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Triste fim de Policarpo Quaresma: as margens e os bloqueios

Triste fim de Policarpo Quaresma: the margins and the blockades

Triste fim de Policarpo Quaresma: los márgenes y los bloqueos

RESUMO

O artigo pretende oferecer uma leitura do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, atenta ao termo usado por Adelaide para descrever o pensamento e as atividades de seu irmão Policarpo: mania. Busca-se salientar o funcionamento desse termo no romance, destacando certos contextos e personagens marginais, como Maria Rita, Anastácio, Felizardo e Ismênia. Sublinha-se, concluindo, a importância de Olga enquanto linha de fuga do ciclo de decepções vivido pelo protagonista.

Palavras-chave:
Lima Barreto; nacionalismo; população negra; população indígena; mulheres

ABSTRACT

The article offers an interpretation of Lima Barreto’s novel Triste fim de Policarpo Quaresma that considers the term mania, the word that Adelaide, Policarpo’s sister, uses to describe his thoughts and activities. It emphasizes the term’s function in the novel, especially in certain contexts and with marginal characters such as Maria Rita, Anastácio, Felizardo, and Ismênia. It also highlights the importance of Olga as a means of escaping the cycle of deceptions that the protagonist experienced.

Keywords:
Lima Barreto; nationalism; black people; indigenous people; women

RESUMEN

El artículo pretende ofrecer una lectura del Romance Triste fim de Policarpio Quaresma, de Lima Barreto, atenta al término usado por Adelaide para describir el pensamiento y las actividades de su hermano Policarpio: mania. Se busca realzar el funcionamiento de ese término en el romance, destacando ciertos contextos y personajes marginales: como Maria Rita, Anastácio, Felizardo e Ismênia. Se subraya, concluyendo, la importancia de Olga en cuanto línea de fuga del ciclo de decepciones vivido por el protagonista.

Palabras clave:
Lima Barreto; nacionalismo; población negra; población indígena; mujeres

Há, certamente, uma dupla leitura de Triste fim de Policarpo Quaresma. Há, sem dúvidas, uma crítica à noção de “pátria” e a seu distanciamento em relação aos fatos concretos da vida brasileira (SANTIAGO, 1982SANTIAGO, Silviano. Uma ferroada no peito do pé. (Dupla leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma). In: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 163-181.). Há algo mais. Algo que conecta o Triste fim ao primeiro romance publicado de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha. Parece adequado dizer que o “tema da ascensão social, que tinha sido o problema central do romance anterior de Lima Barreto”, o Recordações, “aparece agora”, em Triste fim, “de maneira secundária” (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, Irenísia Torres. Indivíduo e sociedade no romance Triste fim de Policarpo Quaresma. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 49-69, 2015. Disponível em:Disponível em:http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/8676/8775 . Acesso em:27 abr. 2019.
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). Contudo, o que conecta os dois romances é menos esse tratamento, em primeiro e segundo plano, do tema da ascensão social, do que o efeito compartilhado entre ela - sobretudo quando se refere a pessoas negras, como Isaías - e o nacionalismo. Trata-se da asfixia. Que se lembre das palavras de Lima Barreto na “Breve notícia” - texto que antecede a segunda edição do Recordações - acerca de Isaías: “enriqueceu e será deputado”; “Deus escreve direito por linhas tortas, dizem. Será mesmo isso ou será de lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um espírito tão singular?” (BARRETO, 1961aBARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1961a., p. 43). Já em Triste fim, o que se vê é que a ideia de “nação”1 1 Aqui, seguindo o texto de Lima Barreto, não se fará a distinção entre os termos nação e pátria; nacionalismo e patriotismo. Eles serão encarados como equivalentes. não é qualquer abstração, ela é do tipo mais mortífera, pois retira o ar, a vida da concretude. E, nesse sentido, há uma dupla leitura, pois há dois campos sobre os quais se dá tal atividade de sufocamento. Um central: o protagonista. E um dos efeitos desse sufocamento é o distanciamento, ou o bloqueio, de Policarpo em relação ao segundo campo, um campo marginal, no qual são vistos personagens como Maria Rita, Anastácio e Felizardo. Pressente-se, ainda, uma terceira leitura, uma que permite seguir, ao mesmo tempo, o caminho de Policarpo em paralelo a outros dois: o de Ismênia e o de Olga.

Mas que se caminhe com calma e se apresente Policarpo: podia-se prever sua movimentação como a de um “fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 17): “na casa do Capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: ‘Alice, olha que são horas; o Major Quaresma já passou’” (p. 17). “Os seus hábitos burocráticos faziam-no almoçar cedo; e, embora estivesse de férias, para os não perder, continuava a tomar a primeira refeição de garfo às nove e meia da manhã” (p. 27). Fala-se muito de Policarpo como um Dom Quixote. O próprio Lima Barreto enfatiza que os “críticos generosos só se lembravam diante dele do Dom Quixote” (BARRETO, 1956BARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956., p. 181). Mas parece ser cabível - ou, no mínimo, possível - falar em um Immanuel Kant: levou uma vida “mecanicamente ordenada”2 2 Tradução minha. No original: “mechanically ordered”. (HEINE, 2007HEINE, Heinrich. On the History of Religion and Philosophy in Germany and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 79); nem mesmo o relógio da catedral era tão regular em seu trabalho quanto Kant. “Levantar-se, tomar café, escrever, dar aulas, comer, andar: tudo tinha seu tempo definido, e os vizinhos sabiam que eram exatamente três e meia quando Immanuel Kant […] aparecia em sua porta”3 3 Tradução minha. No original: “Getting up, drinking coffee, writing, giving lectures, eating, walking: everything had its set time, and the neighbors knew that it was exactly half past three when Immanuel Kant […] emerged from his front door[.]”. (HEINE, 2007HEINE, Heinrich. On the History of Religion and Philosophy in Germany and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 79). Tão “intensa tinha sido a uniformidade de sua vida e de seus hábitos, que a mínima inovação no arranjo de objetos tão insignificantes quanto um canivete ou uma tesoura era suficiente para perturbá-lo” (DE QUINCEY, 2011DE QUINCEY, Thomas. Os últimos dias de Immanuel Kant. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 43). Cabe ainda notar que no prefácio da primeira edição do livro de Heinrich Heine (2007HEINE, Heinrich. On the History of Religion and Philosophy in Germany and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.) sobre história da religião e da filosofia na Alemanha, no qual aparece a descrição de Kant, informa-se que aquelas páginas foram escritas, originalmente, para o periódico francês Revue des Deux Mondes que, como se sabe, era lido por Lima Barreto. Além disso, e sobretudo, pode-se ver a nação, no Triste fim, como um juízo a priori, tido como necessário e universal, independente da experiência; e mais, todo o trajeto de Policarpo parece guiado por um imperativo categórico, algo a ser obedecido como uma lei moral absoluta, não importando suas consequências: aquilo pelo qual, quem o segue, deve ser uma pessoa pronta a morrer por ele. Adelaide, irmã de Policarpo, chama, corretamente, tal imperativo de mania. E, assim como se diz sobre a filosofia kantiana, tal “secura abstrata”4 4 Tradução minha. No original: “abstract dryness”. (HEINE, 2007HEINE, Heinrich. On the History of Religion and Philosophy in Germany and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 88) possui graves consequências.

