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Os perigos da gula nos tratados castelhanos e portugueses (séculos XIV e XV)

The dangers of gluttony in Castilian and Portuguese treaties (14th and 15th centuries)

Resumo:

A proposta do texto é analisar as prescrições dadas aos cristãos sobre os perigos da gula nos escritos, redigidos em latim ou em vernáculo, que circularam em Castela e em Portugal nos séculos XIV e XV. Nesse sentido, o estudo examina como foram divulgados aos cristãos castelhanos e portugueses, por meio de críticas e ensinamentos presentes, sobretudo, em tratados de confissão e moral, os meios mais adequados para prepararem seus alimentos ou desempenharem o ofício de cozinheiro, sem prejudicar a saúde corporal e a salvação da alma. O objetivo é compreender como esses escritos acompanharam as transformações nos modos de comer e propuseram meios para que, dessa necessidade, não sobreviessem malefícios ao corpo e à alma.

Palavras-chave:
Castela; Portugal; Gula; Comida; Cozinheiro

Abstract:

The purpose of the text is to analyze the prescriptions given to Christians about the dangers of gluttony in the writings, written in Latin or in the vernacular, which circulated in Castile and Portugal in the 14th and 15th centuries. In this sense, the study examines how the most appropriate means to prepare their food or perform the job of a cook were disclosed to Castilian and Portuguese Christians, through criticism and teachings present above all in confession and moral treaties, without harming bodily health and the salvation of the soul. The objective is to understand how these writings accompanied the transformations in the ways of eating and proposed ways to avoid harm to the body and soul from this necessity.

Keywords:
Castile; Portugal; Gluttony; Food; Cook

A primeira batalha do cavaleiro cristão

No difundido Libro de las confesiones (c.1316),1 1 Todas as citações do castelhano e português medieval foram traduzidas e/ou atualizadas livremente, constando em nota as transcrições do original. Martín Pérez (2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 334) explicava que, entre os motivos para o cristão evitar o excesso no comer e beber, estava o fato de a gula abrir caminho para outros vícios, destruindo as virtudes e os bens adquiridos.2 2 “La quinta razon porque el mucho comer es vedado, [es] porque la garganteria suele abrir carrera por do entren los otros pecados, e destruye las virtudes e los bienes de otro tienpo ganados.” A postura de Martín Pérez não era nova nem deixou de chamar a atenção para outros tratadistas do período. O franciscano Francesc Eiximenis (1330-1409), por exemplo, em sua Vida de Jesucrist,3 3 Cita-se aqui a partir da versão traduzida para castelhano, emendada pelo arcebispo de Granada, dom frei Hernando de Talavera (1428-1507), e impressa em 1496. recordava, sob a autoridade de são Máximo (?-662), que a “primeira batalha” a ser combatida por aquele que desejava servir a Deus era contra o referido pecado, pois, sem vencê-lo, o fiel não alcançava os dons divinos, nem poderia participar da “cavalaria da cristandade” (Eiximenis, 1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 159v).4 4 “E por ende dize este santo dotor maximo: no pienses christiano que aquel a quien no plaze el ayuno e la aspereza de la carne: que aya en sy virtud alguna ni que sea seruidor de dios: ca la primera batalla que rescibe el que a dios se allega a seruir: es de la gula. E el que no vence a esta: debalde se trabaja por alcnaçar otra virtud o otro qualquier don diuinal. Ca este es el primer vencimiento en la batalla espiritual. E por ende començando nuestro saluador la vida del christiano: luego se fue al desyerto a ayunar: por nos dar a entender que sy queriamos aprouechar en la caualleria de la cristiandad e bien acabar: que nos conuenia ayunar todo el tiempo de nuestra vida.” Perspectivas similares também se encontram em: Virgeu... (1959, p. 17); Pais (1996, v. 6, p. 173); Ludolfo de Saxônia (2010-2012, v. 1, p. 264). Em termos similares, o bispo de Silves, dom frei Álvaro Pais (c.1275-1352), enfatizava que a sobriedade sustentava “o primeiro embate na guerra espiritual”, sendo inútil confrontar os outros vícios sem antes refrear a gula (PaisPAIS, Álvaro. Espelho dos reis. Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1955-1963, 2v., 1963, v. 2, p. 15). Em todas as passagens mencionadas acima, o pecado da gula era visto como capaz de perturbar os corpos, de possibilitar a entrada dos outros pecados e de afastar os homens das orações e das práticas virtuosas. A gula comprometia, desse modo, os primeiros passos na “batalha espiritual”, que envolvia, ainda, o confronto à vanglória e à “avareza “mesclada com amor de honra e de soberba” (Eiximenis, 1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 159v, 161-162v).5 5 “El primero era pecado de gula. Ca se mouia a querer fazer tan grand cosa: por satisfazer al vientre. El .ij. peccado seria inpaciencia e desconfiança de la bondad de dios. Ca daua a entender que nuestro sennor dios le dexaua morir de fanbre auiendo ayunado tantos dias por su amor. El .iij. peccado seria soberuia”; “Pues no satisfecho el diablo de la dubda que tenia: si jesuchristo era: o no era natural fijo de dios. y teniendose por flaco: porque no le fizo caer en el lazo del peccado de gula que le auia armado: acordo de le temptar de vanagloria”; “[...] e acordaron que lucifer lo tentasse de la tercera temptacion. Conuiene saber de auaricia mezclada con amor de honrra e de soberuia”.

Prescrições como essas propaladas pelos tratadistas ibéricos entre os séculos XIV e XV partiam da consideração de que o cuidado com o corpo, com vistas a assegurar a salvação da alma, passava pelo controle dos apetites. Na perspectiva desses letrados, tal vigília em relação aos deleites corporais encontrava-se cada vez mais afrouxada em um mundo em que os banquetes, o cerimonial do comer, o aprimoramento dos pratos e a busca por alimentos exóticos passavam a ser cada vez mais frequentes entre os senhores leigos e eclesiásticos. Não era fortuito que o bacharel Afonso de la Torre (1410-1460TORRE, Alfonso de la. Visión deleytable. Edición crítica y estudio de Jorge García López. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. v. 1.) alertasse, na sua muito apreciada Visión deleytable, que era “vindo o reino dos cozinheiros ao mundo”, e que a memória sozinha era já incapaz de gravar os nomes dos pratos em decorrência da “diversidade de vinhos e potagens” (Torre, 1991TORRE, Alfonso de la. Visión deleytable. Edición crítica y estudio de Jorge García López. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. v. 1., v. 1, p. 306).6 6 “De lo que dizes de la otra gente, sabed que es venido el reyno de los cozineros al mundo, en tanto que se alaban muchos de aver comido tal e tal cosa en tal manera guisada. E muchos dellos tanto comen e beven que se les sygue acortamiento de la vida [...]. E tantos nombres ay de diversydad de vinos e de potajes que no basta memoria para retenerlos [...]”. Diante dessas mudanças, esses escritos visavam reforçar o exemplo de Cristo que, segundo Eiximenis (1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 159v), após se batizar, foi jejuar no deserto e venceu aí a primeira tentação do diabo, indicando que a vida cristã era uma cruz “de penitência e de pena contínua”, marcada pelos jejuns frequentes e pelo rigor da carne.7 7 “Ca la vida christiana: cruz es de penitencia e de pena continua”.

