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RESISTÊNCIA POLÍTICA SEM FOGO AMIGO: POR UMA IDEOLOGIA LINGUÍSTICA DAS MISTURAS EM NOSSA REVOLTA

POLITICAL RESISTANCE WITHOUT FRIENDLY FIRE: FOR A LINGUISTIC IDEOLOGY OF MIXTURES IN OUR REVOLT

RESUMO

Testemunhamos, na atualidade, a invasão da cultura beligerante em diversas esferas da vida social, inclusive, na política. Com o populismo de direita se alastrando em escala mundial, um olhar atento à maneira como a linguagem está sendo operacionalizada por líderes políticos e seus/suas apoiadores/as se faz necessário (HODGES, 2020HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press.). O mesmo pode ser afirmado em relação às crenças linguísticas que orientam as nossas interpretações sobre as formas e os usos das línguas e nossos modos de acionar resistência política. Neste trabalho, investigamos três tuítes de críticas direcionadas às performances discursivas de Abraham Weintraub, ex-Ministro da Educação do governo de Jair Bolsonaro, quando a norma padrão da língua portuguesa foi por ele violada. Visamos investigar as ideologias linguísticas que guiam tais críticas, avaliando os efeitos que produzem nos projetos políticos interessados em defender os direitos de grupos sociais marginalizados. Para nossas análises, utilizamos os construtos teórico-analíticos de iconização, recursividade fractal e apagamento (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.). Os resultados do estudo indicam que modos de resistência orientados por ideologias linguísticas que defendem um ideal puro de língua endossam sentidos negativos associados aos recursos linguísticos populares e, por extensão, às categorias sociais dos/as excluídos/as. Defendemos as ideologias linguísticas das misturas (PINTO, 2013PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143.; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2019FABRICIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: toward an abject aesthetics. Gragoatá, [S.l.], v. 24, n. 48, p. 136-159, apr. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33623>. Acesso em: 16 oct. 2020.
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) como um caminho possível para pensarmos práticas de resistência política que sejam, de fato, comprometidas com pautas inclusivas e de justiça social.

Palavras-chave:
ideologia linguística; política; resistência; misturas

ABSTRACT

Nowadays we witness the invasion of a belligerent culture in different areas of social life, including politics. As right-wing populism spreads worldwide, a close look at the way language has been used by political leaders and their supporters is necessary (HODGES, 2020HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press.). The same can be said about the linguistic beliefs that guide our interpretations of the forms and uses of languages and our ways of triggering political resistance. In this work, we analyze three tweets that criticize the discursive performances of Abraham Weintraub, former Minister of Education of the government of Jair Bolsonaro, when he violated the standard form of the Portuguese language. We aim to investigate the linguistic ideologies that guide such criticisms, assessing the effects they have on political projects interested in defending the rights of socially marginalized groups. For our analyses, we use iconization, fractal recursivity, and erasure (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.) as theoretical-analytical constructs. The results of this study indicate that modes of resistance guided by linguistic ideologies that support a pure ideal of language endorse negative meanings associated with popular linguistic resources and, by extension, with socially excluded groups. We argue in favor of linguistic ideologies that embrace different ways of communicating (PINTO, 2013PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143.; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2019FABRICIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: toward an abject aesthetics. Gragoatá, [S.l.], v. 24, n. 48, p. 136-159, apr. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33623>. Acesso em: 16 oct. 2020.
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) as a possible approach to thinking about practices of political resistance that are, in fact, committed to inclusive and social justice agendas.

Keywords:
linguistic ideology; politics; resistance; mixtures

INTRODUÇÃO

Segundo o filósofo Vladimir Safatle “não há política revolucionária sem forma linguística revolucionária” (STI FFLCH USP, 2019STI FFLCH USP (2019). IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP, Mesa de encerramento: Impasses da Racionalidade, Marilena Chaui e Vladimir Safatle. Youtube, 23 ago. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XDdVTjIVtco. Acesso em 01 jul. 2020.
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, 1:07:22). Em alinhamento com essa posição, este estudo argumenta em favor do questionamento radical de visões hegemônicas de linguagem como possibilidade de emergência de práticas discursivas de resistência. Segundo essas lentes, interessa-nos investigar as ideologias linguísticas que orientam os ataques contra as performances discursivas de apoiadores/as e membros do governo de Jair Bolsonaro – atual líder do poder executivo brasileiro – especificamente quando a norma padrão da língua é infringida. Considerando os possíveis efeitos de sentido de tais críticas, questionamos se teríamos, de fato, ganhos políticos e éticos nessa forma de resistência ao governo de situação, tendo em vista projetos comprometidos com pautas inclusivas e de justiça social. De modo a já situar e ilustrar o nosso foco argumentativo, gostaríamos de recuperar brevemente as vezes em que a performance linguística de Sergio Fernando Moro – ex-juiz federal, ex-professor universitário e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro – foi alvo de condenação e chacota.

Quando participou da Operação Lava Jato (2014-2018) – nome dado às controversas investigações criminosas de lavagem de dinheiro feitas pela Polícia Federal Brasileira – Sergio Moro ganhou fama dentro e fora do Brasil. Em 2017, sua questionável condenação à prisão, em primeira instância, do ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, tornou seu ofício de magistrado ainda mais ambivalente: para alguns/algumas, um paladino anticorrupção; para outros/as, um juiz hiperpartidário, deliberadamente antipetista. Seu aceite ao convite para a chefia do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro, no final de 2018, deu sustentação, ainda mais, às acusações de vozes opositoras ao governo bolsonarista contra a parcialidade do judiciário nos rumos políticos que o país tomou nas eleições presidenciais daquele ano. No entanto, muitas das ofensivas direcionadas à figura pública de Moro gravitaram em torno das ditas escorregadelas do ex-jurista e ministro no uso do português normativo, como bem ilustra o tuíte abaixo2 2 Informamos que, mesmo reconhecendo que as interações que são agenciadas no microblog Twitter são da esfera pública, nossa escolha metodológica, ao recontextualizar essas práticas discursivas neste artigo, foi pela anonimização dos perfis dos/as usuários/as. :

No meme entextualizado pela usuária 1 do Twitter, a construção estável de falante iletrado de Sergio Moro se fez pela coletânea de eventos interacionais públicos de que ele participou e onde ele animou palavras que, conforme certas crenças linguísticas correntes, não deveriam estar na boca dos/as falantes das variedades urbanas de prestígio – grupo esse do qual Moro faria parte. O seu famoso “conge”, no lugar de cônjuge, que ele proferiu em uma sessão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, em abril de 2019, tornou-se, inclusive, a nomeação por que ele passou a ser referido em diversas práticas discursivas de zombaria (conferir, por exemplo, a hashtag do tuíte acima: “#MORO #conge ou #conge tanto faz..”). A ortografia não-padrão “Justissa” (feita pela usuária do tuíte, ao nomear o ex-ministro em seu comentário) e a interjeição condenatória “Misericórdia!” (que aponta para uma suposta avaliação negativa de Gilmar Mendes, ministro do STF3 3 Supremo Tribunal Federal. , diante das performances linguísticas de Moro) cooperam em colocar sob suspeita a competência de Sergio Moro, com base no conjunto de variantes estigmatizadas da língua que aparecem em sua performance discursiva.

Ao se apreciar rapidamente esse tuíte, alguns questionamentos acabam nos inquietando: será que o ex-juiz estaria sendo tão atacado em seus desvios da norma padrão porque nos traiu ao quebrar nossa expectativa de que, na condição de homem branco, escolarizado e economicamente favorecido, deveria honrar suas credenciais identitárias de prestígio? Na ridicularização do seu sentenciado falar errado, será que não estaríamos testemunhando um infantil e ineficaz revanchismo, que mais alimenta o escárnio contra as variantes desprestigiadas da língua do que desestrutura, de fato, os privilégios de grupos hegemônicos4 4 Segundo Marcos Bagno (1999/2015), é um arraigado mito a compreensão de que o total domínio da língua padrão é condição necessária para a ascensão social. O fluxo da história nos mostra que as performances linguísticas de Sergio Moro, em alguns momentos à margem do que rege a gramática tradicional, não o condenaram a uma sina de desditas socioeconômicas. Mesmo com toda chacota investida contra seus apontados erros de português, após sua polêmica saída do governo Bolsonaro, em 2020, ele foi agraciado com o cargo de diretor da empresa de consultoria judicial estadunidense Alvarez & Marsal (G1, 2020). ? Se, como adverte Hodges (2020)HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press., ser informado/a sobre questões políticas requer consciência sobre os modos como a linguagem age em nossas vidas, por que outras dimensões da linguagem não ganharam mais a cena nesse debate? Por que tanta obsessão com os ditos desvios do ex-ministro à norma padrão – desvios esses que (pasmem!) falantes das variantes de prestígios igualmente fazem? No caso de Moro, não deveriam ter sido suas performances como magistrado e (depois) ministro da Justiça o foco de atenção das forças de resistência? São, portanto, essas reflexões que nos inspiram agora a investigar com mais acuidade as críticas direcionadas a outro ex-membro do governo de situação, Abraham Weintraub, que esteve à frente da pasta do Ministério da Educação (MEC) de abril de 2019 a junho de 2020.