Já na epígrafe do livro, lê-se que o maior inconveniente da vida real, o que a torna insuportável para um homem superior, é que quando este busca transportar para ela os princípios do ideal, suas qualidades transformam-se em defeitos, de um modo que tal homem íntegro se sai menos bem que aquele cuja força é o egoísmo ou a rotina vulgar5 5 A epígrafe é um trecho do Marc Aurèle, de Renan: “Le grand inconvénient de la vie réele et ce que la rend insupportable à l'homme supérieur, c'est que, si l'on y transporte les principes de l'ideal, les qualités deviennent des défaults, si bien que fort souvent l'homme accompli y réussit moins biens que celui a pour mobiles l'egoisme ou la routine vulgaire”. . Essas palavras são comumente usadas, de modo explícito ou não, como justificativa ao tratamento dado a Policarpo. Seria um homem superior, guiado por princípios derivados de um ideal e, por isso mesmo, mal compreendido. Tal homem é, na batalha contra seu próprio tempo, derrotado. Mas cabe atenção. Primeiro, parece pertinente a leitura da crônica intitulada “Meia página de Renan” (BARRETO, 2004BARRETO, Lima. Meia página de Renan. In: RESENDE, Beatriz; VALENÇA, Rachel (orgs.). Toda crônica: Lima Barreto, v. 1(1890-1919). Rio de Janeiro: Agir, 2004. p. 533-536.), publicada originalmente no ano de 1919, publicação posterior à de Triste fim em folhetins (no ano de 1911) e em livro (no ano de 1915), mas que pode reforçar uma proposta de interpretação da epígrafe. Trata-se de um comentário sobre a publicação da tradução de um trecho da obra La réforme intellectuelle et morale de Renan. Além de criticar “generalizações apressadas” (BARRETO, 2004, p. 535) do autor acerca de pessoas negras e chinesas, Lima Barreto diz que esse e outros erros cometidos na obra são derivados da “paixão patriótica”, que, “como todas as paixões, cega, mais do que nenhuma outra, porém, ela é sáfara e estéril” e, complementa, ela “nos faz julgar mal os semelhantes” (p. 536). Além disso, e sobretudo, parece necessário cotejar a epígrafe com o próprio projeto político-literário de Lima Barreto: será que o grande inconveniente da vida real seria a impossibilidade de ela ser formatada de acordo com certos princípios e ideias? Ou será que se trata de aprender como a idealidade pode ganhar concretude, e utilidade, no contato com as existências, e estas podem se enriquecer, ganhar virtualidade, quando passam a forjar ideais? Não parece descabido dizer que é esse o caso. Que se tente demonstrar, então.

“Policarpo Quaresma. Ideia que mata. A decepção. O prêmio” (BARRETO, 1956BARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956., p. 145). Tal é o resumo da obra feito em seu Diário íntimo. A ideia que mata, mas o faz aos poucos. A decepção rompe quando, graças às últimas forças vitais, percebe-se que se morre. Mas ainda há tempo. Policarpo vê que a “Pátria que quisera ter era um mito” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 166). Vê que o que lhe movia, na verdade reduzia sua visão, fazia-o girar em círculos: como “é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência?” (p. 167).

Há algo mais, um questionamento que apontará para o prêmio: “quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?” (p. 167). Se Policarpo aprende, se ele passa a ver, se chega à ideia que a noção de pátria “fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições…” (p. 167), seu aprendizado se dá graças a seu trajeto pavimentado por decepções. Vê-se, aqui, em funcionamento no protagonista, o ciclo próprio da literatura de Lima Barreto: um ciclo entre sentimentos e ideias. O autor sabe que a “linguagem direta é incapaz de comunicar a experiência de existir” (HADOT, 2006HADOT, Pierre. Elogio de Sócrates. Cuauhtémoc: Me Cayó el Veinte, 2006., p. 50)6 6 Tradução minha. No original: “El lenguaje directo es incapaz de comunicar la experiencia del hecho de existir”. , que perante a existência toda a linguagem é banal; mas, ao mesmo tempo, sabe que por meio dessa banalidade que se pode concretizar a tarefa mais profunda: traçar linhas que conectem, sem homogeneizar, as existências mais distantes e diversas. Por isso há toda uma linguagem sentimental em Lima Barreto. Trata-se de, pelo mais banal, pelo mais comum - os sentimentos - retorcer a língua, dar consistência às linhas de conexão, fazer com que se aprenda indiretamente: quanto mais conexões “mais nos amaremos mutuamente, ganhando com isso a nossa inteligência, não só a coletiva como a individual” (BARRETO, 2017BARRETO, Lima. O destino da literatura. In: RESENDE, Beatriz(org.). Impressões de leitura e outros textos críticos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017. p. 265-282., p. 279). Sentimentos e ideias; amar e aprender, pois uma “pura ideia só como ideia tem fraco poder sobre nossa conduta, assim expressa sob a forma seca que os antigos chamavam de argumentos”, “é preciso que esse argumento se transforme em sentimento” (p. 274), a literatura “mais que nenhuma outra arte”, possui “essa capacidade de sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve” (p. 275). Tal é o ciclo, que só pode ser compreendido em Triste fim se a atenção for voltada, também, à afilhada de Policarpo, Olga. Pois, quem lê trilha um caminho duplo: o de decepções e de aprendizado de Policarpo; o de aprendizado e transformação de Olga. Não é por acaso que o último capítulo do livro é intitulado “A afilhada”. Eis o prêmio: Olga desperta, e o faz graças ao aprendizado obtido junto ao trajeto, à existência, de Policarpo. Mas o protagonista não pode ver tal despertar. Por isso a resposta a seu questionamento - “quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 167) - é uma interrogação incrédula, tendendo à negativa. Policarpo aprende qual foi seu erro, mas não vê o fruto de sua existência.