Para que o cristão compreendesse os obstáculos que a gula impunha à salvação da alma e à sanidade do corpo, muitos desses tratadistas fizeram uso de determinadas figuras associadas aos excessos do comer e do beber. Recordar as boas e más condutas das pessoas diante da comida tinha por finalidade instruir o cristão quanto aos resultados das práticas salutares e prejudiciais. Em relação à importância da gula para abrir caminho aos demais vícios carnais, a figura de Nebuzaradã, comandante das forças de Nabucodonosor e responsável por derrubar os muros de Jerusalém, foi uma das mais recorrentes. Apontado como “príncipe dos cozinheiros” por uns (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 334), e “chefe dos cozinheiros” (principem ou princeps coquorum) por outros (Pais, 1963PAIS, Álvaro. Espelho dos reis. Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1955-1963, 2v., v. 2, p. 17; Pais, 1998, v. 8, p. 61), Nebuzaradã representava, em sentido metafórico, a gula, o vício que derrubava as “virtudes da alma” (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 334)8 8 “onde deste pecado fue primeramente Jesuchristo tentado e vençio, e dize la escriptura del libro de los Reyes, que el prinçipe de los cocineros de Babilonia derribo los muros de Jerusalem, que son las virtudes del alma”. e os “edifícios das virtudes” (Pais, 1963PAIS, Álvaro. Espelho dos reis. Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1955-1963, 2v., v. 2, p. 17; Pais, 1994, v. 4, p. 107; Pais, 1998PAIS, Álvaro. Estado e pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae). Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988-1998. 8v., v. 8, p. 61), permitindo a entrada de outros pecados, como a luxúria (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 334). Nesse sentido, a queda de Jerusalém deu-se, entre outros motivos, pela gula. Como advertia o arcebispo sevilhano dom Pedro Gómez Álvarez de Albornoz (1401-1500PEDRO. O livro da virtuosa bemfeitoria do infante dom Pedro. In: Obras dos príncipes de Avis. Introdução e revisão de M. Lopes Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1981. p. 525-763., f. 78v), em seu Libro de la justicia espiritual ou Declaración de los mandamientos de la ley de Dios, escrito no final do século XIV,9 9 Sobre o documento, ver Gómez Redondo (1999, p. 1875-1897). “Jerusalém foi destruída porque, com o pecado da soberba, passou a medida do que devia comer”.10 10 “Jerusalen fue destroyda porque con el pecado de la soberbuja paso la medida de lo que deuia comer.” O fim daqueles que, como Jerusalém, viam os muros da virtude serem derrubados pela gula, era igualmente indicado por Sodoma, onde havia fartura de comida e pão (Virgeu..., 1959VIRGEU de consolaçon. Edição de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959., p. 17; Gómez Álvarez de Albornoz, 1401-1500GÓMEZ ÁLVAREZ DE ALBORNOZ, Pedro. Libro de la justiçia de la vida espiritual. [S. l: s. n, 1401-1500]. Biblioteca Nacional de España, Madrid. Manuscrito 9299., f. 78v; Pais, 1998PAIS, Álvaro. Estado e pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae). Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988-1998. 8v., v. 8, p. 63). Citando Isidoro de Sevilha (c.556-636), a obra Virgeu de consolaçon, escrito que reunia diversas sentenças das autoridades e que teve larga circulação nos reinos ibéricos, esclarecia que os homens pecadores de Sodoma “pecaram por soberba, fartura de pão e por gangantuíce, porque comeram mais que dev[i]am, caíram em pecados de soberba, e portanto veio sobre eles fogo do céu que os queimou”. Não guardaram, portanto, mesura e temperança no comer (Virgeu..., 1959VIRGEU de consolaçon. Edição de Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1959., p. 17).11 11 “Diz sancto Ysidoro que os hom˜ees peccadores de Sodoma peccarõ per soberva e fartura de pan e per gargantuice, porque comerom mais que deverõ, cayrõ en peccados de soberva, e portanto veo sobre elles fogo do ceeo que os queymou, porque nõ teverõ mesura ne tempera na vianda que lhes Deos enviou.” As terríveis consequências daqueles que excederam no comer e no beber eram igualmente atestadas por outras figuras bíblicas, como, para citar algumas, a de Jonatas (1 Samuel 14, 25-52), que descumpriu o mandamento do pai e caiu em desgraça; a de Noé (Gênesis 9, 21-23), com as suas partes vergonhosas expostas ao embriagar-se de vinho; a de Ló (Gênesis 19, 32-35), embriagado pelas filhas para que se deitasse com elas; e a de Esaú, que vendeu sua primogenitura por um prato de lentilhas (Gómez Álvarez de Albornoz, 1401-1500GÓMEZ ÁLVAREZ DE ALBORNOZ, Pedro. Libro de la justiçia de la vida espiritual. [S. l: s. n, 1401-1500]. Biblioteca Nacional de España, Madrid. Manuscrito 9299., f. 78v-79; Talavera, 1401-1500, f. 71). Sem se esquecer, evidentemente, da falta de Adão e Eva, da qual se falará mais adiante.

Entre as personagens que pecaram na gula, a do rico avarento (Lucas 16, 19-31) foi recordada nos mais diversos escritos da época,12 12 A figura é recorrente nos tratados de Martín Pérez, Álvaro Pais, Francesc Eiximenis, Ludolfo de Saxônia, Hernando de Talavera, entre outros. pois representava a proximidade entre o prazer corporal mundano e a danação das almas. De acordo com o texto bíblico e com os diversos comentários que os tratadistas foram aditando à passagem, o rico comia e vestia-se diariamente de maneira ostensiva, ignorando a Lázaro, pobre necessitado e faminto que vivia às suas portas, coberto de chagas, e que ansiava pelas migalhas que caíam da mesa. A danação do rico, lançado ao inferno, e a ascensão do mendigo aos céus, para junto de Abraão, confirmavam, assim, o fim daqueles que se deleitavam em excesso e o dos que padeciam privações. Essa história deveria, segundo Eiximenis, “espantar aos ricos avarentos e dissolutos” e mostrar o triste fim dos “deleites e excessos” que, aparentemente, seriam “naturais e de pouca culpa”. No fim, assevera Eiximenis:

Digno galardão, diz são Basílio, que foi dado a este rico mal-aventurado: em lugar do deleite das viandas, a língua queimada e seca. Em lugar dos beberes, desejo e grande sede de uma gota de água. Em lugar da música, choro e gemido. Em lugar dos paramentos da sala e do deleite que teve em ver e acatar o que não convinha nem era necessário, aborrecível escuridão. Em lugar da soberba e da vanglória e jactância, verme que lhe roía para sempre e sem cessar [.] Muita compaixão e piedade devem os ricos ter dos pobres, e os sãos dos enfermos e chagados, porque não a teve de Lázaro este rico mal-aventurado foi para sempre no inferno desconsolado, e sem que ninguém lhe fizesse nem pudesse fazer piedade de lhe consolar, nem com uma gota de água (Eiximenis, 1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 352v-353).13 13 “Mucho deue espantar a los ricos auarientos e dissolutos: esta hystoria: pues van los tales a parar e a estar para siempre en los tormentos del infierno. Mucho se deuen los ombres guardar de vestir e de comer demasiado: e de buscar en estas cosas mucho deleyte: pues tan grauemente son atormentados los que en ello exceden. E si estos deleytes y excessos que parecen como naturales e de poca culpa: tan grauemente son penados en el infierno: vean los que se dan a mayores deleytes e menos necessarios: que sera dellos? Digno gualardon dize sant basilio que fue dado a este rico malauenturado En lugar del deleyte de las viandas: la lengua quemada e seca En lugar de los beueres: desseo e grand sed de vna gota de agua En lugar de la musica: lloro e gemido En lugar de los paramentos de la sala e del deleyte que ouo en ver e acatar lo que no conuenia ni era necessario: aborrecible escuridad. En lugar de la soberuia e de la vanagloria e jactancia: gusano que le roya para sienpre e sin cessar? Mucha conpassion e piedad deuen los ricos auer de los pobres: e los sanos de los enfermos e plagados: pues porque no la ouo de lazaro: este rico malauenturado: fue para siempre en el infierno desconsolado e sin que ninguno le hiziesse ni podiesse hazer piedad de le consolar ni con vna gota de agua.”

O contraste entre a vida farta e a vida faminta - com grande prejuízo para a saúde corporal e espiritual - era tal que, de acordo com dom Pedro Gómez Álvarez de Albornoz (1401-1500PEDRO. O livro da virtuosa bemfeitoria do infante dom Pedro. In: Obras dos príncipes de Avis. Introdução e revisão de M. Lopes Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1981. p. 525-763., f. 78), era preferível padecer fome, pois: “a fome em poucos dias mata o homem e livra-o desta vida penal, mas o excesso das viandas e muito comer consome e faz apodrecer o corpo humano, e atormenta-o com longa enfermidade e, ao fim, consome-o com cruel morte”.14 14 “que peor es mucho comer que la fanbre/ porque la fanbre en pocos dias mata el omne e librale desta vida penal mas el exçesso de las viandas e mucho comer consume e faze podreçer el cuerpo humano e atormentale con luenga enfermedat e a la postre consumele con cruel muerte”.

A ênfase nos danos que a alimentação desregrada poderia acarretar ao cristão explicava-se pelo fato de a boca, para alguns dos letrados dos séculos XIV e XV, ser apontada como a causa da entrada do pecado no mundo (López de Salamanca, 2004LÓPEZ DE SALAMANCA, Juan. Evangelios moralizados. Ed. Arturo Jiménez Moreno. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2004., p. 279), de ter dado, por meio de Eva, “ocasião de todos os males” (Gómez Álvarez de Albornoz, 1401-1500PEDRO. O livro da virtuosa bemfeitoria do infante dom Pedro. In: Obras dos príncipes de Avis. Introdução e revisão de M. Lopes Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1981. p. 525-763., f. 79), bem como ser a razão do desterro de Adão do Paraíso (Virgeu..., 1959PEDRO. O livro da virtuosa bemfeitoria do infante dom Pedro. In: Obras dos príncipes de Avis. Introdução e revisão de M. Lopes Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1981. p. 525-763., p. 17-18; Ortiz, 2001ORTIZ, Diogo. O “Cathecismo Pequeno” de D. Diogo Ortiz. Estudo literário e edição crítica de Elsa Maria Branco da Silva. Lisboa: Colibri, 2001., p. 241; Ludolfo de Saxônia, 2010-2012LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Christi. Edição de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2010-2012. v. 1., v. 1, p. 251). A primazia da gula e a sua concepção como porta de entrada dos outros vícios davam-se, ainda, na perspectiva desses letrados, por ter sido contra este pecado “a proibição e o primeiro mandamento que Deus fez” (Gómez Álvarez de Albornoz, 1401-1500GÓMEZ ÁLVAREZ DE ALBORNOZ, Pedro. Libro de la justiçia de la vida espiritual. [S. l: s. n, 1401-1500]. Biblioteca Nacional de España, Madrid. Manuscrito 9299., f. 78v),15 15 “Contra aqueste pecado fue la proybiçion e primero mandamjento que dios fizo.” e de ter sido a gula a primeira tentação de Cristo no deserto (Eiximenis, 1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 161; Ludolfo de Saxônia, 2010-2012LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Christi. Edição de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2010-2012. v. 1., v. 1, p. 249-256), a qual, como antes já se referiu, se seguiram outras vinculadas aos demais pecados.

