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@GREENGODICTIONARY: AUTORIA, RESPONSIBILIDADE, CARNAVALIZAÇÃO E ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS EM UMA CONTA DO INSTAGRAM

@GREENGODICTIONARY: AUTHORSHIP, RESPONSIBILITY, CARNIVALIZATION AND LANGUAGE TEACHING-LEARNING ON AN INSTAGRAM ACCOUNT

RESUMO

O objetivo deste artigo é lançar o olhar das teorizações de base bakhtiniana (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2014BAKHTIN, Mikhail (1924-1974). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini el al. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.; BAKHTIN, 2011BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., 2012; SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras.; PAULA; STAFUZZA, 2011) sobre dois carrosséis de postagens publicados em dezembro de 2020 da conta @greengodictionary abrigada na rede social Instagram, configurado aqui como uma esfera da atividade humana. O estudo é uma pesquisa documental e se insere dentro da perspectiva qualitativa de pesquisa (BELL; WATERS, 2014BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education.; GRANT, 2019GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,). A análise destes documentos aponta, dentro da esfera da conta, para processos de autoria responsável e responsiva ativa (responsibilidade) de atos enunciativos permeados de práticas discursivas carnavalizadas nas línguas inglesa e portuguesa do Brasil. Procura também avaliar as contribuições para o ensino-aprendizagem de línguas dos projetos enunciativos, autorais, responsíveis e carnavalizados identificados.

Palavras-chave:
autoria; responsibilidade; carnavalização; ensino-aprendizagem de línguas; @greengodictionary

ABSTRACT

The aim of this article is to look at two carousel posts published in December 2020 on the account @greengodictionary through the lens of Bakhtinian-based theorizations (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2014; BAKHTIN, 2011BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., 2012; SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras.; PAULA; STAFUZZA, 2011). The @greengodictionary is housed in the social network, Instagram, configured here as a sphere of human activity. The study is based on documentary research and falls within the qualitative research perspective (BELL; WATERS, 2014BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education.; GRANT, 2019GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,). The analysis of these documents points, within the account domain, to processes of responsible and active responsive authorship (responsiveness) of enunciative acts permeated with carnivalized discursive practices in the English and Brazilian Portuguese languages. It also seeks to assess the contributions to language teaching-learning of the authoritative, responsive and carnivalized enunciative projects identified.

Keywords:
author; responsibility; carnivalization; language teaching-learning; @greengodictionary

O objetivo deste artigo é lançar o olhar das teorizações Bakhtinianas, em especial os construtos da autoria, da responsibilidade1 1 O termo responsibilidade é sugerido por Sobral (2009), estudioso de Bakhtin e o Círculo; uma aglutinação dos termos responsabilidade e responsividade. Sugere também o termo ato responsível. Neste estudo optamos por seus usos. e da carnavalização, sobre seleções de postagens (feed posts)2 2 O Instagram possibilita diferentes tipos de postagens. Os feed posts têm caráter permanente (a não ser que sejam deletados ou arquivados), ao passo que os stories, por exemplo, ficam ativos por 24 horas. publicadas na conta @greengodictionary abrigada na rede social Instagram. O estudo se configura como uma pesquisa documental e se insere dentro da perspectiva qualitativa e interpretativista de investigação científica. A pesquisa é uma resposta compreensiva ativa às leituras propostas em uma disciplina do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística de uma universidade pública brasileira, oferecida no segundo semestre de 2020, e que teve como foco as contribuições da perspectiva bakhtiniana para ensino-aprendizagem de línguas.

Foi neste contexto de leituras e reflexões sobre os construtos bakhtinianos e buscando exemplos da realidade vivida para ilustrar as discussões, que passamos a conhecer (e a seguir) os conteúdos postados em @greengodictionary cujo objetivo é, de modo geral, esclarecer e divulgar expressões idiomáticas do português brasileiro. Inescapavelmente, passamos a enxergá-las como gêneros discursivos, ou seja, como “resultado dinâmico de uma atividade autoral dialógica a que se fazem presentes o conteúdo, o material e a forma, o composicional e o arquitetônico, o linguístico e o enunciativo, o verbal e o extra-verbal” (SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., p. 120).

As postagens em @greengodicitionary são enunciados que seguem um padrão mais ou menos estável que se assemelha a uma entrada de dicionário; algumas vezes enriquecidas com ilustrações, áudios e o resultado é uma espécie de meme humorístico sobre as particularidades e termos bastante factuais da língua portuguesa do Brasil e que muitas vezes não estão nos dicionários tradicionais. Além disso, os termos são traduzidos (recebem uma versão) de forma jocosa e literal3 3 Ver também FERNADES, Millôr. The cow went to the swamp. Companhia das Letras, 2017. 122p. para o inglês com direito a trocadilhos e neologismos e jogos de palavra que misturam as duas línguas. As rubricas explicam em inglês como as palavras e termos são usadas em determinados contextos brasileiros. Visualmente as postagens têm (em sua grande maioria) um fundo verde. O título da entrada aparece em fontes maiores na cor azul, inferindo as cores da bandeira nacional brasileira. O nome ‘greengo’ também faz uma brincadeira com a palavra ‘green’ (verde) do inglês e a palavra ‘gringo’ do português. A curadoria da conta é assinada pelo design gráfico goiano Matheus Diniz, que aos 26 anos, criou a primeira entrada do @greengodictionary em fevereiro de 2019.

