1918: “já anteriormente, por Acto de 14 do mesmo mez, o Dr. Antonio Filgueiras Sampaio recebia o encargo de combater a varíola no Juazeiro, onde o vai-vem da população adventícia tornava perigosa a propagação do mal”.11 11 APEC. Documentos da ALC. Mensagem à ALC, 1918, p. 50. Em 1919, foi referida a entrada da Grippe no estado, pela infecção dos estivadores que descarregaram o vapor “Ceará” que havia chegado ao porto de Fortaleza, vindo do Sul. Por consequência, nesse mesmo relatório, foi lógica ao presidente a afirmação de que a Grippe teria chegado ao interior pelos caminhos de ferro, como mencionado.

É certo que o fluxo de transeuntes podia estar relacionado a outras motivações, mas a facilidade de comunicação entre pontos distantes implicava também a celeridade da disseminação de doenças. De modo que, este, dentre outros aspectos, contribuiu para que a ferrovia fosse progressivamente associada ao aparecimento e à disseminação de epidemias.

De outro lado, ainda pode ser citado o ajuntamento de pessoas em locais improvisados (os abarracamentos), sempre menores do que o necessário, como um dos aspectos que contribuíam para o surgimento de doenças que, pelas péssimas condições de higiene experimentadas nesses lugares, se disseminavam rapidamente. Novamente, conforme Telarolli Junior (1996, p. 277), nas ferrovias paulistanas, a mortalidade entre os empregados da estrada de ferro foi tamanha que tal incidência chegou a colocar em risco o próprio funcionamento da empresa.

De fato, a higienização precária dos acampamentos de empregados da Estrada de Ferro facilitava a proliferação de doenças e o aparecimento de epidemias. Essa realidade foi muitas vezes denunciada nos jornais que circularam em Fortaleza no final do século XIX, sobretudo aqueles que faziam oposição ao governo. Na edição de 9 de novembro de 1879 do jornal Echo do Povo, foi denunciada a situação precária dos abarracamentos do Itapahy, com base em ofício escrito pelo médico responsável pelo atendimento dos operários ali estabelecidos. Conforme a notícia, no referido alojamento havia:

  • Abatimento moral dos indigentes expostos quase NUS á um sol abrasador;

  • Excesso de serviço a que são forçados desde as 6 até as 12 horas do dia sem descanso nem interrupção;

  • Fornecimento de alimentação INSUFICIENTE e de MÁ qualidade;

  • Habitação immunda, no meio do lixo de matérias insalubres em decomposição;

  • [O editor acrescentou]

  • Chibateamento e toda a sorte de maus tratos;

  • Desenvolvimento de prostituição elevado a um grau epidemico;

  • Multas frequentes de perda de salários, que não se procura indagar a favor de quem revertem.12 12 Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1, destaques no original. Jornal cearense com discurso de oposição (radical), cujas denúncias tinham reverberação na correspondência oficial da província.

A vida em comum nos abarracamentos “era nova para os retirantes”, que estavam “acostumados a uma vida familiar isolada, nuclear, léguas de distância do vizinho mais próximo”. De sorte que, “o amontoado de palhoças impunha uma convivência diferente, em que todos lutam contra todos pelas vagas nas obras, pela ração diária, pela esmola governamental e privada” (Neves, 2000NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000., p. 54). Isso fazia dessa vivência um período marcante de suas vidas, ainda mais intenso e doloroso com a experiência de epidemias.

Em ofício de 8 de outubro de 1879, enviado pelo médico José Lourenço ao engenheiro Julius Pinkas, foi alertada a possibilidade do surgimento de epidemia nos abarracamentos do Itapahy, contendo a avaliação das condições sanitárias a que estavam expostos os trabalhadores da EFB. Situação que, segundo o médico, contribuiria para a rápida proliferação de doenças. Para o clínico, “o calor abrasador durante o dia e a humidade das noites, o abatimento moral dos indigentes, a alimentação insufficiente e de má qualidade que lhes tem sido distribuída ultimamente; a nudez, a falta de asseio são condições todas favoráveis ao desenvolvimento de qualquer epidemia”.13 13 BR, APEC, EF. FB - Estrada de Ferro - Ferrovia de Baturité, Cx. 03, 1878. Oficio s/n, 08 out. 1879. E ainda considerou:

acho conveniente pois: vistir (sic) os indigentes, dar-lhes carne verde ao menos uma vez por semana, todo cuidado na escolha dos generos que devam ser remettidos para alimentação dos operarios, o augmento das rações, mandar enterrar nos abarracamentos o lixo e todas as materias que se achão em decomposição, fazer fogueiras durante a noite em todas as residencias; interromper os trabalhos da linha das 9 horas da manhã até as 3 da tarde; prohibir a matança de gado na feira do Itapahy.14 14 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1878. Oficio s/n, 08 out. 1879.

Conforme José Lourenço, o abarracamento do Itapahy, que existiu entre 1879 e 1880, reunia mais de 30 mil pessoas: entre operários e suas famílias, engenheiros, negociantes e outros. Para suportar essa quantidade de indivíduos, foi gerada uma estrutura mínima com residências (barracas), lazaretos e uma feira, onde havia um matadouro de gado. Tudo, ao que indica o médico, apenas improvisado. No parecer dos médicos João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar, incumbidos de avaliar a suspeita de José Lourenço do início de uma epidemia de cólera nesse alojamento, foram corroboradas as sugestões do primeiro médico, o que denota a precária organização do local e o estado de miséria dos operários. Ao parecer dos dois médicos componentes da comissão foi acrescentado:

cabe não descançar em face do conjunto de circumstancias todas favoraveis ao desenvolvimento de varias moléstias e n’este intuito pedimos á V. Sª a adopção de medidas hygienicas no sentido de suffocar o mal que começa e evitar a diffusão de epidemias. Perfeitamente de acordo com o digno da linha que apresentou á V. Sª a necessidade de vestir os trabalhadores, alimental-os mais convenientemente dando-lhes carne verde ao menos uma vez por semana, nós julgamos ainda necessario que lhes conceda o uso do café ou aguardente diariamente pela manhã. Outro sim é preciso varrer os abarracamentos, subterrar o lixo e materias organicas, afastar da feira do abarracamento do Itapahy a matança de gado e velar pela limpeza das valletas onde se depositam as materias fecaes cobrindo-as diariamente com uma camada espessa de areia.15 15 BR, APEC, EF. FB. [Documento manuscrito] Parecer da Comissão formada pelos medicos João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar para casos de cholera da Ferrovia de Baturité, 10 out. 1879.

