Acessibilidade / Reportar erro

Instruções religiosas para o bem falar (Portugal/Castela - séculos XIV e XV)

Religious instructions for a good speaking (Portugal/Castile - 14th and 15th centuries)

Resumo:

Entre os séculos XIV e XV, as principais autoridades eclesiásticas de Portugal e Castela passaram a investir, com maior regularidade, na produção de obras pastorais para promover o ensino das bases da fé cristã. Com a finalidade de abordar uma parcela das lições contidas nesses documentos, o presente ensaio tem como alvo as admoestações e os conselhos elaborados, nesse período, para evitar os males decorrentes dos excessos do uso da fala. Mais precisamente, a proposta deste estudo é examinar como figuras importantes da Igreja esperavam constranger o fiel cristão que falava alto na missa, injuriava seu semelhante, mentia para outras pessoas e, ainda, não conhecia a importância do silêncio para o enobrecimento da alma.

Palavras-chave:
Portugal e Castela; séculos XIV e XV; os limites para a fala.

Abstract:

Between the fourteenth and fifteenth centuries, the leading ecclesiastical authorities from Portugal and Castile started to invest, more regularly, in the production of pastoral works in order to promote the teaching of basic lessons on the rudiments of Christian faith. Aiming to deal with a portion of the lessons contained in such documents, this paper targets the advices and admonitions elaborated in this time to avoid the evils resulting from the excesses of speech. More precisely, the purpose of this present study is to examine how the important persons of the church expected to constrain the Christian faithful who spoke loudly in the mass, reviled their peers, lied to the others and who did not recognize the importance of silence for the ennoblement of the soul.

Keywords:
Portugal and Castile; 14th and 15th centuries; the limits of speech.

Na obra Livro de las donas, do franciscano catalão Francesc Eiximenis (c. 1330-1409),2 2 Esta obra foi editada em castelhano, pelo padre Cremona, no ano de 1542, com o título Carro de las Donas. são catalogados vários conselhos para ensinar os homens e as mulheres a se conduzirem de maneira virtuosa no cotidiano. No final da obra, Eixemenis destaca que o fiel precisava defender a fé cristã todas as vezes em que ouvisse alguém criticá-la, sobretudo se a pessoa ousasse, em sua frente, blasfemar contra Deus ou dizer mal da Virgem Maria, ou “de algum santo servo e amigo de Deus” (Eiximenis, 2007EIXIMENIS, Francesc. Carro de las donas. Valladolid, 1542. Estudo e edição de Carmen Clausell Nácher. Madri: Fundación Universitaria Española/Universidad Pontificia de Salamanca, 2007. 2. v., v. 2, p. 13). Em outra altura, ao prescrever outros conselhos concernentes aos usos da fala, afirma que o cristão não podia ofender seu semelhante ou lhe dar mau exemplo, pois o certo era amar o próximo, ajudando-o com obras e palavras (Eiximenis, 2007EIXIMENIS, Francesc. Carro de las donas. Valladolid, 1542. Estudo e edição de Carmen Clausell Nácher. Madri: Fundación Universitaria Española/Universidad Pontificia de Salamanca, 2007. 2. v., v. 2, p. 53). Lições como essa, em que a fala aparece como um dos alvos, eram também elaboradas por letrados castelhanos e portugueses que buscavam arrolar, à semelhança de Eiximenis, um variado quadro de prescrições para proporcionar uma completa formação moral aos fiéis.

Entre os séculos XIV e XV, em muitos lugares das terras portuguesas e castelhanas, sobretudo nos campos e lugares distantes da morada de reis e de grandes nobres, a única maneira de ensinar essas bases morais aos fiéis era por meio da visita esporádica de um eclesiástico disposto a instruí-los ou durante a confissão dos pecados mortais. Conforme membros letrados do clero buscavam reprimir as conversas que não fossem voltadas unicamente para a realização de algum ato votivo ou benéfico, surgia, desse modo, uma série de orientações e advertências que ajudavam a naturalizar o uso da fala considerado por eles virtuoso (Casagrande e Vecchio, 2007CASAGRANDE, Carla. Les péchés de la langue. Paris: Éditions du Cerf, 2007., p. 19-20). Tanto por meio de um manual de confessores quanto pelas constituições sentenciadas pelos bispos, os párocos foram aprendendo, entre outras práticas, a como induzir o cristão a rezar o pai-nosso, a defender oralmente a palavra divina, a confessar seus pecados, enfim, a usar a boca para a purificação do espírito.

Não faltavam letrados nesses tempos, tanto em Castela quanto em Portugal, comprometidos em catalogar o rol de condutas que as pessoas tinham de seguir dentro e fora das igrejas. São as semelhanças entre as obras elaboradas por diferentes clérigos e religiosos dessas plagas que nos permitem sondar as medidas tomadas pela cúpula da Igreja portuguesa e castelhana para instruir seus fiéis.3 3 Tal proposta insere-se em um projeto maior. No momento, para analisar, de maneira mais profunda, essa incursão pedagógica, preparamos uma edição modernizada de alguns opúsculos pastorais portugueses que foram elaborados no século XV e início do XVI. Considerando o amplo leque de temas abarcados na produção escrita desses letrados, cabe ressaltar que o caminho a ser aqui trilhado se restringe, contudo, ao exame das palavras e do tipo de fala que os cristãos deveriam evitar no cotidiano. Mais precisamente, como as constituições sinodais, as cartas de visitação4 4 As constituições sinodais eram as regras e leis prescritas pelos bispos durante os sínodos. Já as cartas de visitação eram os conselhos dados durante a inspeção de uma dada igreja. Para mais informações, ver Mazel (2016, p. 322-327). e os tratados pastorais elaboraram um quadro bastante variado de conselhos concernentes ao uso da fala, legando desde fórmulas de confissão e de pregação até críticas aos pecados da língua,5 5 O clérigo castelhano Martín Pérez na obra Livro das confissões (Livro de las confesiones), enumera dez pecados da língua, a saber: mentir, perjurar, contender, torpe falar, elogiar, blasfemar, maldizer, doestar, lisonjear e detrair (Pérez, 2002, p. 198-203). o presente estudo busca abordar um eixo circunscrito desses documentos, isto é, as restrições prescritas para o fiel saber que tipo de palavra não podia pronunciar diante de outras pessoas.

