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O Antropoceno na perspectiva da análise histórica: uma introdução

The Anthropocene from the Perspective of Historical Analysis: An Introduction

El Antropoceno en la perspectiva del análisis histórico: una introducción

“na História, mas na direção inflexível das realizações terrenas.

Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo.”

(ANDRADE, 2011 [1944]ANDRADE, Oswald de [1944]. Meu testamento. In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011., p. 84)

A ideia de Antropoceno, na sua diversidade de interpretações e mesmo de terminologias, vem requalificando e colocando em um nível mais alto de abrangência teórica o debate contemporâneo sobre os temas ditos ambientais. Os inúmeros conflitos, discussões, políticas e ações coletivas que se relacionam com essa temática nas últimas décadas, em geral analisadas de forma fragmentada e setorializada, passaram a ser vistas como indicadores de uma mudança histórica e epistemológica muito mais profunda; uma mudança radical no próprio patamar da presença humana no planeta. Trata-se de um momento de entrada da história humana na dinâmica da Terra e da dinâmica da Terra na história humana. E também, exatamente por conta dessa nova realidade, da necessidade de um diálogo muito mais intenso e criativo entre as ciências naturais e as humanidades. Ou então, indo mais além, do imperativo de construir uma compreensão renovada da condição humana que rompa com as barreiras rígidas entre as diferentes disciplinas e saberes.

O lançamento formal do grande debate público sobre o Antropoceno é bastante recente. Ele data do ano 2000, por meio de um pequeno artigo do geoquímico Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel em 1995, e do ecólogo Eugene Stoermer. Dois pontos merecem ser destacados nesse episódio. O primeiro deles é que, apesar de Crutzen ter formalizado a proposta para a comunidade científica dois anos depois, na revista Nature, seu lançamento se deu através de um boletim de divulgação chamado Global Change Newsletter, ligado ao projeto IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme). Ou seja, a ideia desde o início buscou o debate público e, de certa forma, estava vocacionada para uma ampliação rápida e dilatada no seu uso social. O segundo ponto diz respeito à sua própria historicidade. Pode-se dizer que o conceito de Antropoceno não é uma formulação teórica pura e atemporal (se é que tal coisa existe), mas se relaciona diretamente com uma série de dinâmicas e possibilidades singulares da história do tempo presente. Nas últimas décadas do século XX, valendo-se do forte crescimento da oferta de indicadores coletados nas mais diferentes latitudes e, também, é importante frisar, dos novos meios técnicos fornecidos pelos avanços da informática, alguns projetos foram organizados com o objetivo de agregar e sintetizar os dados sobre transformações sociais e condições ecológicas em nível planetário. É o caso, por exemplo, do esforço precoce do relatório Limites do crescimento, publicado em 1972 por cientistas do MIT (MEADOWS; RANDERS; MEADOWS, 2004MEADOWS, Donela; RANDERS, Jorgen; MEADOWS, Dennis. The Limits to Growth - The 30-Year Update. Chelsea Green Publishing, 2004.), e de projetos como o já mencionado IGBP, criado em 1987. Em uma iniciativa que seria impossível em momentos anteriores da história, a agregação desses dados globais, especialmente por meio de tabelas e curvas, permitiu visualizar quantitativamente as enormes mudanças no tamanho da população, no consumo de recursos e no estabelecimento de gigantescos fluxos de matéria e energia que precisam ser movimentados cotidianamente para reproduzir um sistema internacional em intenso processo de globalização.