Talvez seja o caso de fazer uma proposta. Que se some à epígrafe escolhida pelo próprio autor uma segunda, que possa acompanhar a trajetória do protagonista: “Quanto maior é um homem, tanto mais está sujeito à influência dos demônios, e tem de tomar sempre atenção para que a vontade que o conduz não tome por caminhos desviados” (ECKERMANN, 1990ECKERMANN, Johann Peter. Conversações com Goethe. Lisboa: Vega, 1990., p. 207).

Demonstrou-se que o nome de Policarpo Quaresma guarda grande complexidade (SANTIAGO, 1982SANTIAGO, Silviano. Uma ferroada no peito do pé. (Dupla leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma). In: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 163-181.). Policarpo seria o que tem ou produz muitos frutos: “é preciso não esquecer que o major, depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e reflexões, chegava agora ao período a frutificação” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 27). Seu “triste fim” se dá pois, apesar dos “impulsos imperiosos de agir, de obrar e de concretizar suas ideias” (p. 27), não produzira nenhum fruto. Daí carpir ao final do livro - seu sacrifício, seu “holocausto” em vida, pela pátria, foi em vão. Recordou-se, ainda, que Quaresma são os quarenta dias, posteriores ao sacrifício de Cristo, em jejum; como também o nome de um coqueiro típico do Brasil, um símbolo da pátria. O nome Policarpo Quaresma seria já signo da futura derrota. No entanto, há uma abertura: “faltou”, nessa demonstração, “a consideração de que o fim da quaresma é o início da Páscoa e que com ela há a possibilidade de ressurreição, ou seja, de fato há a morte, mas Policarpo deixa pequenos frutos, ou o ‘prêmio’” (PACHECO, 2007PACHECO, Keli. Policarpo Quaresma: do fim triste ao prêmio. Uniletras, Ponta Grossa, v. 29, p. 141-157, 2007. Disponível em:Disponível em:http://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/view/178/177 . Acesso em: 27 abr. 2019.
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): o despertar de Olga. É Ricardo Coração dos Outros, trovador amigo do major, que, ao admirar a superioridade de Olga, torna nítido o ponto no qual culmina o processo de aprendizado e modificação: “pensou com admiração naquela moça que por simples amizade se dava a tão arriscado sacrifício [tentar impedir a execução de seu padrinho], que tinha a alma tão ao alcance dela mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, desse nosso ­egoísmo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento” (­BARRETO, 1997b, p. 171).

Se há um princípio de sacrifício que valha ser seguido, não é aquele por um ideal vazio, mas sim aquele pela existência, pelo ideal das existências. Como mostra Olga ao responder à manifestação de seu marido contrária à tentativa, por ela pretendida, de salvar seu padrinho: “Fazes mal”, ele diz. “Por quê? Perguntou ela com calor”. “Vais comprometer-me. Sabes que…”. Ele não finaliza a frase, mas não porque Olga o interrompe. Ela ouve suas palavras, olha-o por certo tempo. Rindo, desfere: “É isso! Eu, porque eu, porque eu, é só eu para aqui, eu para ali… Não pensas noutra coisa… A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti…” (p. 172). E é pertinente lembrar: Armando, o marido de Olga, é aquele que faz uso do processo de escrita do clássico. Que se repita a descrição do meio pelo qual ele “obtinha o seu estilo clássico”: “escrevia de modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas” e, não sendo o bastante, “substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós” (p. 131). Armando é um dos pontos de acúmulo no romance no qual se pode ver a relação entre política e literatura: a expansão de um ideal vazio, o eu, a pessoalidade (ARAÚJO, 2019ARAÚJO, Erick. Recordações do escrivão Isaías Caminha: a literatura ficcional de testemunho de Lima Barreto. Remate de Males, Campinas, v. 39, n. 1, p. 403-422, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8652207/20887 . Acesso em: 20 mar. 2020.
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), sobre todo o socius, sobre todo o campo material e imaterial das conexões e das possibilidades de conexão entre as existências: eu, porque eu, porque eu...

Mas logo se vê que os ideais vazios se revezam e, nesse revezamento, mostram uma de suas funcionalidades, o julgamento. Julga-se o país desde a pessoalidade - “este país não vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento, pedindo honras de tenente-coronel, está no ministério há seis meses” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 44); julgam-se as pessoas desde a pátria - “o senhor não é patriota” (p. 99); as atitudes desde sua correspondência com os títulos - “um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: ‘se não era formado, para quê? Pedantismo!’” (p. 17). Julga-se tudo, julgam-se todos, de todos os lados, desde o vazio.

Deve-se, aqui, usar o vocabulário do romance. Um ideal vazio nada mais é do que uma mania. E muitas manias atravessam o livro. Adelaide não para de tentar mostrar a seu irmão, Policarpo, que ele, na verdade, é movido por manias: “Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com suas manias” (p. 19); “é uma mania do seu amigo, Sr. Ricardo, está de só querer coisas nacionais” (p. 24). Deve-se ouvir Adelaide. Vê-se que além da mania patriótica de Policarpo, há a mania da escrita clássica de Armando; a mania histórica do general Albernaz, que repetia incessantemente a narração sobre a guerra da qual não participou; a mania do casamento, que destrói Ismênia; a mania do violão de Ricardo, cujo aborrecimento não é pouco ao se deparar com um trovador negro fazendo modinha de um jeito diferente, “dizendo algo”, teorizando; a mania dos títulos e a da pessoalidade, espalhadas entre muitos personagens, não só desse romance, mas de toda a obra de Lima Barreto.

Tais manias possuem consequências. Uma dentre elas é, exatamente, o bloqueio. Um específico, aquele que impede que se conecte à alteridade (mesmo aquela que habita quem diz eu). Não é à toa que, em duas situações de morte no romance, Lima Barreto fala que certos personagens afivelam um sentimento ao rosto. Pode-se dizer, usando um vocabulário sentimental, que se bloqueia a empatia. Há, disso, um caso exemplar. Que se vá ao livro. Ricardo visita a casa de Albernaz. Sua voz e seu violão fazem com que o general e sua família ganhem mais gosto pelas cantigas e festas populares: emerge “em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar à maneira popular dos velhos tempos” (p. 28). Albernaz, em especial, lembra “de ter visto tais cerimônias na sua infância” (p. 28). Logo se pensa na organização de uma festa dentro desses moldes. O major se anima com a significação patriótica de tal empreendimento. Mas uma questão se sobressai: “quem havia de ensaiar, de dar os versos e a música?” Rapidamente uma resposta aparece: alguém lembra de “tia Maria Rita, uma preta velha, que morava em Benfica, antiga lavadeira da família de Albernaz” (p. 28).