Vale ressaltar que o objetivo dos bispos não era ensinar a seus fiéis noções complexas de retórica ou até mesmo informações gerais sobre a fala polida e tida como típica do ambiente da Corte, como mais tarde se proporiam fazer diversos tratados moralizantes (Elias, 1994ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. I., v. I, p. 139-147). Dito de outro modo, se essas autoridades discutiam o tema da fala em suas constituições sinodais, não era para proporcionar aulas sobre a dialética e o aprimoramento do canto, nem instruções pontuais e ostensivas acerca de certa etiqueta cortesã que vinha sendo desenhada no início do século XVI,6 6 Já no que se refere ao surgimento, no Ocidente, de uma instrução direcionada especificamente para os valores cortesãos, ver Taylor (2010, p. 4-46). mas para seus ouvintes aprenderem a usá-la como meio de purgação dos pecados. Afinal, os confessores eram orientados, no período aqui abordado, a concentrar suas prédicas em torno de lições que ajudassem os penitentes a purificarem suas vidas, por isso não poderiam transmitir conselhos e admoestações que fugissem de um fim puramente punitivo e religioso.7 7 Para uma visão geral da política eclesiástica concernente à vida, ver Gomes apud Azevedo (2000, v. 1). As lições dos prelados diocesanos sobre a fala, como os males decorrentes da mentira e as vantagens da prática do silêncio, enquadravam-se, portanto, em uma política eclesiástica de condenação dos pecados mortais e de exaltação das ações cotidianas que convinham a um bom cristão.

No que concerne à promoção da fala julgada virtuosa, bispos ou vigários delegados não abriam mão de dirigir recomendações, em suas cartas de visitação, para advertir diferentes tipos de pecadores, inclusive o fiel que cometia algum pecado da língua. Em 1344, o bispo de Lisboa, d. Vasco Martins (1300-1344), tomou a decisão de visitar a igreja de Santa Maria do Castelo de Torres Vedras para inspecionar desde os serviços prestados pelo clero até a rotina de homens e mulheres que ali buscavam consolo e orientação espiritual.8 8 Sobre as visitas dos prelados às freguesias de seu domínio, ver Baubeta (1995, p. 63-119). Em certa altura de sua prédica, anotou que os raçoeiros9 9 O conjunto de membros do clero que recebia a ração. não podiam gritar durante as missas e horas canônicas. Como pena, aqueles que não obedecessem a essa regra deveriam perder sua ração e ficar afastados da capela por um período de seis meses (Visitação, 1992PEREIRA, Isaías da Rosa VISITAÇÃO da igreja de Santa Maria do Castelo de Torres Vedras pelo bispo d. Vasco Martins (1342-1344). In: PEREIRA, Isaías da Rosa. Visitas paroquiais dos séculos XIV, XV e XVI. Lusitania Sacra, Lisboa, 2. série, t. IV, p. 311-344, 1992., p. 324). Já em um fragmento de uma carta de visitação anexado a esse opúsculo de d. Vasco Martins, os raçoeiros foram orientados a serem mais vigilantes e a se atentarem nas palavras pronunciadas pelos fiéis cristãos nos espaços sagrados. O autor do fragmento, ao averiguar que muitos fiéis não respeitavam a celebração das missas e das horas litúrgicas, determinou que esses clérigos castigassem os mocinhos que bradassem na igreja. Na sequência da prédica, o mesmo autor não deixou de aconselhar os raçoeiros a excomungar os leigos e clérigos que proferissem “más palavras” para proteger esses meninos não obedientes (Visitação, 1992PEREIRA, Isaías da Rosa VISITAÇÃO da igreja de Santa Maria do Castelo de Torres Vedras pelo bispo d. Vasco Martins (1342-1344). In: PEREIRA, Isaías da Rosa. Visitas paroquiais dos séculos XIV, XV e XVI. Lusitania Sacra, Lisboa, 2. série, t. IV, p. 311-344, 1992., p. 325).

Muito tempo depois - mais exatamente no ano 1477 -, em Braga, cidade distante da igreja de Santa Maria do Castelo, o arcebispo d. Luís Pires foi outro prelado português que também se mostrou interessado em corrigir os desvios dos fiéis, ao relatar, entre outros problemas, que os moços dali, “por falta de castigo”, não respeitavam a celebração dos ofícios divinos. Com a finalidade de abrandar os fiéis considerados não disciplinados, determinou que os moços fossem não apenas castigados, mas também ensinados a orar, a manter silêncio e a ficar sossegados durante as horas litúrgicas e as celebrações eucarísticas (Synodicon, 1982SYNODICON hispanum. Portugal. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Católica, 1982. v. II., v. II, p. 85). Em outra altura de sua prédica, o mesmo prelado também proibiu os fiéis de entoar cantigas no coro da igreja na noite e festa de Natal, permitindo apenas a realização, nesse dia, de devotas representações, como a do Presépio (Synodicon, 1982SYNODICON hispanum. Portugal. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Católica, 1982. v. II., v. II, p. 90). Em uma época em que prelados diocesanos, como esse célebre arcebispo, assumiam a responsabilidade de velar pelas ações dos fiéis cristãos mais simples, os párocos eram orientados, portanto, a ensinar todo tipo de gente tanto a evitar a pronúncia de insultos quanto a observar a intensidade vocal a ser entoada dentro dos espaços sagrados.