De maneira geral, os dados revelavam um crescimento considerável das curvas a partir das revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX e uma expansão vertiginosa, com as curvas quase tendendo para a vertical, a partir de 1945/1950. Esse período mais recente passou a ser chamado de “Grande Aceleração” (STEFFEN et al., 2015STEFFEN, Will; BROADGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen; LUDWIG, Cornelia. The Trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration. The Anthropocene Review, v. 2, n. 1, p. 1-18, 2015.; MCNEILL; ENGELKE, 2014MCNEILL, JOHN; ENGELKE, Peter. The Great Acceleration: An Environmental History of the Anthropocene since 1945. Cambridge: Harvard University Press, 2014.). O ponto central da ideia de Antropoceno é que no contexto dessas mudanças, observadas em nível agregado, a ação humana passou a influenciar e modificar as estruturas fundamentais do chamado Sistema Terra (para uma história crítica desses conceitos, ver Veiga, 2019VEIGA, José Ely da. O Antropoceno e a ciência do sistema Terra. São Paulo: 34, 2019.). Dessa maneira, os seres humanos se tornaram pela primeira vez um grande agente geofísico, alterando a própria estratigrafia geológica do planeta. Com base na classificação hoje adotada - baseada em éons, eras, períodos e épocas - estaríamos saindo da época Holoceno, que vigorou em torno dos últimos 11.700 anos, e entrando no Antropoceno.

O impacto dessa revolução conceitual vem sendo enorme. Do ponto de vista da institucionalidade científica, a adoção do Antropoceno como época geológica atual está sob escrutínio da Comissão Internacional de Estratigrafia, no âmbito da União Internacional de Ciências Geológicas. Foi esse campo, aliás, que apresentou uma das recepções mais comedidas. A discussão promete ser longa e rigorosa antes de um posicionamento científico formal. Existem questionamentos externos, além disso, quanto à possibilidade da geologia definir por si só a “verdade objetiva” do Antropoceno, já que grande parte das evidências de entrelaçamento da humanidade com o planeta se referem às suas manifestações no mundo vivo, na biosfera. De toda forma, a despeito de um veredito formal, o conceito de Antropoceno já foi adotado com entusiasmo por inumeráveis espaços de debate acadêmico e político, levando em conta o grande volume de evidências que aponta para o fato de já estarmos vivendo um momento novo e inédito da história humana. Independentemente de o Antropoceno ser aceito ou não no âmbito das ciências geológicas, a magnitude da questão ambiental que ele representa - no sentido amplo da relação com o planeta e seus diversos conteúdos ecológicos - possui o potencial de se tornar a questão central da atual condição humana e dos seus prospectos para o futuro. Ou seja, não mais um problema setorial e sim o centro dramático da nossa posição histórica.

Nesse sentido, não é de surpreender que a ideia de Antropoceno tenha penetrado com força nas ciências sociais e nas humanidades em geral. Ela vem mobilizando pensadores de primeira linha que antes não se ocupavam especialmente de tópicos ambientais, refletindo a mudança na abrangência do debate que mencionamos no início. O tema do Antropoceno - em sentido genérico, pois outros nomes possíveis vêm sendo utilizados para indicar essa mudança histórica, como Wasteoceno, Capitaloceno ou Plantationceno - estimula uma série de profundas questões filosóficas e antropológicas sobre catástrofe e finitude, sobre interações com as outras espécies, sobre diversidade cultural e sentido da existência humana, entre outras. Todas essas questões se espraiam pelo debate político e econômico em tópicos como a necessidade de repensar a noção de crescimento econômico e de justiça distributiva/redistributiva em um planeta no qual os limites da presença humana parecem estar sendo atingidos, ou então sobre os limites aceitáveis da intervenção tecnológica nos ciclos e fluxos da ecosfera terrestre.

