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Francisco Mendes de Goes: um Agente diplomático entre bordadores e alfaiates na corte de Luís XV

Francisco Mendes de Goes: a diplomatic agent among embroiderers and tailors at the court of Louis XV

Resumo:

Em 1726 Francisco Mendes de Goes foi nomeado agente na corte parisiense por dom João V para desempenhar a função de encomendeiro do rei, sendo atribuída a missão de gestor das encomendas feitas pela família real. Utilizaremos, neste artigo, dois conjuntos documentais que acabam por revelar a atribulada estadia de Mendes de Goes. As cartas enviadas ao cardeal da Mota revelam as dificuldades enfrentadas para conseguir responder ao volume de encomendas vindas da monarquia portuguesa. O outro conjunto documental revela que também membros da aristocracia portuguesa sobrecarregaram o agente com encomendas pessoais. Neste conjunto documental o teor das encomendas permite-nos vislumbrar aspetos da cultura material, assim como as relações de sociabilidade estabelecidas por Mendes de Goes. Ambos revelam novas facetas da carreira diplomática que, até então, têm sido pouco exploradas na história da diplomacia.

Palavras-chave:
Dom João V (1689-1750); Francisco Mendes de Goes (1670-1753); Diplomacia

Abstract:

In 1726 Francisco Mendes de Goes was appointed Agent at the Parisian court by D. João V to perform the function of the king’s orderly, being assigned the mission of manager of orders made by the royal family. In this article, we will use two sets of documents that end up revealing the troubled stay of Mendes de Goes. The letters sent to Cardinal da Mota reveal the difficulties faced in order to respond to the volume of orders coming from the Portuguese monarchy. The other set of documents reveals that members of the Portuguese aristocracy also overloaded the agent with personal orders. In this set of documents, the content of the orders allows us to glimpse aspects of material culture, as well as the sociability relations established by Mendes de Goes. Both reveal new facets of the diplomatic career that, until then, have been little explored in the History of Diplomacy.

Keywords:
D. João V (1689-1750); Francisco Mendes de Goes (1670-1753); Diplomacy

Manifestação única de personalidade, vontade, sensibilidade e inteligência, a carta particular, em especial, perpetua, através da ordem gráfica, a solene inscrição de uma presença viva, perceptível tanto na plenitude da sua autografia alfabética, como, na ausência dela, na marca ou sinal mercenário, feito a rogo, que cunha e autentica, de outro modo, a sua autoria (Araújo, 2005ARAÚJO, Ana Cristina. A correspondência: regras epistolares e práticas de escrita. In: NETO, Margarida Sobral. As comunicações na Idade Moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005. p.120-145., p. 120).

As cartas particulares e oficiais vêm sendo, nos últimos anos, objeto de estudo na área das humanidades entre os investigadores que se dedicam aos estudos socioculturais e de cultura material (Miranda, 2000MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella. Prezado, senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.; Almada, 2010ALMADA. Márcia. Na forma do estilo: normas da boa pena nos séculos XVII e XVIII em Portugal e Espanha. Documenta & Instrumenta, v. 8, p. 9-28, 2010. Disponível em: Disponível em: http://web.letras.up.pt/ . Acesso em: 10 out. 2021.
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; Chartier, 1991CHARTIER, Roger. As práticas da escrita. In: CHARTIER, Roger(org.). História da vida privada, v. 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 113-161.). Esta fonte documental vem sendo analisada tendo em consideração uma das suas principais características que consiste na descrição do ambiente sociocultural no qual o seu autor estava inserido (Munhós, ago. 2016MUNHÓS, Fernando. As cartas também constroem a história: potencialidades em uma conversa vinda do passado. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 64, p. 336-342, ago. 2016.). Segundo Álvaro Durán, “Cualquier tentativa de estudio de las actividades mercantiles y financieras durante el periodo moderno no puede, ni debe, obviar la importancia de ese crucial vehículo de transmisión de la cultura escrita que fue la carta” (Sánchez Durán, 2017SÁNCHEZ DURÁN. Álvaro Cartas, información e instrucciones: la gestión de rentas y asientos por hombres de negocios portugueses en la Corona de Castilla (siglo XVII). CEM: Cultura, Espaço e Memória, n. 8, p. 123-138, 2017., p. 123). Nesse contexto, as cartas assumem um valor histórico significativo, pois permitem analisar o papel desempenhado por remetentes e destinatários na construção do momento histórico.

Diante da especificidade protocolar da carta, cuja forma deveria respeitar o estatuto do remetente e do destinatário, assim como a disposição adequada das letras e linhas no espaço em branco do papel, tornou-se necessária a elaboração de manuais que auxiliassem na redação das epístolas. Segundo Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (2011BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Códigos, regras e ornamentos nos secretários, manuais e métodos de escrever cartas: a tradição luso-brasileira. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 15, p. 79-106, 2011.), o primeiro exemplar de um manual voltado para a epistolografia em Portugal data de 1619, com a publicação de Corte na Aldeia1 1 A obra de Francisco Rodrigues Lobo (1774) é composta por 16 diálogos entre cinco amigos (Leonardo, Letrado; Lívio, Doutor; dom Júlio, Fidalgo, Píndaro, Estudante e Solino, um Velho) ao longo de 16 noites, cujos títulos já demonstram qual será a preocupação do autor com a prática da escrita epistolar. de Francisco Rodrigues Lobo. Pouco mais de um século depois, em 1745, a publicação de O secretário português,2 2 A obra de Francisco José Freire, O secretário português, compendiosamente instruído no modo de escrever cartas; por meio de uma instrução preliminar, regra de secretaria, formulário de tratamentos, e um grande número de cartas em todas as espécies que tem mais uso, teve a primeira edição publicada em 1745 pelas Oficinas de António Izidoro da Fonseca [de Lisboa] e a última (ao que parece) em 1823. de Francisco José Freire (1823FREIRE, Francisco José. Secretario portuguez ou metodo de escrever cartas. Lisboa: Tipografia Rollandiana, 1823.), também conhecido por Cândido Lusitano, fez com que a prática de escrever epístolas fosse não somente difundida em Portugal, como também no Brasil (Araújo, 2005ARAÚJO, Ana Cristina. A correspondência: regras epistolares e práticas de escrita. In: NETO, Margarida Sobral. As comunicações na Idade Moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005. p.120-145.).

O recurso a essa tipologia documental possibilita “(…) o convívio e a troca de ideias, assim como o estabelecimento de vínculos estratégicos de cooperação entre os elementos dos diferentes campos da cultura e do poder” (Bello Vázquez, 2007BELLO VÁZQUEZ, Raquel Bello. A correspondência na segunda metade do século XVIII como espaço de sociabilidade. Romance Notes, v. 48. n. 1, p. 79-89, 2007., p. 87). Segundo Barbosa (2011BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Códigos, regras e ornamentos nos secretários, manuais e métodos de escrever cartas: a tradição luso-brasileira. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 15, p. 79-106, 2011.), a partir da epistolografia é possível articular a prática da escrita e a representação do conhecimento, fazendo com que as epístolas venham a ser “(...) decisivas para compreender como as comunidades ou os indivíduos constroem as representações do mundo que são investidos de significados plurais e constrativas de suas perceções e experiências” (Chartier, 1991CHARTIER, Roger. As práticas da escrita. In: CHARTIER, Roger(org.). História da vida privada, v. 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 113-161., p. 9).

Na época moderna o uso de epístolas como forma de comunicação foi bastante difundido, sobretudo entre membros letrados das elites, como é o caso dos representantes diplomáticos. Os arquivos das legações sob guarda da Torre do Tombo em Lisboa abrigam a vultosa correspondência entre membros da monarquia e da aristocracia portuguesas e os representantes diplomáticos portugueses em missão no estrangeiro. Se, por um lado, a consulta à documentação diplomática oficial permite analisar aspetos relacionados com a economia e a política internacional, por outro, a leitura da correspondência expedida e recebida por vários membros do corpo diplomático têm revelado aspectos interessantes relacionados com a cultura material da época. Listagens de encomendas vindas de Lisboa circulavam entre as cortes europeias com um rol variadíssimo de bens e objetos que, uma vez adquiridos, passaram a compor não somente o recheio das casas dos monarcas, mas também da aristocracia portuguesa. No século XVIII português, boa parte das coleções dos monarcas foram constituídas a partir das compras efetuadas pelos membros do corpo diplomático. A consulta a esse corpus documental representa a possibilidade de conhecer um pouco mais, por exemplo, sobre a cultura material do período em que dom João V era o monarca português.