Rodolfo Teófilo foi um ferrenho crítico do ajuntamento dos retirantes em lugares específicos (campos de concentração). Em sua conclusão, publicada em 1922 no livro Seccas do Ceará (segunda metade do século XIX), o autor denunciou: “aglomerar os retirantes era matá-los”16 16 THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceara (século XIX). Fortaleza. Typographia Moderna, 1901. p. 167. . Esse era o resultado da observação de uma política pública de socorro aos indigentes da seca, que se baseou na concentração de um número alarmante de pessoas nas improvisadas barracas montadas às margens da EFB.

Na construção da via férrea de Baturité, foi identificado o surgimento de várias enfermidades e, em consequência delas, a morte de trabalhadores. Indícios dessa realidade são encontrados com certa facilidade nos jornais, que circularam em Fortaleza ou mesmo no interior do Ceará. No início de 1880, o editor do jornal Echo do Povo, denunciando a fome experimentada pelos trabalhadores da ferrovia, repassou sinais das moléstias enfrentadas por esses homens:

a molestia reinante nos abarracamentos é fome, mas esta não se cura com quinino, nem com a celebre agua ingleza fornecida ao tempo das bexigas, e portanto o medico-fiscal foi mandado retirar para as comissões de socorros os famintos que o director ia recrutando em massa. O mesmo fez com muitos outros cujas doenças eram bichos de pés e barriga enchada.17 17 Echo do Povo, 1 fev. 1880, p. 1.

À medida que a construção da Estrada de Ferro de Baturité avançava rumo ao interior, os operários eram susceptíveis a doenças mais comuns nas regiões a que chegavam. A referência a pacientes com “bicho de pe e barriga enchada” sugere uma menor gravidade dessas doenças. Provavelmente, eram enfermidades comuns, sobretudo o bicho-de-pé, corriqueira em regiões com a presença de bosques, florestas e praias, uma paisagem aproximada da encontrada nas proximidades de Canoa, em virtude da presença do maciço de Baturité. O bicho-de-pé, em especial, incomodava muito os acometidos, porque provocava uma coceira severa nos portadores. Quanto à barriga inchada, provavelmente se tratava de esquistossomose, uma doença crônica causada por parasita do gênero Schistosoma, do qual existem seis espécies diferentes, sendo apenas uma delas encontrada no continente americano. Como o bicho-de-pé, podia ser contraída na permanência com pés descalços em regiões mais úmidas, com água parada - por isso, comum em pessoas que trabalham na agricultura e nas proximidades de açudes. Mas, ao contrário da primeira, a esquistossomose poderia ser mortal.

Contudo, nos abarracamentos da EFB, os momentos de crise ocorreram em função do aparecimento da varíola e do cólera-morbo. Para tratamento dos operários enfermos, existia em cada acampamento “uma ambulância composta de medicamentos os mais precisos; sendo encarregado da applicação dos remedios receitados o administrador do abarracamento”,18 18 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 20 dez. 1879. além de espaços de atendimento e internação dos enfermos dentro dos acampamentos: hospitais, enfermarias e lazaretos.

Pelo que as fontes permitem entrever, essas edificações se diferenciavam em parte pelas dimensões que tinham: o hospital seria maior que uma casa, enquanto a enfermaria, por exemplo, seria uma edificação com grandeza relativa a uma casa. Também havia distinções pelas características inerentes à doença tratada em cada um desses espaços, estabelecida de acordo com o risco de contágio e a gravidade da moléstia.

Um hospital erguido ao longo da construção da EFB estava localizado num dos alojamentos mais populosos à margem da obra: o do Itapaí. Conforme pesquisa nos ofícios trocados entre a presidência do Ceará e a diretoria da ferrovia, em julho de 1879, esse hospital estava sob responsabilidade de Manoel de Sá Barretto Sampaio, médico responsável pela 2ª seção da via férrea desde 13 de março de 1879. E tinha dimensões impressionantes: o relato desse clínico destacou que o lugar achava-se “em estado de receber os operarios enfermos que naquele lugar de 12 mil pessoas não dispunham de accommodações necessarias a um tratamento regular”.19 19 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 19 jul. 1879. Tais indícios dão ideia de uma acomodação mais permanente para o tratamento dos doentes, à medida que agregava um número maior de convalescentes. Mas, não apenas isso. Há aí também a sugestão de que locais como o hospital do Itapaí foram destinados ao tratamento de casos que ofereciam pouco risco de contaminação, enquanto os enfermos com suspeita de moléstias contagiosas eram tratados em locais organizados em regime de improviso ou urgência: enfermarias e lazaretos.