Policarpo e Albernaz seguem em direção à casa da mulher. Durante o trajeto, como que compartilhando das críticas do major à falta de apreço pelas tradições nacionais, o narrador diz que as construções vistas não guardavam a história, como das carruagens reais que por ali passavam: não “havia ali nada que lembrasse esse passado” (p. 29). Mas as coisas mudam quando se chega à casa de Maria Rita, pode-se ver, de um lado, restos de cozinha, pedaços de tecido, conchas de mariscos, pedaços de louça artesanal: “um sambaqui a fazer-se para gáudio de um arqueólogo de futuro remoto” (p. 29). Ou seja, se a história imperial se esvai, há outra que se conecta, ao mesmo tempo, com o passado e futuros mais remotos. Uma história de existências que perduram, marcam o relevo terrestre, mesmo com os soluços de uma história vista como aquela de “grandeza”, mas verdadeiramente de uma “lamentável majestade” (p. 29). De outro lado, o que se vê são um mamoeiro e um pé de arruda. Conhecem-se as funcionalidades da arruda: usada como proteção contra o mau-olhado e para a avaliação do ambiente (caso ele esteja carregado, habitado por forças ruins, a planta morre). Por sua vez, o mamão é fruto que dá em abundância e durante o ano inteiro (que se lembre que policarpo é o que dá muitos frutos), sendo tanto o fruto quanto a folha da árvore utilizados em certos trabalhos nas religiões de matriz africana (VERGER, 1995VERGER, Pierre F. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.)7 7 Arrisca-se uma interpretação: um trabalho no qual o fruto e as folhas de mamoeiro são usados tem o objetivo de tomar algo de alguém (cf. VERGER, 1995, p. 411), ou, pode ser possível dizer, tomar de volta alguma coisa de alguém. Se Albernaz vai atrás das lembranças de Maria Rita, cabe lembrar que, após a Abolição, havia um receio, quase que permanente, de que se voltasse a tomar a liberdade das pessoas negras. Arruda e mamoeiro são, ambos, proteções. . Policarpo e Albernaz nada disso veem. Não chama a atenção a parede na qual se sincretizam figuras de santos e recortes de jornais. O interesse dos dois homens é outro.

A mulher aparece após ser chamada por sua neta. Ela diz não reconhecer o general. Ele a relembra, contando-lhe o motivo da visita. Maria Rita parece mostrar, primeiramente, que não seria capaz de ensinar algo ao homem: “quem sou eu, ioiô!” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 30). Ele insiste. “Quá ioiô, já mi esqueceu” (p. 30). O homem mantém o pedido. “Coisa véia, do tempo do cativeiro - pra que sô coroné qué sabê isso?”. “É para uma festa...”, ele responde e persiste, “qual é a que você sabe?”. Parece não haver o que o impeça de recolocar sua vontade até que seja satisfeita. A neta intervém: “Vovó já não se lembra”. Mas o general “não atendeu a observação da moça e insistiu” (p. 30). Parece haver algo que, efetivamente, cria um bloqueio, não é possível atender (ouvir, prestar atenção, levar em consideração, respeitar). Parece que nada é compreendido fora do campo de vontade do general. O loquaz Policarpo se mantém calado, restringindo-se a concordar com Albernaz por meio de um gesto afirmativo com a cabeça. Por uma última vez, Maria Rita afirma que já se esqueceu dessas canções, que para Albernaz eram de festa e, para ela, eram do cativeiro. Mas antes, há uma tentativa de agradar o desejo do visitante: “a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se, e entoou” (p. 31) uma canção. Ao que ele responde, com enfado, que não lhe serve, trata-se de uma canção de ninar.

Tal tentativa por parte de Maria Rita parece significativa. Ao mostrar-se nostálgica em relação aos tempos de escravidão e cantar algo utilizado para embalar o sono das crianças da casa grande como modo de buscar satisfazer seu visitante coronel, Maria Rita faz uma leitura precisa do modo pelo qual o mundo dos brancos recorda-se, e quer recordar, dos tempos da escravidão. Conceição Evaristo, nesse sentido, dá inteligibilidade a um dos pilares da literatura afro-brasileira: “a nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa grande, e sim, para acordá-los de seus sonos injustos” (EVARISTO, 2009EVARISTO, Conceição. I Conferência de Escritoras Brasileiras em Nova York, 2009. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=rR2YXc3sBrI . Acesso em:1º abr. 2019.
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). E há algo mais que a leitura de Maria Rita permite ver. Albernaz fica ainda insatisfeito. Não basta a tranquilidade do sono, mantida graças à manipulação, portanto negação, da história. Ele quer também usar, se apropriar, tomar os cantos para si. Não se trata de aprender, pois muito ele e Policarpo podiam aprender caso “atendessem” ao que Maria Rita e sua neta diziam. É como se tratasse de uma cessão: ele, como portador, passaria a poder levar às festas tais canções.

Os dois homens saem tristes da casa. Mais especificamente, Albernaz “contrariado” “Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções? Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos! Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantê-las vivas nas memórias e nos costumes...” (­BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 31). Era-lhes impossível compreender. O bloqueio é, realmente, eficaz. O patriotismo do protagonista o impedia de ver, sobretudo, a atividade de Maria Rita, ela se esquecia para poder viver. Policarpo faz, portanto, um diagnóstico errado. Não há fraqueza no esquecimento da preta velha, pois esquecer “não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido”; “eis a utilidade do esquecimento”, “um zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta” (NIETZSCHE, 1998NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 47). Não há fraqueza, não há reação, Maria Rita age. Mesmo quando decide cantar, trata-se de dizer, educadamente, que aquilo que Albernaz procura, ela não dará.