Apesar da presença relativamente pequena de cientistas sociais e historiadores nos projetos internacionais de investigação que deram origem à ideia de Antropoceno, pode-se observar que a dimensão histórica da discussão apareceu desde o início. Ao lançar a proposta de uma nova “época”, mesmo que em sentido geológico, se estava necessariamente falando de História. O Antropoceno, como disse Mary Louise Pratt (2022)PRATT, Mary Louise. Planetary Longings. Durham: Duke University Press, 2022., é essencialmente um “cronotopo”, uma narrativa que procura representar os traços essenciais de uma determinada configuração temporal e espacial. Em outras palavras, um esforço para dar inteligibilidade à época singular que estamos vivendo na Terra. Por outro lado, na tentativa de representar essa realidade, o saber histórico acumulado não esteve ausente. Por exemplo, quando um renomado historiador que participou de alguns daqueles projetos, John McNeill, veio cunhando o termo “Grande Aceleração” no debate com outros participantes, houve um intento explícito de homenagear Karl Polanyi ([1944] 2012)POLANYI, Karl [1944]. A grande transformação: as origens políticas e econômicas do nosso tempo. Lisboa: 70, 2012. e seu conceito de “Grande Transformação” (STEFFEN et al., 2015STEFFEN, Will; BROADGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen; LUDWIG, Cornelia. The Trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration. The Anthropocene Review, v. 2, n. 1, p. 1-18, 2015., p. 2). Para usar uma metáfora, é como se os ventos da grande transformação industrial dos séculos XVIII e XIX tivessem se transformado nos furacões da grande aceleração a partir do pós-Segunda Guerra. De toda forma, o tema do Antropoceno nos leva a refletir sobre um processo histórico extremamente complexo, incluindo a sua gênese, o seu alcance social e geográfico, a sua periodização e as suas tendências futuras. Diversos pensadores no campo das humanidades vêm enfrentando esses tópicos e suas inúmeras derivações, produzindo análises e teorizações instigantes e criativas.

Tais desafios vêm ganhando centralidade nas produções cultural e crítica dedicadas a questões ambientais. Na debatida tese de Amitav Ghosh (2016)GHOSH, Amitav. The Great Derangement: Climate Change and the Unthinkable. Chicago: University of Chicago Press, 2016., o Antropoceno apresenta uma crise da imaginação ao nos confrontar com uma realidade que se estende para além dos parâmetros habituais da ficção realista. O desafio de imaginar o Antropoceno, assim, passa tanto pela necessidade de encaixá-lo dentro dos gêneros e moldes narrativos existentes, como propõe Ursula Heise (2016)HEISE, Ursula. Imagining Extinction: The Cultural Meanings of Endangered Species. Chicago: University of Chicago Press, 2016., como de pensar o próprio lugar da narrativa na percepção coletiva desta nova época, como argumenta Erin James (2022)JAMES, Erin. Narrative in the Anthropocene. Columbus: Ohio State University Press, 2022. no livro recente resenhado neste dossiê por Thomaz Amancio. Em consonância com essa linha, os autores convidados do mesmo dossiê, Marco Armiero e David Pellow, também contribuem com uma reflexão poderosa acerca da importância da narrativa como ferramenta de denúncia dentro e para além do âmbito cultural. Paralelamente, uma cultura visual centrada no Antropoceno vem se consolidando, desde projetos que abarcam uma vasta gama de paisagens por meio de tecnologias de visualização aérea, como o trabalho do fotógrafo Edward Burtynsky, até a utilização desses mesmos recursos feita pela artista plástica Carolina Caycedo, com o objetivo de reconfigurar a percepção do impacto de hidrelétricas a partir das “perspectivas submersas” dos que sofrem suas consequências mais severas, como apontou Macarena Gómez-Barris (2017)GÓMEZ-BARRIS, Macarena. The Extractive Zone: Social Ecologies and Decolonial Perspectives. Durham: Duke University Press, 2017.. Mobilizando ou não o vocabulário do Antropoceno ou suas variantes, estas e outras contribuições, juntamente com filmes e livros de ficção científica, entre outros, vêm dando forma a linguagens imagéticas e narrativas através das quais o Antropoceno é hoje culturalmente apreendido.