Longe da igreja de Santa Maria do Castelo, o bispo d. João Cabeça de Vaca anuncia - em suas constituições sinodais de Cuenca (lidas no sínodo realizado no ano de 1399) - que, “por afeição de piedade e acatamento da humanidade, se podia chorar pelos mortos”, mas o choro precisaria ser moderado, e não clamoroso e excessivo. Tal autoridade comenta, no mesmo sínodo, que os fiéis tinham o hábito de sair pelas ruas da cidade tanto para uivar quanto para entoar “vozes espantáveis nas igrejas e outros lugares” e fazer “outras coisas que não” convinham de acordo com o rito e o costume dos gentios (Synodicon, 2011SYNODICON, hispanum. Cuenca y Toledo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 2011. v. X., v. X, p. 64). No que tange a esse tipo de desregramento, o bispo de Ávila, d. Alonso de Fonseca (1422-1505) - nas constituições sinodais de 1481, editadas, posteriormente, por d. Diego de Álava y Esquivel (?-1562) - apregoa que, nos funerais e em certos momentos do ano, os fiéis comiam e bebiam dentro da igreja, pois não se sentiam constrangidos, como deixa a entender, com a prática do pecado da gula ou com a pronúncia de falas desonestas (Synodicon, 1993SYNODICON hispanum. Avila y Segovia. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1993. v. VI., v. VI, p. 141).10 10 Para ser mais exato, o bispo visou a acabar com o que era conhecido, na época, por “caridades” de comida, isto é, a prática de se oferecer, dentro das igrejas, porções especialmente com pão e queijo. Era, segundo ele, uma prática pecaminosa, pois declara que “a verdadeira caridade” é feita a serviço de Cristo, a fim de amparar os pobres (Synodicon, 1993, v. VI, p. 141).

Assim como d. João Cabeça de Vaca, o bispo de Segóvia, Pedro de Cuéllar (?-1350) - em um sínodo realizado no ano de 1325 - também abriu espaço para orientar o clérigo sobre os riscos do mau uso da língua ao dizer que ele deveria evitar “conversas e companhias más”. Adverte o mesmo prelado que o sacerdote, quando comia, tinha, além de ouvir algo das Santas Escrituras, de fugir das falas não pertinentes, bem como das companhias que cantavam “coisas torpes e más” (Synodicon, 1993SYNODICON hispanum. Avila y Segovia. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1993. v. VI., v. VI, p. 346). Por meio de lições como essa de matriz monástica, os párocos passaram a ser informados que precisavam, na hora da refeição, manter a calma e o equilíbrio para movimentar gestos lentos e articular falas pausadas, a fim de não macular o espírito com conversas desnecessárias e não adequadas para essa ocasião

Acerca do tipo de conversa a ser evitada para não cometer a gula, e as falas tidas como não honestas, vale destacar as lições do clérigo castelhano Martín Pérez, que se notabilizou pela produção do tratado Livro das confissões.11 11 O título original é Libro de las confesiones. Essa obra foi terminada no ano de 1316 e compilada, em português, pelo mosteiro de Alcobaça em 1399. Nessa obra, afirma tal letrado, ao enumerar as maneiras pelas quais se cometia tal pecado, que o cura de almas deveria perguntar ao penitente “se foi desonesto ou vilão no comer {…} e se falou mal” de outros cristãos, “ou se disse vilanias” na hora da comida. Para evitar que os cristãos viessem a praticar a gula e a pronunciar falas pecaminosas, Pérez os orienta a rezar, antes de cada refeição, alguma oração, como o pai-nosso e a ave-maria (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edição crítica, introdução e notas de Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 194). Já no que diz respeito especificamente à fala, esse eclesiástico, antes mesmo de inventariar os efeitos provocados pela gula no corpo do fiel, assevera que o confessor poderia identificar, na confissão do penitente acerca dos “pecados da língua”, se, este “por sanha que havia deu mau conselho contra alguém”, ou “se desprezou, em seu coração, alguém”, ou se revelou a sanha que por ele nutria dentro de si (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edição crítica, introdução e notas de Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 193).

Muitos outros clérigos, à semelhança de Martín Pérez, reservaram espaço em seus escritos para ensinar o confessor a averiguar se o penitente difamava seus semelhantes. A partir de Pierre le Chantre (c. 1130-1197), cônego parisiense responsável pela promoção da penitência no século XII, ganhava cada vez mais espaço, nas prédicas redigidas no âmbito religioso, o pressuposto de que os pecados da língua poderiam ter três alvos diferentes: o próprio locutor, quando este pronunciasse, por exemplo, falas de autoexaltação; os próximos, se estes ouvissem palavras que os difamassem ou os injuriassem; e Deus, no caso de discursos blasfematórios ou heréticos (Casagrande e Vecchio, 2007CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des péchés capitaux au Moyen Âge. Paris: Aubier, 2003., p. 36-37). Mais precisamente, tratadistas importantes desse período afirmavam que o fiel, acostumado a cometer os pecados da língua, prejudicava a si e aos outros, pois feria sua alma com exaltações e atacava seus semelhantes com palavras caluniadoras. Esses letrados destacavam, contudo que o pior tipo de praticante desses pecados eram os blasfemadores, hereges e pagãos, por denegrirem a imagem do Criador (Cf. Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edição crítica, introdução e notas de Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 583).

No que concerne à condenação da mentira, Francesc Eiximenis declara, no referido tratado Libro de las donas, que o homem, disposto a “ser estimado, tem de ter consigo verdade na boca” (Eiximenis, 2007EIXIMENIS, Francesc. Carro de las donas. Valladolid, 1542. Estudo e edição de Carmen Clausell Nácher. Madri: Fundación Universitaria Española/Universidad Pontificia de Salamanca, 2007. 2. v., v. II, p. 132). Logo na assertiva seguinte, partindo do pressuposto de que a verdade “faz o homem servo e filho de Deus”, o religioso catalão não deixa de apontar os “mentirosos como {sendo} filhos do demônio”, pois, segundo ele, esse tipo de pecador, em vez de “obrar por amor a Deus”, vivia para buscar o louvor dos homens. Em sua descrição, considera ainda que os mentirosos, por serem inimigos da verdade, não passavam de homens “mundanos e aficionados por amor carnal”, isto é, de fiéis “cheios de ódio e rancor” (Eiximenis, 2007EIXIMENIS, Francesc. Carro de las donas. Valladolid, 1542. Estudo e edição de Carmen Clausell Nácher. Madri: Fundación Universitaria Española/Universidad Pontificia de Salamanca, 2007. 2. v., v. II, p. 133). Em linhas gerais, letrados como Eiximenis e outros pensadores, oriundos de diferentes cantos de Castela e Portugal, procuravam ensinar ao cristão que a revelação da verdade permitiria uma tomada de consciência, ou seja, a visão de uma luz que encaminharia o espírito à contemplação divina.12 12 No que concerne ao potencial da fala no jogo da confissão, ver Chiffoleau (2001). Se, de um lado, os fiéis eram chamados a dizer a verdade a todo instante, mesmo se ela machucasse o amigo, de outro, os confessores eram instruídos a tornarem-se uma espécie de inspetores das verdades confessas, tendo de examiná-las para saber expor aos olhos do confesso o que poderia ser então a causa motora de seus males (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes , 2014., p. 28).