Para os propósitos do presente artigo, restringiremos a nossa análise a três postagens no microblog Twitter em crítica ao ex-ministro Weintraub. Ao longo dos quatorze meses em que assumiu o cargo de chefe do MEC, Weintraub sofreu diversos ataques em virtude de sua escrita vista como vacilante no uso da norma padrão da língua portuguesa, sobretudo nas postagens em sua conta pessoal no Twitter. Foram críticas provenientes de intelectuais, jornalistas, assim como de vários/as outros/as usuários/as das redes sociais. Conforme vimos, no governo Bolsonaro, Weintraub não inaugurou o posto de alvo de ofensas dos que esperam que o discurso político seja livre de qualquer suposta imperfeição advinda de variantes outras que não a de prestígio da língua. No entanto, muitos ataques aos seus textos foram ainda orientados pelo sentido macrossocial dominante, que sustenta o imaginário de que a educação formal só pressupõe o culto-letrado (BAGNO, 1999/2015BAGNO, M. (1999). Preconceito linguístico. 56ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.). Assim, como o MEC estava sob sua tutela, acreditava-se que a norma padrão da língua também deveria estar.

Cabe ressalvar que, nos governos anteriores ao de situação, a fúria de forças conservadoras e reacionárias em defesa da presença exclusiva do ideal de língua pura no Palácio do Planalto foi amplamente testemunhada. Estudos sociológicos e da linguagem que trataram de analisar as ideologias linguísticas de alguns críticos do e da ex-presidente/a petistas Lula e Dilma Rousseff assinalaram que as performances discursivas de ambos eram frequentemente qualificadas como desviantes, inábeis e necessitadas de correção (COUTINHO ET AL, 2017COUTINHO, B.; LOPES, A.; SILVA, D. (2017). Populism and the people in Lula’s political discourse: bridging social and linguistic theory. Revista de Estudos da Linguagem, v. 25, n. 2, p. 681-710.; SILVA & LOPES, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.). No caso das racionalizações linguísticas de muitos/as detratores/as de Dilma e Lula – e, por extensão, do próprio PT – as performances de ódio contra ele e ela direcionadas avançavam para além de suas figuras pessoais e públicas, alcançando categorias sociais que suas falas iconizavam: o/a iletrado/a, o/a nordestino/a, o/a pobre, a mulher. Assim, as reflexões metapragmáticas das performances discursivas de Lula e Dilma como deficitárias ressoavam, de forma espelhada e na escala do discurso da política, as avaliações derrogatórias que, há séculos, perseguem grupos marginalizados.

No caso de Abraham Weintraub, economista e professor universitário, suas credenciais identitárias, ao contrário do/a ex-presidente e presidenta petistas, lhe aproximariam mais da classe de políticos representativos dos doutores. Segundo Coutinho et al (2017, p. 699)COUTINHO, B.; LOPES, A.; SILVA, D. (2017). Populism and the people in Lula’s political discourse: bridging social and linguistic theory. Revista de Estudos da Linguagem, v. 25, n. 2, p. 681-710., “o termo doutor no Brasil (...) é também usado como um título de prestígio usualmente conferido a uma pequena parcela da população brasileira – um homem branco da elite econômica” (ênfase dos autores). Todavia, suas performances discursivas não atenderam, como prescrito pelo regime de linguagem da política brasileira, à expectativa de regularidade no uso da norma padrão, índice de uma elite econômica masculina e letrada. Já os ataques contra a violação da norma padrão não causaram nenhuma surpresa: continuaram a ser disparados.

Nesta época, em que presenciamos a naturalização de rituais de brutalidades, incivilidades e discriminação de toda sorte e por todos os lados, de um extremismo generalizado – em que todos/as são árbitros/as de todos/as –, um olhar cuidadoso sobre os modos como a linguagem está sendo operacionalizada é uma urgência. O ódio (como afeto destrutivo e materializado em diversas formas de expressão semióticas) não é monopólio apenas da ultra-direita, mas tem sido acionado, inclusive, em práticas de resistência compreendidas como progressistas (ECO PÓS-UFRJ, 2021ECO PÓS-UFRJ (2021). 2º conversações Eco.Pós: ódios políticos e política do ódio. Youtube, 26 abr. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WE5_5VssaFk. Acesso em 27 ago. 2021.
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). Portanto, uma consciência política crítica requer reflexões acerca do regime de linguagem em operação nas ações discursivas do governo de situação, mas igualmente demanda atenção às respostas de resistência e enfrentamento dessas ideologias (HODGES, 2020HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press.; MISKOLCI, 2021MISKOLCI, R (2021). Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora. Belo Horizonte: Autêntica.). Cabe arguir: nossa linguagem de resistência interrompe uma lógica ideológica que invisibiliza e deixa sem amparo grupos marginalizados ou ainda estaria ela conluiada com uma imaginação de país homogêneo, que negligencia a diferença?

Começamos nossa discussão tratando dos processos ideológicos, que, inescapavelmente, compõem nossas vidas sociais, mas que estão sempre abertos a reconfigurações. Interessa-nos, em particular, o debate sobre as ideologias linguísticas, já que as reflexões sobre as formas e usos das línguas atuam tanto na preservação quanto na contestação de imagens socio-historicamente sedimentadas de determinados grupos sociais. A seguir, discutimos a operação de ideologias linguísticas nas práticas discursivas de usuários/as do Twitter em comentário às postagens do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub. Ajuizamos os efeitos de sentido advindos dessas reflexões metapragmáticas e as limitações que possuem para um projeto político comprometido com a defesa dos direitos de grupos sociais marginalizados. Finalizamos o estudo apontando as ideologias linguísticas das misturas como possível via para repensarmos nosso modus operandi de fazer resistência política.

1. SE É SOBRE A LINGUAGEM, É SOBRE A VIDA SOCIOCULTURAL

No debate público sobre ideologias, apoiamos a premissa de que não há ação social possível sem ser orientada por processos ideológicos. Isso porque estamos todos/as, inescapavelmente, construindo sentidos do mundo – assim como produzindo a vida social – com base em um enquadre interpretativo parcial. Tal parcialidade se deve tanto ao fato de que são visões inconclusas de mundo – suscetíveis a releituras em novos arranjos contextuais – quanto ao fato de que são sempre visões interessadas, entremeadas por questões políticas e por relações de poder (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.). Assim, “uma ideologia é, então, algo contestável”5 5 Advertimos que obras consultadas originalmente em inglês têm tradução de nossa responsabilidade. (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press., p. 13), porque há sempre abertura para perspectivas alternativas. Não estaríamos, portanto, vendados/as e, ao sabor dos ventos ideológicos, sendo conduzidos/as a tomarmos decisões que depõem contra nossos próprios interesses. Ao contrário disso, participaríamos ativamente nos jogos de forças que emanam das relações de poder, onde há sempre difusão, distribuição e transformação inovadora (FOUCAULT, 1974-5/2010FOUCAULT, M. (1974-5). Os anormais: curso no Collège de France. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.). Em suma, há possibilidades para mudanças e reveses. Para os propósitos deste trabalho, interessa-nos em particular os processos ideológicos operando nas formas e nos usos das línguas, sobremodo na construção da diferença.

Desde o final do século XX, os estudos que versam sobre ideologias linguísticas pagam tributo aos trabalhos etnográficos do antropólogo e linguista Michael Silverstein. Em uma obra precursora, Silverstein (1979, p. 193)SILVERSTEIN, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In: CLYNE, P.; HANKS, W.; HOFBAUER, C. (Org.). The elements: a parasession on linguistic units and levels. Chicago: Chicago Linguistic Society. p. 193-247. define ideologia linguística como “quaisquer conjuntos de crenças sobre a língua, que são articulados pelos/as seus/ suas usuários/as como uma racionalização ou justificativa da estrutura e uso linguísticos percebidos”. Por serem ideologias, tais crenças estão invariavelmente sobrecarregadas de sentidos sócio-historicamente sedimentados, que configuram posicionamentos políticos. Sobre os/as que observam as línguas para fins epistemológicos ou para implementação de políticas linguísticas públicas, a história não é muito diferente.