Mas o que tudo isso tem a ver com aprendizagem de línguas? Um dos fatos a serem levados em consideração é que o conteúdo dessa conta viralizou e atravessou fronteiras conectando brasileiros de diversas partes do país e expatriados que passaram a contribuir para a produção das postagens enviando sugestões via mensagens e vídeos ou respondendo às pautas sugeridas na conta homônima mantida por Matheus Diniz no Twitter. Até o momento da escrita desse artigo, a @greengodicitonary havia alcançado 1,5 milhões de seguidores e publicado cerca de 500 postagens. Em uma delas, foram registrados mais de 9,7 mil comentários. Sendo assim, estamos diante de um espaço discursivo de ensino-aprendizagem que diz respeito às experiências vividas no mundo concreto por aprendizes de línguas.

Um segundo fator a ser considerado é que esta situação nos leva a refletir sobre os contextos de aprendizagem de línguas que ultrapassam as salas de aulas. Nos leva a refletir também sobre até que ponto as dinâmicas estabelecidas entre os sujeitos, entre o eu e o outro na esfera @greengodictionary oportunizam e/ou forjam atos de responsibilidade, de autoria e de carnavalização materializados nos interdiscursos em língua portuguesa e língua inglesa. Nesse sentido, nossa discussão será norteada pela seguinte pergunta:

De que maneiras aspectos como responsibilidade, autoria, carnavalização e ensino-aprendizagem de línguas se manifestam nas postagens de @greengodictionary?

Este artigo traz, além desta breve introdução, outras quatro seções: 1) a revisão teórica das categorias responsibilidade, autoria e carnavalização; 2) a metodologia adotada para a geração e tratamento dos dados; 3) a discussão e análise das postagens e, por fim, as considerações finais.

1. CARNAVALIZAÇÃO, RESPONSIBILIDADE E AUTORIA

A comunicação entre [...] dois mundos coexistentes refletem línguas, culturas e sociedades que convivem e dialogam: a interação verbal [...] revela o diálogo como o embate entre forças-esferas, gêneros, línguas, ideologias e vozes, entre eu-outro, espaço-tempo. (PAULA; STAFUZZA, 2010STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147., p.133-134)

Ao observar as postagens de @greengodictionary e comentários de seguidores (Figura 1) pudemos, através da inescapável atitude ética e responsável, construir a nossa compreensão responsiva-ativa das produções discursivas ali presentes. Algo facilmente identificável nas postagens e nas interações na seção de comentários é que ali (inter) agem sujeitos cujos atos enunciativos ocorrem em duas línguas, ora o português, ora o inglês, às vezes, uma mistura das duas. Nesse espaço, ergue-se a tensão, ou, como sugerem as autoras citadas na epígrafe, “o embate” entre uma ideologia hegemônica, homogeneizante e universalizante de língua (força centrípeta) e a carnavalização, os jogos linguísticos que tudo satiriza, tudo mistura, e tudo faz e desfaz nessas línguas (força centrífuga).

Figura 1
Diagrama de conteúdo do feed post em @greengodictionary

Olhamos para esses documentos da nossa realidade viva e reafirmamos a possibilidade de estabelecer diálogos com diversas categorias discutidas por Bakhtin e o Círculo e de proceder a uma análise discursiva dialógica dos dados selecionados. Sendo assim, nesta seção fazemos uma breve revisão de literatura sobre carnavalização, responsibilidade e autoria. A título de ilustração prévia, iremos nos referir ao diagrama da Figura 1 para melhor visualização do leitor acerca da natureza dos dados que iremos discutir.

O trecho citado na epígrafe com algumas omissões diz respeito à discussão que as autoras Paula e Stafuzza (2010)STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147. fazem sobre o processo de carnavalização, categoria elaborada por Bakhtin em seu ensaio sobre a obra de Rabelais e a cultura popular na Idade Média. Mais especificamente, segundo Paula e Stafuzza (2010, p. 133)STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147., Bakhtin toma a festa do carnaval como uma destituição da voz da cultura hegemônica pela voz da cultura não hegemônica. “O mundo ao revés tenta, por meio do diálogo satírico e do destronamento do mundo oficial, recaracterizá-lo, dar-lhe outro sentido, e faz isso por meio da língua e da linguagem” (PAULA; STAFUZZA, 2010STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147., p.133-134).

