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Entrevista com Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta

Interview with Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta

Entrevista con Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta

Entre as várias intervenções bibliográficas que o Bicentenário tem inspirado, com certeza, uma das mais aguardadas é o DicionárioPIMENTA, João Paulo; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Dicionário da Independência do Brasil: história, memória e historiografia. São Paulo: EDUSP; Publicações BBM, 2022.da Independência. História, memória e historiografia, organizado por Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta lançado este ano em São Paulo pela Biblioteca Brasiliana Guita e Mindlin em parceria com a EDUSP e o Instituto Camões. Com mais de mil páginas, o dicionário reúne verbetes escritos por especialistas sobre os principais eventos, personagens, grupos sociais, lugares e projetos que forjaram as diversas experiências de independência no Brasil, bem como sobre as obras e os historiadores que se dedicaram ao tema.

Os organizadores são professores da Universidade de São Paulo, autores com vasta produção sobre a Independência e incorporaram ao dicionário essa bagagem de conhecimento. Com sua tese de doutorado defendida na USP em 1986, A astucia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820/1824 (2 ed., São Paulo: Intermeios/PPG História Social USP, 2020OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820-1824. 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2020.), Cecilia Helena de Salles Oliveira revigorou e transformou os estudos especializados sobre o período, chamando a atenção para as importantes e complexas relações entre os projetos políticos e a economia do Centro-Sul do Brasil. Salles Oliveira também é autora de “Entre ‘reciprocidade de interesses’ e ‘recolonização’: o debate na imprensa do Rio de Janeiro, 1821/1822” recentemente publicado na Revista de História das Ideias (Coimbra), n. 40 (2022OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Entre “reciprocidade de interesses” e “recolonização”: o debate na imprensa do Rio de Janeiro, 1821/1822. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 40, p. 81-115, 2022.) e do livro Ideias em confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil, 1808/1825 (São Paulo: Editora Todavia, 2022OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Ideias em confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825). São Paulo: Todavia, 2022.). Em sua obra A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (São Paulo: Hucitec, 2015PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015.), João Paulo Pimenta mostrou novas formas de pensar a Independência brasileira. Nesse livro, ele analisou a conjuntura revolucionária mais abrangente, estabelecendo um contraponto entre o Brasil e as ideias e transformações que se desenrolaram na vizinha América espanhola. Pimenta também tem publicado artigos analisando a historiografia relativa à Independência e é autor, entre outros livros, de O livro do tempo: uma história social (Ed. 70, 2021) e Independência do Brasil (Contexto, 2021PIMENTA, João Paulo. O livro do tempo: uma história social. Lisboa: Edições 70, 2021.).

Nesta entrevista concedida à Topoi, Cecília e João Paulo falam das motivações que os levaram a enfrentar o enorme desafio de editar uma obra dessa envergadura, revelando como o trabalho se desenvolveu; falando sobre os resultados alcançados e sobre suas expectativas com relação à acolhida que o Dicionário da Independência receberá do público em geral e do meio acadêmico em particular.

Kirsten Schultz: Como surgiu a ideia de fazer um dicionário da Independência? E como vocês se aproximaram da seleção dos autores? Como esse gênero discursivo específico - o dicionário - e sua forma taxonômica de produzir conhecimento podem trazer uma contribuição para os estudos sobre a Independência?

Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta: A ideia surgiu de uma inquietação de nossa parte, como historiadores da Independência, em relação não apenas à aproximação do Bicentenário, mas também ao atual contexto político, econômico, social e cultural vivido pelo Brasil. Movidos por essa inquietação, que é o resultado mais recente de nossas maneiras próprias de viver e entender passados e presentes, entendemos que poderíamos, de acordo com nossa especialidade, fazer algo de positivo neste Bicentenário. A motivação final veio de um convite a nós dirigido pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP), para que colaborássemos com o Projeto 3 X 22; de uma forma mais específica, foi-nos proposto a elaboração de um dicionário.

O processo de elaboração do Dicionário foi uma experiência muito rica para nós dois, por muitos motivos. Dentre eles, o fato de que nos impusemos a necessidade de explorar um vasto campo de possibilidades historiográficas, em busca de autores que - sem nenhuma exceção - fossem especialistas nos temas a serem desenvolvidos. Esse foi um de nossos princípios: que as numerosíssimas possibilidades temáticas - eventos, espaços, personagens, conceitos, obras, lugares de memória - envolvidas no grande tema que é a Independência levassem a uma obra plural e abrangente, mas também erudita, rigorosa e profunda, o que só poderia ser alcançado obedecendo-se ao princípio da especialização. Só aceitaríamos textos embasados nesse princípio. O que nos obrigou a buscar autores e temas que muitas vezes nos eram pouco ou nada conhecidos. E daí a feição final de nosso rol de autores-colaboradores, que somam 274, responsáveis por 743 verbetes.

Bem se vê que as dimensões que a obra adquiriu - planejadas desde o princípio - diminuem fortemente seu caráter taxionômico, uma vez que ela é constituída antes por diversidade de vozes e conteúdos do que por prescrições normativas. Essa característica foi sedimentada pelas diretrizes de elaboração transmitidas aos autores: que cada texto procurasse harmonizar informações objetivas, interpretação autoral e pluralidade historiográfica. Uma vez entregues as primeiras versões dos textos, lemos e comentamos cada um deles, mas foi a seus autores que coube a palavra final. E é assim que entendemos que o Dicionário pode ser uma contribuição de peso à historiografia brasileira: por representar significativamente o ponto em que estamos com o tema da Independência, bem como abrir numerosas possibilidades de exploração futura.