Utilizaremos, neste artigo, dois conjuntos documentais compostos por correspondência enviada e recebida por Mendes de Goes e que estão sob a guarda da Torre do Tombo (ANTT) e da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), ambas instituições sediadas em Lisboa. Veremos que Mendes de Goes acabou por estabelecer laços de sociabilidade com personagens de destaque da diplomacia e da elite portuguesa, como dom Luís da Cunha, Marco António de Azevedo Coutinho,3 3 Marco António de Azevedo e Coutinho tinha sido nomeado ministro plenipotenciário e estava em Bruxelas a acompanhar dom Luís da Cunha nesse período em que Francisco Mendes de Goes lhe escreveu. Ambos tinham deixado Paris com destino a Haia, mas a piora no estado de saúde de dom Luís da Cunha fez com que se dirigissem para Bruxelas, onde permaneceram até 1728. Coutinho chegou a permanecer em Haia com dom Luís da Cunha, mas, em setembro de 1728, recebeu ordens régias para retornar a Lisboa. conde de Tarouca, cardeal da Mota, conde da Ericeira e conde dom Pedro de Almeida. As listas de encomendas, como veremos, não partiram somente da família real, mas também de membros da corte portuguesa. Paralelamente às listagens bastante volumosas enviadas de Lisboa veremos cartas enviadas por Mendes de Goes em que relata a sua dificuldade em fazer jus à missão para a qual tinha sido nomeado em função do financiamento parco e, muitas vezes tardio, que recebia. Com alguns dos seus interlocutores Mendes de Goes buscava auxílio e intercessão junto a dom João V para resolver problemas de natureza financeira.4 4 Mendes de Goes não foi o primeiro, tão pouco o último, representante diplomático português a queixar-se das dificuldades que a vida na corte francesa acarretava. No século anterior, os relatos sobre os altos custos da vida em Paris foram frequentes na correspondência de Duarte Ribeiro de Macedo, por exemplo.

O reinado de dom João V: a relação entre a circulação material, o mecenato e a diplomacia

Quer no âmbito sociocultural, econômico ou político, o período em que dom João V esteve no trono português (1706 a 1750) imprimiu significativas mudanças em Portugal. Entre os estudos desenvolvidos nas duas últimas décadas do século passado que analisaram o período moderno da história de Portugal, as obras de António Hespanha (1989HESPANHA, A. M. Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução. In: CLAVERO, Bartolomé; GROSSI, Paolo; VALIENTE, Francisco Tomas Y. Hispania: entre derechos propios y derechos nacionales. Milano: Giuffrè Editore, 1989. p. 135-204., 1995) são, provavelmente, aquelas que melhor o explicam, por promover a interlocução da história institucional estrutural e da cultura jurídico-política. Segundo Nuno Gonçalo Monteiro (2001MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Identificação da política setecentista: notas sobre Portugal no início do período joanino. Análise Social, v. 35, n. 157, p. 961-987, 2001.), a análise feita por Hespanha poderia ser complementada pelos estudos de Diogo Ramada Curto (1994CURTO, Diogo Ramada. A cultura política em Portugal (1578-1632): comportamentos, ritos, negócios. Dissertação (Doutorado em Sociologia Histórica), Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 1994. Mimeo.), uma vez que estes consideram a análise da vida política a partir dos seus atores. Segundo Monteiro, as análises feitas por Curto

(...) ao invés de uma matriz de sentido unívoco que se procura em textos fundadores e nas instituições que os corporizariam, a ênfase é colocada na microanálise dos contextos necessariamente contingentes e na maior atenção ao comportamento dos atores envolvidos em cada um dos acontecimentos, em detrimento das instituições, dos sistemas normativos, das estruturas ou dos processos, com os quais os atos se relacionam (Monteiro, 2001MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Identificação da política setecentista: notas sobre Portugal no início do período joanino. Análise Social, v. 35, n. 157, p. 961-987, 2001., p. 963).

Portugal, durante o reinado de dom João V, ficou marcado, no ambiente político, pelo desfecho da Guerra de Sucessão de Espanha (1702-1714), com a assinatura do Tratado de Utrecht. Soma-se a isto a alteração das relações diplomáticas entre a monarquia portuguesa e a Santa Sé (Brazão, 1937BRAZÃO, Eduardo. D. João V e a Santa Sé: as relações diplomáticas de Portugal com o governo pontifício de 1706 a 1750. Coimbra: Coimbra Editora, 1937.), sendo a elevação da capela real à basílica patriarcal (Pimentel, 2013PIMENTEL, António Filipe. A encomenda prodigiosa: da Patriarcal à Capela Real de São João Batista. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2013.) o símbolo da aceitação, por parte da Santa Sé, da posição assumida no cenário internacional por Portugal e seu monarca (Brazão, 1938). Também no panorama interno a elevação da capela real à patriarcal proporcionou “(...) uma redefinição das hierarquias e dos estatutos no interior da sociedade de corte de D. João V. (...) Os rituais e as práticas de legitimação da monarquia foram, assim, reformulados durante o período joanino” (Monteiro, 2001MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Identificação da política setecentista: notas sobre Portugal no início do período joanino. Análise Social, v. 35, n. 157, p. 961-987, 2001., p. 981). No cenário econômico, a descoberta do ouro e dos diamantes no outro lado do Atlântico foi responsável por equilibrar as finanças régias, fazendo com que fosse possível a dom João V demarcar o papel da monarquia portuguesa no cenário interno e externo. No âmbito nacional, constata-se um maior investimento na construção de infraestruturas como o Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa, e o Palácio Nacional de Mafra (Pimentel, 1990); e de bibliotecas como a Biblioteca Joanina de Coimbra (Ferrão, 2016FERRÃO, Pedro Miguel. A Casa da Livraria da Universidade de Coimbra ao tempo de D. João V. Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, n. 46-47, p. 63-72, 2015-2016.), obras que acabaram por se tornar representações da grandiosidade do reinado joanino (Silva, 2006SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João V. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2006.). Além disso, percebe-se que a entrada dos rendimentos com o ouro e os diamantes nos cofres régios foi o grande propulsor para que dom João V investisse na aquisição de uma panóplia variada de bens: livros, instrumentos matemáticos, pinturas, mobiliário, indumentária, entre outros. Figura central da monarquia portuguesa, amante da magnificência e da ostentação, foi na corte de Luís XIV de França que dom João V buscou inspirações. César de Saussure, em sua obra “O Portugal de D. João V visto por três forasteiros” afirmou que:

Todos os anos se fornece de Paris e doutras cidades dos mais ricos fatos que ali se fazem e dos quais lhe são enviadas caixas cheias. De trajos tem uma tão grande quantidade que não poderia usá-los todos, embora não vista cada um deles, mesmo que muito lhe agradem, mais de três vezes (Saussure, 1983SAUSSURE, Cesar. Carta escrita de Lisboa a 28 de janeiro de 1730. In: CHAVES, Castelo Branco; MERVEILLEUX, Charles Frédéric; SAUSSURE, César de. O Portugal de D. João V, visto por três forasteiros. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983. p. 267-268., p. 267).

Contudo, não foi somente no plano da cultura material que a corte joanina foi influenciada pela francesa. Durante o reinado de dom João V viu-se a implementação na corte lisboeta da teatralização da esfera pública e privada vivenciada pelos franceses na corte em Paris (Orozco Díaz, 1969). Bebiano chegou a afirmar que a influência em Portugal da corte francesa da época residiu na “(...) vontade de D. João da concepção francesa de autoridade e de grandeza régia que determinou a procura do modelo” (Bebiano, 1987BEBIANO, Rui. D. João V: poder e espectáculo. Vila Real: Livraria Estante Editora, 1987., p. 116-117).

É consensual entre os historiadores que estudam o período moderno joanino que, enquanto dom João V esteve no trono, buscou valorizar e financiar o universo das ciências e letras. A criação da Academia Real da História Portuguesa - que, mais tarde, daria lugar à Academia Portuguesa da História - foi, provavelmente, a instituição que canalizou o maior número de obras literárias adquiridas no estrangeiro para a composição do seu acervo. Segundo José Damião Rodrigues (2014RODRIGUES, José Damião. O império territorial. In: COSTA, João Paulo Oliveira(coord.); RODRIGUES, José Damião; OLIVEIRA, Pedro Aires. História da Expansão e do Império Português. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2014. p. 201-204.), a criação da Academia por dom João V seria uma tentativa de “(...) recuperação da memória histórica portuguesa como estratégia de afirmação à escala internacional”. A exemplo disso, vê-se, nesse período, algumas ordens dadas por dom João V, como a cópia sistemática de todos os documentos sobre Portugal conservados em arquivos nacionais e estrangeiros e a elaboração de um acervo cartográfico com a colaboração de Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville (por ser a ocupação do espaço do império uma das preocupações do monarca) como expressões do monarca de reunir informações pertinentes sobre o Império Português dispersas nas várias partes do globo.

Já para Isabel da Mota, a criação da Academia proporcionou a emancipação da história e do historiador o que, segundo ela, revelaria a importância que o mecenato régio assumiu no Antigo Regime português sendo “(...) graças à proteção de D. João V que a História pôde escapar à hierarquia dos saberes (rígida no interior da Universidade)” (Mota, 1998BEBIANO, Rui. D. João V: poder e espectáculo. Vila Real: Livraria Estante Editora, 1987., p. 475-476).

