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“Tríplice utilização” dos corpos negros femininos: gênero, raça, sevícias e escravidão - Rio de Janeiro, século XIX

“Triple use” of black female bodies: gender, race, abuse and slavery - Rio de Janeiro, 19th century

Resumo:

Apresentamos neste artigo reflexões acerca dos diferentes significados desenvolvidos na sociedade escravista do século XIX, sobre mulheres africanas e suas descendentes, e o convívio cotidiano com a tríplice significação de seus corpos e de suas identidades, posto serem elas produtos, produtoras e reprodutoras da e para a sociedade escravocrata do Rio de Janeiro. Nesse sentido, pequenas margens cotidianas foram importantes para ações, escolhas e agências. No embate cotidiano, aquelas mulheres ressignificaram laços de solidariedade, de amizade e familiares, sob o impacto da violência em seus corpos - física, moral e psicológica -, não sem resistências. Para tanto, mobilizamos as categorias de gênero, raça e escravidão para analisar manuais de médicos e de fazendeiros, inventários post mortem, teses médicas e jornais, ao perscrutarmos o corpo feminino escravizado e as diferentes violências a ele impostas.

Palavras-chave:
Corpo escravizado feminino; Escravidão; Gênero

Abstract:

In this article, we present reflections about the different meanings developed in the slave society of the 19th century, about African women and their descendants, and the daily coexistence with the triple meaning of their bodies and their identities, since they are products, producers and reproducers of and for the slave society of Rio de Janeiro. In this sense, small daily margins were important for actions, choices and agencies. In the daily struggle, those women re-signified bonds of solidarity, friendship and family, under the impact of violence on their bodies - physical, moral and psychological -, not without resistance. To this end, we mobilized the categories of gender, race and slavery to analyze doctors’ and farmers’ manuals, post-mortem inventories, medical theses and newspapers, as we scrutinized the enslaved female body and the different forms of violence imposed on it.

Keywords:
Female enslaved body; Slavery; Gender

As diferentes violências impostas - físicas, emocionais e psicológicas - às africanas escravizadas e descendentes, a partir da diáspora forçada, são imensuráveis (Machado, 2018MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.; Viana, Reis, 2018VIANA, Iamara; REIS, Thiago de Souza dos. Violência e morte de escravizados em Vassouras: controle, trabalho e chicote!In: THIESEN, Icléa; SOARES, Joice de Souza; GONÇALVES, Gonçalo Rocha (orgs.). História, memória, instituições: fron­teiras Brasil-Portugal. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018. p. 239-253.; Viana, Gomes. 2021VIANA, Iamara; GOMES, Flávio. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e corpos. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 63-84.; Brito, 2021BRITO, Luciana da Cruz. Mulheres negras e escravidão: reflexões sobre agência, violências sexuais e narrativas de passividade. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 151-164.). A historiografia da escravidão tem, nos últimos anos, apresentado pesquisas significativas em que os corpos femininos africanos escravizados, libertos e livres ganham destaque, incluindo temas sensíveis, complexos, constrangedores e dolorosos, como o não direito à maternidade e à amamentação (Cowling, 2018COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. São Paulo: Editora da Unicamp, 2018. p. 137-172.; Karash, 2000KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.; Machado, 2012MACHADO, Maria Helena P. T. et al.. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.; Ariza, 2021ARIZA, Marilia B. A. Ventre, seios, coração: maternidade e infância em disputas simbólicas em torno da Lei do Ventre Livre (1870-1880). In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 19-40.; Telles, 2021TELLES, Lorena Féres da Silva. Mães e amas de leite nas malhas dos interesses escravistas: mercado urbano de aluguel, abandono e morte de bebês ingênuos no Rio de Janeiro (1871-1888). In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 41-62.), estupros e infanticídios. Africanas de diferentes etnias que adentraram as Américas via tráfico compuseram e construíram riquezas, heranças culturais e se reconstruíram, ressignificaram suas (re)existências, a partir do contato com outras diferentes culturas e etnias: indígenas, africanas e europeias. Afinal, a escravidão retirou-lhes casa, família, filhos, companheiros, bens pessoais e identidade. Mas o reconstruir ou o ressignificar de suas vidas teve um alto preço, não tendo sido possível para muitas mulheres que entraram no então Império do Brasil, pois carregavam consigo a tríplice significação e utilização de seus corpos, posto serem produtos, produtoras e reprodutoras da e para a sociedade escravista do Oitocentos. A depender do período, esses elementos poderiam ser mobilizados para pequenas conquistas cotidianas, nas pequenas margens dos mundos da escravidão, como, por exemplo, nas décadas posteriores à promulgação das leis de fim de tráfico (1831 e 1850).

Elementos, ainda que em pequena escala, são fundamentais para entendermos o modo pelo qual algumas mulheres escravizadas suplantaram as sevícias da escravidão. Afinal, a tríplice utilização/significação atribuída aos corpos femininos escravizados estava interconectada, de modo que, sendo produto - logo, propriedade com valor de mercado significativo -, os diferentes ofícios atribuídos às escravizadas, rurais ou urbanas, possibilitaram construir redes de solidariedades plurais, levando a novas memórias, histórias e identidades. Ainda que apenas para um pequeno quantitativo daquelas mulheres a reconstituição de vidas, famílias, laços de amizade e companheirismo tenha se tornado realidade, nos é extremamente significativo, tendo em vista o modo pelo qual transgrediram o status quo da sociedade escravista. Principalmente com a interrupção do tráfico transatlântico como já mencionado. Isto porque a dificuldade advinda com a lei da compra de escravizados diretamente da África tornou possível a ressignificação de seus corpos e de sua tríplice utilização, de modo que ser produto, produtora e reprodutora ganhou destaque sob os olhares de proprietários, traficantes e médicos. A medicina passou a adentrar a senzala para pedagogicamente construir instruções sobre gravidez, parto e pós-parto na manutenção da vida de mães e filhos, entendidos por médicos e proprietários como propriedades que não poderiam sucumbir no momento do nascimento.

Mas, e quanto às violências físicas e psicológicas? Ser produto, propriedade de outrem, denotava o controle do outro sobre si, sobre seu corpo e suas escolhas. Além do trabalho árduo nas fazendas, nas casas-grandes, alimentação e vestuários inadequados, pouca assistência nas enfermidades, partos e pós-partos, muitas daquelas mulheres tiveram seus corpos violentados não somente pela chibata, mas pelas ações sexuais de homens que acreditavam ter esse direito (Viana, Gomes, 2021VIANA, Iamara; GOMES, Flávio. Senzalas e casebres sob sevícias: violência, feminicídios, médicos e corpos. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 63-84.). Isso se deu de tal modo que as narrativas construídas pela medicina corroboraram a visão de mundo veiculada, na qual africanas, por serem incivilizadas, sentiam menos dor (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839.). Essa narrativa incidiu nas diferentes atribuições de trabalho no campo, na casa-grande, bem como nos (não) cuidados em momentos de moléstias, durante o período de gravidez e, até, no momento do parto. O uso de seus corpos - seguindo os pressupostos médicos - poderia ir além, posto a incivilidade estar relacionada à resistência física e, logo, ao suportar também a violência sexual.