Desde logo, porém, é relevante comentar dois problemas de fundo para trabalhar o Antropoceno na perspectiva da análise histórica. O primeiro é a sincronicidade e o segundo a escala. A estratigrafia geológica trabalha sempre com uma entrada sincrônica do planeta em uma determinada condição. Não se entra pela metade ou por partes em uma nova “época”. É preciso buscar uma prova concreta, a chamada “golden spike”, de que o planeta sofreu uma modificação marcante na composição da sua atmosfera etc. O movimento diacrônico dos processos históricos, obviamente, não pode ser entendido nessa mesma chave. Pode-se pensar, é verdade, em transformações históricas que hoje em dia se manifestam, ou pelo menos afetam, os diferentes países e setores da humanidade; as emergências do capitalismo e da globalização seriam dois exemplos. Mas a trajetória dessas transformações não indica qualquer uniformidade ou sincronia essencial (QUENET, 2017QUENET, Grégory. The Anthropocene and the Time of Historians. Annales HSS (English edition), v. 72, n. 2, p. 267-299, p. 2017., p. 173). Ao contrário, elas vieram acontecendo por intermédio de comportamentos, tecnologias, instituições e redes socioambientais que surgiram em determinadas regiões e com o tempo se expandiram, se difundiram e se articularam através de inúmeras adaptações e reelaborações. Mesmo que existam processos históricos com uma grande abrangência internacional, como os dois exemplos mencionados, o nível de sincronização, que nunca é perfeito e menos ainda equitativo, se mostra incompatível com os parâmetros adotados pelas ciências geológicas.

Isso nos conduz ao segundo problema. A discussão sobre o Antropoceno veio se construindo em uma escala muito elevada de agregação. Se pensamos o impacto da “humanidade” no “planeta”, constatamos que os tipos de indicadores privilegiados são o consumo global de energia, de água, de minerais, de solos férteis e outros, ou então as emissões globais, como no caso dos gases que produzem o aquecimento global. Essa alta agregação trouxe para o debate histórico, de maneira muito explícita, a presença da Terra. No entanto, tal nível de agregação pode ser muito enganoso diante da grande desigualdade nas condições concretas da vida humana nos diversos espaços geográficos e classes sociais, incluindo padrões de produção e consumo, culturas e situações ecológicas. A enorme desigualdade na distribuição do consumo material - o contraste entre opulência e miséria em diferentes escalas - faz com que dados como o consumo global de energia busquem unificar o que é profundamente dividido e fraturado. Além disso, ao trabalhar quase sempre na escala de alta agregação, as análises sobre o Antropoceno muitas vezes obscurecem a construção conflituosa e não linear das transformações históricas que viabilizaram esse novo momento. A entrada da humanidade no Antropoceno e na Grande Aceleração, por vezes, é descrita de maneira automática, quando os grandes movimentos da história nunca são automáticos. É fundamental, portanto, revelar a diversidade de situações humanas e ambientais concretas por detrás dos grandes dados globais. A realidade histórica identificada pelo conceito de Antropoceno não surgiu do nada. Ela nasceu da articulação, ativa ou passiva, voluntária ou coercitiva, de inúmeros processos ocorridos em diferentes escalas, inclusive em contextos locais e nacionais. Se é verdade que os seres humanos da atualidade não têm como escapar das grandes modificações produzidas na ecologia planetária pelo macroprocesso que está sendo comentado, como no caso das mudanças climáticas, também é certo que sua maneira de vivenciar e sofrer as consequências dessa “nova época” é tragicamente desigual. É fundamental, assim, localizar de forma mais concreta a história do Antropoceno (PÁDUA, 2022PÁDUA, José Augusto. Localizando a História do Antropoceno: o caso do Brasil. In: DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SALDANHA, Rafael (orgs.) Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra. Rio de Janeiro: Machado, 2022.). Não se trata, obviamente, de abandonar a dimensão planetária que tem sido essencial para a renovação conceitual que mencionamos. O desafio é conectar as histórias das diferentes sociedades com os movimentos mais amplos da história global e planetária. Como argumentaram Bonneuil e Fressoz (2013BONNEUIL, Christophe; FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocene. Paris: Seuil, 2013., p. 86-87), trata-se de buscar “uma história menos indiferenciada e mais explicativa do Antropoceno”, no sentido de “deslocar o foco do estudo dos ambientes atingidos e dos ciclos biogeoquímicos perturbados para os atores, instituições e decisões que produziram esses atingimentos e essas perturbações”.