Mas não se trata, simplesmente, de bloqueio, de impedir a passagem de algo. Albernaz quer apreender as músicas populares; Ricardo busca a fama junto a seu violão; Policarpo estuda a língua tupi-guarani. Mas todos são incapazes de uma conexão que possa, efetivamente, balançar seu mundo. O encontro com Maria Rita, a aparição de um trovador negro, todo o trajeto do protagonista - são eventos que mostram que, diferentemente de um mero bloqueio, trata-se de filtro, ou de uma absorção, que tende, mesmo, à desvitalização de quem é consumido, mas também de quem consome. E talvez seja este o melhor modo de interpretar a passagem da dissertação Como se deve escrever a história do Brasil: o “sangue português, em um poderoso rio deverá absorver pequenos confluentes das raças índia e etiópica” (VON MARTIUS, 1956VON MARTIUS, K. F. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista de História de América, p. 433-458, 1956. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/20137096?origin=JSTOR-pdf&seq=1#page_scan_tab_contents . Acesso em: 1º abr. 2019.
https://www.jstor.org/stable/20137096?or...
, p. 443). (Quando aqui se falar, então, em corrente central ou de centro, que se recorde dessa imagem do “poderoso rio”; quando se falar de margens, que se lembre dos “pequenos confluentes”). O texto de Von Martius é citado no Diário íntimo de Lima Barreto, localizado no topo da página cuja terceira entrada é, exatamente, a frase: “O triste fim de Policarpo Quaresma” (BARRETO, 1956BARRETO, Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956., p. 147). Tal proximidade, entre a referência à dissertação e o título do livro, pode não dizer muita coisa. Entretanto, pode-se aventar que há uma similaridade procedimental entre o modo de leitura e escrita da história do Brasil como proposto por Von Martius e o que se apresenta em Triste fim. Seu protagonista parte, inicialmente, em busca de uma transformação linguística: que se estabeleça o tupi-guarani como língua geral. Depois, passa à agricultura: que se comprove a suma fertilidade do solo brasileiro. Por último, a administração: que uma certa política e sua burocracia abram as portas para o Brasil mostrar sua verdadeira grandeza. Sabe-se bem dos tristes fins de cada empreitada. O que merece destaque é o que fica às margens, os pequenos confluentes a alimentar uma, suposta, corrente principal.

Policarpo estuda a língua tupi-guarani, busca estabelecê-la como língua geral, e basta, aí para. Mas ele chega perto, quase percebe algo: “Os caboclos”, “gente valente que se bateu e ainda se bate pela posse desta linda terra” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 37). Mas há efetivamente um bloqueio, e um filtro: daí absorve apenas uma língua que seria a genuinamente nacional (que se lembre: o Tupi-Guarani é uma família linguística). Apesar do breve lampejo acerca dos “caboclos”, algo como uma breve fissura no bloqueio, logo se esquece das pessoas falantes - aquelas que se bateram e ainda se batem por suas terras - para se batalhar pela vida do tupi-guarani, a língua, apenas.

As duas outras margens são mais problemáticas no livro, elas se mantêm ao lado, todo o tempo. Que se vá com calma, para que, assim, elas possam ser vistas. Que se fale de Anastácio: “preto” “que lhe servia [Policarpo] há trinta anos” (p. 27); “sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice africana” (p. 154); portador de um “terno e vazio olhar de africano” (p. 94); “antigo escravo” (p. 101). Algumas coisas sobre esse personagem se destacam. Apesar de servir a Policarpo, de se dizer que é “seu empregado” (p. 73), diz-se, também, que Anastácio não é “bem um empregado, mas agregado” (p. 91). Além disso, sabe-se que os eventos do romance culminam na Revolta da Armada, que começa a ebulir no início da década de 1890. Portanto, se Anastácio, o velho africano, serve a Policarpo há 30 anos, o faz desde antes de maio de 1888. Não se sabe se era uma pessoa escravizada pela família do protagonista e que, após a Abolição, sem opções de vida, se mantém (ou seria melhor dizer, é mantido) junto a ela; ou se era um africano, chegado após a proibição do tráfico, escravizado, mas depois encaminhado para trabalho compulsório junto a Policarpo como requisito para uma “emancipação definitiva” (MAMIGONIAN, 2017MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 18); ou se tendo conseguido a alforria passa a ser agregado da família, garantindo, assim, comida e teto. Ou seja, não se sabe muito acerca de Anastácio. Sabe-se, apenas, que fica ao lado de Policarpo e que o serve. Que com ele tem conversas filosóficas. Que trabalha em seu sítio, sob o domínio das formigas, mesmo após começarem a emergir os sinais de que o major não voltará. Sua “mania”, seu “vício”, sua “teimosia de caduco” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 154), é cultivar. Será que se trata aí de mais um ideal vazio?

Pode-se aventar a hipótese que há uma mania, sim, mas não a de cultivo, mas de gratidão, de prestatividade. Hipótese fortalecida pela figura de outro preto velho em uma obra de Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Aí, se conhece “o velho preto Inácio” (BARRETO, 1961bBARRETO, Lima. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Brasiliense, 1961b., p. 87), que servia a Gonzaga. Este o apresenta: “nasceu escravo, uns dias antes de mim; meu pai o libertou na pia, por isso. A mim me acompanha desde os primeiros dias do nascimento. É um irmão de leite” (p. 87). E Gonzaga faz mais uma consideração acerca de Inácio, e aqui a hipótese se fortalece. Em conversa com seu amigo e biógrafo, Augusto Machado, afirma: “Não imaginas, menino, que tesouro de dedicação há nesse homem” (p. 87).

Mas trata-se, ainda, de uma hipótese. Pois mesmo com todos os diálogos, todas as conversas filosóficas entre o “preto velho” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 72) e Policarpo, há um bloqueio, não se sabe muito sobre Anastácio: é africano, mas de onde? O que fazia? E sua família? E há toda a imprecisão marcada pelo termo “agregado”, pelo qual se parece querer mostrar mais a caridade de quem “acolhe” do que o fato de que a pessoa “acolhida”, apesar de todo o possível afeto envolvido em tal relação, se constitui em um empregado. Mas Anastácio é sábio. A imprecisão é desfeita quando ele se dirige a Policarpo usando os termos sinhô e patrão.

Outros elementos acerca de sua relação com Policarpo se destacam. No sítio Sossego, tenta, “apelando para as suas recordações de antigo escravo de fazenda” (p. 72), ensinar ao major os modos de lidar com a terra, o mato e a ler seus sinais e os do clima: “Sabes o que estou fazendo, Anastácio?”, pergunta Policarpo com um pluviômetro em sua mão; “Não sinhô”; “Estou vendo se choveu muito”; Para que isso, patrão? A gente sabe logo de olho quando chove muito ou pouco… Isto de plantar é capinar, pôr a semente na terra, deixar crescer e apanhar…” (p. 73). Policarpo não aprende. Por mais que Anastácio tente. E seu não aprendizado se dá em relação ao trato da terra, mas também, como já se viu, acerca de Anastácio e do papel da escravidão na formação disso que o major diz saber e amar, a pátria brasileira. Há breves fendas: Policarpo vê “com tristeza aquelas velhas árvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas ali… Pareciam sofrer e ele se lembrou das mãos que as tinham plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!…” (p. 104); “a situação geral que o cercava, aquela miséria na população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono da terra à improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas” (p. 102). No entanto, logo para, o pensamento é interrompido, nem se chega perto de mudar a trajetória marcada por sua mania: “não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdecesse”; “Lá se foi” (p. 102).