Os escritos dos prelados diocesanos condenavam os pecados da língua, ora por prejudicarem seu semelhante e lhe imputarem uma falsa imagem, ora por serem a prova mais nítida da falta de comprometimento do fiel com a verdade, justiça e honestidade; daí o motivo para algumas dessas autoridades criarem certas medidas para coibir a ação de seus praticantes. Por exemplo, o bispo de Leão, d. Martín Fernández (?-1289), estabelece - em suas constituições sinodais de 1288 - que os fiéis que jurassem falso testemunho teriam de ser excomungados e apenas por Roma poderiam obter a absolvição dessa excomunhão. Mas ressalta que, se as pessoas estivessem no leito de morte, os clérigos com cura de almas poderiam absolvê-las. Continuando sua admoestação, esse bispo também infere que esses pecadores não tinham a permissão de serem enterrados nos cemitérios das igrejas, exceto se conseguissem a absolvição de Roma e fizessem emenda do perjúrio (Synodicon, 1984SYNODICON hispanum. Astorga, León y Oviedo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1984. v. III., v. III, p. 260).

Na esteira de d. Martín Fernández, o bispo de Cuenca, d. Bernal Zafón (?-1372), chama a atenção para os desvios decorrentes do perjúrio no momento em que disserta, em suas constituições sinodais de 1364, sobre os mandamentos da lei de Deus. Nessa altura da obra, comentando o oitavo mandamento (não darás falso testemunho), afirma: “contra esse mandamento, agem13 13 O documento usa o verbo fazer que foi substituído, na passagem, por agir com a finalidade de deixar o sentido da frase mais claro. todos os que difamam e não dão testemunhos verdadeiros quando é necessário (...)” (Synodicon, 2011SYNODICON, hispanum. Cuenca y Toledo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 2011. v. X., v. X, p. 24). Prédica essa que ecoou por outras constituições sinodais da época e se tornou uma tópica em livros destinados à promoção do ensino elementar do fiel cristão.

No que tange mais especificamente à interdição das mentiras pronunciadas em público ou no seio da casa, o célebre bispo d. Lope de Barrientos (1382-1469) prescreve ao fiel, em suas constituições sinodais de Cuenca de 1446, esta recomendação: “{…} segundo o direito divino e humano”, o que o homem não quer que dele “seja dito não deve dizer de seu próximo, principalmente quando é mentira e falsidade”. Depois de conhecer a fundo os costumes de sua gente, esse prelado reporta que “clérigos e pessoas eclesiásticas”, oriundos de diferentes vilas e lugares desse bispado, não tinham vergonha de injuriar e prejudicar seus congêneres, isto é, de dizer, em lugares reservados “ou em público, palavras difamatórias, criminosas e injuriosas”. O bispo também ressalta que, segundo o direito, o fiel que difamasse outra pessoa ou que tirasse “a sua boa fama” estaria agindo como se a matasse (Synodicon, 2011SYNODICON, hispanum. Cuenca y Toledo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 2011. v. X., v. X, p. 229). Na sequência da prédica, Barrientos, ao mirar a contenção desse tipo de pecado, sentencia que o clérigo que dissesse ou escrevesse palavras más e feias, injuriosas ou desonestas, precisaria pagar “dez doblas castelhanas de la vanda”14 14 Doblas de la banda era uma unidade monetária (Balaguer, 1989-1990). e, caso ousasse repetir o pecado, deveria entregar uma soma correspondente ao dobro desse valor. Como a multa era maior com os reincidentes, o clérigo que repetisse esse desvio pela terceira vez tinha de pagar “quarenta doblas de oro de la vanda” (Synodicon, 2011SYNODICON, hispanum. Cuenca y Toledo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 2011. v. X., v. X, p. 230).

Não faltavam ainda obras elaboradas, entre outros objetivos, para proporcionar ao confessor instrumentos para saber como corrigir a pessoa que proferisse algum testemunho falso. É o caso do Tratado de confissom - impresso na cidade de Chaves no ano 1489 -, no qual seu autor anônimo assevera que “os testemunhos falsos são ditos e imputados por diferentes motivos, assim quando se jura por peita que lhe dão”. Esse autor recomenda que, nessas circunstâncias, o pecador teria de reparar seu dano e “fazer penitência pelo falso juramento” (Tratado, 1973TRATADO de confissom. (Chaves, 8 ago. 1489.) Fac-símile do exemplar único pertencente ao dr. Miguel Gentil Quina. Leitura diplomática e estudo bibliográfico de José V. de Pina Martins. Lisboa: Monumenta Typographica. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1973., p. 228). Em outra altura, o mesmo letrado ensina o confessor a extrair a confissão por meio de algumas questões programadas, especialmente, para descobrir se esse fiel feria ou não o oitavo mandamento (não levantarás falso testemunho). Por exemplo, considera que este eclesiástico deveria perguntar ao penitente “se {ele} disse alguma coisa” sobre algum morto ou vivo; se chegou a dizer “que amava alguém e não era assim”; se zombou de alguém; “se falou coisas vãs; se blasfemou contra Deus, contra a Santa Maria ou contra seus santos”; e “se murmurou contra os santos de Deus” (Tratado, 1973TRATADO de confissom. (Chaves, 8 ago. 1489.) Fac-símile do exemplar único pertencente ao dr. Miguel Gentil Quina. Leitura diplomática e estudo bibliográfico de José V. de Pina Martins. Lisboa: Monumenta Typographica. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1973., p. 185). A partir do momento em que as respostas fossem emitidas, o confessor deveria ir examinando o grau de culpa de seu réu, pois precisava, como uma espécie de inspetor, comparar as informações e, dependendo do que lhe fosse reportado, persuadi-lo a se reconhecer como mentiroso ou blasfemador.