Nesse sentido é que propomos pensar africanas escravizadas e suas descendentes, o que nos remete aos significados de gênero e raça no século XIX. Não podemos deixar de mencionar a relevância da concepção ocidental acerca da definição de feminino e de masculino, tendo por base a biologia, o pensamento “bio-lógico” (Oyewùmí, 2021OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 39). Para tanto, mobilizamos o pensamento de Jean-Baptiste Alban Imbert, médico francês que, por questões políticas, deixa seu país e chega ao Império do Brasil em 1831. Atuando, após a aprovação de sua tese, segundo a lei de 1832, escreveu algumas obras, dentre as quais destacamos o seu Manual do fazendeiro,1 1 Para pesquisa sobre o médico francês Jean-Baptiste Alban Imbert, sua escrita e atuação médica na Corte do Império do Brasil, consultar Viana (2016). dedicado a estudar a medicina popular e as moléstias dos pretos. Assim, o modo pelo qual discorre sobre africanos e sua anatomia nos aproxima de sua leitura acerca deles.

O corpo feminino escravizado no século XIX não poderia ser lido somente a partir de aspectos físicos. Seguindo, inicialmente, a perspectiva de Foucault, iniciamos nossa reflexão conectando o biológico com o político. Contudo, sendo aquela sociedade complexa, precisamos ampliar tal concepção para além do biopolítico (Foucault, 1979FAURE. Les Français et leur médecine au XIXe siècle Paris, Belin, 1993, 316 p., p. 80), posto ser fundamental considerar que o corpo feminino fora também construído e ressignificado culturalmente no tempo e no espaço, fator que influenciara o modo pelo qual era visto, pensado e manipulado nos diferentes trabalhos e castigos, desde o aspecto físico ao psicológico. Corpo que trabalha, age e não apenas reage, faz escolhas, resiste e persiste, ressignifica relações familiares e de solidariedade, pensa, aprende e apreende. Entretanto, quando diferentes culturas se entrelaçam e formam um mosaico étnico, cultural e político, como definir gênero? Isso pode se tornar ainda mais complexo, tendo em vista que estamos discorrendo sobre uma sociedade ocidental, na qual culturas não ocidentais adentram em condições desiguais, econômica, política e culturalmente.

A tríplice utilização dos corpos africanos femininos: produto, produtor e reprodutor

A tríplice utilização de corpos africanos femininos tem por base as formas de uso da escravizada dentro do contexto histórico do Império do Brasil após a promulgação da primeira lei de fim de tráfico. Afora ser produto e produtora, a escravizada africana passou a ser elemento importante na manutenção da escravidão, portanto, reprodutora. Compreendemos que “a concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas” (Le Goff, 1985LE GOFF, Jacques. A política será ainda a ossatura da História? In: O maravilhoso e o cotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 221-242., p. 221-242), significando, também, ter passado por processos de mudanças nos diferentes tempos históricos. Considerando-se a lógica ocidental, a biologia embasou o pensamento sobre corpo e gênero, isso porque “nas sociedades ocidentais, as categorias de gênero, como todas as outras categorias sociais, são construídas com tijolos biológicos, e sua mutabilidade é questionável (Oyewùmí, 2021OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021., p. 39). Nesse cenário, “em que bases as categorias conceituais ocidentais podem ser exportadas ou transferidas para outras culturas que possuem uma lógica cultural diferente?” (p. 40).

Questão complexa, tendo em vista as diferentes formas de usos dos corpos africanos e descendentes escravizados nas Américas a partir da diáspora forçada. Jennifer Morgan (2004MORGAN, Jennifer. “Hannah and her children”: reproduction and creolization among enslaved women. In: MORGAN, Jennifer. Labouring Women: Reproduction and Gender in New World Slavery. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004, p. 107-143.) ao pesquisar sobre a crioulização que ocorrera nas Américas escravagistas no século XVIII aponta como o se tornar mãe para mulheres escravizadas modificou a visão de mundo de proprietários e também daquelas mulheres. Segundo Morgan existia uma conexão “óbvia, embora contraditória, entre o crescimento brutal da propriedade de escravos e o desenvolvimento de comunidades crioulas” de modo que, “mulheres escravizadas se veriam lembradas desse fato quando elas e seus filhos, às vezes juntos e às vezes separadamente, se viam marcados como uma fonte de riqueza crescente” ainda que concomitantemente naquela sociedade escravista “suas identidades como pais fossem simultaneamente reconhecidas e descartadas” (Morgan, 2004MORGAN, Jennifer. “Hannah and her children”: reproduction and creolization among enslaved women. In: MORGAN, Jennifer. Labouring Women: Reproduction and Gender in New World Slavery. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004, p. 107-143., p. 119). Suas análises apontam a existência de uma dupla exploração das mulheres escravizadas: produtoras e reprodutoras.

(...) as crenças sobre as mulheres como produtoras e reprodutoras permaneceram constantes. Apesar da convicção de que a população negra representava enormes perigos potenciais, um número crescente de proprietários de escravos percebia as mulheres escravizadas como mães em potencial. Na década de 1730, 28% dos testadores usavam o termo ‘aumento’; 35% o fizeram na década seguinte (Morgan, 2004MORGAN, Jennifer. “Hannah and her children”: reproduction and creolization among enslaved women. In: MORGAN, Jennifer. Labouring Women: Reproduction and Gender in New World Slavery. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004, p. 107-143., p. 140).

Aproximações e distanciamentos são possíveis ao comparar as diferentes sociedades escravistas na América, contudo, podemos observar as peculiaridades a partir da análise de diferentes fontes para o Brasil escravista. Afinal, como aquele corpo feminino africano escravizado fora pensado, auscultado, utilizado e explorado? Tendo sido o corpo “investido política e socialmente como força de trabalho” (Foucault, 1979FAURE. Les Français et leur médecine au XIXe siècle Paris, Belin, 1993, 316 p., p. 80), a concepção médica acerca da origem das escravizadas africanas corroborou sua ampla utilização. O desafio para nós, historiadoras e historiadores da escravidão, incide na identificação dos diferentes discursos construídos sobre a mulher africana escravizada, bem como de suas falas, diretas ou indiretas - nos casos dos processos-crime e testamentos -, e, por meio das fontes, compreender como ela se percebia; isso, num contexto em que as definições corporais estavam distantes daquelas conhecidas antes da diáspora forçada, tendo em vista as concepções de gênero propostos por Oyèrónké Oyewùmí. Segundo a autora, “a sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria2 2 Africanos ocidentais, na longa história do tráfico atlântico para as Américas, os escravizados vindos dessa região para o Brasil constituíram, aproximadamente, 25% do total dos africanos desembarcados deste lado do Atlântico, segundo Luis Nicolau Parés (2018). sugere um cenário diferente, no qual o corpo nem sempre é recrutado como base para a classificação social”. Na verdade, Oyewùmí informa ser “a hierarquia social determinada “pelas relações sociais”, sendo o “princípio que determinava a organização social (...), a senioridade, baseada na idade cronológica” (2021, p. 43). Lógicas distintas sobre o mesmo corpo escravizado.