Durante essas reflexões, marcadas por preocupações angustiosas, Policarpo se pergunta acerca do motivo daquele povo na miséria não se unir; questiona o fato do governo importar “braços” para o trabalho, “sem se preocupar com os que já existiam” (p. 102), ou seja, indaga-se acerca da política governamental de promoção à imigração europeia. Reflete, medita, busca respostas em sua mente. E vê-se, de novo, a superioridade de Olga - em algumas frases trocadas com Felizardo, empregado do major no sítio, tem todas as respostas que Policarpo buscava: “Terra não é nossa… E frumiga?… Nós não tem ferramenta… isso é bom para italiano ou alamão, que governo dá tudo... governo não gosta de nós…” (p. 98). O mesmo Felizardo - “um tagarela incansável” (p. 91) - informa, ou alerta, de seu modo, o patrão sobre a política local. O major até faz algumas perguntas, mas parece não entender o fundamental. Ao perguntar de que lado Felizardo estaria na disputa política local, tem como resposta: “Eu! Sei lá… Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso é bom pro sinhô”; “Eu sou como você, Felizardo”, replica Policarpo; “Quem me dera, meu sinhô. Inda trasantonte ouvi dizê que o patrão é amigo do marechá” (p. 92). O major afirma que não é amigo de Marechal Floriano, apenas conheceu-o. Precisão que, efetivamente, não muda nada para Felizardo, nem para a política local. Logo Policarpo é convidado para tomar um lado na disputa. Ao rejeitar o convite, o protagonista começa a aprender algo que Felizardo já havia ensinado a Olga, e Anastácio, por meio de sua existência, ensinara indiretamente - “a política é a guerra continuada por outros meios” (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 15). E se há uma guerra contra aquelas pessoas como Felizardo e Anastácio, apenas por existirem, Policarpo é nela incluído, não enquanto inimigo, mas rival: “acreditavam todos que o major viera para ali no intuito de fazer política, tanto assim que dava esmolas, deixava o povo fazer lenha no seu mato, distribuía remédios homeopáticos…” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 96).

Ao ser alvo de intimações e multas, Policarpo, percebendo que havia aí uma “vingança mesquinha”, volta-se para uma “necessidade de trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração”; seria preciso, mesmo, “um governo forte, até a tirania… Medidas agrárias…” (p. 110). Mostra-se, novamente, um bloqueio. Mesmo com as fendas que fazem Policarpo ver, de relance, as “mãos que as tinham plantado há vinte ou trinta anos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!…”; mesmo com as fissuras pelas quais, como um vislumbre, mostram-se aqueles e aquelas que se debateram e ainda se debatiam por seus territórios; o que faz o protagonista se mover não é a usurpação do trabalho e da terra desses grupos. O que o impulsiona é o fato de passar a ser alvo dessa vingança político-burocrática. O que direciona seu movimento é a notícia sobre os eventos que viriam a constituir a Revolta da Armada. O major, então, se dirige à capital no intuito de propor uma reforma político-administrativa a Floriano Peixoto, reforma que permitiria que as pessoas trabalhassem e que o Brasil crescesse, afinal para o major os problemas centrais seriam esses. No entanto, sua proposta é desprezada e acaba por ver-se major em um batalhão. Assim, Lima Barreto faz coexistir, ou melhor, faz ver o ciclo no qual a guerra é a continuação da política por outros meios e esta, por sua vez, não é nada além da continuação da primeira por outros caminhos.

Há outra margem, uma terceira. Sem ela parece ser difícil compreender de modo satisfatório as figuras de Olga e de Policarpo, como também a funcionalidade da mania. Trata-se de Ismênia. A primeira pergunta que lhe é feita, assim que aparece no livro, não pode ser desprezada: “então, quando te casas?” (p. 26). Não pode ser desprezada, pois logo fica-se sabendo que “tinha sempre que responder à famosa pergunta”, “era a pergunta que se fazia sempre” (p. 26). Apesar da repetição incessante, Ismênia não se incomoda, afinal “na vida, para ela, só havia uma coisa importante: casar-se” (p. 26). E o fato de estar noiva parece trazer-lhe calma. Não, não calma… Frieza, indiferença, lassidão são os termos que começam a pulular para descrever seu estado. Começa a se delinear o triste fim de Ismênia, que correrá em paralelo ao do protagonista.

O noivo de Ismênia some, ela enlouque, definha e morre. Ao perceber a proximidade de seu fim, faz um último pedido a sua mãe: “ir vestida de noiva” (p. 151), algo previsto ao se conhecer o teor de sua loucura, ou melhor, de sua mania: “se penteava toda, enfeitava-se e corria à mãe, dizendo: ‘apronta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar… é hoje meu casamento’” (p. 130). Seus familiares recorrem a todo tipo de ajuda, no entanto ela “não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu espírito naquela obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que não atingira, aniquilando-se, porém, o seu espírito e a sua mocidade em pleno verdor” (p. 130). Sua “mania parecia um pouco atenuada”, nos instantes próximos a seu fim, enquanto “seu organismo caía” (p. 130), contudo vem o pedido à mãe, reafirmando o que lhe fazia morrer.

Há um enunciado que se destaca: “alvo que fizeram ser da sua vida”. Deve-se ter atenção ao verbo na terceira pessoa do plural. A partir dele que se poderá entender a origem da mania no romance. Trata-se de uma segunda natureza que, aos poucos, por um trabalho permanente, passa à primeira (não é à toa que Ismênia definha e morre). Um trabalho ininterrupto ilustrado pelas inúmeras vezes que a ela se pergunta: “então, quando se casa, D. Ismênia?” (p. 37). E tudo se torna mais nítido quando se sabe que “desde menina, ouvia a mamãe dizer: ‘Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar…’ ou senão: ‘Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar…’” (p. 38). Algo ininterrupto: “a todo instante e a toda a hora, lá vinha aquele - ‘porque quando você se casar…’” (p. 38). E, por fim, “a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento” (p. 38). Vê-se bem como um dever moral, “uma ideia, uma pura ideia” (p. 38), passa de segunda à primeira natureza. Aos poucos a “vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias” para Ismênia, pois casar-se mostrava-se “uma espécie de dever” e “não se casar, ficar solteira, tia, parecia-lhe um crime, uma vergonha” (p. 38). Assim, se por um lado tem-se uma existência não só guiada, mas constituída para o casamento; de outro, emerge a figura que daria pleno sentido a tal modo de existir, o noivo. Aquele ao qual a futura esposa passa a deitar um “olhar de gratidão” (p. 33). (Nesse sentido, Lima Barreto faz ver, quando se coloca lado a lado Ismênia e Clara dos Anjos (BARRETO, 1997aBARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997a.), os modos pelos quais os efeitos das manias distinguem mulheres brancas e negras. Mostra-se com a primeira que as mulheres brancas são formadas enquanto objetos frágeis e valiosos para o casamento; as mulheres negras, como é o caso de Clara, são vistas, por um lado, enquanto meros objetos a serem usados, e por outro, enquanto sedutoras maléficas, ou seja, não há fragilidade nem valorização, há apenas uso e culpabilização).