O mesmo médico Manoel de Sá Barretto Sampaio, que era responsável pelo hospital do Itapaí, atendia doentes em enfermarias situadas ao longo da EFB. Duas, pelo menos, foram identificadas: uma localizada em Canoa e outra denominada Maleitas, edificadas em março e outubro de 1879, respectivamente. O motivo para crer que esses locais tinham o caráter de uma assistência médica de urgência é a presunção de dimensões menores, ainda que, ali, o fluxo de pacientes fosse intenso. Em Canoa, de 21 de dezembro de 1878 a 10 de dezembro de 1879, 628 doentes foram atendidos. Destes, 431 saíram com vida da enfermaria, 83 morreram e restaram 94 ainda internados (77 homens e 17 mulheres). Já na enfermaria Maleitas, entre 3 de outubro e 10 de dezembro de 1879, 144 doentes foram internados: 60 foram curados, oito faleceram, restando 76 enfermos (59 homens e 17 mulheres). Destarte, o número de doentes nos alojamentos da EFB foi superior a estes, pois somente Manoel de Sá Barreto Sampaio, entre 13 de março e 10 de dezembro de 1879, receitou 4.914 pessoas acometidas das mais diversas enfermidades.20 20 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 20 dez. 1879.

Perceber que um número considerável de pessoas foi atendido numa enfermaria denominada Maleitas pode ser instrutivo a respeito das doenças que os trabalhadores da EFB enfrentaram. Segundo Warren Dean, em A ferro e fogo, maleitas era a nomenclatura para malária e febre amarela. A referência na literatura de cronistas a ambas as enfermidades se tornou frequente (ou, incontável, como propôs Dean) no Brasil a partir do século XVIII. Nessa época, nas zonas de Mata Atlântica, a malária, introduzida no país pelo tráfico de africanos, “havia se tornado endêmica, à medida que se intensificara o tráfico escravo e que a população rural se tornara mais densa”. Enquanto a febre amarela “estava se tornando endêmica também entre populações de primatas, já que os mosquitos infectados se reproduziam nas copas das bromélias do dossel, com influências desconhecidas sobre a distribuição desses animais e sobre a composição da floresta e a dispersão das plantas” (Dean, 1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 119-120).21 21 Assim como na ferrovia, a dolorosa experiência de ser vítima das maleitas contribuiu para uma associação da região ou do espaço com as referidas doenças. Ainda conforme Dean, a contração dessas moléstias significava uma experiência penosa para os habitantes das zonas de Mata Atlântica, tanto que foi empreendida uma estreita associação do espaço e da vegetação com as doenças, relação que contribuiu, aliada a outros aspectos, com o processo de devastação da cobertura vegetal da floresta.

De outro lado, a referência a medicamentos como o quinino indica a necessidade de tratar as maleitas. O uso desse composto, comum nos hospitais da Madeira-Mamoré, indica a possibilidade de haver, entre os pacientes, alguns doentes de malária, uma vez que o sulfato de quinina tem funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas (Hardman, 1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 152). Mais provável porque, em 1917, sais de quinino foram enviados pelo governo do estado para tratamento de uma epidemia de impaludismo (malária)22 22 BR, APEC. Relatório de Governo de Estado (RGE), 1917, p. 29-30. que, no ano seguinte, vitimou “mais de um terço da população do Ceará, ora manifestado na forma clássica de seu quadro clinico, ora encoberto em modalidades diversas da mesma feição morbida”.23 23 BR, APEC. RGE, 1918, p. 48. Muito embora, no Ceará, haja mais registros de febre amarela do que de malária.

O uso do quinino, sobretudo para o tratamento da malária, também foi identificado em outros acampamentos de estradas de ferro. Benchimol e Silva (2008BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 15, n. 3, p. 719-762, 2008.), em estudo sobre a medicina tropical e a construção de ferrovias, enfatizaram os tratamentos sanitários dos empregados da Estrada de Ferro Central do Brasil, quando a construção alcançava o território de Minas Gerais. Conforme os autores, no relatório à Estrada de Ferro Central, de janeiro de 1908, foi mencionada a “quininização diária nos infetados e a cada três dias nos indenes” (p. 735). Segundo Foot Hardman (1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 152), o médico Oswaldo Cruz, nas ações de profilaxia e tratamento dos empregados na edificação da Madeira-Mamoré, propôs a criação de uma “função técnico-sanitária específica” de distribuidor de quinino, ao lado de outras medidas, como a premiação para grupos de trabalhadores que se mantivessem saudáveis por mais tempo. Tamanha era a organização para prevenção e tratamento da malária com medicamentos como o quinino que o médico Belt afirmou em relatório que nunca “enfrentara empreendimento que exigisse tamanha ‘organização e capacidade executiva do corpo médico’, e que, em sua opinião, devia ser formado por pessoal mais numeroso, com experiência em doenças tropicais e formado em instituições especializadas como a London ou Liverpool School of Tropical Medicine” (Benchimol, Silva, 2008BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 15, n. 3, p. 719-762, 2008., p. 743).

Essas ações, na verdade, eram parte de um “programa inteiramente hierarquizado de combate à malária, sob controle direto da companhia [Madeira-Mamoré Railway], acrescido da vigilância por parte de representantes do poder público” (Hardman, 1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 153). Com “técnicas da higiene e saúde pública [como] componentes indispensáveis da organização racional do trabalho” (p. 153). Elas, como esperado, tiveram de vencer a resistência dos trabalhadores que, muitas vezes, rejeitavam o tratamento com quinino.

No relatório de Carl Lovelace foi registrado que, “tão grande era o preconceito contra o quinino, que era dificílimo induzir um homem infeccionado de malária a tomar quantidade suficiente desta droga” (Benchimol, Silva, 2008BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 15, n. 3, p. 719-762, 2008., p. 745). Em alguns momentos, os trabalhadores eram obrigados a apresentar um cartão atestando a ingestão do medicamento como condição para receber o salário. Também os engenheiros com malária submetidos a tratamento com administração de quinino “opuseram-se a ela alegando que produzia grandes incômodos, atacava vários órgãos, ‘a começar pelo estômago, levando o seu uso prolongado a provocar perturbações profundas no organismo, pois até como anafrodisíaco atuava’” (Benchimol, Silva, 2008BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 15, n. 3, p. 719-762, 2008., p. 747).