Além dessas lições, os confessores tinham de ensinar ao penitente o tipo de fala que ele não poderia utilizar no cotidiano. A respeito desse aspecto da política pedagógica da Igreja, o clérigo leonês Clemente Sánchez de Vercial (1370-1426) - no tratado Sacramental, de grande circulação em versão castelhana e portuguesa - assevera que “o homem que, ao seu próximo, ou a sua mulher, ou a seu filho, ou a seu servo, proferisse palavras mais ásperas ou mais brandas” cometeria um pecado venial, isto é, um deslize não muito grave, mas que poderia se tornar um pecado mortal. Para o mesmo eclesiástico, o cristão que jurasse durante a prática de um jogo qualquer ou que falasse, “em igreja ou fora dela, palavras ociosas” também pecaria e, para atingir a salvação, não poderia deixar de dizer, na frente de seu confessor, que se sentia arrependido por ter cometido esses erros (Sánchez de Vercial, 1475SÁNCHEZ DE VERCIAL, Clemente. Burgos: {Fadrique de Basilea?}, 1475-1476.-1476, f. 35r). Da boca do fiel, como atesta Clemente Sánchez, deveriam sair apenas palavras de louvor, ou melhor, o cristão, desde a mais tenra idade, deveria aprender que sua língua era um órgão criado por Deus para servir como veículo de expressão de fé.

Reforçando o mesmo ponto de vista do tratado Sacramental, a obra Virgeu de consolaçon,15 15 Na versão castelhana, o título é Vergel de consolaçion. do dominicano Jacobo de Benavente - traduzida para o português no mosteiro cisterciense de Alcobaça no limiar do século XV e impressa em Sevilla no ano 1497 - aconselha seu leitor, a partir de uma paráfrase de Sêneca, a evitar as “palavras vãs e torpes”, deixando subtendido que elas poderiam fazer com que seus falantes perdessem imediatamente a razão. Em seguida, essa obra pastoral explica que “a imagem do coração é a palavra; e tal é o homem, tal é o seu coração, tal é o seu senhorio” (Virgeu, 1959VIRGEU de consolaçon. Introdução, gramática, notas e glossário de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959., p. 38). O mesmo livro propõe que a alma, em analogia ao corpo físico, tem um coração responsável por produzir as decisões conscientes de uma pessoa, ou melhor, por trás do corpo, há, segundo sua concepção, um homem interior que - a despeito de ser invisível aos olhos humanos - poderia ser examinado e dissecado por meio da confissão de cada desejo e vontade fabricados em seu âmago. Tal obra também aventa que a palavra “antes que venha na língua” é formada na vontade e “assentada na alma”, ou seja, a boca não passaria, para ela, de uma porta de saída de expressões armazenadas no coração espiritual do fiel (Virgeu, 1959VIRGEU de consolaçon. Introdução, gramática, notas e glossário de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959., p. 49).

Outra obra, o livro Horto do esposo - confeccionado em língua vernácula por um monge anônimo do mosteiro de Alcobaça, no final do século XIV ou início do século XV - discorre, entre outros assuntos, sobre a relação entre a fala e a saúde do coração espiritual. Com a finalidade de corrigir as imperfeições das almas, essa obra aconselha o cristão a sofrer com paciência e a manter a boca controlada, pois só assim “a alma, que é o homem de dentro,” poderia ter “a boca do coração mais formosa e mais nobre” (Horto, 2007HORTO HORTO do esposo. Edição de Irene Freire Nunes. Lisboa: Colibri, 2007., p. 158). Em outro trecho, o referido livro também faz menção aos “ouvidos” do homem interior ao asseverar que os surdos ouvem muito bem, “com a orelha do coração, as palavras secretas e de inspirações divinas” (Horto, 2007HORTO HORTO do esposo. Edição de Irene Freire Nunes. Lisboa: Colibri, 2007., p. 150). As descrições realizadas por esse tratado tanto da “boca” quanto dos “ouvidos” da alma abrem um extenso debate sobre a importância de cada fiel saber como ponderar a fala para conseguir ouvir, no interior de si, a palavra de Deus. Essa obra e outras elaboradas em diversos cantos dos reinos cristãos - ao abordarem os textos bíblicos, sobretudo o Cântico dos cânticos, de Salomão - ressaltam, contudo, que o silêncio, ao contrário do sono profundo, deveria ser um estado de meditação, isto é, um momento necessário e indispensável para que o coração pudesse se colocar em diálogo com Deus (Chrétien, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint-Augustin et les actes de parole. Paris: PUF , 2002., p. 16-18). Tal função do estado de meditação e de repouso espiritual também é destacada por Clemente Sánchez, na já mencionada obra Sacramental, ao dizer que a epístola “deve ser ouvida em folgança e em silêncio”, pois, desse modo, como deixa a entender, a palavra divina é mais bem absorvida pela alma (Sánchez de Vercial, 1475SÁNCHEZ DE VERCIAL, Clemente. Burgos: {Fadrique de Basilea?}, 1475-1476.-1476, f. 81v).