Ora, vê-se bem que a mania é “coisa-feita”, como diz uma “velha preta a chorar” (­BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 62) a Olga e seu pai, na saída do hospício. Dá-se a entender que o filho da mulher está internado ali, no mesmo manicômio onde um dos internos é Policarpo. A mania é “coisa-feita”, é um trabalho. Não por acaso, o capítulo onde aparece a visita de Olga e seu pai ao protagonista no hospício intitula-se “O bibelot”. Artefato frágil como aquele quebrado por Ricardo Coração dos Outros no final do capítulo, enquanto D. Adelaide conversa com Ismênia, tendo dela uma resposta negativa à pergunta acerca do recebimento de alguma carta do noivo desaparecido. Produto de natureza rúptil, o bibelot é, a um só tempo, Ismênia e Policarpo. Existências forjadas para assumirem deveres morais - o casamento e o patriotismo - cujos destinos acabam por evidenciar o caráter de mania dessas ideias vazias, diferentes entre si, mas ambas enfraquecedoras, mesmo mortificantes. Portanto, não é à toa que “o major se sentia por qualquer coisa preso à moléstia da moça” (BARRETO, 1997b, p. 142).

E, assim, chega-se à última margem: Policarpo Quaresma. Mas antes, algumas coisas precisam ser lembradas. Se são enfatizados os tristes fins de Policarpo e Ismênia, apontando o enfraquecimento decorrente de suas manias, vê-se, ao longo do livro, que o funcionamento das manias é generalizado. Seu principal efeito, o bloqueio, e a decorrente incapacidade de conexão, de empatia, mostra-se em muitas ocasiões: quando se diz que os sentimentos são afivelados aos rostos, quando mulheres conversam sobre lugares para compras de casamento durante o velório de Ismênia e, por fim, quando se conhece a indiferença generalizada perante a prisão e muito provável morte do major, tornada explícita pela busca de Ricardo Coração dos Outros por alguém que possa ajudar a tirar seu amigo da cadeia. Por isso dizer que a desvitalização enquanto fruto de bloqueios e filtros das manias é generalizada. E se os danos, materiais e imateriais, são mais graves entre os grupos às margens, o empobrecimento existencial é descomunal entre os que estariam na corrente central. Afinal, enquanto as margens encontram seus meios - como é exemplo a arte enquanto expressão de suas existências - para fazer a vida prevalecer mesmo nos contextos mais difíceis; o tal centro tende a se constituir pela apropriação de certos elementos e, ao mesmo tempo, pelo distanciamento em relação a essas margens. Apropriação e distanciamento que tendem ao esvaziamento existencial. E há, nesse sentido, uma passagem ilustrativa, que se conecta àquela de Maria Rita. Em conversa com Policarpo, Albernaz diz que tem tentado tudo para curar sua filha, Ismênia: “tenho corrido médicos, espíritas, até feiticeiros” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 144). Estes últimos, em geral, são “pretos africanos” (p. 144). Um dentre eles, responde a D. Maricota que se trata de feitiço o que atinge sua filha Ismênia. Mas ao ser perguntado sobre quem seria o responsável, responde que o Santo não quer dizer. E se lê: “o preto obscuro, velho escravo, arrancado há um meio século dos confins da África, saía arrastando a sua velhice e deixando naqueles corações uma esperança fugaz”. O Santo não precisa dizer; a resposta está dada: a coisa-feita, o feitiço, é, exatamente, a mania, esse tornar-se pleno de vazio que constitui o centro; as apropriações e os distanciamentos - os títulos, as distinções, os ritos… -, toda a superficialidade tornada âmago cobra seu preço. E, talvez, ao deixar uma esperança fugaz, o “velho escravo” não quer dizer outra coisa senão algo como: “suas manias já nos fizeram sofrer muito, que agora sejam vocês que paguem por elas”.

Há algo mais. Que se volte a Policarpo. Há, nele, algo de diferente. Não se deve desconsiderar a epígrafe do livro, apenas complementá-la para o melhor entendimento do protagonista - um homem superior, e por sê-lo, mais vulnerável aos piores demônios, no seu caso, o nacionalismo. Não é tanto seu caminho, guiado por sua mania e marcado por decepções, que marca a distinção de Policarpo enquanto integrante dessa corrente central, mas sim as brechas que quase o fazem desviar. E mesmo que não o tenham feito, fomentam, junto às decepções, seu aprendizado ao final. Brechas que, quando já indo ao encontro de Floriano Peixoto, fazem-no lembrar, sobretudo, de Anastácio, “o seu preto velho” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick; O Globo, 1997b., p. 123), que o prendem à infelicidade e à moléstia de Ismênia. E aqui, de certa forma, as expressões utilizadas para descrever Floriano Peixoto podem ser usadas, adequadamente, em relação ao protagonista: “homem-talvez” (p. 126), algo como um promotor de “encruzilhadas dos talvezes” (p. 125). Nos dois há algo como um bloqueio de última hora às possibilidades. E há, ainda, algo que os mantém em dois pontos do espectro do nacionalismo: o do dever, no caso de Policarpo; e o da preguiça, principalmente a preguiça de pensar, no de Peixoto. Fazendo-os coabitar o mesmo campo daqueles que, com a revolta, fazem ver de modo explícito a sinonímia entre nacionalismo, interesse pessoal e certa psicopatia: “todos mandavam; a autoridade estava em todas as mãos”; “surgiam as vinganças mesquinhas, a revide de pequenas implicâncias”; “em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana”; “funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo… Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem responsabilidades…” (p. 114). Há toda uma tipologia do nacionalismo no livro, sobre um plano comum de mortificação. E Policarpo, aos poucos, vai chegando a essa conclusão: de dúvidas pontuais acerca da pátria passa à desilusão completa - e ao aprendizado - quando se vê carcereiro de uma prisão na qual não se mantinham os “chefes e superiores” (p. 163) do lado derrotado nos embates da revolta, mas “gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer, gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miséria”, “simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê dos vencedores” (p. 163). Logo Policarpo vê que a “vitória tinha feito os vitoriosos inclementes e ferozes” (p. 168): acompanha a separação de prisioneiros para a execução e logo passa, depois de protestar contra esses assassinatos, ele mesmo, a prisioneiro marcado para morrer.