No contexto de Rabelais, explicam as autoras, as duas vozes, a hegemônica e a não hegemônica, são respectivamente representadas pelo latim (língua oficial da Igreja Católica), falado pelo clero, e o latim vulgar (não oficial), falado pelo povo. Nas palavras de Fiorin (2011, p. 76)FIORIN, José Luiz (2011). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática. “a vida se põe ao contrário, o mundo inverte-se. Suspendem-se as interdições, as restrições, as barreiras, as normas que organizam a vida social”. Se trouxermos essa discussão para o contexto espaço-temporal (cronotopo) de nosso objeto de estudo, a conta @greengodictionary na rede social Instagram em 2020, é possível estabelecer um paralelo. Ali convergem sujeitos de língua inglesa e/ou língua portuguesa do Brasil, sendo a primeira, no mundo atual, aquela de maior prestígio no âmbito global. Não por ser a língua oficial da Igreja Católica, mas da ciência, da economia mundial, do entretenimento e tantas outras esferas “oficiais”.

Mas o “revés” ou “a vida[...] ao contrário” também pode ser observada nas postagens, onde a língua inglesa aparece como instrumento para divulgar, explicar a linguacultura4 4 O conceito de linguacultura é adotado para indicar o nexo entre língua e cultura na perspectiva transnacional de Risager (2015), ou seja, para designar as dimensões culturais da língua em um mundo globalizado caracterizado por fluxos globais de pessoas que atravessam de um contexto cultural para outro. Em suas discussões, Risager contempla contextos de aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira. do português do Brasil. E isso é feito de forma brincalhona, “carnavalizada”, subvertendo as semânticas e sintaxes das duas linguaculturas, resultando numa espécie de rebaixamento da linguacultura inglesa em prol de um protagonismo da linguacultura do português do Brasil. O diagrama da Figura 1, mostra, por exemplo, o substantivo (em inglês, noun ou (n.), convenção em dicionários de língua inglesa) coronga, explicado em inglês como “um apelido brasileiro irreverente para o COVID-19 é, também, usado como verbo para indicar que você pegou”. No exemplo, misturam-se português e inglês na forma corongued, ou seja, um verbo regular de primeira conjugação, provavelmente corongar, com a marca de verbos regulares no passado simples em inglês, o sufixo -ed. E, para além da língua como sistema, temos ali a língua como discurso, na forma do enunciado concreto, “Greengo corongued. :(”, que diz da localização do autor da postagem no mundo vivido. Ele está ali informando aos seus leitores que estará afastado por motivos de doença, passando a engrossar as estatísticas dos milhões de infectados pelo COVID-19 no Brasil e no mundo.

Em seu estudo focado no potencial dialógico de uma outra plataforma digital de compartilhamento de conteúdo, o YouTube, Lampoglia e Miotello (2011, p. 104)LAMPOGLIA, F.; MIOTELLO, V (2011). O YouTube sob o olhar bakhtiniano: dialogismo e cronotopo nas tramas da rede eletrônica. In: Grupo dos Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe UFSCar. Questões de cultura e contemporaneidade: o olhar oblíquo de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, p. 103-112. o caracterizam como um espaço de “coletivização de dizeres [...], de uma multiplicidade de vozes” e como sendo mais um exemplo de como a Internet potencializa a interação entre os sujeitos. O YouTube e o Instagram podem ser caracterizados de forma bem bakhtiniana como esferas sociais da atividade humana, entendidas como

[...] “regiões” de recorte sócio-histórico-ideológico do mundo, lugar de relações específicas entre sujeitos, e não só em termos de linguagem. São dotadas de maior ou menor grau de estabilização a depender de seu grau de formalização, ou institucionalização, no âmbito da sociedade e da história, de acordo com as conjunturas específicas. (SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., p. 121)

A escrita de Rabelais discutida por Bakhtin está inserida no contexto socio-histórico-ideológico da França da Idade Média, ao passo que as postagens e mensagens de @greengodictionary estão abrigadas em uma plataforma de rede social criada na segunda década do século XXI no rastro de tantas outras preexistentes. Ali interagem sujeitos que seguem da melhor forma possível as regras específicas e procedimentos estabelecidos para participar desta esfera da atividade humana, atividade essa que ultrapassa as trocas discursivas.

Isso é o que demonstra a análise de Leave, Highfield e Abidin (2020)LEAVER, Tama; HIGHFIELD, Tim; ABIDN, Crystal (2020). Instagram: visual social media cultures. Cambridge: Polity Press. para quem o processo de institucionalização e formalização do Instagram tem sido também uma arena de embate entre forças centrípetas e centrífugas, desde sua criação em 2010. “O Instagram cresceu de um aplicativo exclusivo do iPhone para uma vasta plataforma pertencente ao Facebook, e “tem se contorcido por estar em um espaço onde a comunicação e o comércio se sobrepuseram” (LEAVER; HIGHFIELD; ABIDIN, 2020LEAVER, Tama; HIGHFIELD, Tim; ABIDN, Crystal (2020). Instagram: visual social media cultures. Cambridge: Polity Press., p. 1). Segundo informam os autores, não é rara a veiculação de comerciais; há a figura do “influencer” que converte seus milhões de seguidores, visualizações e curtidas em atividade rentável e uma categoria de criadores de conteúdo que buscam trazer autenticidade para suas páginas através de estratégias de auto-representação.