Em razão da concepção cristã, em voga a partir do século XIII, responsável por identificar o corpo como uma “alma animada”, isto é, um elo material entre o plano terrestre e a própria substância transcendente (Schmitt, 2001SCHMITT, Jean-Claude. Le corps, les rites, les rêves, le temps: essais d’anthropologie médiévale. Paris: Gallimard, 2001., p. 348), o espírito, confessores lançaram luz sobre a necessidade de todos os fiéis cristãos aprenderem a ser humildes para que abrandassem seus gestos e, assim, conseguissem chegar ao Paraíso. Em certa altura da obra La summa de confessión llamada defecerunt - do dominicano Antonino de Florença (1389-1459), traduzida para o castelhano no final do século XV -, são discutidos os 12 graus de humildade forjados no universo monástico, que se tornaram, nessa época, um rol de ações consideradas aptas para tornar o fiel obediente a Deus. O autor começa seu inventário afirmando que “o primeiro grau da humildade é que o homem mostre sempre humildade no coração e nos atos corporais, trazendo os olhos baixos e postos na terra”. E o segundo grau de humildade consiste, para ele, em falar “poucas e razoáveis palavras” e “nunca em voz alta” (Florencia, 1505FLORENCIA, Antonino de. La summa de confession llamada defecerunt. Salamanca: Gysser, 1505., f. 31). No início da lista dos graus de humildade, destacam-se, portanto, argumentos elaborados para convencer o fiel a refletir sobre sua conduta diária, especialmente acerca de sua visão e fala.

Muitas obras monásticas procuravam ensinar as pessoas, nesses tempos de promoção de catálogos de virtudes e de pecados, a guardar o silêncio para serem humildes. Quanto à importância de moderar o uso da fala, o já mencionado Virgeu de consolaçon não deixa de ressaltar, parafraseando o filósofo Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.), “que entre muito falar e muito calar, tenha este temperamento: sempre é melhor escutar que falar”, pois, de acordo com sua lógica, “quem não sabe calar não sabe falar” (Virgeu, 1959VIRGEU de consolaçon. Introdução, gramática, notas e glossário de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959., p. 37). No Boosco deleitoso, obra destinada a promover a reflexão cristã sobre si, há um capítulo acerca das virtudes que conduziriam à vida contemplativa, no qual seu autor é categórico ao asseverar que “o verbo de dentro, que o contemplador precisa ouvir, tem de ser ouvido em grande silêncio”. Essa obra sugere que “o verbo de dentro” podia ser desde a expressão que antecedia à palavra pronunciada pela boca até preces ou orações planejadas para que fossem apenas mentalizadas (Boosco, 1950BOOSCO BOOSCO deleitoso. Edição de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950., p. 91-93). Não faltaram letrados, entre os séculos XIV e XV, que fizeram ecoar a afirmação do Horto do esposo de que a alma tinha seu próprio canal de comunicação, isto é, uma fala secreta “e muito mais doce, branda que a de fora”; uma fala criada, segundo a obra, para pôr em diálogo, de maneira sublime e grandiosa, a consciência humana com o plano divino (Horto, 2007HORTO HORTO do esposo. Edição de Irene Freire Nunes. Lisboa: Colibri, 2007., p. 159).

O Horto do esposo entremeia suas prédicas acerca do potencial curativo da “voz” da alma não apenas com conselhos e admoestações, mas também com pequenas descrições da vida de pessoas que foram reconhecidas como santas após a morte. Com a finalidade de ser mais persuasivo, relata a morte de Santo Inácio de Antioquia, que merece nossa atenção:

{…} entre os muitos tormentos que lhe fizeram, sempre muito amiúde nomeava o nome Jesus e, pela virtude dele, tanta fortaleza tivera, que sofria com paciência, pois pela doçura do nome de Jesus não sentia os tormentos. {…} disse-lhe o tirano que, se não cessasse de chamar o nome de Jesus, que lhe mandaria talhar a língua. E disse-lhe Santo Inácio: posto que me talhes a língua, não cessarei, porém, de chamar o nome de Jesus, porque o tenho escrito em meu coração. (Horto, 2007, p. 13; grifos nossos)

Reporta a referida obra que, depois de entregue aos leões, abriram o coração de tal santo ao meio, e, para a surpresa de todos ali presentes, havia no interior desse músculo o nome de Jesus gravado em letras douradas. Esse episódio, ressaltado pelo Horto do esposo, resume magistralmente uma das principais lições que confessores e outros clérigos precisavam transmitir aos fiéis nesses tempos, a de que a proclamação de palavras votivas pela “boca da alma” seria uma das principais provas de fé que um cristão poderia ofertar ao Criador.

Nessa nossa história sobre as restrições colocadas ao uso da fala em Portugal e Castela, ainda falta referir como os prelados diocesanos se mostravam preocupados não só com os leigos, mas também com alguns membros do clero que eram denunciados por não saberem utilizar as palavras de forma adequada. Para advertir seus subordinados, o arcebispo de Lisboa, d. Jorge da Costa (1406-1508), relata, numa carta de visitação, as suas impressões acerca do colegiado de S. André de Mafra: “achamos que as horas canônicas eram mal cantadas, porque os clérigos beneficiados faziam muitos ruídos”. Na sequência de sua prédica, o prelado não se exime de afirmar, igualmente, que esses clérigos diziam, diante de muitos ouvintes, palavras desonestas e injuriosas (Ventura, 2006VENTURA, Margarida Garcez. As “visitações gerais” de d. Jorge da Costa: notícia e breve análise. In: Estudos em homenagem ao professor doutor José Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. v. III, p. 201-225., p. 224). No que concerne, contudo, à conduta que o eclesiástico precisava assumir para evitar esse tipo de crítica, Clemente Sánchez afirma, na obra Sacramental, que esse cristão não podia dar dinheiro “aos jograis de palavras feias” e muito menos deixá-los cantar nas igrejas. Além disso, esse glosador assevera, do mesmo modo, que o clérigo teria de evitar palavras falsas, pois, segundo ele, o que era “mentira, na boca do leigo”, tornava-se “blasfêmia na boca de” qualquer sacerdote (Sánchez de Vercial, 1475SÁNCHEZ DE VERCIAL, Clemente. Burgos: {Fadrique de Basilea?}, 1475-1476.-1476, f. 148r).