Na documentação analisada da EFB, não foram encontrados registros de resistência dos empregados ao tratamento com quinino, como também não há menções mais específicas de um programa organizado para controle sanitário nos abarracamentos dos operários. Muito embora haja referências de envio de quinino para alguns locais no interior do Ceará - alguns desses lugares alcançados pela Estrada de Ferro de Sobral, contígua à EFB. Segundo a Mensagem do governo cearense de 1917, por exemplo, o presidente do estado enviou à Granja e Camocim “certa quantidade de saes de quinino em cápsulas, para serem distribuídas entre a população pobre atacada de impaludismo”.24 24 Mensagem do governo do estado à ALC, 1917, p. 30. Em 1918, foi registrado, na mensagem do governo do estado, o largo uso desse medicamento, posto que

o Governo tem encontrado grandes difficuldades, pois, encarecidos como se acham todos os medicamentos, essa elevação do preço se reflecte com maior intensidade sobre os de maior consumo, como sejam os saes de quinino, de emprego hoje tão divulgado. Ainda assim o Governo tem adquirido quantidades relativamente elevadas desse medicamento, procurando ultimamente obte-lo no Estado de São Paulo.25 25 Mensagem do governo do estado à ALC, 1918, p. 51.

Nesse ano, sais de quinino foram enviados a Iguatu e Juazeiro - a primeira já tinha estação da EFB e a segunda foi alcançada em 1926.

De outro lado, a evasão dos trabalhadores dos canteiros de obra da Estrada de Ferro de Baturité, assim que as chuvas permitiam outra vez a colheita de algodão e outros produtos agrícolas, não admite descartar a possibilidade de uma fuga - ou das epidemias ou da imposição de tratamentos com incômodos efeitos colaterais. Mesmo porque nessa ferrovia, pelo menos desde o ano de 1879, já eram organizadas campanhas de vacinação para os empregados. Em edição d’O Cearense de 18 de junho de 1879, foi publicado o seguinte ofício: “Ao encarregado geral do deposito de viveres, na Pacatuba declarando que S. Exc. acaba de recomendar ao Dr. Francisco Jacintho Pereira da Motta que active a vacinação em todos os abarracamentos de operarios empregados no serviço da via-ferrea de Baturité”.26 26 O Cearense, 18 jun. 1879, p. 1.

Nessas considerações em torno dos tratamentos de epidemias que surgiam entre operários de ferrovias, está insinuada uma relação mais estreita entre essa via e surtos de moléstias. Ou ainda, a partir do momento em que a direção da edificação de uma estrada de ferro tomava as rédeas dos tratamentos necessários para debelar a crise entre seus empregados, se criava ou evidenciava uma associação, um tanto macabra, entre ambos. Como a aglomeração de pessoas (que dificultava as práticas de higienização) contribuía para a disseminação de doenças, tornava-se inevitável a abertura de uma frente sanitarista na administração das ferrovias pela nomeação de comissões desse gênero - num caráter de círculo vicioso. De maneira que desvincular a edificação dessas vias do aparecimento de epidemias se tornava um trabalho delicado.

Também deve-se considerar a sazonalidade dos surtos: varíola, malária e febre amarela, que têm caráter epidêmico, estão mais relacionadas ao inverno e umidade do clima. O contágio dessas doenças entre trabalhadores da EFB foi mais frequente nos períodos em que a construção se aproximava de regiões mais úmidas no Ceará, como as serranas. Conforme os relatórios dos governantes cearenses da segunda metade do século XIX, período de manifestação de alguns surtos de doenças, o tipo de clima explicava a regularidade de enfermidades como a febre amarela e a varíola no Ceará. Esta situação contribuiu para o desenvolvimento de teses médicas sobre as estreitas relações do clima com o estado sanitário da população.

Os engenheiros também ficavam vulneráveis a enfermidades (havia um caráter democrático nisso). No discurso de inauguração da estação de Canoa, José Julio de Albuquerque Barros destacou sobre Carlos Alberto Morsing o seguinte:

o distincto chefe dera-lhes o exemplo de firmesa e abnegação: accomettido pela febre biliosa, não esmoreceu; accomettido pela varíola, mostrou-se sobranceiro, collocando acima da própria vida o sentimento do dever, o zelo de sua reputação, o amor do bem público.27 27 O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1.

Apesar do tom ufanista, típico de um discurso de inauguração, é possível considerar os problemas de saúde do engenheiro Morsing. Em suas andanças pelo país, ele parece ter experimentado cada uma das enfermidades que vitimaram trabalhadores da estrada de ferro no Brasil. Além das citadas febre biliosa e varíola, Carlos Alberto Morsing ainda contraiu malária em suas incursões na edificação da primeira seção da Estrada de Ferro D. Pedro II, antes de vir para o Ceará (Lamounier, 2012LAMOUNIER, Maria Lucia. Ferrovias e mercado de trabalho no Brasil do século XIX. São Paulo: Editora da USP, 2012., p. 130).

Da mesma forma, na construção de outras estradas de ferro, há muitos relatos de engenheiros e pessoas a eles ligadas que morreram vítimas de epidemias, ou que não faleceram, mas adoeceram. A esposa do Sr. Collins, engenheiro responsável pela construção, sofreu sérias doenças na sua estadia no canteiro de obras na selva amazônica: ao regressar para a Filadélfia foi internada num hospício, onde faleceu. Ainda nessa ferrovia, um dos componentes da Comissão Pinkas chegou a sugerir: “Ora, tudo isto sugere-nos a presença do diabo. Na realidade, somente o diabo poderia ter criado tantas situações e envolvido tanta gente nas suas artimanhas, as quais, em última análise, constituem esta história” (Hardman, 1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 121). Não à toa, ela foi denominada, pelos trabalhadores da construção como a “ferrovia do diabo”.