É fato conhecido que, dentro do Círculo, o filósofo russo Mikhail Bakhtin se sobressai como teórico da literatura. Além de Rabelais, Bakhtin é renomado por suas teorizações sobre o gênero romance baseadas em análises, sobretudo, das obras do escritor russo Feodor Dostoievsky. O fato é que, ao teorizar acerca do romance, Bakhtin creditou a esse gênero o status de uma expressão estética verbalizada que “é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e vozes individuais” (BAKHTIN 2014BAKHTIN, Mikhail (1924-1974). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini el al. São Paulo: Hucitec Editora, 2014., p. 74), expondo, assim, a precariedade de teorias proponentes de universais linguísticos e de uma língua nacional única e imutável objetificada por teorias abstratas. Para Bakhtin (2014, p. 75)BAKHTIN, Mikhail (1924-1974). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini el al. São Paulo: Hucitec Editora, 2014., o que se revela no romance é um plurilinguismo social, em outras palavras, uma variedade de vozes sociais, ou heteroglossia. “[C]ada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus acentos, enfim, [...] cada momento dado de sua existência histórica constitui premissa indispensável do gênero romanesco” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, Mikhail (1924-1974). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini el al. São Paulo: Hucitec Editora, 2014., p. 74).

Podemos dizer, portanto, que o romance retrata a vida, os sujeitos, suas ideologias e seus posicionamentos sócio-históricos e culturais e relações dialógicas entre o “eu” o “outro” do interdiscurso. Em Bakhtin (2011, p. 23)BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. compreendemos que o “eu” depende do excedente de visão do “outro” para se constituir e vice-versa, mas sem perder sua identidade, seu lugar único e insubstituível no Ser-evento. Essa “compenetração” é exemplificada por Bakhtin em relação ao sentimento da dor. Por mais que eu tente me colocar no lugar do outro para construir uma compreensão de sua experiência, eu não sou capaz de enunciar essa dor “e sim uma palavra de consolo e um ato de ajuda” (BAKHTIN, 2011BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., p. 24). Na Figura 1, essa “palavra de consolo” está presente nos treze primeiros comentários recortados feitos à postagem (reproduzidos abaixo no Quadro 1 para melhor visualização).

Quadro 1
Treze primeiros comentários feitos à postagem “Coronga”

Para Bakhtin e o Círculo, o ato responsivo (ou responsividade) é um dever ético, uma responsabilidade; para Sobral (2009, p. 58)SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. vivemos a condição inescapável de “responder a alguém ou alguma coisa e [...] responder pelos nossos atos”. Por isso, o autor sugere o termo aglutinador “responsibilidade” que nos parece apropriado para nossa discussão. A responsibilidade ao contágio do COVID-19 preexiste em todos nós, ainda que não a verbalizemos. E, quando enunciada, esse “ato responsível” (SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., p. 58) “recebe uma entonação, possui um tom emotivovolitivo, entra em relação afetiva comigo na unidade do evento” (BAKHTIN, 2012, p. 86). Essa entonação aparece em cada um dos treze primeiros comentários, os quais se revelam como atos responsíveis materializados em situação concreta através da linguagem (enunciações) em uma das esferas sociais de que participam esses sujeitos. São, também, atos resultantes dos usos discursivos únicos, irrepetíveis e dinâmicos das palavras (enunciados), tidas por Bakhtin/Voloshínov (2014, p. 37)BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora. como “signos ideológicos”.

Bakhtin e o Círculo colocaram a interação, a comunicação, o diálogo, ou seja, os nossos atos de uso da linguagem verbal, no centro das suas discussões filosóficas. Fazendo isso, não revolucionaram somente o campo teórico da literatura, mas oportunizaram a aplicação de seus construtos às várias áreas que pesquisam e teorizam “o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail (1940-1961). Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p. 207). Na concepção do Círculo, o sujeito “serve-se da língua para suas necessidades comunicativas concretas [...]” (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2014BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora., p. 98). E, sendo assim, a língua de que fala esse grupo de filósofos não é somente aquela descrita como um sistema abstrato de regras rígidas e imutáveis. As palavras que os sujeitos ouvem ou proferem durante as interações com outros sujeitos não se limitam às definições engessadas e fixadas em dicionários. Ao contrário, “[a] palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2014BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora., p. 99, grifos do autor).