Ainda segundo Mota, com a criação da Academia Real de História no período joanino, “(...) o mecenato régio se organizou e sistematizou, visto que, através da Academia, o Rei protegia e patrocinava o grupo de intelectuais que mais lhe interessavam (vindos de todos os campos culturais), os que podiam contribuir com as suas obras para o bom nome e glória da sua política” (Mota, 1998BEBIANO, Rui. D. João V: poder e espectáculo. Vila Real: Livraria Estante Editora, 1987., p. 473-474). A partir da análise sobre o mecenato, a autora apresenta um outro conceito também importante nas considerações sobre o período joanino: o de clientelismo. Segundo Mota, mecenato e clientelismo são conceitos caros para a época moderna e acabam por coexistirem no cotidiano dos eruditos do período moderno.

O clientelismo podia proporcionar-lhes [aos homens das Letras] também uma pensão ou um emprego que por sua vez trazia, para além da consideração social, uma renda fixa, e esta permitia-lhes uma vida cultural. A qualidade de homem de letras dava competências especialmente para lugares como preceptor, secretário, encarregado de missões de confiança (Mota, 1998MOTA, Isabel Ferreira da. Os historiadores, o mecenato e o clientelismo: autonomia e dependência (1700-1750). Revista de História das Ideias, v. 19, p. 471-493, 1998., p. 478).

Contemporâneo de dom João V e membro da Academia Real da História Portuguesa, António Caetano de Sousa caracterizou o período joanino como sendo aquele em que:

(...) entre tão excessiva abundância de coisas preciosas, admiráveis e raras, escolhidas pelo seu bom gosto, a tudo excede como sábio, o gênio dos livros de que faz maior estimação, do que dos grandes tributos dos diamantes e ouro das Minas. Assim tem uma numerosa e admirável Livraria em que vêm as edições mais raras, grande número de manuscritos, instrumentos matemáti admiráveis relógios e outras muitas coisas raras (Sousa, 1735SOUSA, António Caetano de. História genealógica da Casa Real Portuguesa. Lisboa: Oficina de José Antonio da Sylva, 1735-1749. 13 v.-1749, t. VIII, p. 272-273).

Paralelamente à intenção de dotar a Biblioteca Real5 5 Em 1727, por exemplo, dom João V escreveu a quatro dos seus principais representantes diplomáticos em missão nas principais cortes europeias da época (conde de Tarouca em Viena, Francisco Mendes de Goes em Paris, António Galvão de Castelo Branco em Londres e dom Luís da Cunha em Bruxelas) com instruções para que fizessem visitas e registros pormenorizados sobre a composição do acervo, dimensão das estantes e prateleiras de livrarias e bibliotecas conceituadas, com o objetivo de transpor para a Biblioteca Real esses modelos. de exemplares literários, como aqueles vistos nas melhores bibliotecas do mundo, havia também a preocupação de dom João V de “(…) equipar a elite pensante portuguesa com os livros, estampas, gravuras e mapas necessários à sua formação, (…) com vistas à modernização e o progresso do reino” (Furtado, 2012FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anvile na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012., p. 211). Assim, é possível identificar, na correspondência privada de alguns representantes diplomáticos, cartas enviadas por membros da elite portuguesa da época que buscavam incrementar o acervo de bibliotecas e coleções particulares. A esse grupo pertenceram o marquês de Abrantes,6 6 Em julho de 1721, dom Luís da Cunha remeteu de Paris um extenso rol de livros destinados ao marquês de Abrantes que incluía, entre outros títulos, quatro volumes do Novo Testamento do padre Quesnel, 22 volumes dos Arrests depois da Regência, cinco volumes de obras relativas à Marinha e 17 volumes in folio de manuscritos sobre o reino de França. o conde da Ericeira, o cardeal da Mota, entre outros, que acabaram por fazer parte de uma rede de letrados que diretamente influenciou dom João V na aquisição de objetos criando, assim, uma rede de mecenato régio. No universo comercial, a circulação humana e de bens era percetível nos portos espalhados pelo mundo onde, diariamente, navios carregados de mercadorias ganhavam os mares. A obra de Russell-Wood (2018) é, nesse contexto, pioneira ao analisar a circulação, a movimentação de pessoas e mercadorias ao longo de três séculos.

No palco da diplomacia (Faria, 2008FARIA, Ana Leal de. Arquitetos da paz; a diplomacia portuguesa de 1640 a 1815. Lisboa: Tribuna, 2008.), o que vem sendo revelado pela documentação produzida por embaixadores, agentes7 7 No universo diplomático do século XVIII designava-se Agente de um príncipe “(…) um Ministro, sem título, que em lugar de Embaixador, ou de Enviado, faz os negócios do Príncipe ou República.” (Bluteau, 1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. v. 1. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728.-1728, p. 166) e ministros plenipotenciários é que estes desempenharam, paralelamente às funções de natureza política, o papel de “encomendeiros”, ficando responsáveis pela busca, aquisição e envio dos mais variados objetos para a corte joanina. O carácter itinerante inerente à atividade diplomática permitiu aos seus representantes o contato com universos e indivíduos bastante diferenciados. Resultante desta circulação é possível identificar na corte portuguesa setecentista uma variedade de bens e objetos que, atribuiu-lhe o brilho e do luxo desejados pelo monarca. Sabe-se que grande parte dos estudos até então desenvolvidos sobre a diplomacia portuguesa do período moderno recai sobre a atuação dos representantes diplomáticos na delimitação de fronteiras, na assinatura de tratados de paz ou na articulação de uniões matrimoniais que fortalecessem a monarquia portuguesa. A consulta complementar da documentação reunida pelas legações associada àquela de natureza privada, produzida por alguns diplomatas portugueses, revelou, entretanto, uma faceta da atividade diplomática que tem sido raramente explorada e que está relacionada com a sua participação na composição do cenário cultural da corte.

Dentre os representantes diplomáticos, o caso de dom Luís da Cunha (Cluny, 1999CLUNY, Isabel. D. Luís da Cunha e a ideia de Diplomacia em Portugal. Lisboa: Horizonte, 1999.), por exemplo, é aquele que salta aos olhos ao percebermos o seu envolvimento na aquisição de uma vasta lista de livros, gravuras e instrumentos matemáticos que, posteriormente, passaram a fazer parte do acervo da Biblioteca Real. Segundo Júnia Furtado, “(...) o ofício da diplomacia constituía-se numa viagem permanente, e dom Luís da Cunha foi exemplar no sentido de absorver tudo o que o mundo extra Portugal pôde lhe fornecer em termos de cultura e informação” (Furtado, 2012FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anvile na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012., p. 77). Percebe-se, assim, o interesse do monarca em tudo o que circulava na corte parisiense, deixando clara a intenção de que “(…) por estas notícias se possa regular com acerto outra semelhante expedição, ou seguindo estes exemplos, ou excedendo-os” (Carvalho, 1949CARVALHO, Augusto Silva. Um agente de Portugal em França, Francisco Mendes de Góis. Anais da Academia Portuguesa de História, II série, separata, v. 2, p. 214-240, 1949., p. 223). Lembremo-nos de que, no período em que Mendes de Goes fora enviado para Paris, o monarca português era conhecido pelo seu perfil colecionista, sendo um dos grandes responsáveis pelo incremento do espólio da família real com um volume avultado de bens provenientes das mais diversas regiões do globo. Um rei ilustrado, mecenas das artes e da ciência.

Desde o envio das primeiras missões no período pós-Restauração que a presença na corte parisiense suscitou, entre os diplomatas, inúmeras queixas sobre as dificuldades com a sua subsistência. Durante o reinado de dom João V (1707-1750), foram nomeados para a corte de Paris:8 8 As relações diplomáticas entre Portugal e França estiveram interrompidas em dois períodos durante o reinado de dom João V, motivo pelo qual foram nomeados apenas três representantes diplomáticos no período. Primeiramente, entre 1705-1713, devido ao incumprimento de um acordo estabelecido com a França durante a Guerra de Sucessão de Espanha, que garantia o apoio francês a Portugal no caso de uma guerra ser iniciada. O desrespeito ao acordo fez com que dom Pedro apoiasse a coroação do arquiduque Carlos ao lado da Inglaterra, Holanda e Áustria. E, num segundo momento, entre 1724 e 1736, tendo sido causada por questões protocolares que envolveram o embaixador francês abade de Livry que desejava que o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real fosse visitá-lo em sua casa antes da primeira audiência e apresentação pública das suas credenciais, o que contrariava o protocolo diplomático português. dom Luís Manuel da Câmara, 3º conde da Ribeira Grande (1715-1720);9 9 Dom Luís Manuel da Câmara era filho de dom José Rodrigo da Câmara e da princesa Constance-Emilie de Rohan. Com formação militar atuou ativamente na Guerra de Sucessão de Espanha. Comendador da Ordem de Cristo esteve em Paris na qualidade de embaixador extraordinário e, posteriormente, foi enviado para Cambrai para negociação da paz na qualidade de ministro plenipotenciário. dom Luís da Cunha (1737-1749);10 10 Dom Luís da Cunha era formado em direito canônico e membro da Academia Real da História, desempenhou, com grande destaque, várias missões de caráter diplomático entre 1697 e 1749. Esteve em Paris na qualidade de embaixador até o final dos seus dias. Marco António de Azevedo Coutinho (1721-1728).11 11 Marco António de Azevedo Coutinho era comendador da Ordem de Cristo e de Santiago. Foi, também, o primeiro secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra a ser nomeado em 1736. A grande afeição que dom Luís da Cunha nutria por Coutinho fez com que o embaixador endereçasse a ele uma Instrução Política, obra que, mais tarde, seria uma referência para a história da diplomacia portuguesa. Esteve em Paris na qualidade de ministro plenipotenciário, sendo, durante o período da sua missão, enviado para Cambrai com a mesma qualidade para negociação do tratado de paz. As interrupções das relações diplomáticas entre Portugal e França, ocorridas no reinado de dom João V, não o impediram, entretanto, de enviar para a corte de Luís XV um agente cuja missão não envolvia questões de natureza política ou econômica. A nomeação de Francisco Mendes de Goes na qualidade de agente12 12 Relativamente à função desempenhada por Mendes de Goes na corte francesa, existem algumas dúvidas. Segundo Ana Leal de Faria (2008), Francisco Mendes de Goes esteve em Paris somente no ano de 1732, desempenhando a função de Enviado. Já Isabel Cluny (1999), ao analisar a trajetória de dom Luís da Cunha no capítulo dedicado a Francisco Mendes de Goes, demonstrou que ele tinha sido nomeado agente em 1726, atuando nesta função por, pelo menos, dez anos. de dom João V teve objetivos bastante específicos que ficaram detalhadamente expressos nas instruções que recebeu do monarca, como veremos a seguir.