Mulheres africanas, no pós-1831, tiveram seus corpos ressignificados para atender à nova demanda do Império do Brasil. A lei que pusera fim ao tráfico de africanos, em momento de crescimento econômico, impactou na dinâmica de reposição da principal mão de obra mobilizada nos mais diferentes ofícios (Mattos, 2004MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.; Rodrigues, 2000RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp; Cecult, 2000.; Araújo, 2018; Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX: senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.). Inferimos, a partir das fontes consultadas, que novas perspectivas, escutas e observações foram importantes para que, após a primeira e segunda leis que puseram fim ao tráfico transatlântico, a principal mão de obra utilizada no Império do Brasil continuasse a atender o desenvolvimento econômico e político. Provavelmente, modificações ocorreram nesse processo, no que tange aos cuidados com os corpos femininos africanos escravizados e de seus e suas descendentes. Tomamos o termo corpo na sua completude e complexidade, construção e ressignificações, de acordo com o tempo e o espaço. Não seria possível nos limitarmos apenas às questões físicas, em análises da sociedade escravista do século XIX, tendo em vista o exposto acima.

Segundo Jean-Baptiste Alban Imbert,

a escravidão subsiste, pois, ainda em grande parte nas Ilhas e no Continente Americano, particularmente no Brasil; mas aqui será incontestavelmente mais doce e mais humana, pois que a dificuldade de dar substituição ao que se possuem fará recorrer aos meios os mais convenientes de conservar o que já se tem (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. XVV).

Atentar para as condições de trabalho e de vida poderia significar benefícios para fazendeiros do vale do Paraíba fluminense, pois, a partir de 1830, a demanda pelo café brasileiro havia aumentado significativamente. Embora o médico aponte que a “dificuldade de dar substituição ao que se possue”, no caso, os escravizados, resultaria em uma escravidão “incontestavelmente mais doce e humana”, havia discordância e, por conseguinte, tensões tecidas nos mundos da escravidão entre os que desejavam e buscavam a liberdade. A modificação, no “melhor cuidar” do corpo escravizado, era complexa, tendo em vista as diferentes formas de escravização percebidas no vasto território do Império do Brasil. Há que se considerar as “negociações e conflitos”3 3 Questão posta pelos historiadores João José dos Reis e Eduardo Silva (1989), indicando que o escravizado não fora sempre vítima, como nem sempre algoz. As negociações foram muitas e realizadas de diferentes formas entre escravizados e seus senhores. que incidiram diretamente sobre a questão.

Em contraponto a esse olhar, David Jardim - um médico brasileiro, natural da província do Rio de Janeiro - apresentara-nos outro, avesso ao primeiro. Entrevistando um fazendeiro e questionando-o sobre o pouco cuidado dispensado a sua propriedade escravizada, o médico recebera como resposta a facilidade de reposição e, portanto, o uso ao extremo das forças de seus trabalhadores escravizados estaria contabilizado, ainda que isso significasse mortes precoces. Este proprietário demonstrava, assim, não acreditar no cumprimento da lei de fim do tráfico. Jardim defendeu sua tese na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1847 (Jardim, 1847JARDIM, David Gomes. A hygiene dos escravos. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1847.), portanto, a três anos do fim efetivo do tráfico transatlântico e já passados 16 anos da lei de 7 de novembro de 1831. Embora muitos proprietários esperassem que a lei pudesse ser implementada, de modo a encher suas senzalas de negros, garantindo a mão de obra necessária para a manutenção de seus negócios, muitos outros, como demonstra Jardim, não compartilhavam do mesmo pensamento, afinal, a escravidão continuou a embasar relações econômicas e políticas, tendo em vista ser ela o alicerce da economia imperial e o escravizado seu eixo estruturante (Mattos, 2004MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.; Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.; Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX: senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.).

Nesse sentido, Imbert, ao tecer relações, enquanto médico na sociedade imperial brasileira, e também como membro da Academia Brasileira de Medicina, organizou, por meio de suas conjecturas, a maneira correta de tratar um doente, de efetuar um procedimento, de realizar partos, de conduzir dietas durante o período de moléstia e, até mesmo, atuou pedagogicamente, construindo a narrativa de seu Manual, para atender a proprietários distantes da cidade-Corte. Ora, sendo a Academia um espaço institucional, em que os médicos produziam saberes, Imbert a utiliza para conquistar autoridade reconhecida, para exercer práticas e saberes médicos.

A intervenção em três momentos-chave - compra, doença e parto - poderia garantir ao proprietário ampliar ao máximo a expectativa de vida de escravizados, atendendo à demanda econômica, posto que cuidasse da manutenção da mão de obra fundamental ao Império do Brasil, no momento em que o “abominavel e odioso trafico, designado pelo nome de commercio de escravatura” (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. XI), estava chegando ao fim. Socialmente, esse tipo de ação médica poderia diminuir doenças que extrapolavam as senzalas, atingindo a casa-grande e as famílias aristocráticas da Corte. E mais, contribuiria para abrandar mortes de prematuros, bem como para que partos fossem bem-sucedidos, garantindo, assim, o aumento do patrimônio senhorial, nem sempre simples, visto que os medicamentos europeus eram bastante caros, de modo que o acesso a conhecimentos de drogas e de plantas medicinais da terra seria fundamental para muitos daqueles médicos.