Sabe-se que há, em Lima Barreto, um ciclo de sentimentos e ideias; meio pelo qual a literatura pode cumprir seu destino: fazer com que os ideais de fraternidade, de justiça e de entendimento mútuo entre a humanidade tornem-se sensíveis, assimiláveis, comuns, que se vá “de poucos a todos” (BARRETO, 2017BARRETO, Lima. O destino da literatura. In: RESENDE, Beatriz(org.). Impressões de leitura e outros textos críticos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017. p. 265-282., p. 280). E não é diferente com Policarpo Quaresma: um “amor da Pátria tomou-o por inteiro”, mas “o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil” (p. 20), algo que o leva aos livros, que forram as paredes de um vasto aposento de sua casa, todos acerca do Brasil - por isso “Quaresma só sabia história do Brasil” (p. 141). As palavras, portanto, acabam por encrustar em P­olicarpo Quaresma sua mania - que se lembre, a mania é “coisa-feita”. Contudo, repete-se o ciclo ao final, com um resultado diverso. Ao se dar conta do processo de execução dos prisioneiros, tudo muda: “aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais. Desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana”, e assim escrevera a carta em protesto às mortes, “enviada ao presidente com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente” (p. 165). Sentimentos e palavras o condenam à mania, cerrando seu espírito; sentimentos e palavras o libertam, fazendo-o ser encarcerado e marcado para morrer. Sentimentos e palavras, veneno-remédio: phármakon. Há algo do destino de Sócrates presente no de Policarpo, já que se pode aventar que a cicuta matou o primeiro, mas também o libertou. E, nesse sentido, há no livro de Lima Barreto uma proposta de leitura à dicotomia entre corpo e espírito, como apresentada no Fédon (PLATÃO, 1996PLATÃO. Fédon (ou da alma). In: PLATÃO. Diálogos. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.): há um ciclo, ou seja, uma via de comunicação bidirecional entre ambos, fazendo com que a funcionalidade de veneno, ou de corruptor, não se restrinja ao corpo sobre o espírito, e seja ativa nos dois. Além disso, e talvez sobretudo, há mais um aspecto, lato sensu, socrático: o fato de que em Triste fim se vê que o aprendizado se dá sempre junto às existências, por meio de um diálogo, mesmo que a-significante, entre elas. Se a mania de Policarpo o impedia de compreender propriamente o Brasil, bloqueava-o em relação às margens - populações indígenas, negras, mulheres, pobres do campo e da cidade -, pouco a pouco, por meio das brechas estabelecidas em um contato marginal, o major se transforma e aprende, passando a ver, precisamente, o modo pelo qual o Brasil funciona, modo ilustrado pela passagem do major a carcereiro e pelo momento que acompanha a seleção dos prisioneiros para execução. Desse modo, se há triste fim de Policarpo Quaresma, aguarda-se uma continuação, um aprendizado generalizado, algo que seria similar à narrativa sobre Sócrates: “passados alguns anos os atenienses se arrependeriam da condenação e honrariam Sócrates com uma estátua junto aos grandes heróis da cidade” (BENOIT, 2018BENOIT, Hector. Sócrates. In: CORNELLI, Gabriele; LOPES, Rodolfo (orgs.). Platão. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018. p. 135-149., p. 137). Similar, pois muitas deveriam ser as estátuas juntas a de Policarpo, que de protagonista seria encarado de modo mais adequado: um aliado. E, ainda, se há, por um lado, o triste fim de Policarpo Quaresma - e o triste fim de Ismênia -, há, por outro, algo como a aurora de Olga, explícita no momento que enfrenta seu marido, que surpreso não pensa outra coisa ao ser por ela confrontado: “então aquela menina? Então aquele bibelot? Quem lhe teria ensinado tais coisas?” (BARRETO, 1997bBARRETO, Lima. Clara dos Anjos e outras histórias. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997a., p. 172). Olga não foi ensinada, mas aprendeu junto à, ou a partir da existência de seu padrinho. Não é por acaso que, ao recordar-se do padrinho, lembra-se “do seu eterno sonhar, da sua ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas ideias, da sua candura de donzela romântica…” (p. 170). Ela aprende da fraqueza e da força de Policarpo. E daí pode, diferentemente dele e de Ismênia, não se deixar formar, e quebrar, como um bibelot.

Referências

  • ARAÚJO, Erick. Recordações do escrivão Isaías Caminha: a literatura ficcional de testemunho de Lima Barreto. Remate de Males, Campinas, v. 39, n. 1, p. 403-422, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8652207/20887 Acesso em: 20 mar. 2020.
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    » https://www.jstor.org/stable/20137096?origin=JSTOR-pdf&seq=1#page_scan_tab_contents
  • 1
    Aqui, seguindo o texto de Lima Barreto, não se fará a distinção entre os termos nação e pátria; nacionalismo e patriotismo. Eles serão encarados como equivalentes.
  • 2
    Tradução minha. No original: “mechanically ordered”.
  • 3
    Tradução minha. No original: “Getting up, drinking coffee, writing, giving lectures, eating, walking: everything had its set time, and the neighbors knew that it was exactly half past three when Immanuel Kant […] emerged from his front door[.]”.
  • 4
    Tradução minha. No original: “abstract dryness”.
  • 5
    A epígrafe é um trecho do Marc Aurèle, de Renan: “Le grand inconvénient de la vie réele et ce que la rend insupportable à l'homme supérieur, c'est que, si l'on y transporte les principes de l'ideal, les qualités deviennent des défaults, si bien que fort souvent l'homme accompli y réussit moins biens que celui a pour mobiles l'egoisme ou la routine vulgaire”.
  • 6
    Tradução minha. No original: “El lenguaje directo es incapaz de comunicar la experiencia del hecho de existir”.
  • 7
    Arrisca-se uma interpretação: um trabalho no qual o fruto e as folhas de mamoeiro são usados tem o objetivo de tomar algo de alguém (cf. VERGER, 1995, p. 411), ou, pode ser possível dizer, tomar de volta alguma coisa de alguém. Se Albernaz vai atrás das lembranças de Maria Rita, cabe lembrar que, após a Abolição, havia um receio, quase que permanente, de que se voltasse a tomar a liberdade das pessoas negras. Arruda e mamoeiro são, ambos, proteções.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2019
  • Aceito
    21 Jul 2020
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