Francisco Mendes de Goes na corte de Luís XV: cultura material e sociabilidades

Lidar continuamente com milhares de fabricantes, brodadores, alfayates, e outras gentes desta laya, e no mesmo tempo escrever relações difusas circunstanciadas claras e bem inteligentes; são coisas opostas e incompatíveis, que não cabem na minha capacidade, principalmente quando se trata de examinar tudo com miudeza e exatidão.13 13 Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Mss. 62, doc. 9, Paris, 27 jun. 1729, fl. 42.

Assim começava a carta que Francisco Mendes de Goes escreveu de Paris, em 27 de junho de 1729, para João da Mota e Silva (cardeal da Mota). Quando, em 1726, Mendes de Goes foi nomeado para desempenhar a função de agente na corte parisiense, provavelmente, não estava à espera do volume de trabalho que teria e das dificuldades que enfrentaria. A sua estadia em Paris na década de 1720 foi, como veremos ao longo deste artigo, marcada pelo grande volume de encomendas que, em alguns momentos, criou constrangimentos no seu cotidiano. Entre a diversidade de objetos encomendados encontram-se artigos de mobiliário, obras literárias, serviços de louça (Jardim, 2012JARDIM, Maria do Rosário. A Baixela Germain ao serviço da corte no reinado de D. Maria I. Palácio Nacional da Ajuda - Artigos em Linha, n. 6, p. 1-35, fev. 2012.) para a mesa do rei (como a baixela de Germain), tapetes de gobelin.

Nomeado por dom João V para exercer a função de agente na corte de Luís XV, Francisco Mendes de Goes assumiu a missão exclusiva de “encomendeiro” do monarca, sendo responsável pela busca, aquisição e envio das encomendas para Lisboa. Ao nos debruçarmos sobre a sua trajetória percebemos que Francisco Mendes de Goes esteve ligado ao mundo da diplomacia em dois momentos distintos e ocupando funções bastante diferentes. Primeiramente, como criado de dom Luís da Cunha em Londres (1710) e, num segundo momento, como agente em Paris (1726). Infelizmente, só conseguimos definir as datas iniciais de sua atuação nas duas funções sendo possível inferir, entretanto, que Mendes de Goes esteve em Paris por mais de dez anos. Não há dúvidas, porém, de que o pertencimento à família de dom Luís da Cunha proporcionou-lhe o contato não só com personagens da diplomacia portuguesa da época, como também permitiu-lhe aceder ao conhecimento que circulava nas cortes europeias e que, por sua vez, acabara por ser útil na missão em Paris. Mas, como terá sido possível a um criado de um embaixador ser nomeado por um monarca para uma missão numa das principais cortes europeias dos Setecentos? A resposta a esta questão não é, de todo, consensual entre os investigadores. Para Augusto Silva Carvalho (1949CARVALHO, Augusto Silva. Um agente de Portugal em França, Francisco Mendes de Góis. Anais da Academia Portuguesa de História, II série, separata, v. 2, p. 214-240, 1949.) a relação estabelecida entre Mendes de Goes e o cardeal da Mota (antes da sua nomeação quando, supostamente, ambos residiram em Roma) estaria no cerne da sua nomeação para a corte francesa. No que diz respeito a esse encontro, contudo, não nos foi possível localizar qualquer referência documental que confirmasse a relação entre ambos, muito antes pelo contrário, uma vez que alguns estudos sobre a trajetória do cardeal da Mota14 14 Na qualidade de primeiro cônego magistral da Colegiada de São Tomé, Mota e Silva passou a participar das conferências eruditas promovidas pelo núncio apostólico em Lisboa, Giuseppe Firrao, e que eram frequentadas por aristocratas e religiosos. As participações de Mota e Silva e a posição de cônego da Basílica Patriarcal de Lisboa fizeram com que estreitassem as suas relações com o rei e a rainha. indicam que ele não chegou a frequentar a corte de Roma,15 15 Sabe-se que, em 1727, Mota e Silva foi nomeado cardeal por Bento XIII recebendo, para tal, o barrete cardinalício. Contudo, não chegou a ir a Roma para recebê-lo. não sendo possível, portanto, que a relação com o agente tivesse iniciado nessa época (Neto, 2018NETO, Henrique. Os homens da confiança régia ao tempo de D. João V. Dissertação (Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos), Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2018.).

Já Isabel Cluny (1999CLUNY, Isabel. D. Luís da Cunha e a ideia de Diplomacia em Portugal. Lisboa: Horizonte, 1999.), ao analisar a trajetória de um dos mais proeminentes representantes diplomáticos da corte joanina, apresentou a relação de amizade entre dom Luís da Cunha e Francisco Mendes de Goes como uma das possibilidades para que o criado fosse nomeado agente na corte parisiense. O envio de uma elogiosa carta redigida por dom Luís da Cunha em 1724 ao secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real, enaltece os serviços prestados por Mendes de Goes e afirmando que:

(...) no anno de 1710 veyo a Londres Francisco Mendes de Goez onde o conheci vivendo quazi em minha caza, com bom procedimento e então encaregey de algumas diligencias por achar nelle a capacidade que para elas se requeria. (…) Depois o vi voltar de Inglaterra servindo de secretário de Marco António de Azevedo e Coutinho; em todo este tempo e em todas estas partes observey sempre nelle capacidade, modéstia, fidelidade e desinteresse, o que por passar na verdade e por elle me pedir a presente lhe fiz e assinei.16 16 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), MNE, Cx. 1, m.2, Correspondência de dom Luís da Cunha para Mendes de Goes, 30 nov. 1724.

Diante da especificidade da sua missão e da vasta documentação que foi possível localizar e que contempla a sua estadia em Paris buscaremos analisar nas próximas páginas os alguns aspetos relacionados com a sua missão. Em parte dos relatos veremos as dificuldades enfrentadas pelo agente para fazer frente ao volume de encomendas que recebia de Lisboa. Paralelamente, será possível perceber que, derivado da sua missão, Mendes de Goes acabou por estabelecer laços de sociabilidade importantes e que acabaram por assegurar a sua permanência na corte de Paris. Utilizaremos, para tal, as epístolas enviadas e recebidas por Francisco Mendes de Goes enquanto residiu em Paris.

Seguindo o protocolo diplomático da época, a nomeação de Mendes de Goes foi acompanhada por uma carta de instrução de dom João V que lhe foi entregue pelo secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real. Nesta ficou estipulado, claramente, o propósito da missão, que consistia em: “(…) assistir a Paris a algumas encomendas na forma, que lhe avisará” (Carvalho, 1949CARVALHO, Augusto Silva. Um agente de Portugal em França, Francisco Mendes de Góis. Anais da Academia Portuguesa de História, II série, separata, v. 2, p. 214-240, 1949., p. 222). Para garantir a sua subsistência, ficou definido o valor de 150$000 réis que era utilizado “(…) enquanto assistir à expedição destas encomendas e das mais que por ordem do mesmo Senhor lhe forem encarregadas” (Carvalho, 1949, p. 223). Acrescentava, ainda, que caso fosse necessário sair de Paris para satisfazer às encomendas os gastos provenientes do deslocamento deveriam ser custeados pelo agente que deveria, então, remeter as contas para a corte com o intuito de serem reembolsados.

