Acessibilidade / Reportar erro

Inventários da humanidade: narrativas de viajantes, hierarquias raciais e racismos nas Américas

Humanity inventories: travelers’ narratives, racial hierarchies and racisms in the Americas

SILVA, Bruno. . As cores do Novo Mundo: degeneração, ideias de raça e racismos nos séculos XVII e XVIII . Lisboa: Lisbon International Press, 2020. 464 p.

Resumo:

O tema das raças e dos racismos tem sido amplamente discutido no campo das Humanidades. Nesse sentido, o livro de Bruno Silva nos apresenta um debate instigante acerca do homem americano entre os séculos XVII e XVIII e concepções acerca do que, posteriormente, figuraria como o racismo científico.

Palavras-chave:
Racismo; Novo Mundo; Homem americano

Abstract:

The theme of races and racisms has been widely discussed in the field of Humanities. In this sense, Bruno Silva’s book presents us with an instigating debate about the American man between the 17th and 18th centuries and conceptions about what would later figure as scientific racism.

Keywords:
Racism; New world; American man

O tema das raças e dos racismos tem sido ampliado e figura como objeto de debate nos mais variados campos das ciências humanas. Obras de referência na matéria, como a de Ciryl Lionel Robert James, Os jacobinos negros (1938) e a de Eric Williams, Capitalismo e escravidão (1944WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, [1944] 2012.), já apontavam que a história do colonialismo nas Américas teria esses elementos como ingredientes norteadores. Para Williams, a escravidão negra foi motivada por aspectos puramente econômicos e, no caso da obra de James, ao analisar o colonialismo francês a partir da ilha de São Domingos, atual Haiti, mostra conexões comerciais entre a França e sua porção colonial no Caribe, além do papel da Revolução Francesa (1789-1799) na mobilização das escravarias da ilha.

Frank Tannenbaum, em oposição clara à leitura de Williams, sinalizava a importância de pensar as relações raciais de forma comparada, bem como as legislações produzidas para as sociedades coloniais, que seriam um percurso fértil para compreender o colonialismo, a escravidão e as práticas racistas. Ainda que sob caminhos investigativos distintos, esses trabalhos foram pioneiros ao pensar a história da escravidão em perspectiva mais ampla, criticando visões reificadas de uma tradição colonialista, que via o abolicionismo e o neocolonialismo como práticas humanitárias e promotoras da liberdade. Ademais, as leituras críticas aos elogios colonialistas trouxeram em seu bojo as seguintes questões: o que é raça? O que é o racismo e por que ele existe?

Na historiografia brasileira, o livro de Gilberto Freyre é paradigmático. Ao questionar as políticas de segregação racial nos Estados Unidos e vislumbrar no Brasil um caso diferente de sociedade recém-saída da escravidão, Freyre desnuda, em seu Casa-grande e senzala ([1933] 1971FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Aguilar, [1933] 1971.), uma série de características da sociedade luso-brasileira que se consolidava nos trópicos sob um viés positivo, onde a mestiçagem não constituía um problema, mas sim uma resposta à ausência de racismo no país. O conceito de “democracia racial”, diversas vezes apontado como mito, oferecia uma direção às questões das primeiras décadas do século XX, notadamente a respeito do que significava “ser brasileiro”, aliado ao projeto político de nação constituído nos anos 1930. Alvo de críticas nas décadas seguintes, o sociólogo pernambucano ofereceu uma obra de magnitude considerável, mas que ainda suscita polêmicas e debates nos estudos sobre as relações étnico-raciais.