Os operários acometidos por doenças com risco de contágio eram atendidos nos lazaretos - ou enfermarias específicas, como a de maleitas. O afastamento dos outros enfermos tinha o objetivo de evitar uma epidemia, por isso a existência dos lazaretos estava relacionada ao período de enfrentamento de uma determinada doença. Na EFB, foram improvisados pelo menos dois desses espaços, entre 1878 e 1880. Um deles, localizado no abarracamento do Itapahy, era destinado a 159 pacientes com sarampo: deles, 17 faleceram. O outro lazareto recebia os variolosos: entre 13 de março e 12 de junho de 1879, Manoel de Sá Barretto Sampaio registrou 11 internações apenas; três pacientes faleceram. O número de casos de varíola nos abarracamentos da ferrovia era menor que na capital, conforme explicou o médico: “sendo raros os casos de variola na estrada de ferro e havendo lazarettos para variolosos no Baturité e no Acarape resolvi mandar para elles os doentes de variola da estrada, o que se tem feito até agora”.28 28 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. [Documento manuscrito] Ofício s/n, 20 dez. 1879.

Nos outros períodos de construção da EFB, há registros de varíola “companheira das outras seccas” nos alojamentos dos empregados, em 1916, com morte de 42 pessoas em Iguatu (neste ano foi impossível manter frequência diária de 3 mil trabalhadores na obra);29 29 BR. APEC. RGE, 1916, p. 7. e a epidemia de gripe, em 1917, que também vitimou muitos operários. Esses surtos influenciavam a frequência dos trabalhadores no serviço da construção, tal como Foot Hardman (1988HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 142) observou na Madeira-Mamoré: foi impressionante a estatística de enfermos e mortos entre os operários, uma vez que a “média de permanência dos trabalhadores nas obras era menos de três meses. [Inclusive] todos os vapores partiam carregados de homens atacados de febre, que fugiam assombrados para escapar do vale mortífero do Madeira”. Nessa obra, o número de mortes entre 1907 e 1912 chegou à marca alarmante de 1.593. Destes, somente de brasileiros foram 631 óbitos.

A tabela seguinte sugere a variação diária dos trabalhadores empregados nos serviços da Baturité:

Tabela 1
Números de operários e dias de trabalho na EFB em 1911

A frequência diária dos trabalhadores variava intensamente. Com o mínimo sendo observado para o mês de março, em que cada empregado teria trabalhado entre três e quatro dias durante todo o mês, e o mês de setembro, cuja assiduidade foi cerca de 19 vezes em 30 dias. Números que indicam a imprevisibilidade a que estavam submetidos os engenheiros no que dizia respeito ao planejamento dos serviços a serem executados. Essa variação, como visto, podia estar relacionada à atração de outros trabalhos, mas também ao estado de desnutrição e susceptibilidade a enfermidades (e epidemias) que os impelia a recorrer a enfermarias e hospitais. Nesses lugares, a probabilidade de uma dieta regular e minimamente mais elaborada era, inclusive, maior.30 30 Conforme Lamounier (2012, p. 240), a variação na frequência dos trabalhadores das ferrovias de São Paulo estava relacionada à precipitação de chuvas e a um maior número de dias santificados. Fatores que também podiam explicar as variações na frequência dos empregados da EFB, ainda que com menor intensidade.

O ajuntamento de pessoas em abarracamentos foi uma preocupação constante dos engenheiros durante a construção da Estrada de Ferro de Baturité. Na seca de 1915, o governador do estado informou que a incidência de doenças e pestes foi bem maior “nas localidades onde rebalsou a onda dos flagellados, [pois] o estado sanitario soffreu como nesta capital, um accrescimo apavorante na curva da mortalidade humana.” Também especificou que “o fenômeno deu-se mais accentuadamente no litoral, na região das duas ferrovias, nas obras da açudagem e nas estradas de rodagem, mandadas executar pelo Governo Federal”, onde, segundo ele, “se davam maiores agllomerações de pessoas, esqueleticas, esfarrapadas, sujas, sem a mínima hygiene, mal encontrando água para beberem”.31 31 BR, APEC. RGE, 1916, p. 7.

Sobre o “estado sanitário” dos operários e seus familiares alojados em barracas ao longo da estrada de ferro, o diretor e engenheiro chefe da Baturité, em seu relatório de 1916, descreveu mais detalhadamente esta situação:

o estado sanitário manteve-se em péssimas condições, maximé nas localidades em cujas circunvizinhanças agrupavam-se, numa prosmicuidade indescritível, as famílias e operarios das differentes construcções, cujo estado de abatimento physico era tal, que chegava a infundir terror ao invés de commiseração! Victimas indefesas do sinistro phenomeno climaterico, cujas causas não podiam evitar, moléstias contagiosas, de caráter epidêmico, ou seja, o typho, nas suas múltiplas modalidades, a varíola, as caimbras de sangue e outras varias, começaram a surgir, como soe acontecer em períodos taes, victimando a população, sobre tudo, a classe proletária, já de si combalida e que, as mais das vezes, succumbia a falta de conforto, hygiene e cautella, oriundas da indigencia e mizeria em que se abatia.32 32 BR, APEC. RGE, 1916, p. 55.

A circunstância mais crítica era a da cidade de Iguatu, à época, ponto de convergência de muitos retirantes, uma vez que nela havia a estação final da ferrovia, de comunicação mais rápida com a capital através do transporte férreo. Embora, segundo o engenheiro, em toda a estrada de ferro foi “exaggerado o número de vitimas dos morbos”, pois “entre aquella longínqua cidade sertaneja e a capital do Estado, essas moléstias grassaram assustadoramente, num crescendo ininterrupto de exterminação, produzindo o desespero e ceifando centenas de existencias!”33 33 BR, APEC. RGE, 1916, p. 55.