Diante de todas essas inquietações e perspectivas, ficamos animados com a possibilidade de estimular esse debate no Brasil através do presente dossiê. Imaginávamos, como veio a acontecer, que a chamada de artigos produziria contribuições importantes no plano da reflexão teórica e na localização da análise do Antropoceno por meio de diferentes dinâmicas sociais e territoriais observáveis no presente.

Na abertura do dossiê, tivemos a oportunidade de contar com duas contribuições de alta relevância. Em primeiro lugar, uma entrevista com Dipesh Chakrabarty, um dos mais renomados historiadores da atualidade. A conversa presencial, ocorrida em janeiro de 2023, com o tema geral de History in a Planetary Age, permitiu ao mesmo tempo clarificar e problematizar alguns dos conceitos e reflexões que aparecem em seus escritos, especialmente no livro recente intitulado The Climate of History in a Planetary Age (CHAKRABARTY, 2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: University of Chicago Press, 2021.). Nesse diálogo surgiram pontos novos em relação ao que costuma aparecer nas suas publicações e entrevistas. É o caso, por exemplo, de algumas comparações entre experiências históricas do Brasil e da Índia. Comentários adicionais sobre a importância de Chakrabarty para trazer o tema do Antropoceno - ou, como ele hoje prefere, da Era Planetária - para a reflexão histórica contemporânea foram apresentados na introdução da entrevista.

Em segundo lugar, tivemos a satisfação de contar com um artigo convidado para o dossiê, intitulado “Multispecies Alliances against the Wasteocene: Counter-Narratives and Commoning Practices”, de Marco Armiero e David Pellow. O artigo, baseado em movimentos, conflitos e narrativas que afloram em diferentes situações do mundo contemporâneo, apresenta reflexões criativas e instigantes em torno da ideia de Wasteocene, lançada por Armiero em um livro recente (ARMIERO, 2021ARMIERO, Marco. Wasteocene: Stories from the Global Dump. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.). Dentro do debate sobre a ideia genérica de Antropoceno, outros nomes vieram surgindo como uma crítica do conceito original, ou então como uma forma de chamar atenção para outras dimensões da transformação histórica em discussão. A ideia de Wasteocene é uma das mais interessantes. Ela capta a impressionante realidade do lixo e do desperdício no mundo contemporâneo. Não se trata apenas de lixo no sentido quantitativo, mas da própria emergência e naturalização do lugar comum de que a vida social moderna demanda a enorme presença de algo que se define como “lixo”. A ideia de Wasteocene, porém, vai mais além, pois critica uma realidade social marcada pelo desperdício e o descarte. A presença de “relações sociais desperdiçadoras que produzem pessoas e ecossistemas desperdiçados”. Estamos gratos aos autores por compartilharem na revista Topoi, com forte presença na América Latina, um artigo original que nos convida ao debate e à reflexão sobre a nossa própria realidade social no contexto dessa “era do desperdício”.

Na sequência, publicamos cinco importantes artigos que nos chegaram a partir da chamada pública. No primeiro deles, “Antropoceno e futuros presentes: entre regime climático e regimes de historicidade potenciais”, Rodrigo Turin investiga alguns dos grandes desafios colocados pelo Antropoceno para a teoria da história. A nova época representa uma “ruptu-ra na experiência coletiva do tempo” e uma “alteração profunda na relação estabelecida na modernidade entre espaço de experiência e horizonte de expectativa”. Em diálogo com François Hartog, o autor considera que mudanças nesse nível de profundidade trazem “uma quebra com o regime moderno de historicidade”, abrindo caminho para discutir criticamente a ideia de um “novo regime antropocêntrico de historicidade” ou então, de maneira mais aberta, em “uma nova condição de historicidade, que abre novos regimes de historicidade potenciais”. Ao apontar os problemas teóricos para definir de forma acabada um “regime antropocêntrico de historicidade”, diante da pluralidade de concepções e experiências no presente, assim como pela incerteza diante de diferentes futuros possíveis, o autor opta por trabalhar “uma cartografia de regimes de historicidade potenciais que emergem em nossa contemporaneidade”. Uma conclusão geral é que “na brecha temporal em que vivemos, aberta a diferentes futuros possíveis, tão importante quanto saber onde iremos, é conhecer onde estamos e de que forma nos projetamos”.