Não menos insatisfeito com a postura do clérigo era o arcebispo de Braga, d. Diogo de Sousa (c. 1461-1532), que orientou seus subordinados, em um sínodo de 1505, a se diferenciarem dos leigos. Para tanto, propôs o seguinte regulamento: “as dignidades, cônegos, beneficiados das ditas nossas igrejas, bem como das outras cidades de nosso arcebispado, sejam mansos e honestos em todos seus atos e falas {…}. Guardem toda honestidade não somente nos pensamentos e obras, mas ainda nas falas e trajes {…}” (Synodicon, 1981SYNODICON hispanum. Galicia. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1981. v. I., v. I p. 145). Em uma época em que bispos retomavam, sob um fundo cristão, a máxima de Cícero de que a ação humana exprime os movimentos da alma em três registros: da fisionomia (vultus), da voz (sonus) e do gesto (gestus) (Schmitt, 2001SCHMITT, Jean-Claude. Le corps, les rites, les rêves, le temps: essais d’anthropologie médiévale. Paris: Gallimard, 2001., p. 42), muitas foram as advertências, como essa, que procuravam ensinar o clérigo a saber como identificar nos movimentos corpóreos certas mensagens da alma (Duarte, 1992DUARTE, Luís Miguel. “A boca do diabo”. A blasfémia e o direito penal da baixa Idade Média. Lusitania Sacra, 2. série, v. 4, p. 61-82, 1992., p. 63). Para esse arcebispo, da mesma maneira que o traje impróprio espelhava uma mácula da consciência, uma palavra mal-empregada ou um ruído vocal inadequado poderiam traduzir alguma imperfeição espiritual, na medida em que expunham, para fora do corpo, uma mensagem guardada no fundo de si.

No início do século XIV, cresceu, como vimos, o número de eclesiásticos compromissados com a tarefa de condenar os fiéis que não se sentiam constrangidos ao mentir, injuriar e cometer outros pecados da língua. Muitos bispos de Portugal e Castela assumiram a missão de fazer com que o fiel aprendesse a não falar alto, a dizer sempre a verdade e a nunca omitir informações para seu confessor; ou melhor, as autoridades eclesiásticas passaram a ensinar o fiel a tomar atenção com cada palavra pronunciada, fosse dentro da igreja, fosse em sua casa, diante dos filhos e amigos. Em outras palavras, boa parte dos prelados diocesanos direcionou, nesse período, uma parcela de suas obras, sobretudo daquelas reservadas para serem lidas e divulgadas nas paróquias, para orientar os homens e as mulheres a conhecerem o uso, que se considerava ser o mais virtuoso, da voz e da fala humana.

Alguns letrados da Igreja prestigiados por seus coetâneos (d. Diogo de Sousa, Martín Pérez, d. Lopes de Barrientos, entre outros), embora tenham vivido em lugares diferentes da Península Ibérica, mostraram partilhar, nos séculos XIV e XV, um mesmo interesse, pois elaboraram conselhos e admoestações bastante semelhantes para fazer do ensino das bases da fé uma das principais vias de formação de fiéis virtuosos. Nessa missão eclesiástica, na medida em que arcebispos e bispos buscavam convencer os cristãos a não mentir, perjurar, blasfemar e cometer outros pecados da língua, um conjunto ordenado e sistematizado de restrições era estabelecido, portanto, em Portugal e Castela. Não que os letrados leigos, como reis ou oficiais das cortes régias, não tenham também se comprometido a edificar tais restrições, mas foram os prelados diocesanos os principais responsáveis por criar instrumentos pedagógicos para instituí-las, nesse período, em diferentes cantos desses reinos.