À transgressão dos primeiros pais, que desrespeitaram o preceito divino e comeram o fruto proibido, foram acrescidas muitas outras faltas ao pecado da gula. Os impactos dessas novas inclinações dos cristãos ibéricos aos alimentos não passaram, pois, desapercebidos dos eclesiásticos, em particular dos confessores, habituados ao escrutínio de todas as ações do penitente, para propor a devida satisfação ao pecado. No início do século XIV, Martín Pérez (2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 193-194), no volumoso Libro de las confesiones, enumerava oito circunstâncias em que se pecava na gargantuíce (gargantería) - termo corrente na época para falar da gula -; em meados do século XV, entretanto, um compêndio à sua obra listava nada menos que 25 perguntas a serem feitas ao penitente sobre o referido pecado (Confesionario, 2012CONFESIONARIO. Compendio del “Libro de las confesiones” de Martín Pérez. Edición y presentación de Hélène Thieulin-Pardo. Paris: Séminaire d’Études Médiévales Hispaniques de Paris-Sorbonne, 2012., p. 135). Esse acréscimo verificou-se igualmente em outras listagens do pecado, conquanto, vale ressaltar, alguns desses textos mantivessem números mais baixos ou oscilantes. No catecismo do bispo dom Pedro de Cuéllar (?-1350), resultante do sínodo segoviano de 1325, as questões sobre a gula resumiam-se a uma dezena, girando elas em torno dos excessos e descumprimentos aos jejuns, e sem quaisquer menções aos manjares delicados ou novos (Libro, 1993LIBRO sinodal, constituciones y declaraciones de Pedro de Cuéllar, 8 Marzo 1325. In: GARCÍA Y GARCÍA, Antonio (dir.). Synodicon Hispanum. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993. v. 6. p. 260-380., p. 296-297).

No final do século XIV, o arcebispo sevilhano fez uma extensa consideração sobre a gula, abrangendo 15 ramos da gula, que iam desde comer antes da hora, passavam pelas faltas nos jejuns e abrangiam até a míngua de comer pouco - outra falta que prejudicava o cumprimento das obrigações (Gómez Álvarez de Albornoz, 1401-1500GÓMEZ ÁLVAREZ DE ALBORNOZ, Pedro. Libro de la justiçia de la vida espiritual. [S. l: s. n, 1401-1500]. Biblioteca Nacional de España, Madrid. Manuscrito 9299., f. 79-81). Décadas mais tarde, no primeiro quartel do século XV, Clemente Sánchez de Vercial (1370-1426), em seu Sacramental, elencava cinco ocasiões de pecado da gula (Sánchez de Vercial, 2010SÁNCHEZ DE VERCIAL, Clemente. Sacramental [Chaves, 1488]. Ed. semidiplomática, introd., lematização e notas de José Barbosa Machado. [Braga]: Vercial, 2010., p. 84-86), mesma quantidade que os anônimos Avisos de confesión para religiosos (Avisos..., 1401-1500AVISOS de confesión para religiosos. [S. l.: s. n., 1401-1500]. Real Biblioteca del Monasterio de el Escorial, El Escorial. Manuscrito &-IV-32., f. 20-20v) e o Catecismo pequeno, do bispo de Ceuta, dom Diogo Ortiz de Villegas (c.1454-1519ORTIZ, Diogo. O “Cathecismo Pequeno” de D. Diogo Ortiz. Estudo literário e edição crítica de Elsa Maria Branco da Silva. Lisboa: Colibri, 2001.) (Ortiz, 2001ORTIZ, Diogo. O “Cathecismo Pequeno” de D. Diogo Ortiz. Estudo literário e edição crítica de Elsa Maria Branco da Silva. Lisboa: Colibri, 2001., p. 241). Algumas décadas mais tarde, em outro texto que gozou de grande apreço pelos castelhanos, o Confesional, do bispo de Ávila, dom Afonso de Madrigal (c.1400-1454), eram listadas 19 maneiras de pecar na gula (Fernández de Madrigal, 1498FERNÁNDEZ DE MADRIGAL, Alfonso. Confesional. [Salamanca: Tip. Nebrija], 1498., f. 15v-17). Já no anônimo Tratado de confissão (2014TRATADO de confissão. Edição semidiplomática, estudo histórico e informativo-linguístico de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2014. v. 1., p. 20), impresso na vila de Chaves, em 1489, e no anônimo Tratado de confesión para confesar seglares (post. 1456TRATADO DE CONFESIÓN para confesar seglares. In: Tratados religiosos. [S. l.: s. n., post. 1456]. Biblioteca Nacional de España. MSS. 8744., f. 244-244v), contabilizavam-se 12 faltas na gula, e na Breve forma de confesar, de dom frei Hernando de Talavera (1911TALAVERA, Hernando de. Breve forma de confesar reduciendo todos los pecados mortales y veniales a los diez mandamientos. In: TALAVERA, Hernando de. Escritores místicos españoles. Madrid: Bailly-Bailliére, 1911. p. 3-31., p. 28), contavam-se nove maneiras de pecar na gula.

Ao lado de circunstâncias mais corriqueiras da gula,16 16 Entre elas, estão comer antes da hora; desrespeitar os jejuns e as abstinências; repetir a refeição durante o dia; e comer mais que o necessário para sustentar o corpo. aquelas relacionadas aos preparos - os “estudos” e os “aparelhamentos” - e à participação nos banquetes passaram a figurar cada vez mais nesses escritos a partir do século XIV. Se Martín Pérez sugeria ao confessor indagar o penitente “se comeu manjares de grande custo, por onde poderiam passar alguns pobres”, ou “se comeu manjares muito adubados e muito delicados” (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 193-194),17 17 “Si comio manjares de grand costa por do podrian pasar algunos pobres, ca, salvo si lo non podria escusar por enfermedat o porque non tenia al que comer, pecado es. Si comio manjares mucho adobados e mucho delicados, ca pecado es, salvo si le fazian mester por la conplision del cuerpo, que es tal que los non puede escusar.” o compêndio castelhano quatrocentista aditava uma série de outras questões relativas aos “manjares muito delicados e vinhos preciosos mais de quanto basta sua faculdade”, ao pedido para temperarem os “manjares com muito estudo”, e à “demanda para comer coisas novas e não acostumadas” (Confesionario, 2012CONFESIONARIO. Compendio del “Libro de las confesiones” de Martín Pérez. Edición y presentación de Hélène Thieulin-Pardo. Paris: Séminaire d’Études Médiévales Hispaniques de Paris-Sorbonne, 2012., p. 135).18 18 “Quarto si procura manjares muy delicados e binos preçiosos mas de quando abasta su facultad. Quinto si manda que le adoben los manjares con mucho estudio”; “Nono si demanda para comer cosas nuevas e non acostunbradas.”

Tais acréscimos são muito expressivos da preocupação com as novidades que surgem a respeito dos manjares e dos vinhos, bem como do estreitamento que se realiza entre os gastos à mesa e as rendas da casa e o papel cada vez mais importante do físico. Além disso, esse aumento nas circunstâncias em que se pecava nos excessos ou mínguas do comer e do beber foi motivado, em larga medida, pela observação desses letrados quanto ao afastamento da simplicidade cristã. Isso se deu com a introdução de novos condimentos e a difusão de novas técnicas de preparo dos pratos - mudanças que foram acompanhadas pelo desenvolvimento do cerimonial à mesa e pelo apreço crescente por parte de eclesiásticos e leigos por pratos mais refinados.

A cozinha cristã e os cozinheiros

O ato de cozinhar não implicava nenhum pecado, salvo em certas ocasiões, como preparar carne nos dias de abstinência ou pratos elaborados nos domingos (Pérez, 2002PÉREZ, Martín. Libro de las confesiones: una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica, introducción y notas por Antonio García y García, Bernardo Alonso Rodríguez e Francisco Cantelar Rodríguez. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002., p. 173; Tratado de confissão, 2014, p. 24), por exemplo, pois contrariavam preceitos divinos e demonstravam excessivo apreço com a quantidade e a qualidade dos alimentos. Nas ocasiões em que se elaboravam pratos mais complexos, sobretudo nos dias santos, o desejo por adquiri-los resultava em um gasto excessivo de tempo com deleites terrenos, subtraindo, desse modo, o tempo que deveria ser dedicado a Deus. Nesse sentido, o vício independia de ser a comida cara. Para o patriarca Francesc Eiximenis (1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 303) e para o arcebispo de Granada dom frei Hernando de Talavera, uma das maneiras de pecar na gula não era exceder na quantidade ou nos custos das viandas, mas buscar aquelas muito preparadas, inclusive, se elas fossem “comuns e depreciadas” (Talavera, 1401-1500TALAVERA, Hernando de. Tractado prouechoso que demuestra commo en el uestir y calçar comunmente se cometen muchos peccados. y aun tanbien en el comer y beuer […]. [S. l.: s. n., 1401-1500]. Real Biblioteca del Monasterio de El Escorial. Manuscrito b-IV-26, f. 31r-95r., f. 60v).19 19 “Lo tercero acaeçe peccar y exceder; no en quantidad nj en ser costosas las uiandas; mas solamente en que sean adobadas y muy guisadas/ aunque de suyo fuessen comunes y despreciadas. y en esta manera peccauan muchos de los Judios en el desierto quando nuestro sennor les daua aquel celestial y miragloso mantenimiento. ca no se contentauan de lo guisar simplemente; mas catando maneras commo meJor les supiesse.” Já em finais do século XIV, Gómez Álvarez de Albornoz (1401-1500GÓMEZ ÁLVAREZ DE ALBORNOZ, Pedro. Libro de la justiçia de la vida espiritual. [S. l: s. n, 1401-1500]. Biblioteca Nacional de España, Madrid. Manuscrito 9299., f. 80v) esclarecia que um dos ramos da gula era o “cuidado, estudo e solitudine de aparelhar e adubar curiosamente as viandas”, fazendo com que se aborrecessem quando não recebiam os pratos elaborados como eles queriam, e demonstrando a “desordenação das suas vontades”.20 20 “ otro rramo es cuydado e estudio e solitudjne de apareJar e adobar curiosamente las viandas [...] en que toman muchos deleytes a las veses grandes enoJos sy non les dan bien adobados asy commo ellos querrian E en esto demuestran la desordenaçion de las sus voluntades [...]”. Para os religiosos, conforme advertia um manual castelhano anônimo do século XV, “desejar comer manjares delicados ou comê-los só pelo sabor deles, como perdizes, capões, faisões”, era ainda mais grave. Afinal, somente em caso de fraqueza ou enfermidade, ou de vez em quando por “pitança ou recreação”, ou pela “nobreza da linhagem”, como a dos cavaleiros, ou quando fossem convidados, os religiosos poderiam comê-los sem pecado (Avisos..., 1401-1500AVISOS de confesión para religiosos. [S. l.: s. n., 1401-1500]. Real Biblioteca del Monasterio de el Escorial, El Escorial. Manuscrito &-IV-32., f. 20v).21 21 “La ija manera es desear comer manJares delicados o comerlos por el solo sabor dellos. como perdizes capones faisanes etcetera saluo por enfermedad o flaqueza o de quando en quando como en pitança o recreation del conuento. o por nobleza de linaJe como en los caualleros o por ser conbidado de otras personas onde dize sant agustin puede ser que el sabio use de manJar muy precioso sy alguna culpa de cobdicia o tragonia y el nescio mucho errar en la vileza del manJar por la tragonia o deseo della.”