No segundo artigo, “Um fazer histórico xamânico: o potencial cosmohistórico de reconectar territórios no Antropoceno”, de Alessandra Seixlack, aparece com força uma outra tendência teórica que vem ganhando espaço diante das indagações trazidas pela discussão do Antropoceno. Trata-se do conhecimento e reconhecimento, no diálogo sobre a situação global e planetária, das formas de saber e linguagem derivadas do que Eduardo Viveiros de Castro ([s.d.VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Sobre os modos de existência dos coletivos extramodernos: Bruno Latour e as cosmopolíticas ameríndias (projeto de pesquisa). Academia.edu, [s.d.]. Disponível em: https://www.academia.edu/21559561/Sobre_o_modo_de_existencia_dos_coletivos_extramodernos. Acesso em: 2 ago. 2023.
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]) denominou de “coletivos extramodernos”. A incorporação desses saberes se torna urgente diante da percepção de que “a materialidade que fundou o mundo moderno foi sustentada pela crença em uma separação total entre a Natureza inata e a Cultura construída”. A crise do Antropoceno, ao contrário, “lança luz sobre o pluralismo ontológico que orienta os processos de produção do coletivo; sobre as complexas e multifacetadas interações que unem agentes humanos e não-humanos em uma mesma rede e um mesmo ecossistema”. A crítica da grande narrativa da modernidade, baseada em uma temporalidade “singular e linear”, requer também “problematizar a devastação ontológica e os epistemicídios empreendidos em nome de uma modernidade pensada para sufocar a diferença, e a considerar os impactos da colonialidade na produção do conhecimento”. Após discutir os limites das perspectivas analíticas decoloniais, a autora apresenta o potencial da visão da cosmohistória produzida pelo historiador mexicano Federico Navarrete Linares no sentido de “conceber as historicidades humanas como um conjunto de realidades plurais e irredutivelmente diversas que se unem e se combinam, dialogam e entram em conflito, mas não se integram em um único conjunto”. Essa concepção pode ser enriquecida pelo diálogo com a ideia de cosmopolítica na obra de Isabelle Stengers, referindo-se ao “trabalho político de construção de relações entre mundos diferentes”. O eixo do artigo, porém, está na afirmação da relevância central, no contexto da emergência de uma leitura cosmohistórica/cosmopolítica da crise contemporânea, das epistemologias indígenas que estão sendo difundidas por autores como Silvia Rivera Cusicanqui, Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak. Tais contribuições apresentariam um “fazer histórico xamânico”, uma cosmohistória que “baseia-se na relação entre sujeitos e incorpora à sua metodologia princípios epistemológicos não antropocêntricos”. Dessa forma, “a potência da cosmohistória enquanto paradigma historiográfico atento às demandas do Antropoceno e aos limites da modernidade ocidental está em sua possível aproximação com o pensamento indígena e na transformação deste em condição relevante para solucionar as perturbações no sistema terrestre”.