Importa-nos, nesse sentido, refletir sobre o possível código de leitura e de práticas sobre o corpo,4 4 Faure (1993, p. 15). Aqui o autor expõe as questões relativas aos seus objetivos neste artigo. Nós apresentamos a forma como utilizaremos tais expressões, que se aproximam das dele, na medida em que pensamos o corpo a partir da visão médica. Contudo, as construções sociais e culturais que influenciam nas diferentes experiências individuais ou em grupos também são para nós igualmente relevantes. no início do século XIX, especificamente na sociedade carioca do Império do Brasil, a partir das proposições do médico francês Jean-Baptiste Alban Imbert. Compreendemos por código de leitura o modo pelo qual o médico francês, mediante sua formação acadêmica e pessoal, entendia, auscultava e descrevia o corpo, distinguindo-o por gênero e raças, destacando suas peculiaridades relativas a origem, temperamentos e moral, a incidirem no desenvolvimento de enfermidades - afinal, a “leitura de nosso corpo não é apenas médica” (Faure, 1993FAURE. Les Français et leur médecine au XIXe siècle Paris, Belin, 1993, 316 p., p. 13). Nesse sentido, compreender tempo e espaço é fundamental na reflexão pretendida. Certamente, no cenário da promulgação da primeira lei do fim do tráfico, tais conhecimentos seriam importantes na economia racional do corpo escravizado, em momentos cruciais, como o mencionado acima. Ora, nesse cenário, a despeito do tráfico ser ilegal, a escravidão se intensificou, para atender à demanda pelo café no vale do Paraíba fluminense, e, para tanto, alguns instrumentos foram empregados para burlar a aludida lei de 1831.

Evidencia-se, na sua obra, o corpo como objeto central para se pensar a força do trabalho escravizado. Analisando o corpo e sua composição, na perspectiva de Imbert, poder-se-ia comprar trabalhadores escravizados moralmente aceitáveis, sadios e que, ao longo dos anos, não desenvolvessem moléstias incuráveis ou que causassem a morte. Sendo este comércio “um ramo de comércio muito considerável, são os escravos como uma mercadoria, que passa de uma mão a outra para o consumo, com a única diferença de reservar-se o comprador, em geral, o direito de fazer examinar sua boa, ou má qualidade, antes de fechar o trato”, para tanto, o comprador poderia recorrer aos serviços de um médico ou cirurgião responsável para emitir “juízo sobre as qualidades, ou defeitos físicos do negro, juízo que serve de norma no mercado” (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 1).

O acesso à “norma de mercado”, entretanto, não conseguia evitar grandes perdas para fazendeiros com consideráveis investimentos em período de tráfico ilegal. Dessa forma, o médico ou o cirurgião auferiam grande apreço, decorrente de seus conhecimentos e saberes, sobre o corpo escravizado. Poderiam, desse modo, precaver e evitar a aquisição de “huma mercadoria” com “defeitos physicos”, os quais indicariam o desenvolvimento de moléstias temidas por serem quase sempre fatais. Para o escravizado e seus entes, não podemos inferir ou supor as perdas. Contudo, a diminuição da mão de obra era um fato. Trata-se de uma questão relevante, posto que “manter a unidade do Império - isto é, o equilíbrio econômico e político entre os diferentes interesses escravistas - implicava, indubitavelmente, em evitar que determinadas áreas fossem esvaziadas de seus escravizados em proveito imediato de outras” (Mattos, 2004MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004., p. 249).

O saber e o controle do corpo da trabalhadora escravizada - enquanto produto, produtora e possível reprodutora -, nessa perspectiva, poderiam permitir maior autoridade e influência sobre a força de trabalho a ser explorada, bem como determinar causas e tratamentos de enfermidades que, em muitos dos casos, produziam um número significativo de mortes, o que se tornara efetivamente preocupação, a partir do fim do tráfico transatlântico, em 1850. Tal saber e tal controle do corpo atendiam a pressupostos diferenciados, e o olhar de Imbert impunha algumas questões relativas à relação entre idade e trabalho, tendo esta divisão como pressuposto estabelecer ofícios ou especialidades de trabalho “calculado segundo as forças, a inteligência, e a experiência próprias destas diferentes épocas da vida” (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 357-358).

A divisão em classes/idades permitiria ao médico e aos proprietários identificarem habilidades e forças específicas a cada faixa etária de africanas, africanos e descendentes. Alocar os diferentes grupos em ofícios específicos possibilitaria abarcar com melhor proveito a mão de obra em benefício da produção e reprodução. A presença da figura de “um negro de confiança”, que fazia “as vezes de superintendente”, viabilizaria a manutenção de ordem, controle e eficácia. Isso evitaria tensões e perdas vinculadas aos castigos violentos, o mediador permitiria aos proprietários “estabelecer harmonia”, afinal, as perdas eram muitas, mas conhecer bem esse corpo escravizado e intervir nele poderia ajudar a minimizá-las.

O uso racional da mão de obra escravizada no período do tráfico ilegal pressupunha deter outros conhecimentos, como a origem da escravizada, fator que poderia incidir diretamente nas escolhas de proprietários. Afinal, o objetivo seria “seguir as normas do mercado” e, assim, mulheres escravizadas, enquanto produto, deveriam ser submetidas a exames específicos, indo do tipo de pele, dentição, órgãos sexuais à sua etnia africana. Segundo Imbert (1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 2), “as negras do Congo merecem estima, porque acostumadas no seu país a cultivar a terra, são em geral laboriosas”. Elas atendiam, assim, um dos objetivos e das normas de mercado no pós-1831/1850: seriam boas trabalhadoras na produção cafeicultora. Sendo muitos fazendeiros também ligados ao mundo da política, conseguiram abarrotar suas senzalas antes que a lei fosse promulgada. Contudo, elementos como pouca alimentação, vestimentas inadequadas, trabalho exacerbado, castigos cotidianos, pouca higiene e doenças tinham como consequência a diminuição dos números que enchiam as senzalas, afetando propriedade, produtividade e reprodução.5 5 Sobre mortalidade escrava e causa mortis ver Viana (2009); Karash (2000); Rodrigues (2005); Pereira (2007). Diante desse cenário, construído econômica, cultural e politicamente, os corpos femininos africanos escravizados tornaram-se imprescindíveis, sendo, concomitantemente, produtos, produtores e reprodutores, na e para a sociedade escravocrata do século XIX. A tríplice utilização de seus corpos incidiu diretamente nos usos da mão de obra feminina escravizada - nos mundos urbanos e rurais -, nos diferentes ofícios, mormente na necessidade de racionalização, para a manutenção da propriedade pelo maior tempo de vida útil possível, o que poderia garantir a manutenção de preços e de produtividade. Jennifer Morgan apontou que, nas sociedades escravistas das Américas, a vida reprodutiva das escravizadas “estava ligada à vida e ao trabalho da colônia” (2004, p. 129-130). No Império do Brasil, mulheres africanas escravizadas e descendentes, além de produtos e produtoras, poderiam reproduzir, por meio de seus filhos e filhas, a escravização e garantir a continuidade do sistema escravista, constituindo, assim, sua tríplice utilização.