É, portanto, neste sentido, que o uso de uma língua (assim como seu ensino-aprendizagem) se define como uma ação humana, que só faz sentido no contexto da vida, na enunciação. Para o Círculo, nossas interações são regidas por um princípio ativo e não passivo. Na análise de Sobral (2009)SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., verbalizamos (ou autoramos) nossos atos comunicativos em forma de enunciados sempre únicos, irrepetíveis e inacabados. Nas palavras desse estudioso, “o enunciado tem um autor” e “falar de autor no âmbito do Círculo, implica pensar no contexto de ação dos sujeitos e nas complexas tarefas que realizam ao enunciar” (SOBRAL, 2009SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., p. 61). Nossas interações são regidas pelo princípio dialógico. Ou seja, a autoria dos nossos atos enunciativos e dos nossos interactantes no agora remete a (ou dialoga com) enunciados anteriores, alheios ou não, e projeta-se para o futuro antecipando respostas e questionando a sua adequação. Afinal, a forma do enunciado está na dependência d[a] situação social mais imediata e o meio social mais amplo e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior” (BAKHTIN / VOLOSHÍNOV, 2014BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora., p.117, grifos do autor).

Em @greengodictionary, os sujeitos em suas alteridades constitutivas agem através de enunciados por eles autorados em um processo ininterrupto de interação interpeladas por forças centrípetas e centrífugas. Sendo assim, destacamos a autoria dos enunciados correspondentes aos comentários 1, 2, 4, 5, e 13 do Quadro 1. Enquanto o comentário 1 representa uma resposta padrão em língua inglesa a alguém que está com algum problema de saúde (força centrípeta), os outros (2, 4, 5 e 13) são versões bastante desviantes da norma daquela língua, mas, de certa forma, correspondem à dinâmica bem-humorada dessa esfera social que carnavaliza e dessacraliza o uso “sério” ou “oficial” da língua inglesa. “Improvements!” que em inglês significa “Melhorias!” é um ato responsível, autoral e carnavalizado. E de certa forma, dispara outros enunciados (ou atos responsíveis) da mesma natureza com “Betters!” e “Besters.”

Na seção seguinte explicitamos a metodologia utilizada neste estudo para, então, analisar os dados selecionados.

2. METODOLOGIA

Este é um estudo qualitativo de cunho interpretativista configurado como uma pesquisa documental. Muitos estudos contam com o suporte da pesquisa documental que teve sua origem nos métodos históricos de investigação, voltados para a avaliação da veracidade de material empírico levantado por outros instrumentos. Em outros casos, ela é o método exclusivo de pesquisa (BELL; WATERS, 2014BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education., p. 126). Nesse sentido, faz-se necessária a definição do que venha a ser um documento. Bell e Waters (2014, p. 127)BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education. definem documento como sendo “uma impressão deixada em um objeto físico por um ser humano”. Consideram ainda que, com a tendência atual de registros eletrônicos de dados, documentos offline e online devem receber o mesmo tratamento científico.

Grant (2019)GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge, também tem uma visão ampla e atualizada do que possa servir de fonte de dados para uma pesquisa documental:

Um dos motivos pelos quais os documentos são ótimas fontes de dados é que eles estão literalmente em todos os lugares nas sociedades desenvolvidas e, portanto, podem nos dizer muito sobre uma ampla gama de fenômenos. Juntamente com os documentos em papel que produzimos em grandes quantidades, nossas vidas cada vez mais digitais significam que o volume de ‘documentos’, se incluirmos o conteúdo digital, ainda continua a aumentar ano a ano. (GRANT, 2019GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,, p. 2, tradução nossa)

O fato é que “nossas vidas digitais” nos têm levado a interagir com esses conteúdos diariamente. A autora cita, dentre outras fontes documentais para uma de suas pesquisas, as postagens e repostagens de mensagens e fotolegendas em redes sociais digitais como o Twitter e o Facebook. Grant (2019)GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge, observa ainda que “ao nos aprofundarmos na relação entre indivíduos, documentos e sociedade, podemos aprender sobre a sociedade de maneiras que, talvez, não sejam possíveis por meio de outros métodos qualitativos” (GRANT, 2019GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,, p. 4). A autora sugere, portanto, sua própria definição de documento como “conteúdo ou objetos que incluem matéria escrita, gráfica ou pictórica, ou uma combinação desses tipos de conteúdo, a fim de transmitir ou armazenar informação ou significado” (GRANT, 2019GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,, p. 12).

Corroborando a visão da pesquisadora, neste estudo, consideramos as postagens em @greengodicitionary na rede social Instagram como documentos cujo potencial de nos informar sobre “as relações entre os indivíduos e sociedade” faz delas fontes de dados das impressões deixadas por sujeitos de seus atos discursivos únicos e irrepetíveis em eventos concretos localizados no tempo e no espaço. Caracterizados assim, acreditamos que esses documentos permitem construir uma análise dialógica sobre eles, constituída a partir de nossa compreensão responsável ativa e responsiva (nossa responsibilidade) do fenômeno @greengodictionary e relacionando-o com as categorias autoria, responsibilidade e carnavalização de base bakhtiniana.