A julgar pelas críticas frequentes desses tratadistas, os excessos referentes aos pratos muito elaborados não se restringiam às circunstâncias referidas acima, mas se tornavam correntes entre os cristãos, principalmente entre os ricos e os poderosos que contavam com oficiais para preparar-lhes a comida e a mesa. Isso implicava a criação de novos pratos ou a preparação excessiva de outros, o que fazia com que os cozinheiros participassem desses pecados e fossem duramente criticados pelos letrados. Nas traduções que dom Alonso de Cartagena (1386-1456) (Cicerón, 2004CICERÓN, Marco Tulio. De officiis. Trad. Alonso de Cartagena. Edición de José Luis Villacañas Berlanga Múrcia: Biblioteca Saavedra Fajardo de Pensamiento Político Hispano, 2004., p. 81) e o infante dom Pedro (1392-1449PEDRO. O livro da virtuosa bemfeitoria do infante dom Pedro. In: Obras dos príncipes de Avis. Introdução e revisão de M. Lopes Almeida. Porto: Lello & Irmão, 1981. p. 525-763.) (1981, p. 88) realizaram do Livro dos ofícios, de CíceroCICERÓN, Marco Tulio. De officiis. Trad. Alonso de Cartagena. Edición de José Luis Villacañas Berlanga Múrcia: Biblioteca Saavedra Fajardo de Pensamiento Político Hispano, 2004.(106 a. C.-30 a. C.), os ofícios responsáveis pelo comer e beber eram vistos como sujos e torpes. Pouco apreciados eram, ainda, na difundida Visión deleytable do bacharel castelhano Afonso de la Torre (1991TORRE, Alfonso de la. Visión deleytable. Edición crítica y estudio de Jorge García López. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. v. 1., v. 1, p. 256), pois os cozinheiros, taverneiros, carniceiros e pasteleiros eram vistos como homens entregues ao comer e ao beber e que acompanhavam os grandes e ricos nos excessos, de modo a terem o ventre como “Deus”. A despeito de críticas morais como essas, o ofício de cozinheiro era estimado e requisitado nas grandes casas, em especial durante os banquetes em que se encarregavam de preparar os mais diversos pratos e bebidas.22 22 Sobre a estruturação das grandes casas senhoriais, ver Gomes (1995); González Arce (2016).

A preocupação desses letrados tomou novas proporções com a crescente importância conferida ao cerimonial do comer (Martín Cea, 2010MARTÍN CEA, Juan Carlos. Entre platos, copas y manteles: usos y costumbres sociales en torno a las comidas en la Castilla bajomedieval. In: MARTÍN CEA, Juan Carlos (coord.). Convivir en la Edad Media. Burgos: Dossoles, 2010. p. 253-282., p. 259-260; Gomes, 2011GOMES, Rita Costa. Os convivas do rei e a estrutura da corte (séculos XIII a XVI). In: BUESCU, Ana Isabel; FELISMINO, David (coords.). A mesa dos reis de Portugal: ofícios, consumos, cerimónias e representações (séculos XIII-XVIII). Lisboa: Círculo de Leitores; Temas e Debates, 2011. p. 26-43.; García de Cortázar, 1994GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel. Las necesidades ineludibles: alimentación, vestido, vivienda. In: GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel (coord.). La época del gótico en la cultura española (c.1220-c.1480). Madrid: Espasa Calpe, 1994. p. 5-82., p. 27), em especial, nas casas dos grandes e poderosos, de quem muitos desses tratadistas eram confessores, e a quem, em decorrência de suas dignidades, muitos serviam. Isso não impedia que, a despeito das diversas regras e constituições, certos excessos ocorressem nas cozinhas monacais e clericais. Para Álvaro Pais (1998PAIS, Álvaro. Estado e pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae). Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988-1998. 8v., v. 8, p. 59), os religiosos contemporâneos eram “gastrímagos, isto é, gulosos”, assemelhando-se os “claustrais” aos judeus no deserto que murmuravam e pediam carne (Pais, 1998PAIS, Álvaro. Estado e pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae). Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988-1998. 8v., v. 8, p. 298, 300). Entretanto, por seu caráter terreno, as críticas aos cozinheiros tendiam a associar estes oficiais aos ricos e poderosos, que, movidos por curiosidade e por desejo de exaltarem as suas casas, gastavam grandes somas em alimentos exóticos. Nos anônimos Avisos de confesión para religiosos (Avisos..., 1401-1500AVISOS de confesión para religiosos. [S. l.: s. n., 1401-1500]. Real Biblioteca del Monasterio de el Escorial, El Escorial. Manuscrito &-IV-32., f. 20v), por exemplo, os religiosos pecavam ao “pôr muito cuidado e gastar tempo em aparar a diversidade e delicadeza dos manjares, como fazem os cozinheiros dos seculares glutões”.23 23 “La iijª manera es poner mucho cujdado y gastar tienpo en aparar la diuersidad y delicadez de los manJares. como hazen los cozineros de los seglares glotones.”

Muito embora as críticas aos cozinheiros fossem amplas, o alvo era principalmente os que serviam, conforme já anunciado nas passagens anteriores, nas casas dos grandes e ricos. O direcionamento não era fortuito. Somente os ricos poderiam gastar avultadas somas com especiarias caras - inclusive para grandes senhores -, buscadas e adquiridas, sobretudo, nas regiões mais remotas da Ásia e da África, como a canela e a pimenta-do-reino, ou que eram, ainda que encontradas mais perto, praticamente inacessíveis aos menos abastados, como o açúcar (Marques, 1971MARQUES, António H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa: aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Sá da Costa, 1971., p. 12; Gonçalves, 2017GONÇALVES, Iria. À mesa nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média. Alcobaça: Direção-geral do Património Cultural, Mosteiro de Alcobaça, 2017., p. 362-364). Independentemente do estado da pessoa, gastar as rendas em demasia na aquisição desses alimentos era uma forma grave de pecar em gula, especialmente se poderiam nutrir os necessitados.24 24 Críticas às comidas e bebidas custosas podem ser encontradas, entre outros textos, nas seguintes fontes: Pérez (2002, p. 194); Talavera (1401-1500, f. 57); Fernández de Madrigal (1498, f. 16v); Eiximenis (1496, f. 303); Avisos... (1401-1500, f. 21v); Confesionario (2012, p. 135). Todavia, apenas os mais afortunados possuíam condições de manter elevados gastos e buscar por novas formas de preparar os alimentos e as bebidas.