Tanto na epidemia de varíola em 1878-1879 como em 1915-1916, a aglomeração de pessoas nos abarracamentos pareceu espantosa aos dirigentes da Estrada de Ferro de Baturité. Sendo ora interpretada como calamidade que havia recaído sobre “vítimas indefesas”, infundindo “comiseração”, ora como um agrupamento com uma “promiscuidade indescritível”, que inspirava “terror”. Em todo caso, não há, a julgar pelo relato acima transcrito, nenhuma modificação no tratamento dos trabalhadores no que diz respeito às doenças e à própria forma de alojamento. Ou, ainda que se tratasse de enfermidades diferentes, o que podia ter relação com a região, o trecho Iguatu-Cedro é bem diferente do trecho Acarape-Canoa. O despreparo para lidar com a situação, contudo, era o mesmo.

Em determinados momentos, as vítimas dos morbos eram, inclusive, criminalizadas, uma vez que “sucumbiam à falta de higiene e cautela”. Esse pensamento, na verdade, era predominante entre os dirigentes da ferrovia e instâncias governamentais, envolvidos com os socorros às vítimas de epidemia, bem como entre os mais instruídos da sociedade. Darlan Reis Junior. identificou o mesmo pensamento nos relatórios do médico já citado Antonio Manoel de Medeiros sobre seus trabalhos na cidade de Crato, durante a epidemia de varíola de 1878-1879. Qual seja: o de que “os hábitos dos pobres eram nocivos à saúde pública” (Reis Juinor, 2014, p. 270). Numa lógica cruel, a responsabilidade pelas mortes em epidemias recaía, em geral, sobre o próprio moribundo, já que a população mais pobre estava mais susceptível às moléstias por vários outros motivos.

Mas a vivência de uma epidemia é um tipo de experiência que pode ser um rico objeto de análise para os estudos das formas de lidar com as doenças e os doentes no Brasil. A tese de doutorado de Nikelen Acosta Witter (2007WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007., p. 91) é um exemplo de estudo que analisa as formas como as enfermidades eram vividas no século XIX, por “sofredores, governantes e curadores”. Nela, foi trabalhada a categoria do ‘sofredor’ cuja conceituação incluía “não apenas o doente, mas todo o seu grupo de relações - familiares, amigos, vizinhos, patrões, agregados -, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se viam ligados pela incerteza da enfermidade”.

Ainda conforme Witter (2007WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007., p. 91), a análise da categoria do sofredor é interessante porque permitiria a percepção de como “cultura e experiência se articulavam no recurso e significado das diversas terapias a que esses sofredores tinham acesso.” Assim, as suas atitudes foram analisadas em relação aos recursos disponíveis e ao leque de possibilidades de ação dos enfermos e dos que estavam ligados a ele. Mas também, considerando que a utilização dos recursos e formas de cura eram esclarecedoras dos modos como o corpo, a doença e a cura eram compreendidos pelos sofredores. Nesse sentido, a referida categoria é entendida como parte da experiência do sujeito social, que deve ser considerada tanto quanto foram objeto de análise as horas de trabalho e lazer. Sendo assim, no caso dos trabalhadores de ferrovia, os momentos de enfermidade são compreendidos não como pausas, mas como elementos importantes na reflexão desta vivência.

A experiência da enfermidade fez parte das vivências de muitos dos trabalhadores da EFB. Não há relatos mais detalhados das sensações sofridas pelos doentes, mesmo porque a maior parte era analfabeta, como o eram mais da metade da população do Ceará, em fins do século XIX. Existem, no entanto, algumas referências em fontes cujo foco não é diretamente essas vivências.

Em relação aos empregados da EFB, podem ser identificados dois casos. Um deles percebido pelo médico encarregado do tratamento dos operários ocupados nos trabalhos da 2ª seção da EFB, José Lourenço de Castro e Silva. Em 3 de outubro de 1879, este clínico foi chamado a examinar “á sota-vento dos abarracamentos do Itapahy um doente”. O paciente foi descrito como “F. de 38 annos de idade, mais ou menos, cabra, solteiro, natural d’esta Província, [que] soffria, havia dias, uma ligeira diarrhea”. A enfermidade foi descrita como fortes dores no estômago que o doente tentou tratar, sem sucesso, com goles de aguardente. Em seguida, “sobrevieram-lhe vômitos alimentares, depois biliosos, a diarrhea tornou-se mais frequente e as dores mais intensas”. 34 34 Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1. No terceiro dia de enfermidade,

Os vomitos eram alvinos e as degecções cor d’agua de arroz frequentes e inodoras: o doente sentia caimbras fortíssimas nos membros que o obrigavam á movimentos desordenados e a soltar gritos ou gemidos surdos; havia aphonia quase completa, sede inssaciável e oppressão; o pulso era extremamente accelerado e filiforme, a pélle algida. A physionomia apresentava uma tristeza profunda, olhar desvairado, o contorno das orbitas violáceo, bem como os lábios, rosto emmagrecido, ausência de ourina, sub dilirio. O estado do doente era tal que não podia mais levantar-se da rede em que se achava.35 35 Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1.

José Lourenço imediatamente suspeitou que F. sofria de cólera. A desconfiança de uma epidemia foi intensificada alguns dias depois, quando esse médico foi “chamado com urgência para o Sr. J. L. B. que residia no Itapahy onde negociava”. Os sintomas eram semelhantes aos do primeiro paciente, pois “havia dois ou três dias que o Sr. J. L. B. se achava com uma ligeira diarrhea, inapetência e mau estar geral; tomara um banho frio e teve de ser levado a braços para casa”, mas “com a differença de terem sido as caimbras mais fracas”.36 36 Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1.