Um último ponto a ser considerado neste tipo de pesquisa é a quantidade de material documental a ser selecionado e isso é determinado pelo tempo disponível e escopo do estudo (BELL; WATERS, 2014BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education., p. 131-132). Sendo assim, um estágio importante do planejamento de um estudo documental é definir o critério de seleção a ser utilizado. Para este artigo, foram selecionadas 02 (duas) postagens publicadas na primeira quinzena de dezembro de 2020 que atingiram até 1º de janeiro de 2021 o maior número de comentários. O quadro abaixo ilustra estas informações organizadas cronologicamente.

3. ANÁLISE DE DADOS

3.1 “Why”

As postagens listadas na Tabela 1 têm em comum, pelo menos, dois fatores acerca de sua autoria. Primeiro, o fato de terem sido pautadas na conta @greengodicitonary no Twitter, onde Matheus Diniz iniciou com seus interlocutores, nos dias 10 e 13 de dezembro de 2020, os respectivos diálogos: 1) “Quais as melhores gírias de GENERAL MINES (MG – Minas Gerais)?” e 2) “Cite uma expressão Brasileira pro DIA DO ARQUITETO”. E, segundo, que a autoria desses atos enunciativos foi motivada por datas comemorativas (o aniversário de 123 anos de Belo Horizonte, Minas Gerais, e o dia do arquiteto) relativas a duas esferas sociais, a saber: os mineiros e os arquitetos. Dessas interações resultaram as postagens “why” (Figura 2) e “I am an architect” (Figura 3). Nesta seção, procedemos a análise destes dados, tendo como fio condutor os construtos autoria, responsibilidade e carnavalização.

Tabela 1
Postagens com maior número de comentários em dezembro/2020

Figura 2
Diagrama do carrossel “why”

Figura 3
Diagrama do carrossel “I am an architect”

Em Bakhtin/Volshinov (2014, p. 128)BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora. lemos que “qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta.” A quantidade de comentários registrados pelo post “why” (4.084, até 31/01/2020) pode ser vista como uma evidência dessa “corrente” de responsibilidade. Esta inferência pode ser reforçada pelo fato de que muitos dos comentários são a simples “marcação” de uma ou mais pessoas digitando “@” seguido do nome da conta que se deseja taguear (@nomedousuário), ou seja, com quem se quer compartilhar o post. E esse processo não tem fim, pois as postagens continuam ativas para mais comentários e marcações e abertas a mais usuários que queiram participar dessa esfera da atividade humana, a conta @greengodictionary.

Nas sete postagens que compõem o carrossel “why” é possível evidenciar o processo de carnavalização dos diálogos entre a linguacultura-inglês e a linguacultura-português do Brasil. O destaque fica para a divulgação da segunda, usando a primeira como forma de tornar a explicação dos verbetes mais divertida, ridícula e satírica. A língua inglesa, inferiorizada e destronada, passa a ser uma incongruência, algo grotesco e que causa o riso. Enunciados como “why nothing” (1/7); “the train is ugly”, “good train”, “crazy train”; “lil’ train”, “there is no base a train like this” (2/7), embora sigam as regras gramaticais da língua inglesa, muito provavelmente deixariam um falante nativo confuso se usadas com as significações do idioleto dos mineiros, ou “miners”. No entanto, na esfera social que se formou nesta conta do Instagram faz todo o sentido, pois, para o Círculo, “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. [...] A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. A palavra é, portanto, “um signo social na enunciação concreta [...] inteiramente determinada pelas relações sociais” (BAKHTIN/ VOLOSHÍNOV, 2014BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora., p. 117).

As traduções literais e desviantes ou generalizantes de normas gramaticais de 2/7) “train”, 3/7) “too good of the account”, 6/7) “don’t travel on me, Joe” e 7/7) “arredate there”, entretanto, não são inexistentes na vida concreta do aprendiz. A tradução literal é um ato responsível bastante comum no processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua/ língua estrangeira/(L2/LE). Na tentativa de penetrar o mundo do outro da L2/LE e com ele interagir, autoramos nossos enunciados com o que temos, nossa L1, dicionários bilíngues, nossa capacidade de generalizar regras já observadas dessa outra língua etc. E, na interação, negociamos os significados e vamos construindo nosso discurso nessa L2/LE. A forma arredate (7/7, Figura 2), por exemplo, não existe “oficialmente” em língua inglesa. Entretanto, esse verbo autorado a partir de arredar do português (mineiro) e um sufixo -ate (marca comum a verbos do inglês, e.g. participate, negotiate, eliminate etc) reflete uma tendência comum de generalização dessa regra pelos aprendizes de inglês, que acabam usando formas não oficiais como determinate, examinate, dentre outras. Isto nos leva a refletir se estes enunciados concretos e carnavalizados não teriam seu lugar nas aulas de gramática para trabalhar com essas questões. Trazer o “carnaval” de Bakhtin para as aulas de língua inglesa por meio dos enunciados/postagens de @greengodicitonary seria como “uma celebração da vida [...] contraventora, em embate com a cultura dita erudita, séria. [...] a não oficialidade que caminha ao lado da oficialidade, para ir contra ela, mas sendo dela nascitura” (PAULA; STAFUZZA, 2010STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147., p.132).