Como as ideologias – linguísticas, inclusive – são sempre pervasivas na vida social, não são só os/as falantes e escritores/as de uma língua que agem no mundo guiados/as por elas. Os/As especialistas dos estudos da linguagem e os/as idealizadores/as de políticas linguísticas e curriculares igualmente se orientam por crenças ideológicas quando teorizam sobre as línguas ou elaboram leis, documentos oficiais, certames e materiais didáticos que tematizam os usos e as formas linguísticas (IRVINE & GAL, 2000IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84.; MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. (2013a). Ideologia linguística: como construir discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI. Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 18-52.; LOPES & SILVA, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.). Muito frequentemente, eles/as se guiam pela fábula modernista da neutralidade do conhecimento. A invisibilidade dos interesses políticos, econômicos e culturais nos modelos de linguagem confeccionados sob inspiração da ciência modernista produz uma áurea de cientificidade neutra em torno das crenças ideológicas que a regem, o que sela status de verdade última a tais teorizações linguísticas. Como bem nos ensinou Foucault (1971/1996)FOUCAULT, M. (1971). A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. sobre a limitação dos acasos estabelecida pelas disciplinas, para existir legitimamente no verdadeiro desses estudos, os usos da linguagem precisam ter obediência a regras discursivas altamente patrulhadas e estar em conformidade com determinados fundamentos teóricos, que valorizam, por exemplo, pureza e invariabilidade.

O problema não reside especificamente em se estabelecer diferenciações quando se reflete sobre a linguagem e se elaboram concepções acerca das línguas. Produzir a diferença é condição sine qua non nas reflexões metapragmáticas, sejam as feitas por especialistas ou por pessoas leigas. Como Irvine e Gal (2000, p. 35)IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84. apontam, “identificar uma língua pressupõe uma fronteira ou oposição a outras línguas com as quais ela contrasta em algum campo sociolinguístico mais amplo”. O que, no entanto, enxergamos como problemático nesse modo de construir conhecimento linguístico é a perda de vista dos efeitos éticos no horizonte epistemológico. O que estiver fora de um modelo ideal e normativo de língua – portanto, a diferença – é de todo obliterado ou é nomeado abjetamente de desvio e erro. A primeira opção ignora a vivência discursiva cotidiana das pessoas e os efeitos de realidade que ela produz. A segunda impacta negativamente naqueles que veem suas práticas discursivas deslegitimadas pelas crenças ideológicas hegemônicas.

Investigar as ideologias linguísticas operando em um determinado evento comunicativo é trazer à tona o fato de que quando estamos refletindo sobre as línguas – e agindo na linguagem – não estamos apenas falando de formas e usos linguísticos. Afinal, nunca é só sobre as línguas. Estamos, sobretudo, ajudando a amparar ou desestabilizar imagens culturalmente cristalizadas de determinadas subjetividades, grupos sociais e as diferenciações entre eles. As concepções sobre as línguas/linguagem são orientadas sempre por perspectivas comparativas e contrastivas. Desse modo, Irvine e Gal (2000, p. 37)IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84. afirmam que “as ideologias sobre língua/linguagem dos participantes localizam o fenômeno linguístico como parte de, e evidência para, o que eles acreditam ser contrastes comportamentais, estéticos, afetivos e morais sistemáticos entre os grupos sociais apontados”. Entendemos, então, que os construtos teóricoanalíticos de iconização, recursividade fractal e apagamento – concebidos por Irvine e Gal (2000)IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84. e aprimoradas por elas em obra posterior (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.) – são instrumentais férteis na tarefa de nos ajudar a vislumbrar o elo indexical entre determinadas formas linguísticas e a dimensão contextual de seus usos, incluindo as construções socioculturais de seus/suas falantes e escritores/as.

As ideologias linguísticas que guiam este trabalho colocam o fenômeno da indexicalidade no cerne da produção de sentido, pois defendem que usar a linguagem é uma prática que aciona automaticamente processos de contextualização. Constatamos, assim como Blommaert (2006)BLOMMAERT, J. (2006). Language Ideology. Encyclopaedia of Language and Linguistics. Elsevier. p .510-522. Disponível em: http://hdl.handle.net/1854/LU-386180. Acesso em 04 jul. 2020.
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, quão forte ainda é a tradição denotacional da linguagem, que orienta muitos dos/as falantes e escritores/as de uma língua a imaginarem que o literal do que foi verbalmente articulado dá conta sozinho de todo o processo de significação. Entretanto, a referencialidade se mostra insuficiente para explicar o que se passa em escala microssocial. Tampouco contempla os valores socioculturais que habitam os recursos semióticos que atuam em um determinado fenômeno sociolinguístico. Assim, para analisarmos as qualificações metapragmáticas que comparecem nas práticas discursivas selecionadas para este estudo, nos é caro o construto da indexicalidade em sua realização altamente ordenada (SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication 23, 193-229.). Por óbvio, avançaremos para além do sentido puramente denotacional do que foi escrito, alcançando, assim, os sentidos emergentes dos contextos localmente situados. Todavia, nos interessa igualmente vislumbrar os padrões normativos sócio-historicamente consolidados nos textos selecionados.

Acerca da iconização, Irvine e Gal (2000, p. 37)IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84. afirmam que “traços linguísticos que apontam para grupos sociais ou atividades parecem ser representações icônicas deles, como se um traço linguístico de algum modo representasse ou exibisse a natureza inerente ou essência de um grupo social”. A iconização explicita, portanto, o trabalho subjetivante que advém das práticas discursivas e metapragmáticas, já que correlaciona 1) traços linguísticos específicos a determinadas performances identitárias; e 2) comportamentos e características a determinados grupos humanos. Tais associações são projetadas, a despeito de suas ações discursivas situadas. Em obra mais recente (GAL & IRVINE, 2019GAL, S.; IRVINE, J. T. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press.), as autoras expandem a discussão sobre esse construto, dando ainda mais saliência às perspectivas contrastivas no cotejo entre os signos. Elas exploram a relação paralela entre as diferenças observáveis dos signos indexicais e os contrastes das representações sociais que esses signos indexam. O tuíte a seguir ilustra esse ponto:

Conforme se observa, esse tuíte é uma reação negativa à possibilidade de candidatura de Abraham Weintraub ao governo do Estado de São Paulo em 2022, defendida por muitos/as bolsonaristas desde sua exoneração do governo, em meados de 2020. Nele, vemos um meme onde, sobre a imagem do ex-ministro, lê-se o enunciado “procura-çe”. Ta l expressão é usualmente utilizada em anúncios de busca de criminosos/as, que é como, inclusive, o ex-ministro é posicionado pela internauta. Tanto a legenda do meme quanto a hashtag “#ForaBolsonaroeSeuBandoDeCriminosos” são pistas indexicais para essa construção identitária6 6 O tuíte parece apontar para a controversa saída de Weintraub do Brasil, em meados de 2020 – ocasião em que ele era investigado pelo STF no inquérito das fake news. Para muitos membros da oposição, a mudança de Weintraub para os Estados Unidos, após exoneração do governo, foi entendido como uma fuga (UOL, 2020a). . Nesse tuíte, interessa-nos, em particular, a forma como a partícula apassivadora “-se” foi deliberadamente grafada como desvio ortográfico: “-çe”. Considerando o comentário da usuária do Twitter – “você é um analfabeto. Vá estudar para aprender escrever” (ênfase da autora) – podemos afirmar que a ortografia estigmatizada funciona como um traço linguístico que seria típico das performances linguísticas do ex-ministro, vistas constantemente fora da norma padrão. Mais do que apenas apontar para a performance individual de Weintraub, essa ortografia não padrão iconizaria o grupo a que o ex-ministro faria jus pertencer: o coletivo dos/ as analfabetos/as (grupo esse que contrasta com o dos/as letrados/as, com o qual, tudo indica, a internauta se alinha).

A ortografia, inclusive, nos ajuda bastante a elucidar a dinâmica desses conceitos de Judith Irvine e Susan Gal. Como Blommaert (2006, p. 512)BLOMMAERT, J. (2006). Language Ideology. Encyclopaedia of Language and Linguistics. Elsevier. p .510-522. Disponível em: http://hdl.handle.net/1854/LU-386180. Acesso em 04 jul. 2020.
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sinaliza, “escrever na ortografia padrão seria não-marcado (correto) enquanto escrever em uma ortografia irregular seria errado e desencadearia indexicalidades de desleixo, falta de instrução e outros” (ênfases do autor). Portanto, os contrastes entre um determinado signo obediente à ortografia padrão e um visto como inconsistente com o que a norma rege se transferem para determinados grupos sociais. Usualmente (e não raramente de forma unívoca) se associa a ortografia padrão, julgada como a correta, ao grupo dos/as letrados/as e a ortografia predicada como desviante às pessoas sem acesso à educação formal – compreendidas, muitas vezes, como incapazes e pertencentes às camadas populares. Assim, diante do fato de que preconceitos linguísticos se enredam sempre com questões sociais e políticas (BAGNO, 1999/2015BAGNO, M. (1999). Preconceito linguístico. 56ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.), nomear o ex-ministro de “analfabeto” funcionaria como forma de insultá-lo, praticamente em pé de igualdade com a ofensa de criminoso.