O terceiro artigo, “O Antropoceno e sua relação com a história dos games”, de Christiano Britto dos Santos e George Coelho, discute o tema ultracontemporâneo da história dos videogames. Uma manifestação cultural cuja condição de existência passou pela invenção de meios técnicos semelhantes aos que permitiram a visualização de dados globais na gênese do conceito de Antropoceno. Nas palavras dos autores, os games “são muito mais do que entretenimento e/ou produtos da indústria capitalista, mas como fontes históricas basilares para compreender a circularidade cultural entre o pensamento do Antropoceno e a indústria cultural dos jogos eletrônicos”. A relação entre a história dos jogos e o Antropoceno é apresentada pelos autores em duas dimensões: na sua engenharia/materialidade e no conteúdo das suas narrativas. No primeiro caso, se apresenta a conexão entre a indústria militar e a indústria dos jogos eletrônicos. A indústria bélica, desde o pós-guerra, “financiou pesquisas e desenvolvimento de tecnologias de jogos” e engenheiros militares passaram a se direcionar para a indústria de entretenimento. Por outro lado, o espantoso crescimento no consumo dos jogos, desde o seu início na década de 1970, com milhões de jogadores em todo o mundo, tem contribuído para a degradação ambiental global, especialmente através do descarte de lixo eletrônico, muitas vezes contendo materiais tóxicos. Esforços de legislação e reforma nos padrões de produção vêm sendo feitos em diferentes países do mundo, em um movimento que, de fato, pode ser relacionado com as consequências ambientais do conjunto da indústria de eletrodomésticos (incluindo telefones celulares e computadores). Na segunda dimensão, uma contribuição especialmente importante do artigo está no exame do conteúdo dos roteiros e narrativas de playgames, entendendo que “os jogos são uma forma de contar histórias - de grande potencial de interatividade - a serem interpretadas do ponto de vista da memória e da narrativa histórica”. Nessa direção, observa-se de início uma tradição de “estética da destruição” que mirava “indígenas, animais selvagens e florestas como os inimigos a serem enfrentados”. Em momentos mais recentes, contudo, apareceram vários exemplos de narrativas que “possibilitam uma mudança de perspectiva ambiental” e podem “moldar a nossa consciência sobre os problemas ambientais”. Em outras palavras, está surgindo um fenômeno de “era de games para conscientização sobre os efeitos do Antropoceno”, movimento que é explorado no artigo tanto pela análise de alguns conteúdos quanto pela discussão das obras de vários teóricos sociais que vêm discutindo essa temática.

O quarto artigo, cujo título é “Narrativas e imaginarios geográficos en torno a represas hidroeléctricas en la Patagonia: entrelazamientos energéticos para pensar el Antropoceno en escala regional (1967-2021)”, de Azucena Castro e Hortensia Castro, expande o escopo do dossiê de distintas maneiras. O conceito de Antropoceno empregado aqui é situado e ressigni-ficado pelo de Terricídio, ou seja, “los distintos modos del sistema capitalista y patriarcal de asesinar la vida”. A denúncia dessas múltiplas modalidades de violência e suas interseções se dá, nesse artigo, no contexto do ativismo, sobretudo de caráter ecofeminista, presente na produção cultural acerca da construção de usinas hidrelétricas na Patagônia argentina. Para tanto, as autoras analisam uma série de filmes, incluindo filmes institucionais e independentes, para entender os processos de narrativização dos impactos e silenciamentos provocados pela construção de duas usinas de grande porte na região: Chocón-Cerros Colorados e -Cóndor Cliff-La Barrancosa. De um lado, as narrativas oficiais em torno dessas empresas, expressas em documentos assim como em filmes institucionais, ressaltam a necessidade de sua construção para o desenvolvimento do país ao mesmo tempo em que chamam a atenção para uma natureza percebida como sublime, evidenciando as distintas ondas desenvolvimentistas vividas na região que se valeram de um discurso de progresso para justificar, frente à opinião pública, obras de grande impacto social e ambiental. De outro lado, sobretudo na última década, surgiu uma série de intervenções “artivísticas” através das quais artistas e movimentos populares buscam amplificar a denúncia de tais impactos. Para abordar tal produção, as autoras se detêm no trabalho de artistas como Silvana Torres Opazo e suas performances que remetem a danças mapuche, entre outras obras que, nas palavras das autoras, “ponen en acto el término “terricidio”, surgido de los ecofeminismos del Sur para dar cuenta de la -intersección de violencias contra el cuerpo (femenino, indígena, pobre) y el cuerpo de la tierra”.