Ao folhear as páginas do livro As cores do Novo Mundo: degeneração, ideias de raça e racismos nos séculos XVII e XVIII, fruto da tese de doutoramento em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), de autoria de Bruno Silva, é possível pensarmos em alguns debates a respeito do conceito de raça nas historiografias americana e brasileira. Mestre e doutor pela UFF sob orientação de Ronald Raminelli, Silva é hoje professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e possui outros trabalhos importantes a respeito da temática, tais como sua dissertação de mestrado, Genealogias mazombas: castas luso-brasileiras em crônicas coloniais, publicada em 2016 pela UFF. O autor contou, ao longo do seu período de formação, com um período de estágio de doutorado sanduíche na University of Texas (UT) sob a supervisão de Jorge Cañizares-Esguerra. O contato com diferentes materiais e fontes primárias em diversos idiomas permitiu um refinamento teórico-metodológico em sua abordagem a respeito de como os viajantes interpretaram a diversidade humana encontrada no chamado Novo Mundo, atualmente conhecido como América. Seu trabalho nos permite um outro olhar ao que se definiu como raça e, por conseguinte, aos debates sobre a existência ou não do racismo antes do século XIX.

Retomando as questões norteadoras do livro, é impossível não lembrar o clássico texto de David Brion Davis, O problema da escravidão na cultura ocidental. Lançado em 1966, e traduzido para o português quase quarenta anos depois, o livro tinha uma questão abrangente e espinhosa a desvendar: o que explicava a posse de uma pessoa por outra e como, a partir de fins do século XVIII, a escravidão, mormente a africana, passou a ser um problema de ordem moral? Davis explorou o campo das ideias para entender, por um lado, o pensamento antiescravista e, por outro, foi além ao concluir que a cultura ocidental conviveu com a escravidão e que tal convivência ultrapassou as fronteiras nacionais e o tempo histórico do colonialismo moderno. Davis enxerga no Iluminismo o ponto de virada das discussões sobre raça e a própria construção do termo racismo, entendendo que a partir da segunda metade do século XVIII havia um conjunto de ideias para promover a liberdade e, contraditoriamente, manter a escravização de pessoas.

O trabalho de Bruno Silva também apresenta essas questões, mas na perspectiva do estudo de ideias que, conjuntamente, contribuíram para formular o pensamento racial moderno. Seu olhar, ainda que dialogue com Davis, tem outra condução ao suscitar que as diferenças contempladas por viajantes em seus relatos deram a tônica para a construção do pensamento racial que, se por um lado foi um constructo estruturante de impérios coloniais pautados na elaboração de diferenças entre os sujeitos, por outro lado, a capacidade desses mesmos sujeitos de classificar e hierarquizar diferenças físicas contribuiu para a conceituação de raça e dos racismos numa dinâmica transnacional e - por que não dizer? - global.

Dividida em cinco capítulos, a obra apresenta um contraponto interessante às proposições do texto de Davis. Partindo da figura do conde de Buffon, tradicionalmente considerado como o pioneiro nas discussões sobre a degenerescência e a pequenez do homem americano, associadas ao clima hostil do Novo Mundo, Silva escrutina o olhar dos viajantes e teóricos europeus a respeito da diversidade humana encontrada no continente americano. Embora considere que a obra de Buffon não fora responsável pela disseminação do racismo nas centúrias seguintes, ao longo do livro ficava evidente a associação que os viajantes e teóricos europeus traçaram entre as características físicas e o ambiente, mostrando como isso poderia moldar o caráter dos sujeitos encontrados nos mais variados espaços conhecidos por viajantes que adentraram as Américas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Na análise de Bruno Silva (p. 123), “o século das ‘Luzes’ teve papel fundamental no processo de conceituação da degeneração da natureza e homem americanos” e “a expressão raça já estava amplamente relacionada com os caracteres físicos dos indivíduos, embora ainda pudesse rivalizar com outros termos como nação e tribo”.

Tais pressupostos, segundo o autor, já estavam em voga no século XVII e não seriam, portanto, produto do século das “Luzes”, tampouco do Iluminismo. Nesse ínterim, a expansão europeia e a constituição dos impérios coloniais na época moderna estabeleceram práticas discriminatórias que só ganhariam o nome de racismo nos séculos seguintes. Em outras palavras, o texto de Silva encaminha uma argumentação interessante a respeito da consideração da cor da pele como um elemento de diferenciação das sociedades coloniais e, por conseguinte, a manifestação do homem americano como uma criatura degenerada, fundamento para o conceito de raça se consolidar a partir do século XVIII.