A recursividade fractal, por sua vez, nos informa que as diferenciações perceptíveis em determinadas relações podem ressoar, de forma espelhada, em outras magnitudes, “em diferentes escalas” (MOITA LOPES, 2013aMOITA LOPES, L. P. (2013a). Ideologia linguística: como construir discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI. Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 18-52., p. 26). Portanto, é um processo semiótico que “envolve a projeção de uma oposição, saliente em um determinado nível da relação, em outro nível” (IRVINE & GAL, 2000IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84., p. 38). Como Gonzalez e Moita Lopes (2020)GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. (2020). Peles habitáveis de Almodóvar em perspectiva: projeções (meta)escalares. Linguagem em (Dis)curso–LemD, Tubarão, SC, v. 20, n. 1, p. 51-71, jan./abr. bem observam, a recursividade fractal diz respeito à reatualização de projeções dicotômicas em outra dimensão escalar, onde um dos polos goza de maior prestígio. Recuperando ainda a ilustração da ortografia, se uma lógica dicotômica se estabelece opondo pessoas vistas como cultas e outras iletradas, com base na maior ou menor obediência às regras ortográficas da norma padrão, ela pode ressoar dentro do mesmo grupo de pessoas letradas, por exemplo. Isso porque os supostos recorrentes deslizes à ortografia canônica – independentemente dos contextos de produção e circulação das práticas discursivas nas quais essas ortografias consideradas erráticas se realizam – poderiam, para determinada audiência, também colocar em xeque a competência e a habilidade cognitiva até mesmo de quem teve acesso à escolaridade. Tendo em vista que a recursividade dos ditos erros ortográficos do ex-ministro lhe conferiu um efeito estável de escritor muito irregular na norma padrão, mesmo que saibamos que ele, de fato, não é um indivíduo analfabeto, a internauta do tuíte acima, possivelmente se reconhecendo como membro do grupo dos/as letrados/as, reatualiza a dicotomia letrados/as versus incultos/as dentro desse mesmo grupo a que ambos devem pertencer: ela saberia ler e escrever perfeitamente, portanto, seria uma letrada por excelência; já Weintraub não. Logo, é um blefe nesse grupo.

Por fim, vale mencionar o apagamento, que “é o processo pelo qual a ideologia, ao simplificar o campo sociolinguístico, torna algumas pessoas ou atividades (ou fenômenos sociolinguísticos) invisíveis” (IRVINE & GAL, 2000IRVINE, J. T.; GAL, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In: KROSKRITY, P. V. (Ed.). Regimes of language: Ideologies, politics, and identities. Santa Fe: School of American Research Press, p. 35-84., p. 38). Para ideologias linguísticas que sustentam a ficção da homogeneidade das línguas e que excomungam a diferença e as misturas, o apagamento é ingrediente essencial para construção de sua coerência. Isso porque o apagamento atua na “eliminação “eliminação de traços/matizes que possam constituir uma ameaça à ideologia que se pretende instaurar/preservar” (GONZALEZ & MOITA LOPES, 2000, p. 59). E aqui está a ponte para a próxima seção, na qual debatemos sobre as ideologias linguísticas que vêm compondo as crenças de falantes e escritores/as acerca das línguas como entidades homogêneas. Tais credos não apenas apagam toda a heterogeneidade linguística presente nas práticas discursivas cotidianas como também endossam a exclusão de coletivos marginalizados.

2. A IDEOLOGIA LINGUÍSTICA DA NORMA: QUANDO A PUREZA SE SUJA DE DESIGUALDADES

São persistentes no repertório de sentido de muitos/as estudiosos/as da linguagem – assim como de muitos/ as falantes e escritores/as fora dos sistemas-perito – as ideologias linguísticas que compreendem as línguas como entidades atreladas a um ideal de estado-nação, fixas e puras, portanto separadas dos/as sujeitos/as sociais e de suas ações discursivas (BLOMMAERT, 2006BLOMMAERT, J. (2006). Language Ideology. Encyclopaedia of Language and Linguistics. Elsevier. p .510-522. Disponível em: http://hdl.handle.net/1854/LU-386180. Acesso em 04 jul. 2020.
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; MOITA LOPES, 2013aMOITA LOPES, L. P. (2013a). Ideologia linguística: como construir discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI. Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 18-52. & 2013bMOITA LOPES, L. P. (2013b). Como e por que teorizar o português: Recurso comunicativo em sociedades porosas e em tempos híbridos de globalização cultural. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 101-119.; LOPES & SILVA, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2019FABRICIO, B. F.; MOITA LOPES, L. P. (2019). Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: toward an abject aesthetics. Gragoatá, [S.l.], v. 24, n. 48, p. 136-159, apr. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33623>. Acesso em: 16 oct. 2020.
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). São crenças que, nos últimos séculos, vêm se disseminando sob forte influência de estudos linguísticos modernistas e que encontram suporte de autoridades diligentes na produção do efeito de constância das línguas. Entre elas podemos citar as regimentações institucionais e os instrumentos metalinguísticos – como gramáticas e dicionários.

Bauman e Briggs (2003)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (2003). Voices of modernity: language ideologies and the politics of inequalities. Cambridge: CUP., ao debaterem com profundidade teórica os fundamentos filosóficos e científicos que, na modernidade, cooperaram com a sanitização das línguas, livrando-as dos considerados traços infectados do mundo social, grifam que “o trabalho de purificar a língua exerceu um papel central na criação de práticas para forjar e naturalizar formas de desigualdade social” (p. 64). Portanto, o retrato estático de um sistema linguístico autônomo – em que na superfície só se deseja visível uma única variante da língua (nominalmente, a de prestígio) – talvez seja mais bem encarado como um palimpsesto, carregado de inscrições sócio-históricas, que nos lembram que é sempre às custas da diversidade linguística e humana que uma suposta língua pura se erige.

A ideologia linguística da norma é um efeito bem sucedido de um investimento reiterado de certos regimes metadiscursivos nos processos históricos de invenção das línguas como categorias separadas, associadas, ainda, a determinados Estados-nação (MAKONI & PENNYCOOK, 2007MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (2007). Desinventing and reconstituing languages. In: MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (Eds.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters LTD. p. 01-41.). Assim, aprendemos a enxergar a língua como uma categoria discreta, imutável, fruto de nossas atividades mentais descontextualizadas e coincidente com a sua variante padrão porque a própria ação dessa aprendizagem foi borrada, no fluxo temporal, por processos socioculturais de normatização. O que a diacronia tem nos ensinado, por outro lado, é que o fato de uma variante ser alçada à condição de norma lhe confere todo um leque semântico afirmativo e de neutralidade que passa a ser a ela associado, como não-marcada, correta, normal ou natural. Entretanto, tal fenômeno não decorre de propriedades interiores à estrutura linguística. Sua ascensão tem relação cultural e histórica com os recursos linguísticos usualmente circulantes entre determinados grupos sociais de prestígio.

Na influente obra sociológica de Norbert Elias (1939/1996)ELIAS, N. (1939). O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1996., percebemos que, no longo percurso histórico de mudanças de costumes que colaboraram para a formação do Estado Moderno e das sociedades ditas civilizadas, a língua também foi submetida a um processo civilizatório. O espelhamento dos recursos semióticos usados pelas elites nas línguas nacionais oficiais – que se formaram no devir civilizador – demonstra as iconizações que segregaram e avaliaram as classes sociais na arena discursiva: “Frases, palavras e nuanças são corretas porque eles, os membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as usam.” (ELIAS, 1939/1996ELIAS, N. (1939). O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1996., p. 120). O sociólogo alemão ainda chama a atenção para a conexão indissolúvel entre língua e sociedade, quando afirma que, “dentre todos os argumentos racionais que poderiam ser apresentados para a escolha das expressões, o argumento social, de que algo é melhor porque é usado pela classe alta, ou mesmo por apenas uma elite dela, é sem dúvida o mais importante” (p. 121).