3.2 “I am an architect”

A importância do outro da interação verbal, neste caso os seguidores de @greengodictionary, e da sua responsibilidade impactam diretamente na autoria das postagens. “Todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes. Mesmo que elas não se manifestem no fio do discurso, estão aí presentes” (FIORIN, 2011FIORIN, José Luiz (2011). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática., p. 23). No carrossel “I am an architect” (Figura 3), todos os verbetes foram gerados a partir de contribuições, cujos créditos são indicados na parte inferior de cada quadro por “sent by @nomedousuario”. Na perspectiva Bakhtiniana, “todo enunciado é dialógico” (FIORIN, 2011FIORIN, José Luiz (2011). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática., p. 23) e, desta forma, constitui o modo como a linguagem funciona em situações concretas.

Para Bakhtin (2011, p. 371)BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011., “não pode haver enunciado isolado. Ele pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem”. O primeiro verbete do carrossel “I’m an architect”, autorado a partir do ato responsível de um seguidor à solicitação “Cite uma expressão Brasileira pro DIA DO ARQUITETO”, é evidência concreta do princípio dialógico gerindo os nossos atos enunciativos. Trata-se de um diálogo retrospectivo com uma interação ocorrida durante uma blitz no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2015, em que uma motorista foi filmada ao desacatar verbalmente um policial em serviço. Na ocasião, ela disse, dentre outras coisas, “Eu sou uma arquiteta. Não posso ser presa.” A responsibilidade ao vídeo foi materializada nas redes sociais onde o referido ato discursivo foi bastante noticiado e ridicularizado em forma de memes. No @greengodictionary, o enunciado aparece, portanto, como discurso citado e é ideologicamente ressignificado como “expressão Brasileira pro DIA DO ARQUITETO”.

De forma semelhante, os signos linguísticos “The Sims” e “Architecture for love” trazem à tona outras instâncias de discurso citado na autoria das postagens. Ambos fazem referência ao conteúdo da conta @fabiomaxx no Instagram, onde passamos a conhecer a personagem Sheyla Christina, uma arquiteta cujo slogan é “Arquitetura por amor”. Sheyla, vaidosa, vingativa e arrogante grava vídeos sobre sua vida como arquiteta contando, por exemplo, como pegou o gosto pela arquitetura jogando “The Sims”. Ao propor um coroamento da profissão do arquiteto em sua data comemorativa, a postagem traz, de certa forma, o inverso; ou seja, seu destronamento. Sendo assim, protagoniza uma visão “não oficial” da profissão e rebaixa a visão “oficial” dela, corroborando a visão de Bakhtin (2015, p. 181)BAKHTIN, Mikhail (1940-1961). Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. de que “as formas carnavalescas se convertem em meios de interpretação artística da vida numa linguagem especial cujas palavras e formas são dotadas de uma força excepcional de generalização simbólica, ou seja, generalização em profundidade”.

Levando esses enunciados para a sala de aula, é possível associá-los a conteúdos de nível básico (A1) de apropriação do inglês. Enunciados do tipo “I’m a student / an architect etc.” para falar de ocupações, focar no uso do verbo “be” no presente simples e dos artigos indefinidos “a/an” são escolhas bastante comuns. Em estágios mais avançados (B1-C2) de apropriação do inglês, esses conteúdos podem servir de pretexto para discussões sobre as profissões consideradas de maior ou menor prestígio no Brasil, seus jargões e empréstimos linguísticos como “open concept”.

Na seção seguinte, traçamos algumas considerações finais acerca deste estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise precedente das postagens, de uma forma geral, aponta para a rede social Instagram como um lócus de interações significativas e com grande potencial para estudos de base bakhtiniana, uma vez que sua matéria prima potencial é a linguagem como discurso, ou seja, o sujeito que decide abrir e/ou seguir uma conta, autor e/ou seguidor “serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas [...] num dado contexto concreto” (Bakhtin/ Voloshínov, 2014BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora., p. 96). Mais especificamente, pudemos caracterizar a conta @greengodictionary como uma esfera social da atividade humana (1,5 milhões de pessoas), onde a autoria dos atos enunciativos aponta para instâncias de responsibilidade e carnavalização da língua inglesa e valorização da língua portuguesa.