Como de praxe, José Lourenço enviou ofício para Julius Pinkas relatando que visitou “um doente de cholera morbus” e outro em mesmo estado, pedindo que fossem tomadas as providências cabíveis.37 37 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Oficio s/n, 8 out. 1879. Uma semana depois, a comissão formada por João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar chegou ao abarracamento do Itapahy e do Cururu para avaliar os casos suspeitos de cholera morbus e outros que porventura existissem. Na ocasião, foi emitido um parecer pela comissão, que alegava:

Temos intima satisfação de communicar á V. Sª que estes dous doentes assim como outros que observamos foram acommetidos de cholerina, que certamente se acompanhou de symptomas assustadores em conseqüência dos hábitos de intemperança sempre nocivos em casos taes e tão commum entre nós nas pessoas das classes menos favorecidas da fortuna.38 38 BR, APEC, EF. FB. [Documento manuscrito] Parecer da Comissão formada pelos Medicos João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar para casos de cholera da Ferrovia de Baturité, 10 out. 1879.

Conforme Nikelen Witter (2007WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007., p. 91), “o sofrimento não reside apenas em quem adoece, ele é vivido de forma conjunta por todos os que estão ligados por algum tipo de laço àquela família. Dos mais ao menos incomodados, todos são sofredores”. Assim, os infortúnios sentidos pelo moribundo, no mínimo, causavam medo naqueles que estavam próximos ao enfermo e poderiam provocar pânico no restante da população, uma vez que o risco de morte podia se expandir de F. para os outros habitantes do acampamento. Ou seja, deve-se considerar também o horror sentido na possibilidade de uma epidemia que viria a ameaçar todo o grupo. Esse medo foi evidenciado no pedido de José Lourenço ao engenheiro responsável: “promptas providencias, afim de, si não remover, ao menos attenuar os efeitos de uma epidemia que nos ameaça”.39 39 BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. [Documento manuscrito] Oficio s/n, 8 out. 1879. Aspecto no qual se insinuam os contornos sociais dramáticos que podia provocar a doença de F. e do Sr. J. L. B.

O outro relato de trabalhador da construção da Estrada de Ferro de Baturité que sobreviveu a uma epidemia encontra-se nas Memórias da Menoridade de Antonio Martins Filho. Sua experiência como sofredor se deu na epidemia da gripe espanhola (influenza espanhola), que se disseminou no Ceará e acometeu muitos empregados da Baturité em 1918:

Tudo estava marchando bem, quando tive abruptamente de me licenciar do meu trabalho, por ter sido acometido de um processo violento da gripe, que assolava todo o Ceará, naquele terrível fim do ano de 1918. As pessoas esclarecidas diziam que se tratava de uma doença denominada Influenza Espanhola, mas a população a apelidara de “Bailarina”. A epidemia se alastrava com uma velocidade dizimando os ricos e, principalmente, os pobres, inteiramente desamparados e desassistidos pelos Poderes Públicos. No Barracão o método adotado, a título de medida preventiva, era o uso de uma dose bem caprichada de cachaça com limão. Nunca suportei esta bebida e, talvez por isso, a “Bailarina” me atingiu com uma violência enorme, causando sérias apreensões à minha família. Soube que, em certo momento, a febre elevou-se a um limite extremamente alto e eu, bastante excitado apresentei sintomas de loucura, ameaçando agredir as pessoas que me cercavam, principalmente uma das minhas irmãs, que ficou apavorada. Assistido pelo Doutor Eduardo Studart, médico da Estrada de Ferro, só consegui me acalmar a partir do instante em que deitei pelas narinas abundante quantidade de sangue. Quando ultrapassei a crise aguda, fui aos poucos recuperando a saúde, graças aos cuidados redobrados de minha mãe (Martins Filho, 1991MARTINS FILHO, Antonio. Memórias: Menoridade, 1904-1925. Fortaleza: Imprensa Universitária/UFC, 1991., p. 137).

Ao que indicam os escritos de Martins Filho e a descrição da experiência de F., mencionada acima, a vivência de uma epidemia tem caráter muito mais social do que individual. Muito embora a descrição seja a experiência de um único doente, não há como desvinculá-lo do que foi sentido pelos demais sofredores. Mesmo porque, muitas vezes, para expressar a gravidade da enfermidade a qual o sofredor sobreviveu, se faz necessário indicar a velocidade da disseminação e o grau de fatalidade, como o fez Martins Filho ao mencionar que “a epidemia se alastrava com uma velocidade dizimando os ricos e, principalmente, os pobres, inteiramente desamparados e desassistidos pelos Poderes Públicos”.

Nesse instante, há a referência direta ao “caráter social” dessa epidemia, pois era maior o número de vítimas entre a população mais pobre, o que certamente incluía os cassacos da EFB. Curioso perceber que o narrador responsabilizou os poderes públicos pela falta de assistência médica, e não mencionou os maus hábitos da população, como de praxe entre os mais instruídos. Seu olhar diferenciado provavelmente se explique porque o próprio memorialista estava entre os doentes mal assistidos, ou porque se tratava de pessoas de sua convivência diária, de quem Martins Filho aprendeu a gostar. Nada obstante, em outros momentos de sua narrativa, ele afirmasse a percepção negativa que tinha dos cassacos. Na sequência das memórias, Martins Filho (1991, p. 144) afirmou: “a minha permanência nos serviços do prolongamento da Estrada de Ferro, sem o controle direto de meus pais, foi prejudicial à minha formação, em virtude de hábitos e costumes por mim adquiridos na convivência de pessoas rudes, heterogêneas e até temíveis”.

Em 1918, há várias menções de distribuição de medicamentos pelo Estado nas mensagens do governo cearense à Assembleia Provincial. Contudo, ao que indica o uso de remédios improvisados nos relatos aqui considerados dessa política, não chegavam a todos os lugares do território cearense ou não chegavam a tempo e em quantidade suficiente. É de se notar que, nos dois casos, foi mencionado o uso de remédios caseiros, a base de aguardente, para tentar prevenir ou minorar os sintomas da moléstia em curso. De qualquer modo, os relatos de contágio de uma doença com instâncias de surtos epidêmicos apontam aspectos da convivência e dos hábitos sociais de uma população. Ou seja, a forma de contar a enfermidade e os indícios do medo sugeridos nas narrativas indicam alguns aspectos de uma organização social em tempo de epidemia. A narrativa dos sintomas experimentados pelo sofredor permite intuir, minimamente, a disseminação de medo na população: quanto maior o sofrimento dos enfermos e o número de mortes, maior o receio dos demais de contrair a moléstia.