Referências bibliográficas

  • BOOSCO BOOSCO deleitoso. Edição de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950.
  • EIXIMENIS, Francesc. Carro de las donas. Valladolid, 1542. Estudo e edição de Carmen Clausell Nácher. Madri: Fundación Universitaria Española/Universidad Pontificia de Salamanca, 2007. 2. v.
  • EVANGELHOS EVANGELHOS e epístolas com suas exposições em romance. Introdução, edição e lematização de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2008.
  • FLORENCIA, Antonino de. La summa de confession llamada defecerunt. Salamanca: Gysser, 1505.
  • HORTO HORTO do esposo. Edição de Irene Freire Nunes. Lisboa: Colibri, 2007.
  • PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edição crítica, introdução e notas de Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002.
  • SÁNCHEZ DE VERCIAL, Clemente. Burgos: {Fadrique de Basilea?}, 1475-1476.
  • SYNODICON hispanum. Astorga, León y Oviedo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1984. v. III.
  • SYNODICON hispanum. Avila y Segovia. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1993. v. VI.
  • SYNODICON, hispanum. Cuenca y Toledo. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 2011. v. X.
  • SYNODICON hispanum. Galicia. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos , 1981. v. I.
  • SYNODICON hispanum. Portugal. Edição crítica dirigida por Antonio García y García. Madri: Católica, 1982. v. II.
  • TRATADO de confissom. (Chaves, 8 ago. 1489.) Fac-símile do exemplar único pertencente ao dr. Miguel Gentil Quina. Leitura diplomática e estudo bibliográfico de José V. de Pina Martins. Lisboa: Monumenta Typographica. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1973.
  • VENTURA, Margarida Garcez. As “visitações gerais” de d. Jorge da Costa: notícia e breve análise. In: Estudos em homenagem ao professor doutor José Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. v. III, p. 201-225.
  • VIRGEU de consolaçon. Introdução, gramática, notas e glossário de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959.
  • PEREIRA, Isaías da Rosa VISITAÇÃO da igreja de Santa Maria do Castelo de Torres Vedras pelo bispo d. Vasco Martins (1342-1344). In: PEREIRA, Isaías da Rosa. Visitas paroquiais dos séculos XIV, XV e XVI. Lusitania Sacra, Lisboa, 2. série, t. IV, p. 311-344, 1992.
  • BALAGUER, Anna. La media dobla de la banda de Juan II de Castilla (1406-1454). Nummus: Boletim da Sociedade Portuguesa de Numismática, série II, v. 12-13, p. 79-82, 1989-1990.
  • BAUBETA, Patricia Anne Odber. Igreja, pecado e sátira social na Idade Média portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995.
  • CALVO GÓMEZ, José Antonio. Contribución al estudio de la reforma católica en Castilla: el Sínodo de Ávila de 1481. Studia Historica: Historia Medieval, n. 22, p. 189-232, 2004.
  • CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des péchés capitaux au Moyen Âge. Paris: Aubier, 2003.
  • CASAGRANDE, Carla. Les péchés de la langue. Paris: Éditions du Cerf, 2007.
  • CHIFFOLEAU, Jacques. Avouer l’inavouable: l’aveu et la procédure inquisitoire à la fin du Moyen Âge. In: DULONG, Renaud (Org.). L’aveu: histoire, sociologie, philosophie. Paris: PUF, 2001.
  • CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint-Augustin et les actes de parole. Paris: PUF , 2002.
  • CHRÉTIEN, Jean-Louis. Symbolique du corps: la tradition chrétienne du Cantique des cantiques. Paris: PUF , 2005.
  • DE AZCONA, Tarsicio. La elección y reforma del episcopado español en tiempo de los reyes catolicos. Madri: Consejo de Investigaciones Cientificas, 1960.
  • DUARTE, Luís Miguel. “A boca do diabo”. A blasfémia e o direito penal da baixa Idade Média. Lusitania Sacra, 2. série, v. 4, p. 61-82, 1992.
  • ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. I.
  • FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
  • FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes , 2014.
  • GALOT, Jean. La nature du caractère sacramentel: étude de théologie médiévale. Paris: Desclée de Brouwer, 1958.
  • GOMES, Saul António. A religião dos clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Org.). História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. v. 1.
  • HÄRING, Bernard. La conversión. In: DELHAYE, Philippe et al. Pastorale du péché. Tournai: Desclée, 1961.
  • MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. Dicionário etimológico do português arcaico. Salvador: EDUFBA, 2013.
  • MACMULLEN, Ramsay. Christianisme et paganisme du IVe au VIIIe siècle. Paris: Les Belles Lettres, 1998.
  • MARTÍNEZ MEDINA, Francisco Javier; BIERSACK, Martín. Fray Hernando de Talavera, primer arzobispo de Granada: hombre de iglesia, estado y letras. Granada: Universidad de Granada, 2011.
  • MAZEL, Florian. L’évêque et le territoire: l’invention médiévale de l’espace (Ve-XIIIe siècle). Paris: Éditions du Seuil, 2016.
  • PRODI, Paolo. Uma história da justiça: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes , 2005.
  • SCHMITT, Jean-Claude. Le corps, les rites, les rêves, le temps: essais d’anthropologie médiévale. Paris: Gallimard, 2001.
  • TAYLOR, Charles. Imaginários sociais modernos. Lisboa: Texto & Gráfica, 2010.
  • TORRES QUESADA, Gregorio José. Caminos de destierro: la expulsión de los moriscos del reino de Granada en 1570 a su paso por tierras de Jaén. In: II CONGRESO VIRTUAL SOBRE HISTORIA DE LAS VIAS DE COMUNICACIÓN. Jaén, 15-30 set. 2014. p. 245-260.
  • TOUREILLE, Valérie. Crime et châtiment au Moyen Âge (Ve-XVe siècle). Paris: Éditons du Seuil, 2013.
  • O autor é bolsista Capes/Fapesp de pós-doutorado (Processo 2014/13125-9). Este trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Temático “Escritos sobre os novos mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa”, financiado pela Fapesp.
  • 2
    Esta obra foi editada em castelhano, pelo padre Cremona, no ano de 1542, com o título Carro de las Donas.
  • 3
    Tal proposta insere-se em um projeto maior. No momento, para analisar, de maneira mais profunda, essa incursão pedagógica, preparamos uma edição modernizada de alguns opúsculos pastorais portugueses que foram elaborados no século XV e início do XVI.
  • 4
    As constituições sinodais eram as regras e leis prescritas pelos bispos durante os sínodos. Já as cartas de visitação eram os conselhos dados durante a inspeção de uma dada igreja. Para mais informações, ver Mazel (2016, p. 322-327).
  • 5
    O clérigo castelhano Martín Pérez na obra Livro das confissões (Livro de las confesiones), enumera dez pecados da língua, a saber: mentir, perjurar, contender, torpe falar, elogiar, blasfemar, maldizer, doestar, lisonjear e detrair (Pérez, 2002, p. 198-203).
  • 6
    Já no que se refere ao surgimento, no Ocidente, de uma instrução direcionada especificamente para os valores cortesãos, ver Taylor (2010, p. 4-46).
  • 7
    Para uma visão geral da política eclesiástica concernente à vida, ver Gomes apud Azevedo (2000, v. 1).
  • 8
    Sobre as visitas dos prelados às freguesias de seu domínio, ver Baubeta (1995, p. 63-119).
  • 9
    O conjunto de membros do clero que recebia a ração.
  • 10
    Para ser mais exato, o bispo visou a acabar com o que era conhecido, na época, por “caridades” de comida, isto é, a prática de se oferecer, dentro das igrejas, porções especialmente com pão e queijo. Era, segundo ele, uma prática pecaminosa, pois declara que “a verdadeira caridade” é feita a serviço de Cristo, a fim de amparar os pobres (Synodicon, 1993, v. VI, p. 141).
  • 11
    O título original é Libro de las confesiones. Essa obra foi terminada no ano de 1316 e compilada, em português, pelo mosteiro de Alcobaça em 1399.
  • 12
    No que concerne ao potencial da fala no jogo da confissão, ver Chiffoleau (2001).
  • 13
    O documento usa o verbo fazer que foi substituído, na passagem, por agir com a finalidade de deixar o sentido da frase mais claro.
  • 14
    Doblas de la banda era uma unidade monetária (Balaguer, 1989-1990).
  • 15
    Na versão castelhana, o título é Vergel de consolaçion.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2016
  • Aceito
    16 Set 2016
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com