Observar o lugar ocupado pela escravizada nos mundos do trabalho na sociedade escravista possibilita analisar seu papel, sua atuação, suas escolhas, sua agência, bem como as violências, as negociações e tensões engendradas. Se, no mundo colonial inglês e francês, as mulheres eram as preferidas para o trabalho na agricultura, no mundo ibérico apresentou-se preferência pelos corpos masculinos, resultando em sociedades formadas majoritariamente por homens, o que só foi modificado após o fim do tráfico transatlântico e com a reprodução natural (Machado, 2018MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018., p. 335). Os proprietários, na sociedade escravista brasileira, acreditavam serem os africanos escravizados os responsáveis por “realizar todas as atividades manuais e servir de bestas de cargas da cidade” (Karash, 2000KARASH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 259). De modo que os cativos não serviam somente como máquinas e cavalos; na capital e em diferentes províncias do Império do Brasil, foram produtores da riqueza do capital de seus donos e da cultura brasileira. Nada distante do cotidiano da escravidão rural, posto escravizados exercerem todos os ofícios manuais, da casa-grande à lavoura, produzindo diferentes tipos de produtos, serviços e riquezas.

Em Vassouras, município do Rio de Janeiro, principal cidade produtora do café6 6 O café, produto que, no século XIX, tornou-se o mais importante do Império do Brasil, contribuiu para tornar o tráfico uma atividade lucrativa, mesmo após 1830, com a sua ilegalidade. Continuará lucrativa após 1850, momento ainda de expansão de sua cultura, e o fim definitivo das operações atlânticas. Sobre a produção cafeeira no vale do Paraíba fluminense, ver Viana (2009); Salles (2008); Stein (1990). para o Império do Brasil, mulheres escravizadas africanas e suas descendentes desenvolviam cotidianamente tarefas específicas, o que certamente contribuiu para a produção de mão obra qualificada, destacando-se, na década de 1840, os ofícios de costureira (60.19%), cozinheira (18.44%), engomadeira (6.80%), lavadeira (5.83%), rendeira (1.95%), mucama (1.95%) e de roça (4.85%).7 7 Inventários post mortem, 1840-1849. Centro de Documentação Histórica de Vassouras. As costureiras representavam, quantitativamente, a maioria daquelas trabalhadoras isentas de liberdade. Inversamente, as que desempenhavam trabalhos relacionados à plantação, colheita, capina, não chegavam a 5% do total de escravizadas com ofícios assinalados nos inventários de seus proprietários,8 8 Inventários post mortem, 1840-1850. Centro de Documentação Histórica de Vassouras. documentos que expunham o patrimônio senhorial e os valores das escravizadas, segundo idade, origem e habilidades (Tabela 1).

Tabela 1
- Ofícios de escravos por gênero e faixa etária, 1840-1849

A análise das fontes, que permitiu a confecção das Tabelas 1 e 2, nos consente inferir mudança significativa após a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Com o tráfico de africanos posto na ilegalidade, a mão de obra escravizada precisava ser utilizada racionalmente, o que significava produzir para atender às demandas externas, pois o preço de escravizados havia aumentado substancialmente, e a dificuldade de compra, igualmente. De modo que, nas décadas entre 1850 e 1880, africanas e suas descendentes tiveram como principais ofícios, descritos nos inventários post mortem de seus proprietários, os: de roça (34,95%); costureira (17,40%), mucama (10,19%), doméstica (7,20%), serviços domésticos vários (7,05%), cozinheira (6,97%), engomadeira (2,50%), lavadeira (3,75%). A inversão nos quantitativos de escravizadas assentes nos ofícios associados aos cuidados domésticos da casa-grande e aqueles realizados nas plantações de café é significativa, considerando-se o aumento pela demanda do café brasileiro a partir da década de 1830, incidindo diretamente na garantia de sua produção, ou seja, na existência de trabalhadores em número suficiente para o plantio e colheita.

Tabela 2
Ofícios escravos por faixa etária e gênero, 1850-1880

O corpus documental analisado9 9 Pesquisa desenvolvida durante o mestrado na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Viana, 2009). corrobora o trabalho feminino escravizado predominante em ofícios associados aos cuidados da casa, alimentação e vestuário, entre os anos de 1840 e 1850, para o município de Vassouras, o que também pode ser observado para a Corte. A promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, promoveu, muito antes de ser assinada, debates intensos entre os homens de poder político e econômico que se recusavam a aceitar intervenção do Estado em seu patrimônio pessoal. Não obstante, ainda que africanos escravizados continuassem adentrando no território do Império do Brasil até 1856 (Slenes, 2018SLENES, Robert. Africanos centrais. In: SCHWARCZ, Lilia; GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 64-70), repensar a administração da mão de obra escravizada tornou-se elemento fundamental para a continuidade do sistema escravocrata. Os fatores foram muitos, como o aumento do seu valor, a dificuldade de entrada ilegal de novos carregamentos vindos da África, posto o maior controle dos portos, influenciando diretamente em maiores cuidados com o corpo escravizado, e, no caso das escravizadas, o incentivo à reprodução. A utilização racional da força de trabalho passou a ser considerada basilar, bem como os cuidados com alimentação, vestimentas, parto, pós-parto e limites aos castigos físicos.

Neste novo cenário, os números apontam a maior utilização da mão de obra feminina escravizada, a partir de 1850, nos serviços “de roça”, e não mais nos serviços relacionados a costuras ou ao mundo doméstico da casa-grande. A alteração é expressiva. Se, no primeiro período analisado, costureiras representavam 60,19% do total das escravizadas que tiveram um ofício mencionado nos inventários post mortem de seus senhores, elas passaram a representar 17,40% a partir de 1850. Por outro lado, as “de roça”, até a década de 1850, somavam 4,85%, contra 34,95% nos anos posteriores. Se, na escravidão rural, as mulheres estavam ligadas a diferentes trabalhos como produtoras, fosse na casa-grande ou nas plantações, no mundo urbano, trabalhos como quituteiras, vendedoras, amas de leite, possibilitaram maior contato com os mundos da liberdade e suas possibilidades reais ou imaginadas.

Anatomia de corpos: entre dores e sevícias

Sendo a reprodução da e para a sociedade escravista do século XIX importante para sua manutenção, conhecer anatomicamente o corpo feminino era relevante. Nesse sentido, saberes médicos tornaram-se fundamentais para que objetivos específicos fossem alcançados com sucesso, na intervenção em enfermidades e partos, ou na cura de corpos doentes. Se, enquanto produto adquirido no mercado para o trabalho - portanto também produtora -, observou-se a origem das mulheres africanas, para a reprodução, necessitava-se observar as modificações impostas pela chamada puberdade, ou, segundo o médico Imbert (1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 242), “a passagem da infância para a adolescência”.