A primeira parte do livro pondera acerca dos viajantes e teóricos, bem como suas concepções a respeito do homem americano. Entendendo que a expansão europeia e a chegada ao Novo Mundo, bem como a inserção forçada de africanos escravizados, promoveram sociedades de natureza distinta aos olhos europeus, esses viajantes registravam aquilo que conheciam como “variedades”, “espécies”, “raças”, “nações”. Ao propor um “inventário”, os viajantes produziam obras que dialogavam entre si e serviam de inspiração para abordagens teóricas de europeus que, - salvo exceções - não estiveram presencialmente nas Américas. O contato entre povos distintos, fruto do processo de conquista encabeçada pelos colonizadores, difundiu uma série de visões pautadas na cor da pele, nas vísceras, no clima, no caráter e no viver em colônias. A diversidade encontrada nas Américas, calcada sobretudo na escravização de indígenas e africanos, produziu um mundo diferente, onde a expansão de ideias e práticas deu sentido a uma ordem coerente de hierarquização dos povos dos distintos continentes. A circulação de ideias e interpretações a respeito do homem americano contribuíram para o consenso de que os homens que viviam nas Américas eram uma raça degenerada.

Já na segunda parte do livro, que engloba os dois últimos capítulos, Bruno Silva procura colocar o conceito de raça em perspectiva e, para além disso, apresenta um vocabulário classificatório dos povos do Novo Mundo a partir dos relatos de viajantes, teóricos da diversidade humana e dicionários de época, entendidos enquanto obras de referência. É possível perceber, em sua análise, dois aspectos: primeiro, a busca por nomear e classificar o que era proveniente das Américas; segundo, que a construção desses nomes e classificações coincidia com a existência de povos exóticos se comparados ao europeu, que era símbolo do progresso e da civilização, ainda que tais termos não fossem trazidos ao debate na época. Nesse ínterim, nos parece que o trabalho de Silva dialoga com as proposições de Jane Burbank e Frederick Cooper (2019BURBANK, Jane; COOPER, Frederick. Impérios: uma nova visão da história universal. São Paulo: Planeta, [2010]2019.) acerca de como o processo de construção dos impérios modernos se desenvolveu através de estratégias que acomodaram, criaram e manipularam as diferenças entre as populações. Entendendo que o racismo é uma categoria relacional, cabe sublinhar que a ocorrência de ações discriminatórias que justificavam a superioridade de uns em relação a outros foi verificada em diferentes momentos, coadunada a objetivos próprios de cada época em questão.

Nesse sentido, cabe uma pequena observação a respeito do conceito de raça, cujo significado é marcado pela instabilidade (Bethencourt, 2018BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das Cruzadas ao século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 28). Uma primeira corrente interpretativa defende que o uso da ideia de raça, bem como o racismo, advém do pensamento antigo. Outros autores observam que a raça, enquanto elemento pautado em caracteres físicos, seria produto de fins da Idade Média, sinônimo de casta, voltado às plantas e animais. O sentido étnico do termo raça teria sido dado em fins do século XV, mediante o contato maior entre europeus e povos distintos. Também existem os defensores da ideia de que raça é uma construção conceitual do período moderno e que deve ser compreendida a partir das conexões entre colonialismo e escravidão. E, por fim, temos aqueles que afirmam que raça, atrelada a características físicas, surgiu somente ao término do século XIX, com o triunfo dos nacionalismos.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e suas consequências para a humanidade puseram em discussão a relevância ou não da ideia de raça. Autores como Franz Boas (1922BOAS, Franz. The mind of primitive man. New York: Bibliolife, 1922.) passaram a ser lidos massivamente graças a essa interpretação, onde a raça não era nada mais do que uma piada científica, sinônimo de patologia e irracionalidade. Ainda que o conceito tenha perdido sua legitimidade científica ancorada na perspectiva de que, biologicamente, somos seres iguais, as práticas discriminatórias prevalecem e o racismo, entendido enquanto esse conjunto de práticas, mantém sua continuidade no tempo presente.