Um dos aspectos interessantes revelados pelas cartas redigidas por Mendes de Goes ao cardeal da Mota diz respeito às relações de sociabilidade estabelecidas pelo agente e que não estiveram restritas à corte parisiense. Diante da necessidade imperiosa de fazer jus à missão atribuída por dom João V, o seu agente contatou com banqueiros, mercadores, ourives, artistas, entre outros. Estevão Lejay e sua mulher eram mercadores de tecidos e foram figuras recorrentes nas cartas escritas por Mendes de Goes estando no cerne de um dos problemas relatados pelo agente ao cardeal da Mota. Ao que tudo indica, Lejay vendia a fazenda encomendada pelo agente português a preços mais elevados e com menor facilidade de pagamento. Uma das letras pagas ao casal somava o valor de doze mil cruzados. Manoel de Sande e Vasconcelos também aparece entre aqueles com que Mendes de Goes estabeleceu relações para dar resposta às encomendas régias. Em uma carta redigida em 1728, o agente apresenta que uma das possibilidades para sanar as dívidas contraídas em Paris era aceitar o empréstimo que Vasconcelos teria oferecido. Ressalta-se, até, que Mendes de Goes chega a dizer que “(...) não falta quem me ofereça de emprestar todo o dinheiro de que necessitasse sem lucro, nem interesse, mas eu o não aceito, nem confesso a minha necessidade, porque não sei se V. Emin.ª aprovaria a minha conduta.”17 17 BNP, Mss. 62, doc. 5, Paris, 23 out. 1728, fl. 24. Figuram, ainda, entre as relações estabelecidas por Mendes de Goes o monsenhor Giovanni Lercari, o doutor Manoel da Motta e Silva, o enviado extraordinário António Galvão de Castello Branco (Londres), o coronel don Álvaro Marquez Cardozo de Cienfuegos e o cardeal de Fleury, algumas das pessoas que aparecem na documentação.

Agregada à missão relacionada à gestão das encomendas régias, percebe-se, entretanto, que o agente também estava incumbido de observar e relatar os hábitos da corte parisiense, assim como os tipos de joias, o enxoval, os vestidos, as baixelas, os toucadores e o mobiliário dos membros da família real francesa. Além disso, era responsabilidade de Mendes de Goes

(…) informar-se quais são as princesas ou damas de melhor gosto e que melhor conhecimento tem da verdadeira moda e saber estas, que joias tem, tanto de grossa pedraria, como de mais ordinária, para as guarnições de peito, das manguinhas das roupas, de levantar a roupa e dos toucados, anéis, gargantilhas, orelhas, etc. (Carvalho, 1949CARVALHO, Augusto Silva. Um agente de Portugal em França, Francisco Mendes de Góis. Anais da Academia Portuguesa de História, II série, separata, v. 2, p. 214-240, 1949., p. 224).

Deveria, ainda, percorrer as principais catedrais, abadias e conventos de Paris e da França com o objetivo de observar o que se praticava, relativamente, aos objetos e livros que tais instituições guardavam. A esta solicitação Mendes de Goes respondeu dizendo que: “(...) este grande detalhe requer uma vasta correspondência, e uma constante aplicação; e eu apenas tenho cabeça para quebrá-la continuamente com um milhão de obreiros bêbados, preguiçosos e fantásticos”.18 18 BNP, Mss. 62, doc. 14, Paris, 8 ago. 1729, fl. 60.

Com o objetivo de adentrar no universo sociocultural onde circulava Francisco Mendes de Goes na qualidade de membro do corpo diplomático português passaremos, a seguir, a analisar dois conjuntos documentais que pertencem aos acervos da Biblioteca Nacional de Lisboa e ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo. O primeiro conjunto documental, formado por 58 epístolas, é composto por cartas escritas por Francisco Mendes de Goes ao cardeal da Mota. O segundo conjunto de documentos é composto por cartas enviadas da corte lisboeta por algumas personalidades da aristocracia portuguesa. Ambos os conjuntos de documentos têm como enfoque as encomendas de bens e objetos na corte de Paris que seriam remetidas para Lisboa.

“Meu Senhor”: cartas para o cardeal

V. Eminª só e unicamente me protegeo contra hum milhão de accuzaçens: V. Eminª fez mudar do mal para o bem o conceito que de mim se fazia, e como so a V. Emin.ª sou devedor de tudo, dependo absolutamente da boa ou má satisfação, que V. Emin.ª tiver do meu serviço.19 19 BNP, Mss. 62, doc. 6, Paris, 1 nov. 1728, fl. 27.

Foi com estas palavras que Francisco Mendes de Goes dirigiu-se ao cardeal da Mota pouco depois de ser nomeado para a sua missão na corte de Luís XV. Diante destas palavras, percebe-se que, de fato, a relação estabelecida entre Francisco Mendes de Goes e o cardeal da Mota poderá ter tido peso para a sua escolha e nomeação para a corte de Paris. Veremos, nos enxertos analisados, que o cardeal20 20 O falecimento precoce de Corte-Real fez com que o cardeal da Mota fosse nomeado secretário de Estado, desempenhando as funções entre 1736 e 1747, ano em que veio a falecer. A escolha de Mota e Silva para desempenhar a função de secretário de Estado deve-se à relação de grande amizade com dom João V. da Mota assumiu um papel importante para Mendes de Goes ao apoiá-lo, durante a sua residência em Paris, nos períodos de maior dificuldade. As 58 cartas redigidas pelo agente e endereçadas ao cardeal da Mota contemplam os anos entre 1725 e 1740 e foram reunidas em um códice intitulado “Cartas de Francisco Mendes de Goes para o cardeal da Mota sobre os preços e transporte de encomendas reais”. Num primeiro momento, poderíamos inferir que a documentação apresentaria a precificação dos objetos encomendados pelo monarca na corte de Paris.

Contudo, deparamo-nos com cartas que, essencialmente, relatam as dificuldades vivenciadas pelo agente na corte de Luís XV no que diz respeito ao apoio financeiro insuficiente quer para adquirir as encomendas, como para enviá-las para Lisboa. Para Henrique Neto (2018NETO, Henrique. Os homens da confiança régia ao tempo de D. João V. Dissertação (Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos), Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2018.), o grande volume de correspondência trocada entre Mendes de Goes e o cardeal da Mota justifica-se pela proximidade entre Mota e o monarca português. E, de fato, em muitas das cartas reunidas neste conjunto documental Francisco Mendes de Goes pede pela intercessão do cardeal junto ao monarca português não somente para dar seguimento aos seus pedidos de apoio financeiro, como para esclarecer algumas suspeitas levantadas por membros da aristocracia sobre a seriedade do agente em Paris.

É possível notar que as dificuldades financeiras enfrentadas por Mendes de Goes tiveram início desde o seu primeiro ano de residência em Paris. Em novembro de 1727, relatou ao cardeal da Mota o quão “desprovido” estava, dizendo que

O primeiro expresso, que chegou a Paris (...) me trouxe ordens para comprar encomendas, que pelo menos importarão mais de quinhentas mil livras, em tempo que eu estava não só desprovido de dinheiro, mas devendo diferentes somas. (...) que V. Ilme me fizera depois remessas de cento e quatro mil e quinhentos cruzados, se julgaria, que eu não necessitava de novos fundos. Sem atender-se, que eu estava encarregado da grande encomenda de galloens e franjas de ouro; e que suposto dissesse na conta, que ficava devedor à Fazenda Real de 16:829$500 reis.21 21 BNP, Mss. 62, doc. 6, fl. 7, Paris, 1 nov. 1728.

Somado aos encargos financeiros, o detalhamento das informações relativas às encomendas enviadas pelo agente, listando a metragem de tecidos enviados, debuxos de louças e joias, aumentava, consideravelmente, o seu esforço. Diante disso, Mendes de Goes afirmou em carta que

(...) depois remetterey a conta geral, a qual poderá hir sem ser tão detalhada: venero com o mais profundo respeito e humildade a ordem del Rey Nosso Sor, a qual me participou igualmente o Sor Secretro de Esto. Eu desejava com todo o meu coração de podella executar à custa do meu descanço, e da minha vida; mas falando natural e sinceramente, protesto, que me sera impossível, em quanto tiver tantas encomendas a meu cargo.22 22 BNP, Mss. 62, doc. 4, Paris, 27 set. 1728.

Mendes de Goes, parafraseando um ditado italiano, chega a dizer em uma das cartas ao cardeal “(...) que não é chuva, mas sim um dilúvio de encomendas” ao se referir à diversidade e ao volume de objetos solicitados a ele para serem enviados para a corte portuguesa. Em novembro de 1727 o agente comunicou ao cardeal a situação financeira por ele vivida ao dizer que “(...) depois de empregar o primeiro dinheiro das barras de ouro, esteve sempre o cofre forte vazio; e que eu fuy obrigado a comprar muitas coisas fiadas.” Mesmo que, eventualmente, Mendes de Goes tenha sido confrontado com a necessidade de desempenhar outras funções, não há dúvidas de que a aquisição e o envio de objetos encomendados pela família real foram a sua prioridade enquanto esteve em Paris. Essa era a missão para a qual fora nomeado e a que lhe ocupava grande parte do tempo, dos meios financeiros e da energia física. Em fins de outubro de 1728, afirmou o agente ter expedido para Lisboa

(...) dez fardos com vestidos e encomendas do serviço de Sua Magestade que Deos gde; e já no corrente deste mez partirão para o Havre de Graça outros quatorze fardos com mais vestidos e encomendas; e até me faltão os meyos para pagar os direitos das alfândegas, os carretos, seguros e gastos destas expedições, sem fallar em que se augmenta cada dia o numero das dívidas com as compras de tantas fazendas.23 23 BNP, MSS. 62, doc. 5, Paris, 21 out. 1728, fl. 23.