O quinto artigo, “Porcos, vírus e plantas: uma história multiespécies da modernização agropecuária na Fronteira Sul do Brasil durante a Grande Aceleração”, de Claiton da Silva, revela o potencial de repensar temas convencionais, como a modernização agropecuária, a partir das novas dimensões trazidas pela discussão sobre o Antropoceno. Um ponto de partida é a crítica que a ideia de Antropoceno por vezes sofre por não incorporar “certos avanços epistemológicos realizados por áreas como o pós-humanismo ou o estudo das relações entre humanos e não humanos”. Apesar dessas críticas, pode-se dizer que é no rastro do Antropoceno que vêm surgindo esforços para fazer uma leitura menos antropocêntrica da história e abrir caminhos para análises multiespécies. No caso específico do artigo, o autor procurou revisitar a epidemia de peste suína africana, que se alastrou pelo Brasil entre 1978 e 1981, ocasionando a matança de cerca de 60 mil suínos. A proposta do artigo é a de demonstrar como um “episódio envolvendo elementos humanos e não humanos exemplifica disputas no campo científico, tecnológico e industrial entre elementos como a dominante - porém ‘decadente’ - banha de porco versus a versatilidade do óleo vegetal proveniente da soja”. No contexto da emergência do agronegócio da soja e da indústria de óleos vegetais, ambas apoiadas por políticas governamentais, a produção de gordura animal por agricultores familiares perdeu espaço diante de uma confluência de fatores, incluindo as sucessivas epidemias e a difusão de novas tecnologias, como no caso das geladeiras. Dessa forma, “se geopoliticamente a Guerra Fria, a ditadura civil-militar brasileira e o avanço do capitalismo colocam em uma mesma arena de conflito determinados porcos ‘brasileiros’, raças exóticas, um vírus específico e, finalmente, o óleo proveniente de uma planta, os resultados são singulares e indicativos para uma historiografia multiespécies e dos recursos também em seus aspectos políticos”. A matança de porcos em pequenas propriedades, por exemplo, estimulou o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Uma das principais conclusões, portanto, é que “o exercício de análise das lutas sociais ou da criação de elites agroindustriais deve, em uma proposta de historiografia relevante para o melhor entendimento do Antropoceno, observar as mediações ecológico-culturais que envolvem humanos, não humanos e recursos/matérias”.

Finalmente, fechando o dossiê, temos duas resenhas em que Thomaz Amancio aborda as análises de Erin James sobre o problema da narrativa no Antropoceno e André Bailão discute as muito citadas, e muitas vezes mal compreendidas, elaborações de Bruno Latour sobre o tema de Gaia e do Antropoceno.

Acreditamos que o conjunto do material aqui apresentado ajuda a visualizar a riqueza das discussões teóricas e das perspectivas inovadoras de análise que vêm crescendo em escala internacional no caldo de cultura da temática geral do Antropoceno. Parece evidente que estamos vivendo um momento em que o planeta - na sua concretude e diversidade - está se tornando uma questão inescapável para o pensamento social e as humanidades. Diferentemente da longuíssima trajetória do pensamento humano sobre a “Natureza”, em sentido genérico, é a Terra que agora aparece com todo vigor no campo de possibilidades da consciência histórica contemporânea, incluindo as próprias fotos do planeta a partir do espaço que datam das últimas décadas do século XX. Qualquer que seja o futuro dos seres humanos, na tensão da sua unidade e pluralidade, cada vez fica mais claro que ele se entrelaça com o destino da própria Terra. Vários pensadores e artistas do século XX intuíram que esse momento chegaria. É o caso de Oswald de Andrade, na epígrafe do presente artigo, ainda que ele não tenha conseguido perceber em sua época o potencial do pensamento ecológico para a crítica da modernidade. Mas, de toda forma, intuiu com beleza poética que estava chegando o momento em que as utopias e as visões de futuro precisariam mirar a Terra como seu espaço de realização e compreender de maneira mais radical que sem a Terra nenhuma história faria sentido.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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