O deslocamento desse debate para o contexto brasileiro, levando-se em conta o mapeamento das ideologias linguísticas que racionalizam a língua portuguesa, aponta que ainda é bastante influente a crença em uma língua nacional única, fixa e homogênea, a despeito de toda multiplicidade sociolinguística empiricamente testemunhada no país (MOITA LOPES, 2013bMOITA LOPES, L. P. (2013b). Como e por que teorizar o português: Recurso comunicativo em sociedades porosas e em tempos híbridos de globalização cultural. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 101-119.; LOPES & SILVA, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.). A ideologia linguística que ampara a ideia de monolinguismo brasileiro apaga as várias comunidades linguísticas (tais como de indígenas, imigrantes e outros), onde se observa o trânsito de centenas de línguas diferentes (SILVA & LOPES, 2019SILVA, D. N.; LOPES, A. C. (2019). “Yo hablo un perfeito portuñol”: indexicalidade, ideologia linguística e desafio da fronteira a políticas linguísticas uniformizadoras. Revista da ABRALIN, v. 17, n. 2, 27, p. 144-181. jun.). Ela corrobora, sobretudo, a existência de uma única língua com a variedade do português padrão. Essa é uma crença que se sedimentou no fluxo da história7 7 Segundo Lopes e Silva (2018), a construção do Brasil como um país monoglota e homogêneo atravessou os períodos monárquico e republicano. e que encontra chancela em documentos governamentais, universidades e escolas – suportes fortes para a construção da ideia da língua portuguesa como homogênea. Não bastasse a homogeneidade ser, em si, falaciosa, a consequente atribuição de alto valor à norma e o escárnio diante de variantes outras escancaram as desigualdades sociais brasileiras materializadas também no linguístico.

Marcos Bagno (1999/2015)BAGNO, M. (1999). Preconceito linguístico. 56ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015., em sua obra clássica sobre preconceito linguístico, há décadas denuncia que diversas realizações das variantes estigmatizadas do português são classificadas de erradas não por fundamentações intrinsicamente linguísticas, mas por motivações sociais e políticas. Segundo ele, muitas pessoas que se valem dessas variantes não-padrão pertencem a segmentos da sociedade que são marginalizados e excluídos, de modo que “a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada feia, pobre, carente” (p. 67, ênfases do autor). Há, ainda, a interseccionalidade entre diversos sistemas de opressão nesses processos discriminatórios, e Lélia Gonzalez – ativista e uma das pioneiras no debate sobre o cruzamento das questões de raça e gênero – nos informa, por exemplo, sobre as chacotas que o legado do pretuguês vem sofrendo há anos no contexto sociolinguístico brasileiro:

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem é que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em , o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. (GONZALEZ, 1984GONZALEZ, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244., p. 238, ênfases da autora).

Tendo em vista que o ensino do português no Brasil é tradicionalmente orientado pela ideologia linguística monoglota padrão, Pinto (2013)PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143. denuncia como vários estudos linguísticos acerca do português brasileiro8 8 Trabalhos oriundos principalmente do Projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta). fazem coincidir antecipadamente (portanto, sem observar as práticas discursivas localmente situadas) os/as falantes e escritores/as de um português avaliado como adequado com uma classe de prestígio. No caso, o prestígio referido concerne à prerrogativa da escolarização, sobretudo da educação superior. Percebe-se, portanto, que essa iconização realizada por pesquisas linguísticas – em colaboração com os centros de autoridade já mencionados – consolida a naturalização da dicotomia culto/letrado versus popular/iletrado, ajudando a retroalimentar a crença de um país de uma língua só.

No arranjo reducionista dos pares opositivos culto versus popular – reducionismo esse, vale a observação, a que dicotomias são sempre vocacionadas – Pinto (2013)PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143. sinaliza que um sistema atributivo opositor também se institui. A lógica dicotômica instaurada por essa enganosa prefiguração identitária, que prende previamente uma identidade social a uma determinada identidade linguística, confere aos/às falantes cultos/as os atributos de maior valor. De acordo com o que Lopes e Silva (2018, p. 699)LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez. apreciam, “o padrão, embora não exista como coisa tangível, é um índice daquilo que é desejável e moralmente bom”. A presumida superioridade dos/as falantes letrados/as estaria ainda relacionada à sua maior capacidade de mobilidade entre as variantes: “Falantes cultos são linguisticamente melhores que os não cultos; enquanto os populares não sabem transitar entre variedades ou dialetos, ficando presos à variedade que conhecem, os cultos adaptam-se à situação de comunicação” (PINTO, 2013PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143., p. 128, ênfases da autora). E justamente porque as performances comunicativas dos/as ditos/as letrados/as são vistas como mais plásticas, seus valores pessoais estariam menos suscetíveis ao jugo de apreciações condenatórias:

A população brasileira que não aderiu ao padrão do português europeu é popular e iletrada, enquanto a parcela letrada e culta tem sempre o benefício da dúvida quando usa estruturas informais ou em desacordo com as regras da língua escrita e da gramática tradicional. (PINTO, 2013PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143., p. 134, ênfases da autora)

As ideologias linguísticas que informam nossa compreensão acerca da linguagem apregoam que “nem a língua, nem os falantes e escritores preexistem ao fazer linguístico” (MOITA LOPES, 2013aMOITA LOPES, L. P. (2013a). Ideologia linguística: como construir discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI. Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 18-52., p. 37). Desse modo, estudos situados da linguagem podem devolver aos fenômenos sociolinguísticos e às performances identitárias o que lhes é de direito: sua complexidade, diversidade e contingencialidade. Passamos, então, para a discussão das práticas discursivas concretas de usuários/as do Twitter, buscando, empiricamente, vislumbrar as ideologias linguísticas em operação quando refletem e criticam a performance linguística do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub.

3. NO CONTRA-ATAQUE, SEGUE VIVO O IDEAL DE LÍNGUA PURA

Nosso foco nesta seção são as ideologias linguísticas acionadas em três práticas discursivas na Internet críticas à performance linguística do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, em sua conta pessoal no Twitter. Esse microblog era muito utilizado não só pelo então ministro, mas igualmente por vários membros do governo Bolsonaro, incluindo o próprio Presidente da República. Ao contemplarmos as racionalizações que os/as internautas realizam acerca dos usos e das formas da língua no discurso político do governo de situação, visamos avaliar os efeitos de sentidos decorrentes dessas crenças ideológicas e tratar dos ganhos que podem (ou não) ser providos para a resistência política.

Sobre os dados, tivemos nosso primeiro acesso a eles ao lermos a reportagem intitulada “Imprecionante do ministro Weintraub está trazendo memes hilários” (RODRIGUES, 2020RODRIGUES, P. (2020). Imprecionante do ministro Weintraub está trazendo memes hilários. Sputinik Brasil, 09 jan. Disponível em: https://br.sputniknews.com/brasil/2020010914990360-imprecionante-do-ministro-weintraub-esta-trazendo-memes-hilarios. Acesso em 06 jul. 2020.
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). Nela, o jornalista compila (e faz breves comentários sobre) nove postagens de internautas que circularam no Twitter no mesmo dia (09 de janeiro de 2020). Trata-se de tuítes que criticavam e, por vezes, ridicularizavam o ex-ministro por seu então mais recente erro ortográfico em uma postagem do dia anterior no mesmo microblog. Desse total de tuítes entextualizados na reportagem, selecionamos três por serem bem emblemáticos de um modo de resistência política que reatualizava um ideal de língua pura e que reagia belicamente contra qualquer possibilidade de misturas linguísticas – sobretudo as com fortes marcas de desvio da norma padrão. Por questões éticas, omitimos os nomes, apelidos e avatares dos/as autores/as das postagens que entextualizamos aqui.

No dia 08 de janeiro de 2020, em resposta ao tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro acerca da inexistência de pesquisas feitas por órgãos oficiais sobre o uso defensivo de arma de fogo, Abraham Weintraub, ao redigir a palavra impressionante, trocou o dígrafo consonantal ss pelo grafema c, conforme se vê a seguir:

Dada a grande repercussão em torno do uso de uma ortografia não prestigiada, o ex-ministro cuidou de deletar a postagem, mas não com a mesma rapidez das capturas de tela, que ajudaram no processo de recontextualização de seu tuíte em novas cadeias de enunciação. Na ocasião dessa postagem – nove meses após sua posse no MEC – uma avaliação negativa da performance de Weintraub já circulava entre seus críticos, ganhando, cada vez mais, efeito de consistência. Sua encenação como ministro da educação iletrado e necessitado de constante correção foi coletiva e processualmente confeccionada pelos discursos da mídia corporativista e independente, por falantes e escritores/ as não especialistas da área da linguagem e por integrantes de partidos de oposição ao governo. Quanto às críticas confeccionadas por esses dois últimos grupos, interessa-nos fazer incidir aqui uma mirada mais acurada. Segue, então, o primeiro tuíte em resposta à postagem de Weintraub de que trataremos:

Nesse tuíte, podemos observar que o internauta reflete sobre a performance linguística localmente situada do então ministro da educação em seu próprio perfil no Twitter no dia anterior. A presença de aspas em “imprecionante” evidencia que essa pista tipográfica se presta a deixar explícito o elo intertextual entre seu comentário metapragmático e a postagem de Weintraub que o antecede. Deixar deliberadamente assinalada a citação direta – sobretudo por ter usado logo antes a mesma palavra em ortografia consagrada – marca constrastivamente os referidos signos indexicais: a ortografia padrão impressionante (de autoria do internauta) versus a dita desviante imprecionante (por ele citada). Nesse mesmo eixo de diferenciação dos signos gravitam as imagens sociais para os quais cada um aponta (respectivamente, os/as letrados/as versus os/as iletrados/as), o que sugere, inclusive, a que grupo dicotômico cada um – internauta e ministro – parece pertencer, pois enquanto o comentarista seria constante no uso da norma padrão, o outro seria vacilante.