Ao longo das 58 cartas é possível recuperar a tipologia de algumas encomendas recebidas por Mendes de Goes, o que nos permite ter uma ideia dos objetos que adquiriu para o monarca português.

Quadro 1
Tipologia de objetos enviados para a corte portuguesa pelo Agente

Para grande parte dos objetos que aparecem nas cartas redigidas por Mendes de Goes não são fornecidas informações sobre quantidade e preço. A exceção é verificada no caso dos diamantes, para os quais o agente apresenta valores e a qualidade daqueles que eram mais apreciados pelos ourives parisienses. Nas palavras de Mendes de Goes “(...) os diamantes que fazem o circulo haviam de ser mais estimados por esses ourives se fossem diamantes rosas grandes ainda que fossem sujos e de mão agoa; mas como são brilhantes pequenos não fazem reparo na perfeição, pois esses brilhantes custaram mais do que rubi”.24 24 BNP, Mss. 62, doc. 20, Paris, 27 out. 1729, fl. 98. Nas contas apresentadas por Mendes de Goes, o valor do rubi pago pelos ourives parisienses rondava as 840 libras, ao passo que os brilhantes chegavam a custar 1.814 libras.

Se, por um lado, a correspondência de Mendes de Goes peca pela ausência detalhada de objetos remetidos para a corte, por outro lado percebe-se a sua lisura e rigidez no envio das contas de tudo que gastava em Paris e nas demais cortes para onde teve que se deslocar para cumprir a sua missão. Os valores gastos por Mendes de Goes eram todos enviados em moeda portuguesa, sendo feita a conversão pelo próprio. No rol de objetos solicitados por dom João V ao seu agente encontramos entre os artigos de vestuário chapéus, cabeleiras, vestidos, gravatas, rendas e muitas varas de tecidos para confeção de peças de roupa na corte portuguesa. Entre os anos de 1725 e 1728 o volume avultado de encomendas remetidas de Paris para Lisboa somou cerca de 600 mil libras.

Paralelamente à relação de artigos adquiridos e às dificuldades para os custear e ao seu envio para a corte, Mendes de Goes dedicou algumas cartas ao cardeal para relatar o problema enfrentado por ele com um comerciante francês chamado Estevão Lejay. O incumprimento relatado pelo comerciante é veementemente refutado pelo agente na correspondência enviada ao cardeal da Mota. Percebe-se a grande preocupação de Mendes de Goes com a sua credibilidade e respeito perante o monarca.

O volume de encomendas provenientes de Lisboa obrigou Mendes de Goes a “(...) lidar continuamente com milhares de fabricantes, bordadores, alfaiates, e outras gentes desta laya, e no mesmo tempo escrever relações difusas circunstanciadas (...) são coisas opostas e incompatíveis, que não cabem na minha capacidade”.25 25 BNP, Mss. 62, doc. 9, Paris, 27 jun. 1729, fl. 39. O desgaste físico e emocional de Mendes de Goes transparece ao longo das cartas enviadas ao cardeal da Mota, chegando o agente a escrever que: “(...) não me sinto em estado de continuar aqui mais tempo o Serviço, pois experimento cada dia mais o pouco caso que lá se faz de mim, e quero antes pedir uma esmola até a hora da minha morte, do que viver desta sorte”.26 26 BNP, Mss. 62, doc. 34, Paris, 20 fev. 1730, fl. 154.

Entre dicionários e chinelas: as encomendas da corte para Francisco Mendes de Goes

O outro conjunto de epístolas acaba por complementar a análise sobre o período de Mendes de Goes em Paris. O teor de muitas delas ainda foi aquele visto nas cartas enviadas ao cardeal da Mota, que enfatizam as dificuldades no desempenho da missão. Às queixas de Mendes de Goes somam-se listas de bens e objetos solicitados por alguns dos seus interlocutores. Nesse grupo, figuraram o conde da Ericeira, o conde de S. Miguel, Vicente de Oliveira Durão, Pedro da Silveira e Marco António de Azevedo Coutinho, ministro plenipotenciário (1721-1728), que residia em Cambrai.27 27 O Congresso de Cambrai ocorreu posteriormente à assinatura do Tratado de Haia (1720), pondo fim ao Conflito da Quádrupla Aliança. Dom João nomeou o conde de Tarouca e dom Luís da Cunha como embaixadores extraordinários para representarem Portugal no congresso. Foram nomeados Marco António de Azevedo Coutinho, Alexandre de Gusmão e António Galvão de Castelo Branco ainda, pelo então secretário de Estado, Diogo de Mendonça Corte-Real,

Durante o período de quase dez anos em que Mendes de Goes correspondeu-se28 28 A correspondência enviada por Francisco Mendes de Goes a Marco António de Azevedo Coutinho ocorreu no período em que Coutinho encontrava-se em Bruxelas, na qualidade de acompanhante e amigo de dom Luís da Cunha. A relação entre Coutinho e Cunha teve início quando ambos foram enviados para o Congresso de Cambrai. Coutinho, na condição de enviado extraordinário, e dom Luís da Cunha como ministro plenipotenciário. com Marco António de Azevedo Coutinho,29 29 Marco António de Azevedo Coutinho foi secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra entre os anos de 1747 e 1750, tendo desempenhado, anteriormente, as funções de enviado extraordinário em Londres e ministro plenipotenciário no Congresso de Cambrai. percebe-se que a atividade desempenhada por ele esteve, sempre, sob escrutínio do seu interlocutor. Em janeiro de 1727, uma carta de Mendes de Goes manifestava a sua preocupação com a manutenção da amizade existente entre ambos. No cerne desse problema, estava o uso de uma verba não autorizada para aquisição de vestidos junto ao alfaiate Recours [sic] feita por ele. Tal fato justificou-se, segundo Mendes de Goes, pela demora na remessa de dinheiro que ele precisava para saldar as dívidas que tinha feito na aquisição dos vestidos encomendados por Coutinho.

Nos finais do mesmo ano, numa carta do conde dom Pedro de Almeida,30 30 A documentação consultada não permite esclarecer sobre a identidade do conde dom Pedro de Almeida. seguia uma ampla e bastante diversificada listagem de livros. Entre as obras encomendadas pelo conde, estavam o dicionário de Troupeaux e obras de encadernação que ensinavam “(...) o modo de dar as cores nos couros e nas folhas principalmente, o que chamam marbré”. Na mesma posta, o conde agradecia pelo envio da obra As viagens de Gulliver,31 31 Sátira escrita pelo irlandês Jonathan Swift e editada em 1726 pela editora Benjamin Motte. Originalmente, tinha como título Viagens a diversos países remotos do mundo, em quatro partes, por Lemuel Gulliver, a princípio cirurgião e, mais tarde, capitão de vários navios. de Jonathan Swift que, segundo ele, “he a melhor imaginação que ninguém teve para fazer hua sátira com fineza, e com utilidade”. A literacia do conde de Almeida fica evidente ao depararmos com a diversidade e o volume de obras encomendas. Em julho do ano seguinte, o conde de Almeida manifestou a sua inteira gratidão pelo envio das obras que havia requisitado na listagem de 1727 e, em especial, pelo envio da obra Accidentia Profligata, de Johannes Saguens. Na mesma carta32 32 ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4 (1), Correspondência do conde dom Pedro de Almeida para Francisco Mendes de Góis, 1727-1728. e em tom elogioso, “(…) sem parecer que abuso da sua galantaria”, voltou a pedir alguns volumes de livros que já tinham sido referenciados em listagens anteriores.

Em 1727 o conde da Ericeira33 33 ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(5), Correspondência do conde de Ericeira para Francisco Mendes de Góis, 1728. escreveu de Cascais para Mendes de Goes solicitando, “com toda a brevidade”, duas cabeleiras sendo uma solta e outra quadrada ambas para vestido de capa e que fossem feitas pelo melhor mestre. Além disso, encomendava, também, um espadim de prata dourada da “última moda”. Também a condessa da Ericeira tinha encomendas a fazer ao enviado português em Paris. Pedia que lhes fossem feitos, com a mesma pressa e pelo “sapateiro mais primoroso”, uma dúzia de pares de chinelas, todas em couro de várias cores (cor de fogo, de ouro, escuras e algumas negras) e algumas bordadas a ouro e outras com prata de sorte. Todas deveriam ter algum apontamento em ouro ou prata. Poucos meses depois, em março de 1728, o conde da Ericeira enviava nova carta a Mendes de Goes, “em agradecimento, porque tudo era excelente e chegou muito a tempo”. O pagamento da encomenda foi feito em moeda francesa e o conde de Ericeira solicitava ao enviado português que tentasse encontrar uma ocasião em que o câmbio estivesse favorável.

Naquele mesmo ano, Francisco Mendes de Goes, em duas das cartas recebidas de Lisboa e cujo remetente era Álvaro José Botelho de Távora, 4º conde de São Miguel, recebeu a encomenda de vários pares de sapatos entre “ordinários e mais ricos”, mas todos “de capricho” e na proporção excelente. No caso específico dessa encomenda, o conde de São Miguel pedia que a mesma não fosse enviada juntamente com aquelas que eram destinadas ao Infante, devendo, portanto, serem enviadas em seu nome. Seis meses depois dessa primeira carta, Mendes de Goes recebeu uma segunda, também enviada pelo conde de São Miguel, que iniciava com um elogio à sua pontualidade e ao seu bom gosto no envio das encomendas anteriores.