Acrescenta-se a essas variáveis a possibilidade de avaliarmos esses documentos de nossas vidas cada vez mais digitais como textos autênticos com igual potencialidade de oportunizar o ensino-aprendizagem de língua inglesa como L2/LE. Os processos envolvidos nas traduções literais para o inglês das expressões do português do Brasil, postadas em @greengodicitonary, fazem parte da conscientização das semelhanças e diferenças entre as duas línguas. Sendo assim, projetos e atividades interculturais podem ser desenvolvidos com os alunos com esse objetivo, tendo como base esses enunciados concretos.

Nossa análise focou nas postagens da seção feed post de @greengodicitonary. Vemos esta e as outras seções da conta como espaços que podem promover o despertar da carnavalização e da autoria em educação linguística, considerando as relações dialógicas estabelecidas ali entre as linguaculturas português e inglês. A seção em questão revela-se, ainda, como um lugar para promoção das subjetividades dos aprendizes dessas linguaculturas e do reconhecimento de suas facetas linguística e discursiva, assim como as ideologias que comunicam. Projetos como este nos orientam, também, para uma maior valorização dos espaços digitais como esferas de atividade humana das quais muitos aprendizes brasileiros de inglês como LE/L2 participam, respondendo às postagens ou repostando os conteúdos em suas contas pessoais no Instagram. Esta é uma das inúmeras possibilidades e oportunidades que se abrem para que eles possam dar sentido ao mundo da vida vivida e aos ensinamentos e aprendizagens propostas na sala de aula de linguacultura-inglês.

  • 1
    O termo responsibilidade é sugerido por Sobral (2009)SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras., estudioso de Bakhtin e o Círculo; uma aglutinação dos termos responsabilidade e responsividade. Sugere também o termo ato responsível. Neste estudo optamos por seus usos.
  • 2
    O Instagram possibilita diferentes tipos de postagens. Os feed posts têm caráter permanente (a não ser que sejam deletados ou arquivados), ao passo que os stories, por exemplo, ficam ativos por 24 horas.
  • 3
    Ver também FERNADES, Millôr. The cow went to the swamp. Companhia das Letras, 2017. 122p.
  • 4
    O conceito de linguacultura é adotado para indicar o nexo entre língua e cultura na perspectiva transnacional de Risager (2015)RISAGER, Karen (2015). Linguaculture: the language–culture nexus in transnational perspective. In: Sharifian, F.: The Routledge Handbook of Language and Culture. London/New York: Routledge, p. 87-99., ou seja, para designar as dimensões culturais da língua em um mundo globalizado caracterizado por fluxos globais de pessoas que atravessam de um contexto cultural para outro. Em suas discussões, Risager contempla contextos de aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV, Valentín N, (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.16. ed. São Paulo: Hucitec Editora.
  • BAKHTIN, Mikhail (1924-1974). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini el al. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.
  • BAKHTIN, Mikhail (1940-1961). Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
  • BAKHTIN, Mikhail (1979). Estética da criação verbal Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
  • BELL, Judith; WATERS, Stephen (2014). Doing Your Research Project: A Guide for First-time Researchers. 6. ed. Nova Iorque: McGraw-Hill Education.
  • DINIZ, Matheus (2020). Greengodicitonary. Disponível em: https://www.instagram.com/greengodictionary/?hl=pt-br Acesso: 01 jan. 2020.
    » https://www.instagram.com/greengodictionary/?hl=pt-br
  • FIORIN, José Luiz (2011). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática.
  • GRANT, Aimee (2019). Doing excellent social research with documents: practical examples and guidance for qualitative researchers. Nova Iorque: Routledge,
  • LAMPOGLIA, F.; MIOTELLO, V (2011). O YouTube sob o olhar bakhtiniano: dialogismo e cronotopo nas tramas da rede eletrônica. In: Grupo dos Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe UFSCar. Questões de cultura e contemporaneidade: o olhar oblíquo de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, p. 103-112.
  • LEAVER, Tama; HIGHFIELD, Tim; ABIDN, Crystal (2020). Instagram: visual social media cultures. Cambridge: Polity Press.
  • SOBRAL, A (2009). Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras.
  • STAFUZZA, Gernissa; PAUL, Luciane (2010). Carnaval – Aval à carne viva (d)a linguagem: a concepção de Bakhtin. In: Stafuzza, G. Paul, L. (org.). Círculo de Bakhtin: diálogos in possíveis. Campinas: Mercado das Letras, p. 131-147.
  • RISAGER, Karen (2015). Linguaculture: the language–culture nexus in transnational perspective. In: Sharifian, F.: The Routledge Handbook of Language and Culture. London/New York: Routledge, p. 87-99.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2021
  • Aceito
    22 Jun 2022
  • Publicado
    14 Jul 2022
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