Em suas reflexões metapragmáticas, o internauta 3 ajuda a cossustentar a identidade linguística fixa de Weintraub como escritor inábil no uso da norma padrão. O então ministro é por ele predicado como aquele “que comete tantos erros humilhantes de português (para o cargo que ocupa)”. É interessante notar que o comentarista, ao criticar tão severamente a performance linguística não homogênea do então ministro, parece acusá-lo de trair a iconização destinada a um político com diploma superior. Isso porque a expectativa é de que ele deveria honrar o grupo identitário prefigurado a que pertence – uma elite econômica e culta – e fazer uso constante da norma, não importando, inclusive, o contexto de enunciação de suas práticas discursivas (se ocorrem na produção escrita de um documento oficial ou de uma postagem em rede social, por exemplo). Sua escrita ainda é construída como necessitada de correção, e a tecnologia digital poderia ajudá-lo a disfarçar o que nele ainda habita de não moderno, de estranho ao mundo civilizado. Como Bauman e Briggs (2003, p. 69)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (2003). Voices of modernity: language ideologies and the politics of inequalities. Cambridge: CUP. alertaram, “simplesmente ao abrirem a boca ou ao colocarem a caneta no papel, os indivíduos e as populações parecem fornecer sua própria medida da extensão em que conseguiram se desprovincializarem”. Para o contexto mais contemporâneo, o mesmo pode ser dito em relação ao simples ato de tuitar.

Ao exigir homogeneidade linguística no texto de Weintraub, execrando a presença do mínimo de traço de variantes não normativas em sua escrita, esse usuário do Twitter retroalimenta a defesa histórica do apagamento da diferença no discurso político. Se considerarmos que Weintraub ocupava o cargo de ministro da educação – e que há uma enraizada ideia na cultura de que cabe à educação formal zelar pela norma e garanti-la – a crítica se torna ainda mais ácida. Outros registros, outros recursos semióticos associados a uma diversidade de grupos sociais, nunca foram abraçados pela imaginação hegemônica de uma linguagem política brasileira pura (COUTINHO ET AL., 2017COUTINHO, B.; LOPES, A.; SILVA, D. (2017). Populism and the people in Lula’s political discourse: bridging social and linguistic theory. Revista de Estudos da Linguagem, v. 25, n. 2, p. 681-710.; SILVA & LOPES, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.). E na malha discursiva onde se entretecem conjuntamente ideologias linguísticas e ideologias orientadoras de nossas performances identitárias (PINTO, 2013PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143.; SILVA & LOPES, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.; GONZALEZ & MOITA LOPES, 2020GONZALEZ, C.; MOITA LOPES, L. P. (2020). Peles habitáveis de Almodóvar em perspectiva: projeções (meta)escalares. Linguagem em (Dis)curso–LemD, Tubarão, SC, v. 20, n. 1, p. 51-71, jan./abr.), vale enfatizar a crença ainda dominante de que os ditos desvios da variante de prestígio são só – ou majoritariamente – efetuados por populares, de forma que atacar os híbridos presentes no tuíte do ex-ministro pode transbordar os limites de sua própria pessoa física e pública. E é na próxima postagem – um meme – que essa prefiguração identitária parece ficar multissemioticamente sugestionada:

Os memes são gêneros textuais bastante comuns nos contextos online, sobremodo nas redes sociais, e a composição dos elementos semióticos que lhe dão forma costuma ser condimentada com ironia e sátira, ainda que alguns julguem que o efeito de humor produzido seja inferior e tolo. Entretanto, é possível enxergar nos memes eventos interacionais de alta reflexividade, em que podem ser observados os modos como os/as sujeitos/as constroem sentido do mundo sociodiscursivo do qual participam (OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, R. S. (2020).“Hakuna Mamata!” ou “Pretendo beneficiar meu filho, sim”. Contxt. 12 abr 2020. Disponível em: http://contxt.letras.ufrj.br/blog/item/5-hakuna-mamata-ou-pretendo-beneficiar-meu-filho-sim.html. Acesso em 10 ago.
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). No caso do tuíte acima, a ortografia não padrão de Weintraub também se tornou foco de atenção metapragmática.

O meme tuitado pode ser considerado bem prototípico desse gênero, em que se observa uma imagem em destaque associada a uma breve legenda. Nela, lê-se, “Imprecionante de onde vem o diploma do Weintraub”, em que a palavra “imprecionante”, que reanima a postagem do ex-ministro, mantém a grafia não padrão, sem, contudo, nenhuma sinalização de estar sendo citada diretamente ou qualquer outra pista indexical que pudesse indicar para a audiência que o autor do meme se exime de responsabilidade diante do considerado desvio ortográfico. Se ponderarmos que os ditos erros gramaticais são bem acolhidos por esse tipo de gênero textual – muitos deles deliberados, vale frisar – a escrita de “imprecionante” sem correção ou sinalização de haver ali um desvio se mostra, inclusive, uma adequação às convenções discursivas do gênero. Em outros termos, para essa prática discursiva, cometer supostos (estratégicos) erros gramaticais pode ser índice de escritura proficiente no gênero, sobretudo se os efeitos desejados (humor, impacto etc.) forem alcançados. Somos, então, preparados/as pela legenda, localizada acima da imagem, para a apresentação da instituição que supostamente teria diplomado o então ministro da educação.

No tocante à imagem, vemos três prédios geminados, com fachadas de cores diferentes, mas com reboco aparente em alguns trechos e face lateral, o que é sugestivo de edificações humildes. A presença de dois carros de modelo popular – um, inclusive, um fusca supostamente avariado, situado em frente a uma oficina mecânica – ajuda na construção semiótica de uma localidade pobre. No prédio ao centro da imagem, existem três faixas onde se lê “Harvard”. Em uma das faixas, situada mais ao topo, a palavra é grafada com letras em destaque. Acima dessa inscrição, embora com nitidez comprometida, é possível ler a palavra “colégio”. Há, ainda, uma quarta faixa, situada no meio do prédio central, posicionada mais à direita, em que se encontram os termos “primaria” e “secondaria”, que contribuem para a confecção da ideia de um colégio de educação básica. O nome da instituição de ensino extravasa o contexto microssituado de sua ocorrência e aponta, em outra escala, para a renomada e tradicional universidade estadunidense homônima, reconhecida por ser uma referência mundial de centro de ensino superior e de pesquisa.

Toda essa sofisticada arquitetura multimodal compondo o tuíte o tuíte de sarcasmo à performance linguística de Weintraub, se articula de tal modo, que o efeito de sentido construído é a essencialização identitária do ex-ministro como escritor da língua portuguesa insuficientemente letrado, dado seu uso visto como acidentado, segundo a variante de prestígio. Conforme Pinto (2013)PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143. adverte, a ideologia linguística monoglota padrão, amparada até mesmo por alguns estudos da linguagem, orienta os enquadres interpretativos de falantes e escritores/as do português, de maneira que sujeitos/as que fazem uso regular da variante de prestígio são prefigurados/as como pessoas que têm alto grau de escolaridade. Como o uso da norma padrão por Weintraub é abalizado como flutuante, sua escolaridade é posta sob suspeita. Se o então ministro declara ter ensino superior, sua performance linguística não faria justiça ao seu diploma. A tomar pela sua ortografia vista como deficitária, sua real certificação seria apenas a de educação básica incompleta e atestada por uma instituição de ensino voltada a atender comunidades populares. Percebemos que, orientado pela ideologia linguística monoglota padrão, o internauta parece julgar ser mais plausível que Weintraub seja um impostor dentro da classe de prestígio que ele deveria iconizar – nominalmente, a dos letrados – do que considerar que, ao agirmos nas práticas discursivas localmente agenciadas, adentramos todos/as no que Pinto (2013)PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143. nomeia de “continuum linguístico”. Ta l continuum nos traz notícias da concretude de um mundo contemporâneo em que práticas discursivas e identitárias são, irremediavelmente, hibridizadas; um mundo de recursos semióticos, fragmentos de línguas ou de variantes fatalmente misturados. É o que vale para a realidade sociolinguística dos críticos de Weintraub e de sua agenda política, mas assim também o é para a realidade discursiva do próprio.