Entre 1728 e 1734, Caetano de Souza Andrada enviou para Mendes de Goes um conjunto de cartas em que solicitava artigos bastante específicos ao agente. Em 1728, fez um pedido de peles pois, segundo ele, “(…) as peles que aqui há dizem os alfaiates são incapazes” e completou dizendo “(…) porque eu já queria remediar a falta coma grossaria desta terra privando-me do bom gosto dessa”.34 34 ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(1), Correspondência de Caetano de Sousa e Andrade para Francisco Mendes de Góis, 1728. Em 1732, Andrada solicitou o envio de “(...) quatro talins de transa de retros um preto, um verde, um azul e um encarnado e que sejam bem fortes e cheios de retros porque a continuação do espadim os gasta muito”. O talim era uma espécie de correia que pende da espada. No ano seguinte, em 1733, uma posta enviada por Andrada trazia uma nova encomenda que consistia em

(...) que V. M. ahi mande fazer dous estojos com suas chaves, um para ter nesta corte, e outro para ter na minha quinta e dentro de cada hum há de haver hua dúzia de boas navalhas de barba feitas por bom Mestre, hua igual tizoura, e pedra de afiar. E tudo deixo ao bom gosto, e arbítrio de V. M. porque aqui não há navalhas boas, e o que se obra he da sorte que V. M. sabe. E oir esta causa lhe dou este trabalho advertindo lhe mande entregar em mão própria para que não haja o descaminho que sucedeo na vestia e me avisará o custo.35 35 ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(2): Correspondência Caetano de Sousa e Andrade (1728-1734).

Renda de ouro, perucas de bolsa, peças de fita cor de fogo, boldriés bordados, vestidos verdes, amarelos e azuis foram alguns itens que constaram nas cartas recebidas por Mendes de Goes. Contudo, a leitura dos dois conjuntos documentais feita para este artigo revelou, essencialmente, as dificuldades enfrentadas pelo agente durante a sua missão na corte parisiense. Estar em Paris com o objetivo exclusivo de procurar, negociar e remeter as encomendas régias para Lisboa no período joanino acabou por atribuir à estadia de Francisco Mendes de Goes momentos de cansaço físico e emocional que transpareceram nas cartas enviadas ao cardeal da Mota e a Marco António de Azevedo Coutinho. A expressão utilizada por Mendes de Goes e que deu título a este artigo “que não é chuva, mas sim um dilúvio de encomendas” deixa transparecer a angústia vivida por ele diante do recebimento, sucessivo, de listas de encomendas vindas de Lisboa. Vemos, assim, que os conjuntos documentais que nos propusemos a analisar acabam por se complementar na medida em que nos levam a conhecer os contornos da missão de Francisco Medes de Goes, para a qual tinha sido nomeado. Ao longo do período em que esteve destacado para a corte de Paris enfrentou grandes problemas de natureza financeira que o levaram a questionar a sua estadia naquela corte.

Considerações finais

A epistolografia vem, nos últimos anos, assumindo um papel importante nos estudos do cotidiano e da vida cultural, sendo utilizada por várias áreas do conhecimento nas humanidades. Seja pela falta de documentos oficiais seja por opções metodológicas dos investigadores, o uso de correspondência privada tem permitido adentrar no universo humano sob um olhar diferente. Nesse contexto, a documentação epistolar

(...) constitui um testemunho ímpar da autenticidade das relações pessoais, culturais e sociais de uma época ou de um autor. Se a função da obra literária é problematizar a vivência de uma cultura, o discurso epistolar quotidiano traduz a vivência dessa cultura. É a visão pessoal e a narração dos momentos vividos numa tripla aceção: o passado memorizado, o presente vivido e o futuro esperado e desejado (Seara, 2006SEARA, Isabel Roboredo. Da epístola à mensagem eletrônica: metamorfoses das rotinas verbais. Tese (Doutorado em Linguística), Universidade Aberta. Lisboa, 2006., p. 19).

No universo da diplomacia destacam-se, entre os documentos produzidos pelas legações, o grande volume de cartas redigidas pelos membros do corpo diplomático e que abordaram os mais diversos temas não estando, portanto, centradas somente nos assuntos relacionados com a política internacional da época. Muitas foram as cartas enviadas a membros das suas famílias e a amigos onde relatavam o seu cotidiano nas cortes europeias com todas as dificuldades que a residência no estrangeiro poderia acarretar.

Neste contexto, a corte de Paris destaca-se entre os relatos de membros do corpo diplomático ao longo dos anos. O luxo e a riqueza ostentados pelos parisienses atribuíram à residência de diplomatas naquela corte um peso acrescido. Era necessário corresponder às expetativas da corte parisiense em vários aspetos do cotidiano: nas festas promovidas nas casas dos representantes diplomáticos, na indumentária utilizada por eles e por sua família, no comportamento regrado e correto de todos os residentes da embaixada. No reinado de Luís XIV vimos uma corte parisiense luxuosa e que ostentava de maneira reluzente este luxo em vários momentos do cotidiano. Em Portugal, a ascensão de dom João V ao trono, em 1706, trouxe consigo o luxo e a ostentação da corte parisiense, visto ser dom João V (o Magnânimo) um grande admirador do monarca francês. Financiada pelo ouro e diamantes provenientes do Brasil, a corte portuguesa conheceu a magnificência nas infraestruturas construídas, nas bibliotecas e academias fundadas, nos bailes e festas promovidos pela monarquia e pela aristocracia repletos de bens e objetos provenientes de várias partes do mundo.

Os embaixadores, ministros plenipotenciários e os agentes assumiram um papel importante também no cenário sociocultural da época, sendo, muitos deles, incumbidos de procurar e adquirir os mais diversos objetos tanto para dom João V quanto para membros da aristocracia portuguesa. Analisamos, neste artigo, a trajetória de Francisco Mendes de Goes, que de criado de dom Luís da Cunha passou a agente de dom João V numa das mais importantes cortes da Europa setecentista. Nomeado pelo rei com a função de agente, tinha a missão especial de ficar responsável por gerir a aquisição e remessa das encomendas feitas pela família real. Contudo, durante mais de uma década em que residiu em Paris Mendes de Goes teve que lidar com uma variedade de situações que não estiveram restritas somente àquelas relacionadas com a sua missão. As viagens para outras cortes europeias, a escrita de relações sobre a corte onde residia, as elaborações de passaportes para outros membros do corpo diplomático estiveram entre as atividades desempenhadas por Mendes de Goes. O desdobramento do agente entre as diversas funções, associado às dificuldades financeiras provenientes dos atrasos da verba que era enviada de Portugal desgastaram muito Francisco Mendes de Goes, que não deixou de transparecer a sua debilidade e desagrado nas cartas enviadas ao cardeal da Mota.

O conjunto documental composto por cartas enviadas para Francisco Mendes de Goes por membros da aristocracia portuguesa com listas de encomendas que contemplavam dicionários, peças de indumentária, artigos científicos e obras de arte demonstra que o agente acabou por ter que se dividir em duas frentes para conseguir dar resposta às solicitações de Lisboa. A partir da análise das epístolas de Francisco Mendes de Goes, foi-nos possível perceber que a vida de luxo e pompa da corte parisiense foi, muitas vezes e para muitos representantes diplomáticos, sinônimo de dificuldades financeiras, de desgaste físico e emocional. Diante das dificuldades financeiras enfrentadas, associadas à perda de credibilidade causada por dúvidas levantadas por membros da corte sobre a gestão que Mendes de Goes fazia do dinheiro enviado pela corte para as encomendas, foram recorrentes as referências que o agente fez à sua intenção de retornar a Portugal. Contudo, manteve-se fiel ao compromisso que assumiu e, ao longo de mais de dez anos, esteve em Paris desempenhando a missão para a qual fora nomeado, apesar de todas as adversidades com as quais teve que lidar.