Dados os custos e a alta valorização social desses produtos, os pratos eram preparados de diversos modos, como assar e depois cozer, por exemplo, e com uma ampla gama de temperos, inseridos nos vinhos, inclusive (Marques, 1971MARQUES, António H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa: aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Sá da Costa, 1971., p. 16-17; Arnaut, 2000ARNAUT, Salvador Dias. A arte de comer em Portugal na Idade Média. Sintra: Colares, 2000.). Nas casas mais modestas, por outro lado, imperavam pratos mais simples, sem muitos preparos, como guisados, sopas e caldos, com alguma ou outra erva recolhida na horta ou no campo, e com acréscimo eventual de carne (Gonçalves, 2004GONÇALVES, Iria. Entre a abundância e a miséria: as práticas alimentares da Idade Média Portuguesa. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; SILVA, José Custódio Vieira da (coords.). Estudos medievais: quotidiano medieval: imaginário, representação e práticas. Lisboa: Horizonte, 2004. p. 43-66., p. 63-64; Gonçalves, 2011GONÇALVES, Iria. A alimentação. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida privada em Portugal. Lisboa: Temas e Debates, 2011. v. 1. p. 226-259., p. 244; Martín Cea, 2010MARTÍN CEA, Juan Carlos. Entre platos, copas y manteles: usos y costumbres sociales en torno a las comidas en la Castilla bajomedieval. In: MARTÍN CEA, Juan Carlos (coord.). Convivir en la Edad Media. Burgos: Dossoles, 2010. p. 253-282., p. 278-279). Justamente por esses vínculos entre cozinha e riqueza, entre gula e soberba, o frade agostiniano, frei Martín de Córdoba (1964CÓRDOBA, Martín de. Compendio de la fortuna. In: RUBIO, Fernando(ed.). Prosistas castellanos del siglo XV. Madrid: Atlas, 1964. v. 2. p. 5-63., p. 45-46), em seu Compéndio de la fortuna, associava a pobreza à temperança, porque, diferentemente da fortuna, a necessidade obrigava o pobre a contentar-se com pouco. Por outro lado, a “triste fortuna” se caracterizava pela “repleção de viandas e variedade delas”, incluindo aves e demais animais apreciados, apanhados não apenas por armadilhas, mas com a ajuda de podengos, galgos e aves de cetraria. O seu objetivo era “suprir a insaciável glutonia do rico”. Não satisfeito com o que os céus e as terras locais ofertavam, esses homens afortunados buscavam com “importunidade” bestas e pescados nos portos mais distantes, bem como desejavam adquirir diversidade de vinhos brancos, claros, tintos e mistos (pardillos). Como se não bastasse a vontade desregrada do rico, os cozinheiros agiam, ainda, “não para satisfazer à fome, mas à fastidiosa gula e ao regurgigante e pesado estômago”, trabalhando, dia e noite, com “grande estudo” para preparar os “molhos das saborosas potagens”.25 25 “La triste fortuna por otra vía es, a saber, por replección de viandas e variedad dellas, a la qual non abastan los laços de los caçadores a engañar faisanes, cordonizes, francolines e otras preciosas aves; conejos, liebres, gamitos, cervatos e otras de comer suaves carnes, mas añaden perros podencos, galgos carniegos, açores, falsones, gavilanes; todo para suplir la insaciable glotonía del rico; aun el grand estudio de cozineros de noche e de día disputantes de los aparatos comestibles, de las provocantes salsas de los sabrosos potajes, non para satisfazer a la fanbre, mas a la fastidiosa gula e al regoldante e cargado estómago. Asaz sería al goloso rico fatigar el aire persiguiendo las aves e la tierra caçando las bestias, mas fasta el mar, fasta todas las aguas alcança su importunidad, enbía a remotos puertos por bestias, por pescados sabrosos, porque la mudación del pescado le tire el fastidio de carnal fartura. ¿Qué diré de la adquisición de los varios vinos blancos, claros, tintos, pardillos?”

À falta dos cozinheiros articulavam-se, de modo quase indissociável, os excessos dos senhores a quem eles serviam. Com o objetivo de exortar a temperança entre os cristãos, o autor responsável pelo Boosco deleitoso (1950BOOSCO DELEITOSO. Ed. do texto de 1515, com introd., anotações e glossário de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950. v. 1., p. 252), anônimo tratado ascético quatrocentista impresso em 1515, propunha, por meio da personagem do Solitário, que o arcediago se afastasse dos ricos, considerados “moles e muito fracos” e dados a tomarem prazer em praças, paços, lugares desonestos, cozinhas e tavernas. Já em outra passagem do referido tratado, muito devedor do De solitaria vita de Francisco Petrarca (1304-1374), o vínculo entre riqueza e aparato de cozinha era ainda mais explícito. Discorrendo sobre a vivenda e o estado do negociador, o “nobre solitário”, que se alimentava em uma mesa ordenada, apontava que, no jantar, o homem do século vivia rodeado de oficiais (sergentes) e tinha sala e mesa aparelhadas. Assim que tudo estivesse arrumado e o senhor tivesse se sentado, era dado um “sinal com tromba, assim como para batalha” (Boosco deleitoso, 1950BOOSCO DELEITOSO. Ed. do texto de 1515, com introd., anotações e glossário de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950. v. 1., p. 53). Evidentemente, não era aquela batalha enfrentada e esperada pelo cristão para ingressar na cavalaria cristã. Tratava-se, antes, de analogia para referir-se ao grande ruído e à circulação de muitos oficiais que se revezavam para servirem ao seu senhor, chocando-se uns contra os outros, de modo a derramar comida e bebida pelo chão. Por isso, quando soava o sinal, apareciam capitães, vedores e mestres da sala, trazendo “muitos manjares escolhidos do mar e da terra e muitos vinhos de muitas maneiras e de muitas terras em vasos resplandecentes” (Boosco deleitoso, 1950BOOSCO DELEITOSO. Ed. do texto de 1515, com introd., anotações e glossário de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950. v. 1., p. 54).26 26 “[...] e som ali trazidos muitos manjares escolheitos do mar e da terra e muitos vinhos de muitas maneiras e de muitas terras em vassos esprandecentes”. O campo de batalha descrito pelo Solitário prosseguia, inclusive, pela mistura irregular dos pratos e bebidas, pois, descontentes com os vinhos criados pela natureza, os negociantes aditavam-lhes mel e especiarias e buscavam “animálias monteses espantosas e peixes não conhecidos e aves estranhas adubadas e cobertas com especiarias e pós preciosos”. Desse modo, misturavam-se as viandas locais com as estrangeiras, “as do mar com as da terra, e as viandas negras misturadas com as brancas, e as doces com as azedas, e as aves de pena com as outras que não t[inha]m pena e as carnes das animálias mansas com as bravas”. Além dessas misturas, procediam-se a outras tantas, como a dos alimentos quentes e frios, úmidos e secos, duros e moles. Em suma, observava-se à mesa um “caos de confusão”.27 27 “E nom abastam vinhos taaes quejendos a natureza criou, mas ainda trazem outros vinhos confeitos com mel e com especias; e da outra parte estom animálias monteses espantosas e peixes nom conhocidos e aves estranhas adubadas e cubertas com especias e poos preciosos; e tantos manjares espantosos estom ante os comedores, que lançam de si fumo e bafo, que qualquer que os viir como som feamente coalhados e mesturados, pôsto que haja talante de comer, convém que se parta dali farto tam solamente da vista deles, ca ali veerá as viandas da vossa terra mesturadas com as doutra parte, as viandas do mar com as da terra e as viandas negras mesturadas com as brancas, e as doces com as agras, e as aves de pena com as outras que nom tem pena, e as carnes das animálias mansas com as bravas, em maneira que parece aquela mistura dos clamentos que chama o poeta Caaos de confundimento, em uü talhador ou escudela.”

Os grandes senhores leigos e eclesiásticos também pecavam como os ricos negociantes e partilhavam com eles os excessos carnais. Entre os vícios dos palatinos, segundo o bispo castelhano dom Rodrigo Sánchez de Arévalo (2012SÁNCHEZ DE ARÉVALO, Rodrigo. Espejo de la vida humana. Introd., ed. crítica y trad. de José Manuel Ruiz Vila. Madrid: Escolar y Maio, 2012., p. 185), no difundido Speculum vitae humanae, encontrava-se o da “dedicação aos banquetes, caprichos e prazeres”, fazendo da “noite o dia” e vomitando para poderem comer mais. A esses homens não lhes agradavam senão os apetecíveis manjares.28 28 “El séptimo vicio de los palatinos consiste en su dedicación a los banquetes, caprichos y placeres. Isaías los señala cuando dice: Se levantan temprano para emborracharse y tienen aguante bebiendo vino y son capaces de mezclar bebidas; hacen de la noche el día y están despiertos por la noche. Séneca dice que éstos vomitan para comer. Su paladar sólo sabe saborear manjares exquisitos y, al final, cuando les arde el estómago por el vino, se dedican a sus caprichos.” Desregrados eram igualmente os “reitores das almas”, adjetivados como obesos, largos, gordos e dados aos banquetes,29 29 “Obesos, anchos y gordos, tienen bocas ardientes, empachados fácilmente en banquetes diversos, como dice Jerónimo, babean por los placeres. Pero ¿por qué hablamos tan superficialmente de la embriaguez, la resaca y los demás atractivos que presenta la gula a los sacerdotes y a otros que se consideran bajo la denominación de hombres de Iglesia?” e aos quais Arévalo teceu a seguinte crítica:

Dizem: “Comamos e bebamos e morramos”, eles que vivem para comer, cujo Deus é o estômago, porque se dedicam a seu estômago e tudo gira ao redor de seu estômago, como se fosse sua maior felicidade e fim, e não lhes basta a comida que produz a pátria em que moram, mas sim que corrigem a Deus e à natureza. E é que se cevam com vinhos de ultramar e da terra e com caríssimos manjares de importação; não lhes bastam os vinhos de uma só região, e desfrutam com a variedade sem ter em conta que o consumo de um único vinho fez embriagar-se o patriarca Noé, que se havia mantido sóbrio durante seiscentos anos (Sánchez de Arévalo, 2012SÁNCHEZ DE ARÉVALO, Rodrigo. Espejo de la vida humana. Introd., ed. crítica y trad. de José Manuel Ruiz Vila. Madrid: Escolar y Maio, 2012., p. 703).30 30 “Dicen: ‘Comamos y bebamos y muramos’, ellos que viven para comer, cuyo dios es el estómago, porque se dedican a su estómago y todo gira alrededor de su estómago, como si fuera su mayor felicidad y fin, y no les basta la comida que produce la patria en la que moran, sino que corrigen a Dios y a la naturaleza. Y es que se ceban con vinos de ultramar y de la tierra y con carísimos manjares de importación; no les basta con los vinos de una sola región y disfrutan con la variedad, sin tener en cuenta que el consumo de un único vino hizo embriagarse al patriarca Noé, que se había mantenido sobrio durante seiscientos años.”