O modo pelo qual o corpo feminino e suas mudanças são minuciosamente descritos chamam a atenção. O da menina desenvolve-se “em todos os sentidos; a dilatação das cadeiras faz com que a cintura pareça mais airosa; novos e macios contornos prestam graça aos braços e ao pescoço”, e continua, destacando “a aquisição de maior quantidade de tecido celular aumenta o volume dos peitos, os quais se revestem de uma forma semiesférica que tanto agrada a vista”. Quanto aos cabelos, “um dos mais belos ornatos da mulher”, “crescem a vista dos olhos; harmonizam-se as feições do rosto; o todo em fim, do formato físico apresenta um aspecto que mais não pertence à infância, da qual então se acha a donzela afastada por uma distância imensa”, embora a menina no dia anterior pudesse estar “ainda talvez toda entregue aos gostos e às graças do estado infantil” (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 242). Perceber a passagem da infância para a vida adulta, no caso feminino, significaria disponibilidade para a concepção, a fertilidade e a maternidade; contudo, em se tratando de mulheres escravizadas, poderia estar relacionado à violência sexual e ao estupro.

Escravizado ou não, o fato era tratar-se do corpo feminino, e, portanto, do corpo restrito às questões morais da sociedade escravista do início do século XIX. Mesmo cativa, a mulher não deixava de compartilhar valores sociais, os quais poderiam ser rompidos por imposição de seu senhor, certamente. Provavelmente, por esse motivo, as considerações de Imbert não faziam distinções entre raças. Nesse quesito, afinal, as mudanças do corpo, bem como a primeira menstruação, ocorreriam independentemente disso, assim como do temperamento, da origem ou da cor da mulher. A natureza agiria, assim, marcando o início da vida adulta. Entretanto, em tempos de fim de tráfico, seria necessário repensar a questão. Tais evidências marcam o início da fertilidade feminina e a provável chegada de novas crianças - no caso das mães escravizadas, de futuros novos trabalhadores escravizados, elucidando o seu lugar enquanto reprodutora. Objetivo e claro, o médico francês aponta seu interesse em estudar e discorrer, em seu manual, sobre erros e prejuízos que não permitiam o aumento da população dos negros escravizados. De fato, o número de mortes que seguiam ao parto, ou ocorriam alguns meses após, era significativo. Nesse sentido, identificar fatores que ocasionavam altas taxas de mortalidade entre a população escravizada era premente. Um desses fatores seria o parto realizado por parteiras e comadres, que geralmente acompanhavam a “futura mãe antes, durante e depois da chegada da criança” (Rohden, 2006ROHDEN, Fabíola. Histórias e tensões em torno da medicalização da reprodução. Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 213-224, 2006., p. 213) Isso, a despeito de 99 partos, em cada 100, ocorrerem em conformidade com “os desejos da Natureza”, ou seja, de modo natural, sem resultados ruins para a mãe e para a criança, não devendo recorrer ao que Imbert (1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 249) definiu como “mãos estranhas”.

Importa destacar o olhar do médico relativo à resistência das escravizadas à dor, justamente por não serem civilizadas. Os gastos com um cirurgião e medicamentos não eram poucos, podendo significar prejuízo para os fazendeiros, em especial os de menor porte. Não sendo as negras dadas a “fraqueza e frouxidão”, tal gasto não seria necessário. Os corpos das escravizadas seriam mais resistentes às dores, pelo fato de serem as negras africanas, ou suas descendentes, incivilizadas. A preocupação em tornar a população escravizada numericamente maior, por meio do crescimento endógeno, corrobora a narrativa do doutor Imbert (1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 255) ao descrever “reflexões sobre alguns erros e prejuízos Africanos, que tendem a diminuir os progressos da população entre os escravos”. Atentar para os prejuízos significava atentar para as “negras que acabam de parir, isto é, que acabam de aumentar o capital de seu senhor, não são sempre tratadas, forçoso é confessá-lo, com as atenções que o seu melindroso estado requer”. Contrariamente, “jazem quase geralmente, e com elas as crias, em um quarto escuro, húmido, e não arejado; o que as expõem a apanhar moléstias graves. Toda a mulher parida deve respirar um ar puro; é uma necessidade esta, de que todos devem ficar bem convencidos”. Deveria haver, assim, cuidados higiênicos, para que as propriedades senhoriais - mãe e filho - pudessem sobreviver após os “estragos do parto” (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 257).

Africanas escravizadas corroboravam o aumento do capital de seu senhor, assim pensava o médico sobre as que se tornavam mães. Seus filhos, descritos como crias, seriam esse capital. A dieta da escravizada parida deveria atender às necessidades do corpo que havia passado pelos “estragos do parto”; todavia, após a recuperação, ou o período de resguardo, deveria ela retornar ao “seu gênero ordinário de vida” e aos seus alimentos costumeiros: carne seca, farinha e feijão. A preocupação com a escravizada que não pudesse amamentar seu filho era com os seios e o leite; para esses casos, Imbert ensinava receita, para que eles “murchassem”, ou seja, deixassem de produzir o leite (Imbert, 1839IMBERT, J. B. A. Manual do fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1839., p. 258). Podemos inferir, após reflexão detida na questão de gênero, que o domínio do corpo feminino escravizado pelo senhor possibilitaria o controle sobre a reprodução e, consequentemente, o aumento da população escravizada, da mão de obra e do patrimônio.

Embora, para seus senhores, e pelo olhar médico de Imbert, as escravizadas estivessem produzindo bens e os aumentando para seus proprietários, daí a necessidade do conhecimento sobre seus corpos, e quando estariam aptos para a reprodução, o mesmo não podemos dizer do que pensavam aquelas que reproduziam. Apesar de não haver falas diretas, podemos analisar as entrelinhas das narrativas do médico francês. Para mães escravizadas, seus filhos não eram mercadorias, certamente, e, por isso, não havia interesse na procriação. O modo como elas, provavelmente, tinham de dizer não aos desmandos senhoriais, acerca de seu corpo, era não engravidar, abortar, ou até matar o filho recém-nascido. Conheciam as dores da escravidão e, por certo, não as queriam para seus descendentes, nem mesmo recebendo um “prêmio” por isso.

Miguel Calmon Du Pin e Almeida, em seus argumentos na defesa de reformas dos engenhos de açúcar brasileiros, em 1834, demonstra interesse em convencer os senhores proprietários brasileiros a cuidar melhor de seus escravizados e, diferentemente de Imbert, não recorre a argumentos cristãos e morais (Marquese, 2004MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 268-269). Concordavam, contudo, acerca da necessidade de mãos para a promoção econômica do Império do Brasil. Para tanto, os proprietários deveriam preservar a vida de seus escravizados, bem como de sua reprodução, proporcionando melhor alimentação e vestimentas. Essas questões foram abordadas por Imbert, David Jardim e muitos outros médicos do período. As ideias sobre como e por que tratar melhor escravizados parecem ter um núcleo comum para o período, em que higiene, vestimentas, alimentação, família, roças próprias, sempre eram mencionados nos manuais.10 10 Outros manuais de medicina foram mencionados e analisados no desenvolvimento da pesquisa. Destacamos que Imbert apresenta, como diferencial, a mobilização do saber médico-acadêmico na economia racional do corpo escravizado, masculino e feminino, para a maximização da mão de obra e aumento da população escravizada, por meio do conhecimento das características físicas e morais. O barão de Paty de Alferes, em 1847, ao escrever manual sobre a administração de uma fazenda de café, aponta cuidados necessários a serem tomados com uma escravizada grávida, e a necessidade em colocá-la a exercer trabalhos mais “leves” durante o período da gestação.