Cabe ainda salientar que, na investida contra o ex-ministro, os estilhaços acertam com precisão nos grupos sociais identificados com as variantes populares. Ao reforçar a dicotomia letrado/a versus iletrado/a, o produtor do meme contribui com o que Pinto (2013, p. 128)PINTO, J. P. (2013). Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, L. P. (ORG.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola. p. 120-143. chama de “fetichização do dialeto de prestígio”: há uma hierarquia, e os/as cultos/as ocupariam o polo de soberania sociolinguística. Assim, a ofensiva que incide sobre a escrita de Weintraub – porque é acusada de estar contaminada de traços de variantes populares – se faz recursiva fractalmente nos históricos ataques contra a produção discursiva de grupos sociais que não aderiram ao padrão normativo do português. Sem ser alvejada, no entanto, está a naturalização das desigualdades entre os grupos socioeconômicos que a ideologia linguística da norma contribui por preservar.

Por último, gostaríamos ainda de analisar o tuíte da internauta 5, que, em sua conta pessoal no Twitter, se apresenta como professora de uma área exata de uma instituição federal, pós-graduada em dois cursos das ciências humanas, escritora e política afiliada ao PT. Em sua breve postagem, além de recontextualizar o tuíte de Abraham Weintraub envolvendo a grafia não canônica da palavra impressionante, a internauta reanima outras performances discursivas do ex-ministro, que cooperariam por construí-lo como incapaz cognitivamente e inapto para o cargo ocupado. Citamos a postagem:

Das instâncias discursivas agenciadas por Weintraub, que foram resituadas pela internauta em sua postagem, a revitalização dos discursos apologéticos do ex-ministro à meritocracia e a recontextualização de suas performances linguísticas à margem da norma padrão clamam pela nossa atenção aqui. Nesse tuíte, a comentarista cita diretamente uma declaração animada por Weintraub (“só tem espaço para os melhores”) na cerimônia Destaques na Educação em setembro de 2019. Nesse evento, dirigindo-se a uma audiência de estudantes adolescentes, o então ministro da educação defendeu a meritocracia e a competição e criticou programas governamentais de assistência a famílias em situação de risco quanto a seus direitos básicos, como, por exemplo, acesso à educação. Já em relação à performance linguística vista como desviante do ex-ministro, três episódios envolvendo sua produção escrita em desacordo com a gramática tradicional são recuperados. Além do recurso “impressionante”, ao qual a internauta confere relevo pelo registro escrito do grafema c em maiúsculo, há menção a outros dois episódios em que Weintraub não foi regular no uso da norma. Trata-se da grafia das palavras “suspenção” e “paralização”, por ocasião de um ofício endereçado ao ministro da economia, Paulo Guedes, em agosto de 2019 (FARIAS, 2019FARIAS, V. (2019). Weintraub escreve ‘suspenção’ e ‘paralização’ ao pedir recursos a Paulo Guedes. O Globo, 30 ago. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/weintraub-escreve-suspencao-paralizacao-ao-pedir-recursos-paulo-guedes-23916466 . Acesso em: 20 out 2020.
https://oglobo.globo.com/sociedade/weint...
).

Ao apontar que, no curso de sua atuação no comando do MEC, o então ministro mostrou não ter familiaridade com os saberes que são caros para escola – da matemática, passando pela literatura e pelo domínio da variante de prestígio – a internauta sugere que, pelos critérios da meritocracia defendida por Weintraub, nem ele próprio seria acolhido, pois também não estaria “entre os melhores”. Sua performance linguística deporia contra ele mesmo – afinal, ele escreve “impressionante”, “suspenção”, “paralização” – e estar entre os melhores exigiria, portanto, que o ex-ministro fosse capaz de se comportar linguisticamente de acordo com as expectativas em torno das identidades prefiguradas. Como membro da classe de prestígio, Weintraub deveria usar a variante de alto valor sem flutuação. Subjaz aqui também mais uma falácia em torno da valorização da norma culta, como se ela, por si só, assegurasse sucesso social. É recursiva a crença circulante de que o domínio da norma padrão pode ser uma promessa de ascensão dos grupos subalternizados, como se questões identitárias e políticas não estivessem articuladas com questões linguísticas (BAGNO, 1999/2015BAGNO, M. (1999). Preconceito linguístico. 56ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.; LOPES & SILVA, 2018LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez.). Se considerarmos a própria biografia de Weintraub, sua inconstância no uso da norma padrão e todos os ataques que recebeu por isso não redundaram em declínio profissional. Na contramão desse prognóstico, tão logo se deu sua saída do MEC, ele assumiu o cargo de Diretor Executivo do Banco Mundial em Washington, recebendo, inclusive, alto valor salarial (ÉPOCA, 2020Weintraub é confirmado como diretor do Banco Mundial. Época, 31 jul. 2020. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2020/07/epoca-negocios-weintraub-e-confirmado-como-diretor-do-banco-mundial.html. Acesso em: 05 ago 2020.
https://epocanegocios.globo.com/Economia...
).

Uma vez mais, a ideologia linguística da norma é aqui acionada, tanto nos ajuizamentos da internauta acerca das ações discursivas de Weintraub quanto no ato de resistência política à ideologia da meritocracia defendida por sua gestão. Irônico, no entanto, é observar que a oposição política contra a meritocracia se solidariza com uma ideologia linguística que – ao apagar o contexto político e sócio-histórico que responde pela distribuição desigual dos recursos linguísticos entre os grupos sociais – elege como superior um segmento da população brasileira cujo repertório discursivo é amparado pela variante de prestígio. Esse é o ponto que acaba ficando esquecido na discussão, como também fica esquecida a própria questão da política de segurança com base em orientações armamentistas (tópico da troca de tuítes entre o ex-ministro e o deputado federal). Respaldando uma mesma lógica de julgamento moral de usos linguísticos, deixa-se de lado discussões essenciais. Considerando que o partido a que a internauta está afiliada elegeu um e uma presidente/a cujas falas, segundo Silva e Lopes (2018, p. 167-8)LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez., “sempre foram alvo de metadiscursos que as posicionavam como desprezíveis, incapazes ou desviantes”, atacar o ex-ministro, usando contra ele os híbridos que são observáveis em sua escrita, parece ser, antes de tudo, nocivo para um projeto de transformação política, pois continuaria, como bem sublinha Safatle, a “respeitar a mesma gramática9 9 Safatle faz referência específica ao que ele cunha de “gramática social de conflitos”, mas sublinhamos que as leis que regem as regras de uma língua não deixam de ser precipitações de lutas históricas, políticas e socioculturais, em que o conflito foi invisibilizado, pois, na gramática da língua, se conta apenas a história dos vencedores. que define os modos normais de funcionamento dos nossos vínculos políticos” (STI FFLCH USP, 2019STI FFLCH USP (2019). IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP, Mesa de encerramento: Impasses da Racionalidade, Marilena Chaui e Vladimir Safatle. Youtube, 23 ago. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XDdVTjIVtco. Acesso em 01 jul. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=XDdVTjIV...
, 1:06).

Ponderamos que insistir na ideologia linguística da norma na avaliação das ações discursivas acionadas pelos/ as sujeitos/as não é apenas deixar de reconhecer a legitimidade das misturas e de colocar sob suspeita a fixidez das ditas variedades linguísticas. É, sobretudo, como denuncia Moita Lopes (2013a, p. 23)MOITA LOPES, L. P. (2013a). Ideologia linguística: como construir discursivamente o português no século XXI. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). O português no século XXI. Cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial. p. 18-52., apoiar uma imaginação linguística “que desampara sociolinguisticamente aqueles que não dominam a língua considerada de prestígio”. Assim, a performance linguística de um membro do governo de situação não deveria ser alvo de escrutínio crítico, mas, sim, suas ideologias em relação à educação, política externa etc., cujos efeitos são desastrosos para a vida do país.