A crítica aos cozinheiros, aos grandes senhores eclesiásticos e seculares e aos ricos acompanhava a ressalva que esses tratadistas - mendicantes e religiosos na sua maioria - tinham a respeito da carne e do vinho, alimentos que se vinculavam ao plano terrestre. Na interpretação cristã, a introdução do consumo de um e outro decorreu da permissão divina, como forma de os homens recuperarem suas forças após o Dilúvio, cujas águas retiraram a virtude das ervas e plantas com as quais homens e animais, desde o Paraíso, se alimentavam. A mudança na alimentação teve impactos consideráveis na relação dos homens com o mundo, inclusive, na própria divisão do tempo. A respeito da carne, mais particularmente, a sua importância e a generalização de seu consumo eram tais que o próprio calendário era dividido entre os dias de carne e de peixe, sendo este alimento menos apreciado que o primeiro (Rucquoi, 2015RUCQUOI, Adeline. ¿Comer para vivir o vivir para comer? In: RUCQUOI, Adeline et al. Comer a lo largo de la historia. Valladolid: Ediciones Universidad de Valladolid, 2015. p. 61-96., p. 65). Sendo muitos pertencentes a ordens religiosas, em que o consumo de carne era, por regra, reduzido ou quase nulo, esses letrados eclesiásticos extraíram diversas lições dessa associação entre a carne e o mundo, bem como entre a compleição humana e a alimentação anterior e posterior ao Dilúvio. Tudo isso pendia para ter a dieta frugal como mais adequada ao cristão para superar a batalha contra a gula. Ademais, essa postura amparava a crítica aos cozinheiros.

Ao tomarem como modelo a alimentação anterior ao Dilúvio - comum aos outros animais e composta, segundo a interpretação bíblica, de ervas e frutos -, muitos religiosos evitavam o consumo de carne ou regulavam as circunstâncias em que poderiam consumi-la, como na enfermidade. Mesmo nestes casos em que a carne era liberada para o religioso recobrar sua saúde, era preciso autorização do superior, e seu consumo estava condicionado a seu abandono tão logo se recuperasse. Portanto, partindo da consideração de que os cristãos deveriam moderar o consumo de carne, e constatando-se o seu aprimoramento pelos cozinheiros para torná-las mais apetecíveis ao gosto do senhor, a crítica dos tratadistas não poupava estes oficiais. Com a finalidade de assegurar que a carne fosse conveniente ao estado e à condição da pessoa - o que implicava complexidade cada vez maior conforme se avançava para os estados superiores -, ela passava por uma sequência de preparos e técnicas, com acréscimos constantes de condimentos e temperos diversos. Resultava dessa relação entre o preparo da carne e a elaboração de pratos mais complexos a associação com os cozinheiros e sua consequente suspeita pelos eclesiásticos.

Com o intuito de aconselhar os cristãos a observarem sua dieta e a evitarem os excessos da gula, a admoestação desses tratadistas tendeu a retomar a frugalidade da alimentação dos primeiros homens e a afastar a “arte” dos cozinheiros. Ludolfo de Saxônia (2013-2016LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Christi. Edição de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2012-2016. v. 2., v. 2, p. 102), amparado na autoridade de Crisóstomo (c.347-407), por exemplo, questionava a importância da arte dos cozinheiros, pois preparavam pratos que se afastavam da simplicidade da dieta dos antigos, e que deveria ser almejada pelos cristãos. Para Sánchez de Arévalo (2012LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Christi. Edição de José Barbosa Machado. Braga: Vercial, 2012-2016. v. 2., p. 369), os oficiais que lidavam com carne e pescado atuavam mais em proveito do estômago que da alma, sendo tolerados apenas enquanto propiciavam alimentos “para a vida e boa saúde do corpo”.31 31 “Los intereses de estos oficios sirven al estómago, no al espíritu. Así pues, se toleran en la medida en que proporcionan alimento para la vida y la buena salud del cuerpo.” O bispo de Silves, dom frei Álvaro Pais (1955PAIS, Álvaro. Espelho dos reis. Estabelecimento do texto e trad. Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1955-1963, 2v., v. 1, p. 319), por sua vez, recordava, em seu Speculum regum, uma história antiga de um rei que expulsou os cozinheiros do reino por gozar de uma dieta frugal.

Uma síntese das mudanças na alimentação dos homens ao longo da história, bem como sobre as suas implicações para a manutenção da vida na terra e salvação da alma, era dada por Diego Rodríguez de Almela, discípulo do bispo de Burgos, dom Afonso de Cartagena. No seu Valerio de las historias escolásticas y de España, escrito e impresso em finais do século XV, o eclesiástico estreitava as relações entre abstinência e continência, ambas virtudes necessárias para o homem frear os apetites carnais e não agir como bestas. Antes do Dilúvio, segundo registra o cronista, “não se lê que os homens comessem carne, nem bebessem vinho com grande abstinência; só com frutas e ervas, se diz que viviam; nem por isso viviam menos que os de agora”. Ainda no tempo de Abraão, de acordo com Rodríguez de Almela (1793RODRÍGUEZ DE ALMELA, Diego. Valerio de las historias de la sagrada escritura, y de los hechos de España. Ed. Don Juan Antonio Moreno. Madrid: Don Blas Román, 1793., p. 135-136), o profeta e os grandes senhores viviam com “pão e água”, sem demonstrarem apreço por aves e criaturas silvestres. Com o passar do tempo, a dedicação aos manjares delicados tornou os homens “mais fracos e débeis”, “menores de corpo, e de menos força e vida”, pois a “repleção é causa de diminuição e corrupção de vida”.32 32 “En las escripturas antiguas, ante de diluvio no se lee que los hombres comiessen carne ni bebiessen vino con gran abstinencia, solo con fruta y yervas se dice que vivian, ni por tanto vivian menos que los de agora. Despues en tiempo de Abraham, no solamente él, mas los grandes Señores con pan y agua vivian, no se curaban de aves ni de otras volatilias silvestres; solamente con simple manjar mataban la hambre, á lo menos con pan y carne se mantenian; y el calor del estomago natural por satisfacer á la sed, mataban con agua, quanto mas los hombres se dieron á comer delicados manjares de mas flacos y débiles sugetos fueron, y menores de cuerpo, y de menos fuerza y vida. E aun menos serán de aqui adelante, por ende la replecion es causa de diminucion y corrupcion devida.” Em tudo isso eram contrários os contemporâneos, que não se contentavam apenas com “pão, vinho e carne”, mas que não repetiam, por outro lado, os feitos dos antigos, realizados apenas com “pão e água” (Rodríguez de Almela, 1793RODRÍGUEZ DE ALMELA, Diego. Valerio de las historias de la sagrada escritura, y de los hechos de España. Ed. Don Juan Antonio Moreno. Madrid: Don Blas Román, 1793., p. 136).33 33 “En los tiempos de agora no se contentan los hombres solamente con pan, vino y carne. Los antiguos con pan y agua, faciendo mejores hechos que los modernos”.

Por todos esses aspectos negativos da comida elaborada, os tratadistas reconheciam que os cozinheiros e demais oficiais que manejavam a carne eram desconhecidos no período anterior ao Dilúvio (Sánchez de Arévalo, 2012SÁNCHEZ DE ARÉVALO, Rodrigo. Espejo de la vida humana. Introd., ed. crítica y trad. de José Manuel Ruiz Vila. Madrid: Escolar y Maio, 2012., p. 369). Dessa constatação e da necessidade de uma dieta frugal, o papa Bento XIII, Pedro Martínez de Luna (1328-1423) (1860MARTÍNEZ DE LUNA, Pedro. Libro de las consolaciones de la vida humana. In: GAYANGOS, Pascual de. Escritores en prosa anteriores al siglo XV. Madrid: M. Rivadeneyra, 1860. p. 561-602., p. 584), no Libro de las consolaciones, afirmava que as ervas e os legumes eram os alimentos mais adequados à “natureza humana”, uma vez que eram facilmente cozidos por não exigirem “sabedoria de cozinheiros nem arte de cozinhar”.34 34 “Onde las yerbas é legumbres ligeramente se pueden guisar, ca non han menester mucha sabiduria de cocineros nin arte de cocinar. Et tal manjar templadamente comido sustenta su cuidado de la natura humana, ca nin es comido con gran voluntaad, nin otrosi tiene tales cosas que pueda á la gula despertar, é mas ligeramente en el estómago es disgerido.” Essa dieta sem carne e vinho só era possível, no entanto, porque a compleição humana era mais sã antes do Dilúvio, o que permitia melhor aproveitamento das ervas e frutas (Talavera, 1401-1500TALAVERA, Hernando de. Tractado prouechoso que demuestra commo en el uestir y calçar comunmente se cometen muchos peccados. y aun tanbien en el comer y beuer […]. [S. l.: s. n., 1401-1500]. Real Biblioteca del Monasterio de El Escorial. Manuscrito b-IV-26, f. 31r-95r., f. 50v).

Para evitar o encurtamento da vida, as enfermidades e a necessidade de se recorrer aos físicos, além de afastar, evidentemente, as tentações da carne e a introdução de outros vícios a partir da gula, todo cristão era aconselhado a evitar os pratos elaborados e contentar-se com pratos simples, não delicados nem custosos. Essa foi, aliás, atitude louvável na rainha dona Filipa (1360-1415), que, de acordo com o cronista Gomes Eanes de Zurara (1915ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica de tomada de Ceuta por el rei D. João I. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915., p. 142), além dos excessivos jejuns, não comia por deleite nem exigia de seus cozinheiros a criação de novos pratos.35 35 “E seu comer nom era por deleitaçom, soomente por sosteer a uida. nem o seu cozinheiro nom era mujto costramgido pera buscar nouas maneiras diguarias.”