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  • SOUSA, António Caetano de. História genealógica da Casa Real Portuguesa Lisboa: Oficina de José Antonio da Sylva, 1735-1749. 13 v.
  • 1
    A obra de Francisco Rodrigues Lobo (1774) é composta por 16 diálogos entre cinco amigos (Leonardo, Letrado; Lívio, Doutor; dom Júlio, Fidalgo, Píndaro, Estudante e Solino, um Velho) ao longo de 16 noites, cujos títulos já demonstram qual será a preocupação do autor com a prática da escrita epistolar.
  • 2
    A obra de Francisco José Freire, O secretário português, compendiosamente instruído no modo de escrever cartas; por meio de uma instrução preliminar, regra de secretaria, formulário de tratamentos, e um grande número de cartas em todas as espécies que tem mais uso, teve a primeira edição publicada em 1745 pelas Oficinas de António Izidoro da Fonseca [de Lisboa] e a última (ao que parece) em 1823.
  • 3
    Marco António de Azevedo e Coutinho tinha sido nomeado ministro plenipotenciário e estava em Bruxelas a acompanhar dom Luís da Cunha nesse período em que Francisco Mendes de Goes lhe escreveu. Ambos tinham deixado Paris com destino a Haia, mas a piora no estado de saúde de dom Luís da Cunha fez com que se dirigissem para Bruxelas, onde permaneceram até 1728. Coutinho chegou a permanecer em Haia com dom Luís da Cunha, mas, em setembro de 1728, recebeu ordens régias para retornar a Lisboa.
  • 4
    Mendes de Goes não foi o primeiro, tão pouco o último, representante diplomático português a queixar-se das dificuldades que a vida na corte francesa acarretava. No século anterior, os relatos sobre os altos custos da vida em Paris foram frequentes na correspondência de Duarte Ribeiro de Macedo, por exemplo.
  • 5
    Em 1727, por exemplo, dom João V escreveu a quatro dos seus principais representantes diplomáticos em missão nas principais cortes europeias da época (conde de Tarouca em Viena, Francisco Mendes de Goes em Paris, António Galvão de Castelo Branco em Londres e dom Luís da Cunha em Bruxelas) com instruções para que fizessem visitas e registros pormenorizados sobre a composição do acervo, dimensão das estantes e prateleiras de livrarias e bibliotecas conceituadas, com o objetivo de transpor para a Biblioteca Real esses modelos.
  • 6
    Em julho de 1721, dom Luís da Cunha remeteu de Paris um extenso rol de livros destinados ao marquês de Abrantes que incluía, entre outros títulos, quatro volumes do Novo Testamento do padre Quesnel, 22 volumes dos Arrests depois da Regência, cinco volumes de obras relativas à Marinha e 17 volumes in folio de manuscritos sobre o reino de França.
  • 7
    No universo diplomático do século XVIII designava-se Agente de um príncipe “(…) um Ministro, sem título, que em lugar de Embaixador, ou de Enviado, faz os negócios do Príncipe ou República.”
  • 8
    As relações diplomáticas entre Portugal e França estiveram interrompidas em dois períodos durante o reinado de dom João V, motivo pelo qual foram nomeados apenas três representantes diplomáticos no período. Primeiramente, entre 1705-1713, devido ao incumprimento de um acordo estabelecido com a França durante a Guerra de Sucessão de Espanha, que garantia o apoio francês a Portugal no caso de uma guerra ser iniciada. O desrespeito ao acordo fez com que dom Pedro apoiasse a coroação do arquiduque Carlos ao lado da Inglaterra, Holanda e Áustria. E, num segundo momento, entre 1724 e 1736, tendo sido causada por questões protocolares que envolveram o embaixador francês abade de Livry que desejava que o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real fosse visitá-lo em sua casa antes da primeira audiência e apresentação pública das suas credenciais, o que contrariava o protocolo diplomático português.
  • 9
    Dom Luís Manuel da Câmara era filho de dom José Rodrigo da Câmara e da princesa Constance-Emilie de Rohan. Com formação militar atuou ativamente na Guerra de Sucessão de Espanha. Comendador da Ordem de Cristo esteve em Paris na qualidade de embaixador extraordinário e, posteriormente, foi enviado para Cambrai para negociação da paz na qualidade de ministro plenipotenciário.
  • 10
    Dom Luís da Cunha era formado em direito canônico e membro da Academia Real da História, desempenhou, com grande destaque, várias missões de caráter diplomático entre 1697 e 1749. Esteve em Paris na qualidade de embaixador até o final dos seus dias.
  • 11
    Marco António de Azevedo Coutinho era comendador da Ordem de Cristo e de Santiago. Foi, também, o primeiro secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra a ser nomeado em 1736. A grande afeição que dom Luís da Cunha nutria por Coutinho fez com que o embaixador endereçasse a ele uma Instrução Política, obra que, mais tarde, seria uma referência para a história da diplomacia portuguesa. Esteve em Paris na qualidade de ministro plenipotenciário, sendo, durante o período da sua missão, enviado para Cambrai com a mesma qualidade para negociação do tratado de paz.
  • 12
    Relativamente à função desempenhada por Mendes de Goes na corte francesa, existem algumas dúvidas. Segundo Ana Leal de Faria (2008), Francisco Mendes de Goes esteve em Paris somente no ano de 1732, desempenhando a função de Enviado. Já Isabel Cluny (1999), ao analisar a trajetória de dom Luís da Cunha no capítulo dedicado a Francisco Mendes de Goes, demonstrou que ele tinha sido nomeado agente em 1726, atuando nesta função por, pelo menos, dez anos.
  • 13
    Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Mss. 62, doc. 9, Paris, 27 jun. 1729, fl. 42.
  • 14
    Na qualidade de primeiro cônego magistral da Colegiada de São Tomé, Mota e Silva passou a participar das conferências eruditas promovidas pelo núncio apostólico em Lisboa, Giuseppe Firrao, e que eram frequentadas por aristocratas e religiosos. As participações de Mota e Silva e a posição de cônego da Basílica Patriarcal de Lisboa fizeram com que estreitassem as suas relações com o rei e a rainha.
  • 15
    Sabe-se que, em 1727, Mota e Silva foi nomeado cardeal por Bento XIII recebendo, para tal, o barrete cardinalício. Contudo, não chegou a ir a Roma para recebê-lo.
  • 16
    Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), MNE, Cx. 1, m.2, Correspondência de dom Luís da Cunha para Mendes de Goes, 30 nov. 1724.
  • 17
    BNP, Mss. 62, doc. 5, Paris, 23 out. 1728, fl. 24.
  • 18
    BNP, Mss. 62, doc. 14, Paris, 8 ago. 1729, fl. 60.
  • 19
    BNP, Mss. 62, doc. 6, Paris, 1 nov. 1728, fl. 27.
  • 20
    O falecimento precoce de Corte-Real fez com que o cardeal da Mota fosse nomeado secretário de Estado, desempenhando as funções entre 1736 e 1747, ano em que veio a falecer. A escolha de Mota e Silva para desempenhar a função de secretário de Estado deve-se à relação de grande amizade com dom João V.
  • 21
    BNP, Mss. 62, doc. 6, fl. 7, Paris, 1 nov. 1728.
  • 22
    BNP, Mss. 62, doc. 4, Paris, 27 set. 1728.
  • 23
    BNP, MSS. 62, doc. 5, Paris, 21 out. 1728, fl. 23.
  • 24
    BNP, Mss. 62, doc. 20, Paris, 27 out. 1729, fl. 98.
  • 25
    BNP, Mss. 62, doc. 9, Paris, 27 jun. 1729, fl. 39.
  • 26
    BNP, Mss. 62, doc. 34, Paris, 20 fev. 1730, fl. 154.
  • 27
    O Congresso de Cambrai ocorreu posteriormente à assinatura do Tratado de Haia (1720), pondo fim ao Conflito da Quádrupla Aliança. Dom João nomeou o conde de Tarouca e dom Luís da Cunha como embaixadores extraordinários para representarem Portugal no congresso. Foram nomeados Marco António de Azevedo Coutinho, Alexandre de Gusmão e António Galvão de Castelo Branco ainda, pelo então secretário de Estado, Diogo de Mendonça Corte-Real,
  • 28
    A correspondência enviada por Francisco Mendes de Goes a Marco António de Azevedo Coutinho ocorreu no período em que Coutinho encontrava-se em Bruxelas, na qualidade de acompanhante e amigo de dom Luís da Cunha. A relação entre Coutinho e Cunha teve início quando ambos foram enviados para o Congresso de Cambrai. Coutinho, na condição de enviado extraordinário, e dom Luís da Cunha como ministro plenipotenciário.
  • 29
    Marco António de Azevedo Coutinho foi secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra entre os anos de 1747 e 1750, tendo desempenhado, anteriormente, as funções de enviado extraordinário em Londres e ministro plenipotenciário no Congresso de Cambrai.
  • 30
    A documentação consultada não permite esclarecer sobre a identidade do conde dom Pedro de Almeida.
  • 31
    Sátira escrita pelo irlandês Jonathan Swift e editada em 1726 pela editora Benjamin Motte. Originalmente, tinha como título Viagens a diversos países remotos do mundo, em quatro partes, por Lemuel Gulliver, a princípio cirurgião e, mais tarde, capitão de vários navios.
  • 32
    ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4 (1), Correspondência do conde dom Pedro de Almeida para Francisco Mendes de Góis, 1727-1728.
  • 33
    ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(5), Correspondência do conde de Ericeira para Francisco Mendes de Góis, 1728.
  • 34
    ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(1), Correspondência de Caetano de Sousa e Andrade para Francisco Mendes de Góis, 1728.
  • 35
    ANTT, MNE, cx. 2, mç. 4(2): Correspondência Caetano de Sousa e Andrade (1728-1734).
  • Trabalho financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., de Portugal, no âmbito da celebração do contrato-programa previsto nos números 4, 5 e 6 do art. 23º do D.L. n. 57/2016, de 29 de agosto, alterado pela Lei n. 57/2017, de 19 de julho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2021
  • Aceito
    17 Jan 2023
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