Neste momento em que a cultura beligerante tem invadido vários domínios da vida social – e a política não está de fora – temos acordo com Hodges (2020)HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press. e Miskolci (2021)MISKOLCI, R (2021). Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora. Belo Horizonte: Autêntica., de que precisamos questionar o modelo de resistência pautado meramente no revide. Miskolci (2021)MISKOLCI, R (2021). Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora. Belo Horizonte: Autêntica. adverte que “quem luta por uma sociedade melhor – mais democrática, inclusiva e justa – não precisa agir nos mesmos termos que critica em seus adversários políticos” (p. 18). Isso implica, portanto, revisitar estratégias discursivas assentadas no escracho e em condenações morais, que se configuram mais como espelhamento das ações daqueles/as que se alinham a um regime contra o qual se almeja fazer efetiva resistência política. Segundo o que observamos nessas práticas discursivas reativas ao então ministro da educação, o ataque contra seu projeto político pelas vias da ridicularização e do julgamento moral de sua performance linguística e da deslegitimação dos híbridos em sua escrita parecem ter mais potencial de retroalimentar os sentidos derrogatórios associados aos recursos linguísticos populares do que, de fato, abalar sua política educacional elitista e de apologia à competição10 10 Não nos esqueçamos da gestão de Weintraub na ocasião da pandemia da Covid-19 em 2020, quando várias escolas brasileiras ficaram sem aulas presenciais, e muitos/as alunos/as não tiveram acesso ao ensino remoto e condições de ensino adequadas. Com isso, a grande desigualdade social brasileira ficou ainda mais escancarada. Weintraub, todavia, foi fervoroso defensor de que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não fosse adiado, alegando se tratar de uma competição e que a preocupação se centrava em “selecionar as pessoas que estão mais preparadas para serem os médicos daqui dez anos, os enfermeiros, os engenheiros, os contadores” (UOL, 2020b). . Os interesses ideológicos e os direitos das classes trabalhadoras e dos pobres estiveram historicamente sob a mira ofensiva de líderes da direita ultraconservadora. Se reivindicamos a presença hegemônica de uma língua pura no discurso político, miramos igualmente nosso torpedo contra esses (e outros) grupos marginalizados. Em nossas críticas ferozes contra a ortografia julgada inconsistente do ex-chefe do MEC, estamos ajudando a aniquilar, por fogo amigo, a representatividade da diferença e das mestiçagens nas performances da língua.

ALGUMAS PALAVRAS FINAIS

Nestes tempos difíceis, quando testemunhamos a emergência de governos de extrema direita – que se mostram indiferentes às populações em estado de vulnerabilidade socioeconômica e linguística, defendem a meritocracia e se valem da linguagem da violência no trato com os seus opositores –, imaginar formas de resistência que rompam com essa lógica bélica e vil se faz necessário. Das ações a serem agenciadas, olhar com agudeza para as estratégias linguísticas e comunicativas que são operacionalizadas nos discursos políticos é mandatório. Contudo, o mesmo pode ser afirmado em relação às crenças linguísticas que orientam os nossos enquadres e nossas formas de acionar resistência política. Segundo o que Hodges assevera (2020, p. xi)HODGES, A. (2020). When words Trump politics: resisting a hostile regime of language. California: Stanford University Press., “uma consciência crítica do discurso político pode desarmar o apelo espúrio da demagogia populista ou inspirar respostas adequadas, que busquem unificar ao invés de dividir, exaltar ao invés de destruir”.

Se Safatle nos faz a necessária pergunta acerca da gramática de nossa revolta, inspiramo-nos nela e lançamonos a seguinte indagação: que ideologia linguística deve orientar a nossa resistência? Se línguas são invenções, talvez um projeto de resistência devesse encaminhar a desinvenção de regimes metadiscursivos que amparam a ideologia linguística da norma – criadora tanto da imaginação de um país monoglota e homogêneo como de efeitos nefastos para os grupos marginalizados (Cf. MAKONI & PENNYCOOK, 2007MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (2007). Desinventing and reconstituing languages. In: MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (Eds.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters LTD. p. 01-41.). A culpabilidade por suas próprias mazelas sociais impingida às pessoas que não seguem a norma padrão, a inferiorização dos/as que não se apropriam da variante de prestígio, a manutenção das desigualdades sociais, as prefigurações identitárias e o engessamento de grupos sociais subalternizados em categorias fixas são alguns de vários efeitos maléficos que essa ideologia linguística ajuda a preservar toda vez que ela é invocada. E isso não deixa de ocorrer nem mesmo quando nos orientamos por essa mesma ideologia linguística para atacar uma elite econômica masculina e letrada que, da norma padrão, também não faz uso regular e coeso.

Conforme aponta Miskolci (2021)MISKOLCI, R (2021). Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizadora. Belo Horizonte: Autêntica., desde os anos iniciais da década passada, as estratégias de grupos progressistas, em reação aos discursos dos governos de situação, vêm evidenciando a “incapacidade da oposição de se unir ou mesmo de construir um discurso que não fosse de réplica, enredado nos termos dos vitoriosos” (p. 26-27). Em um mundo contemporâneo marcado por diversidades culturais e identitárias, de trânsitos locais e globais de pessoas e signos e de hibridizações dos recursos semióticos, investir em ideologias linguísticas de misturas não só se mostra mais adequado para se entender os fenômenos sociolinguísticos da atualidade como parece ser mais pertinente à imaginação de projetos políticos de resistência mais éticos e inclusivos.

Sob essa premissa, concluímos com o comentário metapragmático acerca da performance linguística do exministro Abraham Weintraub efetuado pelo internauta abaixo:

Pois nos unimos, então, a esse coro. Se queremos acionar transformações políticas efetivas, talvez devamos começar abrindo mão de um olhar belicoso contra a atomicidade dos ditos erros gramaticais de nossos opositores políticos em favor de um outro foco de observação: os sistemas de crenças, saberes e valorações que desumanizam, excluem e aniquilam o que tomamos por diferença.

  • 1
    Sou grata ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pela bolsa de pesquisa [306214/2019-9] que tornou possível o estudo apresentado neste artigo.
  • 2
    Informamos que, mesmo reconhecendo que as interações que são agenciadas no microblog Twitter são da esfera pública, nossa escolha metodológica, ao recontextualizar essas práticas discursivas neste artigo, foi pela anonimização dos perfis dos/as usuários/as.
  • 3
    Supremo Tribunal Federal.
  • 4
    Segundo Marcos Bagno (1999/2015)BAGNO, M. (1999). Preconceito linguístico. 56ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015., é um arraigado mito a compreensão de que o total domínio da língua padrão é condição necessária para a ascensão social. O fluxo da história nos mostra que as performances linguísticas de Sergio Moro, em alguns momentos à margem do que rege a gramática tradicional, não o condenaram a uma sina de desditas socioeconômicas. Mesmo com toda chacota investida contra seus apontados erros de português, após sua polêmica saída do governo Bolsonaro, em 2020, ele foi agraciado com o cargo de diretor da empresa de consultoria judicial estadunidense Alvarez & Marsal (G1, 2020Sergio Moro assume cargo de diretor em empresa de consultoria em SP. G1, 29 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/11/29/sergio-moro-assume-cargo-de-diretor-em-empresa-de-consultoria-em-sp.ghtml. Acesso em: 03 dez. 2020.
    https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici...
    ).
  • 5
    Advertimos que obras consultadas originalmente em inglês têm tradução de nossa responsabilidade.
  • 6
    O tuíte parece apontar para a controversa saída de Weintraub do Brasil, em meados de 2020 – ocasião em que ele era investigado pelo STF no inquérito das fake news. Para muitos membros da oposição, a mudança de Weintraub para os Estados Unidos, após exoneração do governo, foi entendido como uma fuga (UOL, 2020aOposição ataca ida de Weintraub aos Estados Unidos: ‘Fugiu’. UOL, 20 jun. 2020a. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/06/20/oposicao-reage-a-ida-de-weintraub-aos-estados-unidos-fugiu.htm. Acesso em: 04 jan 2021.
    https://noticias.uol.com.br/politica/ult...
    ).
  • 7
    Segundo Lopes e Silva (2018)LOPES, A. C.; SILVA, D. N. (2018). Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n,3, p. 695-713, set/dez., a construção do Brasil como um país monoglota e homogêneo atravessou os períodos monárquico e republicano.
  • 8
    Trabalhos oriundos principalmente do Projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta).
  • 9
    Safatle faz referência específica ao que ele cunha de “gramática social de conflitos”, mas sublinhamos que as leis que regem as regras de uma língua não deixam de ser precipitações de lutas históricas, políticas e socioculturais, em que o conflito foi invisibilizado, pois, na gramática da língua, se conta apenas a história dos vencedores.
  • 10
    Não nos esqueçamos da gestão de Weintraub na ocasião da pandemia da Covid-19 em 2020, quando várias escolas brasileiras ficaram sem aulas presenciais, e muitos/as alunos/as não tiveram acesso ao ensino remoto e condições de ensino adequadas. Com isso, a grande desigualdade social brasileira ficou ainda mais escancarada. Weintraub, todavia, foi fervoroso defensor de que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não fosse adiado, alegando se tratar de uma competição e que a preocupação se centrava em “selecionar as pessoas que estão mais preparadas para serem os médicos daqui dez anos, os enfermeiros, os engenheiros, os contadores” (UOL, 2020bWeintraub: ‘Interromper o ENEM e deixar para 2021 seria matar uma geração’. UOL, 17 abr 2020b. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/04/17/weintraub-interromper-o-enem-e-deixar-para-2021-seria-matar-uma-geracao.htm. Acesso em 30 abr 2020.
    https://educacao.uol.com.br/noticias/202...
    ).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2021
  • Aceito
    08 Mar 2022
  • Publicado
    15 Jul 2022
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