Ao retomar as recentes proposições de David Brion Davis a respeito da emergência sobre debate acerca da raça nas Américas, acreditamos que podemos ir além disso: o debate racial não se restringe às Américas. O mesmo está na ordem do dia ao redor do mundo e é uma pauta das agendas das sociedades na contemporaneidade. Em momentos como os que foram vividos ao longo do último ano (2020), nunca foi tão premente a discussão sobre classe social, raça e as desigualdades quando olhamos para aquilo que seria, no mínimo, um direito humano: o acesso à saúde. Ao analisarmos o colapso dos sistemas de atendimento médico, as dificuldades inerentes ao isolamento social, é importante termos em mente que sociedades como a brasileira tiveram um crescimento dos empregos informais e a fragilização das condições de trabalho, sem esquecer os atos de violência e a consequente morte, que atinge milhares de pessoas por dia, em especial as de pele negra.

Unindo-se a uma corrente contrária à ideia de que a teoria das raças antecede o racismo e as práticas discriminatórias, retomamos o trabalho de Bruno Silva (p. 284) onde defende o argumento de que “a ideia de raça considerando aspectos físicos nasceu na América, entre os séculos XVII e XVIII”. Nesse sentido, confere em sua análise uma centralidade ao continente americano, às interpretações sobre seu ambiente e sua humanidade degenerada, objeto de estudos europeus para a conceituaçao do que viria a ser chamado, nos séculos seguintes, de racismo. A originalidade de seu trabalho se expressa no aspecto da construção de ideias a respeito das raças degeneradas que, por um lado, contribuíram para a disseminação de hierarquias que sustentaram os impérios coloniais europeus e, por outro, deram a tônica da existência de uma concepção excludente de humanidade, da qual nem todos teriam o direito de participar. Os efeitos disso são perceptíveis até os dias atuais, o que denota a atualidade da obra de Silva para os debates sobre raça e racismo e, não menos importante, para as lutas antirracistas em prol da construção de sociedades menos desiguais no futuro.

Talvez a crítica mais latente a se fazer a esse trabalho de fôlego investigativo apresentado ao público nas páginas de As cores do Novo Mundo, seria a ausência do século XIX em suas análises, posto que a ascensão de ideias de cunho abolicionista estaria colocando a escravidão em xeque e, em contrapartida, contribuiu para a difusão de um arcabouço de ideias e de uma gramática racial que garantiu a manutenção da propriedade escrava e/ou restringiu direitos aos descendentes de escravizados de origem negra e indígena nos Estados nacionais ao longo do século XIX nas Américas. Ousaria dizer que os “inventários das diferenças” produzidos pelos sujeitos pesquisados por Bruno SilvaSILVA, Bruno. As cores do Novo Mundo: degeneração, ideias de raça e racismos nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Lisbon International Press, 2020. contribuíram para as discussões em torno do racismo científico de fins do Oitocentos ou, ao menos, ofereceram a elas um fio de continuidade. Mas esta seria uma outra história a ser contada.

Referências

  • BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das Cruzadas ao século XXI São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • BOAS, Franz. The mind of primitive man New York: Bibliolife, 1922.
  • BURBANK, Jane; COOPER, Frederick. Impérios: uma nova visão da história universal São Paulo: Planeta, [2010]2019.
  • DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1966]2001.
  • FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala Rio de Janeiro: Aguilar, [1933] 1971.
  • JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: ­Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingos São Paulo: Boitempo, [1938] 2000.
  • SILVA, Bruno. As cores do Novo Mundo: degeneração, ideias de raça e racismos nos séculos XVII e XVIII Lisboa: Lisbon International Press, 2020.
  • WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão São Paulo: Companhia das Letras, [1944] 2012.
  • errata

    ERRATA https://doi.org/10.1590/TEM-1980-542X2021V2714er
    Onde se lia:
    Hevelly Accruche
    Leia-se:
    Hevelly Acruche

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
EdUFF - Editora da UFF Instituto de História/Universidade Federal Fluminense, Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, sala 503, 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil, tel:(21)2629-2920, (21)2629-2920 - Niterói - RJ - Brazil
E-mail: tempouff2013@gmail.com