A despeito desse conjunto de críticas, era possível ao cristão comer e fazer bom uso da carne e do vinho sem incorrer no pecado da gula. Além dos jejuns conjugados à abstinência da carne e do vinho, o cristão deveria ser moderado. O principal exemplo era, como não poderia deixar de ser, o próprio Cristo, que participava de banquetes, conduta que o distinguia de João Batista, cuja vida era de extremo rigor - não comia pão e carne nem bebia vinho -, apartada da dos demais homens e vista como sinal de santidade. Em uma postura comum a outros tratadistas, o franciscano Eiximenis (1496EIXIMENIS, Francesc. Libro de la vida de Ihesu Christo añadido por Fr. Hernando de Talavera. Granada: Meynardo Ungut y Johannes de Nurenberga, 1496., f. 228v-229, 288) destacava as atitudes de Jesus que, em vez de fugir às coisas temporais, fazia o inverso, como não recusar os convites às bodas, não evitar comer e beber o que era comum aos demais homens, tampouco recusar a partilha da mesa com pecadores. Tudo isso era feito para dar exemplo aos demais. Todavia, as condutas de Cristo não deixaram de ser reprovadas pelos judeus, como relatado no Evangelho (Mateus 11, 19) e retomado por diversos tratadistas, que o acusavam de “desordenado em comer carne e em beber vinho”, na versão castelhana da Vita Christi (Ludolfo de Saxônia, 1502LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Cristi cartuxano roma[n]çado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502. v. 4., v. 4, f. 2v), e de “gargantão e beberrão”, na versão portuguesa (Ludolfo de Saxônia, 2012, v. 3, p. 3), bem como de “voraz e bebedor de vinho” (Sánchez de Arévalo, 2012SÁNCHEZ DE ARÉVALO, Rodrigo. Espejo de la vida humana. Introd., ed. crítica y trad. de José Manuel Ruiz Vila. Madrid: Escolar y Maio, 2012., p. 789)36 36 “voraz y bebedor de vino”. e “tragador, comedor e bebedor; amigo de publicanos e pecadores” (Eiximenis, 1496, f. 287).37 37 “Uino el hijo de ombre comiendo e beuiendo: y dezis. que es tragon: comedor e beuedor. amigo de los publicanos y pecadores. Críticas essas que eram feitas infundadamente, uma vez que, conforme reconhecia Ludolfo de Saxônia (2012LUDOLFO DE SAXÔNIA. Vita Christi. Edição de José Barbosa Machado. Braga: Vercial , 2012. v. 3., v. 3, p. 17), com exceção do cordeiro, não havia quaisquer menções bíblicas sobre Cristo ter comido carne.

Além das ações exemplares dessas pessoas virtuosas, contemporâneas ou não aos leitores e ouvintes dessas prédicas, os cristãos deveriam, ainda, conforme já mencionado, ser estimulados ao regramento do comer, por meio da confissão, respondendo à inquirição do confessor quanto às faltas no pecado da gula.

Considerações finais

A atenção às mudanças na elaboração dos pratos, ocorrida com maior ênfase entre os séculos XIV e XV, motivou tratadistas diversos, em particular eclesiásticos, a redigirem textos com críticas aos excessos de senhores e cozinheiros e admoestações aos cristãos para regrarem seus hábitos alimentares. Essas mudanças, que receberam maior aceitação na casa dos grandes senhores eclesiásticos e leigos e dos ricos - em larga medida pela introdução de um cerimonial do comer que se manifestava, entre outras medidas, pela exposição de pratos elaborados e sofisticados e na celebração cada vez mais frequente de banquetes -, foram vistas com reserva e desconfiança por alguns desses letrados de Castela e Portugal, bem como por outros que tiveram seus textos circulando na Península Ibérica.

Preocupados com o progressivo afastamento da simplicidade e da moderação cristãs, esses homens propuseram atitudes que estimulassem a frugalidade, a moderação e a abstinência na alimentação. Por isso, a busca por novos pratos, por comidas exóticas ou caras foi considerada danosa aos cristãos por servir de entrada a outros pecados, como a luxúria, a soberba e a vanglória. Associando-se aos ricos e poderosos e preparando-lhes pratos delicados e custosos, os cozinheiros também mereceram reprimendas dos tratadistas. Muito embora as críticas aos cozinheiros fossem de longa data, e remontassem aos Padres da Igreja, elas foram largamente retomadas nos séculos XIV e XV. A procura por esses manjares diferentes e custosos passou igualmente a ser frequente entre as faltas dos cristãos, sendo um dos elementos que os confessores deveriam interrogar durante a confissão. Para que houvesse temperança e mesura no comer e no beber, segundo esses letrados, era importante retomar a dieta dos primeiros homens, pautada em ervas e frutas, sem carne ou vinho; na impossibilidade da abstenção total desses alimentos, era imprescindível que o cristão respeitasse os preceitos religiosos, que exigiam a observância de jejuns e abstinências em determinadas circunstâncias. Visando articular os proveitos corporais e espirituais, o objetivo dessas admoestações era assegurar os meios necessários para que o fiel vencesse a primeira batalha contra a gula para ingressar na cavalaria cristã, de modo que não deixasse desamparadas suas obrigações neste e no outro mundo.