Rafael Marquese, embora aponte a importância da reprodução endógena, a partir de 1831, nas diferentes produções de médicos e fazendeiros, destaca a relevância do aumento quantitativo de escravizados em relação à entrada ilegal e ao tráfico interprovincial. De fato, eles ocorreram, mas acreditamos que, a partir do enrijecimento da proposta da lei de 1831 e, principalmente, a partir de 1850, com sua efetiva promulgação e maior controle dos portos, desenvolveu-se maior atenção e cuidado com a reprodução natural entre as escravizadas. Após análise dos manuais de fazendeiros, Marquese conclui não ter havido crescimento vegetativo depois da primeira lei do fim do tráfico. A reflexão pontual do autor remete a possível e significativa mudança na administração dos escravizados, que pudesse deliberar sobre o término do tráfico atlântico de escravos (Marquese, 2004MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 284-286).

Ricardo Salles, em E o vale era o escravo, assinala que, após 1850, “sem a interferência do afluxo de novos africanos jovens e adultos, trazidos pelo tráfico” a reprodução vegetativa da população escravizada pode ser notada com mais clareza (Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX: senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 237). A probabilidade da pouca importância conferida aos nascimentos de escravizados, antes de 1840, período de expansão da plantation escravista, no vale do Paraíba fluminense, especialmente em Vassouras, segundo o autor, situava-se no fato de que muitas senzalas estivessem cheias, já que a mão de obra escravizada seria requerida abundantemente. Salles assinala, em suas reflexões, indícios “do pouco valor que se conferia aos nascimentos e às crianças antes de meados da década de 1840”, nas fazendas de Vassouras. Ora, eram as crianças as que menos ofereciam benefícios, em termos de mão de obra, aos senhores. Não podiam trabalhar e diminuíam o quantitativo de escravizadas nos trabalhos a elas designados. E, não por acaso, Imbert insistira nos conhecimentos anatômicos sobre o corpo feminino escravizado, o parto e os cuidados para com os recém-nascidos, na tentativa de demonstrar como deles tirar o melhor proveito após a primeira infância. Principalmente, como garantir um parto bem-sucedido e o nascimento de criança viva, que pudesse aumentar o patrimônio senhorial.

A partir de 1845, modificaram-se as anotações realizadas nos inventários post mortem de proprietários de Vassouras, indicando maior atenção aos nascimentos e, após 1850, evidencia-se o aumento do quantitativo de filhos de escravizadas (Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX: senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 237). Tais considerações demonstram o percurso extenso para que, enfim, muitos fazendeiros pudessem acreditar que a lei entrara em vigor, não sendo tão simples ou fácil, como até então fora, comprar novos escravizados. Salles demonstra, em sua pesquisa, um crescimento considerável, entre as décadas de 1821 e 1880, de nascimentos nas fazendas de Vassouras, onde, entre 1821-1850, 420 filhos de escravos receberam registro; entre 1851-1860, 836; entre 1861-1870, 1.439; e entre 1871-1880, 1.688 (Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX: senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 238).

Os dados acima viabilizam nossas reflexões sobre o longo processo de modificação cultural, relativo ao fim do tráfico negreiro, e as subsequentes dificuldades do comércio de carne humana. Dada a complexidade da sociedade escravista do Oitocentos, as sugestões dos manuais de medicina e de fazendeiros, no início do século XIX, só foram apreciadas num período posterior às primeiras propostas. Destacamos que as conjecturas de Imbert, descritas em seu Manual do fazendeiro, na primeira edição de 1834 e na segunda, de 1839, se tornaram importantes a ponto de serem utilizadas por um administrador de fazenda como um método para cuidar dos escravizados doentes, em 1840. Afinal, tendo sido a lei promulgada para ser cumprida, segundo nos aponta Chalhoub (2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), a medicina atuou como uma das formas de burlá-la e, não por acaso, Imbert ensinava ao seu público leitor como efetuar um parto de modo que mãe e filho, ou filha, pudessem sobreviver, contribuindo para o aumento patrimonial de seu senhor, respondendo seu corpo à tríplice significação a ele imputado. Assim, defendemos a hipótese de que o crescimento vegetativo ocorreu de forma gradativa, atendendo a diferentes interesses. Pois, como demonstra Jardim, em tese mencionada, um dos fazendeiros por ele entrevistado não acreditava no fim do tráfico e, portanto, utilizava ao máximo sua mão de obra escravizada, pelo prazo de um ano, sem atentar para cuidados já mencionados por diferentes médicos e fazendeiros. Repondo, ao que parece com facilidade, os escravizados mortos.

O número de batismos de escravizados, nos anos 1853, 1854 e 1855, foi superior ao de óbitos, presumindo-se crescimento natural da população escravizada. Esses dados, retirados do Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 240), corroboram nossa reflexão e a análise precedente. A atenção dispensada à procriação foi gradual e crescente, e Imbert, certamente, ainda na década de 1830, apresentou considerações irrefutáveis sobre a preservação e o aumento da população escravizada. Para tanto, baseou sua argumentação na sua economia racional do corpo escravizado, esta realizada por meio do saber médico-acadêmico destacando a compra (produto), a identificação da doença (produtor/a) e o parto (reprodutora) como três momentos-chave para a manutenção da escravidão.

Mas o parto nem sempre esteve associado à imagem romantizada veiculada por décadas pelo imaginário social brasileiro. Segundo a historiadora Luciana Brito, estupro e violência sexual foram práticas corriqueiras no Brasil escravista, contemplando versões amenizadas da “miscigenação racial” (Brito, 2021BRITO, Luciana da Cruz. Mulheres negras e escravidão: reflexões sobre agência, violências sexuais e narrativas de passividade. In: MACHADO, Maria Helena P. T. et al. Ventres livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 151-164., p. 153). Da senzala à casa-grande, corpos femininos escravizados foram sexualizados, violentados por chibatas e por homens. Além dos senhores brancos, aqueles residentes das casas grandes, como exposto por Brito, africanos, escravizados e libertos, também foram autores de crimes contra corpos femininos escravizados. Meninas e mulheres tiveram seus corpos violentados no cotidiano da fazenda, da senzala ou da casa-grande.