Considerações finais

Os acampamentos da Estrada de Ferro de Baturité foram espaços onde os operários experimentaram um trabalho extenuante, em horário rígido, uma relação diferente com a autoridade, diferentes doenças, epidemias, fome, nudez, moradia mais precária, entre tantos outros aspectos, cuja descrição em muito se assemelha ao “Inferno” de Dante. Mas os trabalhadores da EFB não estavam resignados a esta situação. Tyrone Cândido e Frederico Neves analisaram a cultura política de resistência desses homens e mulheres que travaram vários embates, apedrejaram diversos trens, saquearam outros e promoveram inúmeras ações de massa que demonstravam um posicionamento político oposto ao da conformação.

Referências

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  • 1
    Os engenheiros Carlos Alberto Morsing e Júlio Pinkas, terminados seus contratos com a Estrada de Baturité, em 1880, seguiram com suas comissões para a região do rio Madeira, encarregados de reavaliar a possibilidade de uma ferrovia Madeira-Mamoré, cuja construção só foi iniciada em 1908.
  • 2
    Linha de Fortaleza a Crato, no Ceará - construção iniciada em 1872 e a primeira etapa finalizada em 1882, em Canoa - Baturité. Primeira do mundo com justificativa filantrópica - socorrer camponeses na seca de 1877-1879. Nas frentes de trabalho, os camponeses foram alojados em abarracamentos às margens dos trilhos.
  • 3
    O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1.
  • 4
    O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1.
  • 5
    AN - Arquivo Nacional - Governo do Ceará. Ofício n. 3.683 [com cópia anexa de relatório médico], 16 jun. 1879.
  • 6
    Vitimou muitos trabalhadores da EFB, entre 1870 e 1880. Os doentes, ao que indicam os registros, foram tratados com água inglesa fornecida ao tempo das bexigas.
  • 7
    Também percebida em frentes na construção de açudes e estradas de rodagem, no início do século XX: a aglomeração já entendida como fator ligado ao surgimento e à disseminação de moléstias.
  • 8
    O Araripe, 26 jun. 1858, p. 3.
  • 9
    Portal Pernambuco de A-Z: história da ferrovia em Pernambuco. Disponível em: http://www.pe-az.com.br/. Acesso em: 13 dez. 2014.
  • 10
    BR. APEC - Arquivo Público do Estado do Ceará. Documentos da ALC - Assembleia Legislativa do Ceará. Mensagem à Assembleia Legislativa do Ceará, 1919, p. 31.
  • 11
    APEC. Documentos da ALC. Mensagem à ALC, 1918, p. 50.
  • 12
    Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1, destaques no original. Jornal cearense com discurso de oposição (radical), cujas denúncias tinham reverberação na correspondência oficial da província.
  • 13
    BR, APEC, EF. FB - Estrada de Ferro - Ferrovia de Baturité, Cx. 03, 1878. Oficio s/n, 08 out. 1879.
  • 14
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1878. Oficio s/n, 08 out. 1879.
  • 15
    BR, APEC, EF. FB. [Documento manuscrito] Parecer da Comissão formada pelos medicos João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar para casos de cholera da Ferrovia de Baturité, 10 out. 1879.
  • 16
    THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceara (século XIX). Fortaleza. Typographia Moderna, 1901. p. 167.
  • 17
    Echo do Povo, 1 fev. 1880, p. 1.
  • 18
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 20 dez. 1879.
  • 19
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 19 jul. 1879.
  • 20
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Ofício s/n, 20 dez. 1879.
  • 21
    Assim como na ferrovia, a dolorosa experiência de ser vítima das maleitas contribuiu para uma associação da região ou do espaço com as referidas doenças.
  • 22
    BR, APEC. Relatório de Governo de Estado (RGE), 1917, p. 29-30.
  • 23
    BR, APEC. RGE, 1918, p. 48.
  • 24
    Mensagem do governo do estado à ALC, 1917, p. 30.
  • 25
    Mensagem do governo do estado à ALC, 1918, p. 51.
  • 26
    O Cearense, 18 jun. 1879, p. 1.
  • 27
    O Cearense, 17 mar. 1880, p. 1.
  • 28
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. [Documento manuscrito] Ofício s/n, 20 dez. 1879.
  • 29
    BR. APEC. RGE, 1916, p. 7.
  • 30
    Conforme Lamounier (2012, p. 240), a variação na frequência dos trabalhadores das ferrovias de São Paulo estava relacionada à precipitação de chuvas e a um maior número de dias santificados. Fatores que também podiam explicar as variações na frequência dos empregados da EFB, ainda que com menor intensidade.
  • 31
    BR, APEC. RGE, 1916, p. 7.
  • 32
    BR, APEC. RGE, 1916, p. 55.
  • 33
    BR, APEC. RGE, 1916, p. 55.
  • 34
    Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1.
  • 35
    Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1.
  • 36
    Echo do Povo, 9 nov. 1879, p. 1.
  • 37
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. Oficio s/n, 8 out. 1879.
  • 38
    BR, APEC, EF. FB. [Documento manuscrito] Parecer da Comissão formada pelos Medicos João da Rocha Moreira e Rufino Antunes de Alencar para casos de cholera da Ferrovia de Baturité, 10 out. 1879.
  • 39
    BR, APEC, EF. FB, Cx. 03, 1879. [Documento manuscrito] Oficio s/n, 8 out. 1879.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Aceito
    02 Set 2021
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