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  • ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica de tomada de Ceuta por el rei D. João I Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915.
  • 1
    Todas as citações do castelhano e português medieval foram traduzidas e/ou atualizadas livremente, constando em nota as transcrições do original.
  • 2
    “La quinta razon porque el mucho comer es vedado, [es] porque la garganteria suele abrir carrera por do entren los otros pecados, e destruye las virtudes e los bienes de otro tienpo ganados.”
  • 3
    Cita-se aqui a partir da versão traduzida para castelhano, emendada pelo arcebispo de Granada, dom frei Hernando de Talavera (1428-1507), e impressa em 1496.
  • 4
    “E por ende dize este santo dotor maximo: no pienses christiano que aquel a quien no plaze el ayuno e la aspereza de la carne: que aya en sy virtud alguna ni que sea seruidor de dios: ca la primera batalla que rescibe el que a dios se allega a seruir: es de la gula. E el que no vence a esta: debalde se trabaja por alcnaçar otra virtud o otro qualquier don diuinal. Ca este es el primer vencimiento en la batalla espiritual. E por ende començando nuestro saluador la vida del christiano: luego se fue al desyerto a ayunar: por nos dar a entender que sy queriamos aprouechar en la caualleria de la cristiandad e bien acabar: que nos conuenia ayunar todo el tiempo de nuestra vida.” Perspectivas similares também se encontram em: Virgeu... (1959, p. 17); Pais (1996, v. 6, p. 173); Ludolfo de Saxônia (2010-2012, v. 1, p. 264).
  • 5
    “El primero era pecado de gula. Ca se mouia a querer fazer tan grand cosa: por satisfazer al vientre. El .ij. peccado seria inpaciencia e desconfiança de la bondad de dios. Ca daua a entender que nuestro sennor dios le dexaua morir de fanbre auiendo ayunado tantos dias por su amor. El .iij. peccado seria soberuia”; “Pues no satisfecho el diablo de la dubda que tenia: si jesuchristo era: o no era natural fijo de dios. y teniendose por flaco: porque no le fizo caer en el lazo del peccado de gula que le auia armado: acordo de le temptar de vanagloria”; “[...] e acordaron que lucifer lo tentasse de la tercera temptacion. Conuiene saber de auaricia mezclada con amor de honrra e de soberuia”.
  • 6
    “De lo que dizes de la otra gente, sabed que es venido el reyno de los cozineros al mundo, en tanto que se alaban muchos de aver comido tal e tal cosa en tal manera guisada. E muchos dellos tanto comen e beven que se les sygue acortamiento de la vida [...]. E tantos nombres ay de diversydad de vinos e de potajes que no basta memoria para retenerlos [...]”.
  • 7
    “Ca la vida christiana: cruz es de penitencia e de pena continua”.
  • 8
    “onde deste pecado fue primeramente Jesuchristo tentado e vençio, e dize la escriptura del libro de los Reyes, que el prinçipe de los cocineros de Babilonia derribo los muros de Jerusalem, que son las virtudes del alma”.
  • 9
    Sobre o documento, ver Gómez Redondo (1999GÓMEZ REDONDO, Fernando. Historia de la prosa medieval castellana. Madrid: Cátedra, 1999. v. 2., p. 1875-1897).
  • 10
    “Jerusalen fue destroyda porque con el pecado de la soberbuja paso la medida de lo que deuia comer.”
  • 11
    “Diz sancto Ysidoro que os hom˜ees peccadores de Sodoma peccarõ per soberva e fartura de pan e per gargantuice, porque comerom mais que deverõ, cayrõ en peccados de soberva, e portanto veo sobre elles fogo do ceeo que os queymou, porque nõ teverõ mesura ne tempera na vianda que lhes Deos enviou.”
  • 12
    A figura é recorrente nos tratados de Martín Pérez, Álvaro Pais, Francesc Eiximenis, Ludolfo de Saxônia, Hernando de Talavera, entre outros.
  • 13
    “Mucho deue espantar a los ricos auarientos e dissolutos: esta hystoria: pues van los tales a parar e a estar para siempre en los tormentos del infierno. Mucho se deuen los ombres guardar de vestir e de comer demasiado: e de buscar en estas cosas mucho deleyte: pues tan grauemente son atormentados los que en ello exceden. E si estos deleytes y excessos que parecen como naturales e de poca culpa: tan grauemente son penados en el infierno: vean los que se dan a mayores deleytes e menos necessarios: que sera dellos? Digno gualardon dize sant basilio que fue dado a este rico malauenturado En lugar del deleyte de las viandas: la lengua quemada e seca En lugar de los beueres: desseo e grand sed de vna gota de agua En lugar de la musica: lloro e gemido En lugar de los paramentos de la sala e del deleyte que ouo en ver e acatar lo que no conuenia ni era necessario: aborrecible escuridad. En lugar de la soberuia e de la vanagloria e jactancia: gusano que le roya para sienpre e sin cessar? Mucha conpassion e piedad deuen los ricos auer de los pobres: e los sanos de los enfermos e plagados: pues porque no la ouo de lazaro: este rico malauenturado: fue para siempre en el infierno desconsolado e sin que ninguno le hiziesse ni podiesse hazer piedad de le consolar ni con vna gota de agua.”
  • 14
    “que peor es mucho comer que la fanbre/ porque la fanbre en pocos dias mata el omne e librale desta vida penal mas el exçesso de las viandas e mucho comer consume e faze podreçer el cuerpo humano e atormentale con luenga enfermedat e a la postre consumele con cruel muerte”.
  • 15
    “Contra aqueste pecado fue la proybiçion e primero mandamjento que dios fizo.”
  • 16
    Entre elas, estão comer antes da hora; desrespeitar os jejuns e as abstinências; repetir a refeição durante o dia; e comer mais que o necessário para sustentar o corpo.
  • 17
    “Si comio manjares de grand costa por do podrian pasar algunos pobres, ca, salvo si lo non podria escusar por enfermedat o porque non tenia al que comer, pecado es. Si comio manjares mucho adobados e mucho delicados, ca pecado es, salvo si le fazian mester por la conplision del cuerpo, que es tal que los non puede escusar.”
  • 18
    “Quarto si procura manjares muy delicados e binos preçiosos mas de quando abasta su facultad. Quinto si manda que le adoben los manjares con mucho estudio”; “Nono si demanda para comer cosas nuevas e non acostunbradas.”
  • 19
    “Lo tercero acaeçe peccar y exceder; no en quantidad nj en ser costosas las uiandas; mas solamente en que sean adobadas y muy guisadas/ aunque de suyo fuessen comunes y despreciadas. y en esta manera peccauan muchos de los Judios en el desierto quando nuestro sennor les daua aquel celestial y miragloso mantenimiento. ca no se contentauan de lo guisar simplemente; mas catando maneras commo meJor les supiesse.”
  • 20
    “ otro rramo es cuydado e estudio e solitudjne de apareJar e adobar curiosamente las viandas [...] en que toman muchos deleytes a las veses grandes enoJos sy non les dan bien adobados asy commo ellos querrian E en esto demuestran la desordenaçion de las sus voluntades [...]”.
  • 21
    “La ija manera es desear comer manJares delicados o comerlos por el solo sabor dellos. como perdizes capones faisanes etcetera saluo por enfermedad o flaqueza o de quando en quando como en pitança o recreation del conuento. o por nobleza de linaJe como en los caualleros o por ser conbidado de otras personas onde dize sant agustin puede ser que el sabio use de manJar muy precioso sy alguna culpa de cobdicia o tragonia y el nescio mucho errar en la vileza del manJar por la tragonia o deseo della.”
  • 22
    Sobre a estruturação das grandes casas senhoriais, ver Gomes (1995GOMES, Rita Costa. A corte dos reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995.); González Arce (2016).
  • 23
    “La iijª manera es poner mucho cujdado y gastar tienpo en aparar la diuersidad y delicadez de los manJares. como hazen los cozineros de los seglares glotones.”
  • 24
    Críticas às comidas e bebidas custosas podem ser encontradas, entre outros textos, nas seguintes fontes: Pérez (2002, p. 194); Talavera (1401-1500, f. 57); Fernández de Madrigal (1498, f. 16v); Eiximenis (1496, f. 303); Avisos... (1401-1500, f. 21v); Confesionario (2012, p. 135).
  • 25
    “La triste fortuna por otra vía es, a saber, por replección de viandas e variedad dellas, a la qual non abastan los laços de los caçadores a engañar faisanes, cordonizes, francolines e otras preciosas aves; conejos, liebres, gamitos, cervatos e otras de comer suaves carnes, mas añaden perros podencos, galgos carniegos, açores, falsones, gavilanes; todo para suplir la insaciable glotonía del rico; aun el grand estudio de cozineros de noche e de día disputantes de los aparatos comestibles, de las provocantes salsas de los sabrosos potajes, non para satisfazer a la fanbre, mas a la fastidiosa gula e al regoldante e cargado estómago. Asaz sería al goloso rico fatigar el aire persiguiendo las aves e la tierra caçando las bestias, mas fasta el mar, fasta todas las aguas alcança su importunidad, enbía a remotos puertos por bestias, por pescados sabrosos, porque la mudación del pescado le tire el fastidio de carnal fartura. ¿Qué diré de la adquisición de los varios vinos blancos, claros, tintos, pardillos?”
  • 26
    “[...] e som ali trazidos muitos manjares escolheitos do mar e da terra e muitos vinhos de muitas maneiras e de muitas terras em vassos esprandecentes”.
  • 27
    “E nom abastam vinhos taaes quejendos a natureza criou, mas ainda trazem outros vinhos confeitos com mel e com especias; e da outra parte estom animálias monteses espantosas e peixes nom conhocidos e aves estranhas adubadas e cubertas com especias e poos preciosos; e tantos manjares espantosos estom ante os comedores, que lançam de si fumo e bafo, que qualquer que os viir como som feamente coalhados e mesturados, pôsto que haja talante de comer, convém que se parta dali farto tam solamente da vista deles, ca ali veerá as viandas da vossa terra mesturadas com as doutra parte, as viandas do mar com as da terra e as viandas negras mesturadas com as brancas, e as doces com as agras, e as aves de pena com as outras que nom tem pena, e as carnes das animálias mansas com as bravas, em maneira que parece aquela mistura dos clamentos que chama o poeta Caaos de confundimento, em uü talhador ou escudela.”
  • 28
    “El séptimo vicio de los palatinos consiste en su dedicación a los banquetes, caprichos y placeres. Isaías los señala cuando dice: Se levantan temprano para emborracharse y tienen aguante bebiendo vino y son capaces de mezclar bebidas; hacen de la noche el día y están despiertos por la noche. Séneca dice que éstos vomitan para comer. Su paladar sólo sabe saborear manjares exquisitos y, al final, cuando les arde el estómago por el vino, se dedican a sus caprichos.”
  • 29
    “Obesos, anchos y gordos, tienen bocas ardientes, empachados fácilmente en banquetes diversos, como dice Jerónimo, babean por los placeres. Pero ¿por qué hablamos tan superficialmente de la embriaguez, la resaca y los demás atractivos que presenta la gula a los sacerdotes y a otros que se consideran bajo la denominación de hombres de Iglesia?”
  • 30
    “Dicen: ‘Comamos y bebamos y muramos’, ellos que viven para comer, cuyo dios es el estómago, porque se dedican a su estómago y todo gira alrededor de su estómago, como si fuera su mayor felicidad y fin, y no les basta la comida que produce la patria en la que moran, sino que corrigen a Dios y a la naturaleza. Y es que se ceban con vinos de ultramar y de la tierra y con carísimos manjares de importación; no les basta con los vinos de una sola región y disfrutan con la variedad, sin tener en cuenta que el consumo de un único vino hizo embriagarse al patriarca Noé, que se había mantenido sobrio durante seiscientos años.”
  • 31
    “Los intereses de estos oficios sirven al estómago, no al espíritu. Así pues, se toleran en la medida en que proporcionan alimento para la vida y la buena salud del cuerpo.”
  • 32
    “En las escripturas antiguas, ante de diluvio no se lee que los hombres comiessen carne ni bebiessen vino con gran abstinencia, solo con fruta y yervas se dice que vivian, ni por tanto vivian menos que los de agora. Despues en tiempo de Abraham, no solamente él, mas los grandes Señores con pan y agua vivian, no se curaban de aves ni de otras volatilias silvestres; solamente con simple manjar mataban la hambre, á lo menos con pan y carne se mantenian; y el calor del estomago natural por satisfacer á la sed, mataban con agua, quanto mas los hombres se dieron á comer delicados manjares de mas flacos y débiles sugetos fueron, y menores de cuerpo, y de menos fuerza y vida. E aun menos serán de aqui adelante, por ende la replecion es causa de diminucion y corrupcion devida.”
  • 33
    “En los tiempos de agora no se contentan los hombres solamente con pan, vino y carne. Los antiguos con pan y agua, faciendo mejores hechos que los modernos”.
  • 34
    “Onde las yerbas é legumbres ligeramente se pueden guisar, ca non han menester mucha sabiduria de cocineros nin arte de cocinar. Et tal manjar templadamente comido sustenta su cuidado de la natura humana, ca nin es comido con gran voluntaad, nin otrosi tiene tales cosas que pueda á la gula despertar, é mas ligeramente en el estómago es disgerido.”
  • 35
    “E seu comer nom era por deleitaçom, soomente por sosteer a uida. nem o seu cozinheiro nom era mujto costramgido pera buscar nouas maneiras diguarias.”
  • 36
    “voraz y bebedor de vino”.
  • 37
    “Uino el hijo de ombre comiendo e beuiendo: y dezis. que es tragon: comedor e beuedor. amigo de los publicanos y pecadores.
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    Este artigo resultou de pesquisa financiada pela Fapesp/Capes (processo 17/01502-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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