O Diário do Rio de Janeiro, em 18 de setembro de 1844, noticiou que um escravizado, Fabricio, fora preso na freguesia da Candelária por crime de estupro.11 11 Diário do Rio de Janeiro, n. 6.720, 18 set. 1844. Um escravizado, sem maiores informações acerca do ocorrido. Quem fora a vítima? Quem seria aquele cativo? A fonte aponta o modo pelo qual um crime poderia ser assimilado ou pensado pela sociedade. O mesmo jornal, no ano seguinte, noticia outro caso de estupro; contudo, o crime fora cometido por dois estrangeiros a uma “negrinha de pouca idade”, “com as mais revoltantes circunstancias”. Provavelmente, o autor do comunicado publicado fora mobilizado de fato pelas circunstâncias, como ele mesmo informa. Isso porque “o senhor da vítima se contenta com uma indenização pecuniária, para pôr termo ao processo judicial”. Sua consternação segue ao solicitar ao promotor público “atenção particular” para o crime, levantando “sua voz em nome da humanidade ultrajada, para que os perpetradores, de crime tão horroroso não fiquem impunes”. Contudo, não dava “fé ao dito boato”, acreditando, pois, ser motivado por calúnia.12 12 Diário do Rio de Janeiro, n. 6.889, 1845.

Casos de estupro também eram utilizados para estudos médicos, como o caso da preta Calabar, publicado no Semanário de Saúde Pública, em 1831.13 13 Semanário de Saúde Pública, 1831. O caso chama a atenção pelas escolhas da africana, uma vez que fora violentada enquanto trabalhava “na roça”, em um lugar solitário, para sua senhora. Ao não mencionar o que houvera se passado, nem a gravidez, poderia a escravizada Calabar vislumbrar um possível aborto? Saberia ela quem fora o seu agressor? Não podemos deixar de mencionar que o ocorrido estaria vinculado ao ano da primeira lei do fim do tráfico atlântico - evidentemente, os debates políticos acirrados circulavam entre as várias camadas sociais - e, portanto, uma criança escravizada trazia consigo a possibilidade de aumento do patrimônio senhorial. A análise desta fonte nos aponta a força da escravidão e a tentativa da manutenção do status quo daquela sociedade. A escravizada africana, designada como Calabar, enquanto produto não poderia se opor aos mandos e desmandos de sua senhora, trabalhando para atender as demandas necessárias, e foi justamente enquanto trabalhava e produzia que a violência sexual ocorreu, gerando uma gravidez da qual resultaria uma criança escravizada. O fato de os elementos que sustentam a tríplice utilização de seu corpo estarem conectados demonstra o quão complexa era a sociedade do Oitocentos.

Considerações finais

Vários estudos têm ampliado olhares e procurado perspectivas para analisar as relações de gênero e as mulheres escravizadas. Diante dos mundos da violência e da opressão das sociedades escravistas, mulheres negras - cativas, libertas e livres - foram fundamentais para criar e organizar comunidades reais e simbólicas de proteção, autoestima, afeto e saberes para africanos e crioulos, em áreas rurais e urbanas. A resistência à dor, apontada por Imbert, remete para outras questões acerca do corpo feminino escravizado, quais sejam, o trabalho rural, a violência do castigo e o estupro. Narrativas que eram fortemente construídas, influenciando o modo pelo qual aqueles corpos femininos podiam ser tratados, dentro e fora das senzalas. Força e resistência à dor foram relacionadas à raça e à condição de africanas, de não serem civilizadas. Portanto, resistentes seriam ao parto e às violências físicas, sexuais, morais e psicológicas da escravidão.

Neste cenário pós-promulgação da primeira lei de fim de tráfico atlântico, percebemos as africanas escravizadas em tríplice significação/utilização de seus corpos: produto, produtor e reprodutor da e para a sociedade escravista. A escravizada Calabar, cujo estudo foi publicado no Semanário de Saúde Pública em 1831, ilustra o modo pelo qual corpos femininos escravizados sofriam diferentes intervenções, posto serem propriedade de outrem em uma sociedade escravista. As violências físicas e psicológicas não podem ser mensuradas a partir da análise das fontes mobilizadas neste estudo, mas, certamente não foram poucas.

Referências

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  • 1
    Para pesquisa sobre o médico francês Jean-Baptiste Alban Imbert, sua escrita e atuação médica na Corte do Império do Brasil, consultar Viana (2016).
  • 2
    Africanos ocidentais, na longa história do tráfico atlântico para as Américas, os escravizados vindos dessa região para o Brasil constituíram, aproximadamente, 25% do total dos africanos desembarcados deste lado do Atlântico, segundo Luis Nicolau Parés (2018).
  • 3
    Questão posta pelos historiadores João José dos Reis e Eduardo Silva (1989), indicando que o escravizado não fora sempre vítima, como nem sempre algoz. As negociações foram muitas e realizadas de diferentes formas entre escravizados e seus senhores.
  • 4
    Faure (1993, p. 15). Aqui o autor expõe as questões relativas aos seus objetivos neste artigo. Nós apresentamos a forma como utilizaremos tais expressões, que se aproximam das dele, na medida em que pensamos o corpo a partir da visão médica. Contudo, as construções sociais e culturais que influenciam nas diferentes experiências individuais ou em grupos também são para nós igualmente relevantes.
  • 5
    Sobre mortalidade escrava e causa mortis ver Viana (2009); Karash (2000); Rodrigues (2005); Pereira (2007).
  • 6
    O café, produto que, no século XIX, tornou-se o mais importante do Império do Brasil, contribuiu para tornar o tráfico uma atividade lucrativa, mesmo após 1830, com a sua ilegalidade. Continuará lucrativa após 1850, momento ainda de expansão de sua cultura, e o fim definitivo das operações atlânticas. Sobre a produção cafeeira no vale do Paraíba fluminense, ver Viana (2009); Salles (2008); Stein (1990).
  • 7
    Inventários post mortem, 1840-1849. Centro de Documentação Histórica de Vassouras.
  • 8
    Inventários post mortem, 1840-1850. Centro de Documentação Histórica de Vassouras.
  • 9
    Pesquisa desenvolvida durante o mestrado na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Viana, 2009).
  • 10
    Outros manuais de medicina foram mencionados e analisados no desenvolvimento da pesquisa. Destacamos que Imbert apresenta, como diferencial, a mobilização do saber médico-acadêmico na economia racional do corpo escravizado, masculino e feminino, para a maximização da mão de obra e aumento da população escravizada, por meio do conhecimento das características físicas e morais.
  • 11
    Diário do Rio de Janeiro, n. 6.720, 18 set. 1844.
  • 12
    Diário do Rio de Janeiro, n. 6.889, 1845.
  • 13
    Semanário de Saúde Pública, 1831.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2021
  • Aceito
    16 Mar 2022
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