Kirsten Schultz: Das suas perspectivas como organizadores, no processo da compilação dos verbetes emergiu algum tema imprevisto? E imaginando um dicionário da Independência brasileira publicado em 1922 ou 1972, quais verbetes representam as inovações historiográficas que tem havido desde então?

Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta: Embora tenhamos feito um minucioso planejamento inicial, a estrutura do Dicionário foi adquirindo suas feições definitivas à medida que convidávamos os autores-colaboradores, que a eles solicitávamos não só seus textos, mas também suas impressões e opiniões, e que pensávamos e repensávamos, com o trabalho deles, nossa própria visão da Independência. Assim, foram muitos os casos de verbetes que não tínhamos imaginado de início, mas que acabaram por se constituir em textos tão importantes e úteis quanto os demais. O Dicionário, portanto, foi, em larga medida, também um work in progress.

Em comparação com 1922 e 1972, a historiografia atual da Independência diversificou suas dimensões, tratando de articular economia, estruturas e agências sociais, cultura e formas de pensar com suas dimensões políticas, que por serem outrora amplamente dominantes, não podem hoje ser deixadas de lado. Houve também uma enorme diversificação espacial do processo de Independência, tanto em termos de espaços exteriores ao Brasil e a Portugal e com os quais o Brasil se conectava de diversas formas, seja em termos de espaços que o próprio processo estava tratando de integrar e nacionalizar, como partes integrantes do Brasil que a Independência faria surgir. Por fim, nosso trabalho concebe uma profunda e indissociável simbiose entre história, memória e historiografia da Independência, de modo que as muitas maneiras pelas quais a Independência pode ser compreendida passam necessariamente por tais componentes. Tudo isso foi, de alguma forma, contemplado pelos verbetes do Dicionário. Inclusive as celebrações e os contextos de 1922 e 1972.

Kirsten Schultz: Vocês identificam a cronologia da Independência de 1808 a 1831. Quais são as características de cada uma dessas datas que as tornam pontos de virada? Existem verbetes que desafiam essa cronologia?

Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta: Essas datas apontam para momentos de transformação e de consolidação de projetos políticos. 1808 é marco - aproximativo, como todos os marcos em história - de uma transformação que vinha sendo discutida na metrópole desde os anos de 1750. A transferência da Corte para a América altera as relações coloniais e sobretudo as relações político-mercantis no âmbito do Atlântico-sul. Demonstra a possibilidade da reorganização do Império português a partir da América, questão-chave diante das pressões britânicas, norte-americanas e francesas sobre os domínios portugueses americanos e, em parte, também africanos. Além do que, os principais auxiliares de D. João, em função de políticas anteriormente adotadas, imaginavam contar, nessa empreitada, com boa parte dos segmentos proprietários radicados no Brasil e que já tinham sido beneficiados com inúmeras decisões que favoreceram os vínculos entre administração colonial e interesses particulares. Vários historiadores já trataram desse tema e vários verbetes também se debruçam sobre as articulações entre diferentes níveis de governança e decisão política na colônia e a atuação de produtores, negociantes de grosso trato, traficantes e um conjunto bastante alargado de pequenos e médios produtores, tanto no Nordeste quanto no Centro-Sul, que tinham acesso a cargos nas câmaras, nas tropas auxiliares e nas práticas de arrematação. A transferência da Corte veio aprofundar esses movimentos de articulação e sobretudo agravar as já evidentes contradições entre políticas de Estado e interesses mercantis, e também entre diferentes tensões de ordem identitária, ramificados em Portugal, na Grã-Bretanha, nas diferentes capitanias do Brasil, na região do Rio da Prata e na África. Então, 1808 descortinou um panorama de mudanças que, por conta das ações de diferentes atores, adquiriu aspectos indeterminados, incertos, mas alimentou conflitos, expectativas de futuro e projetos políticos dos mais variados envolvendo o Brasil e muitas outras partes do mundo.

Já 1831 pode ser considerado o marco de uma outra mudança: a consolidação da separação de Portugal e notadamente do projeto de monarquia que Pedro I havia capitaneado. O retorno do imperador a Portugal foi o movimento mais evidente da ação de oposições que ou visavam a republicanizar a monarquia ou miravam a possibilidade de alterar os termos da Carta de 1824 e garantir a ascensão de segmentos proprietários diferentes dos que vinham constituindo as bases sociais primeiro de D. João e depois de Pedro I. E tais deslocamentos impactam profundamente as formas de organização de um Estado brasileiro que vinham se fortalecendo, como demanda, desde pelo menos 1822.

Optamos por essas balizas - mesmo reconhecendo o quanto podem gerar de questionamentos e o quanto são provisórias - porque sinalizam para mudanças mais profundas do ponto de vista da configuração do poder, dos projetos políticos, econômicos e culturais, e de seus principais protagonistas. Uma de nossas estratégias de lidar com essa instabilidade das balizas temporais foi solicitar aos autores que tivessem em conta os marcos gerais do Dicionário, mas que tivessem inteira liberdade para articulá-los aos marcos preferenciais de cada um de seus temas específicos. O que, no final das contas, mostrou-se uma estratégia muito bem-sucedida.

Kirsten Schultz: Como o processo de Independência no Brasil deve ser inscrito no quadro das transformações atlânticas globais (políticas, sociais, econômicas) na virada do século XIX? O conceito ou padrão de revolução ilumina ou ofusca as experiências das pessoas que moraram no Brasil naquela época?

Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta: A compreensão mais profunda do processo de Independência do Brasil, a despeito de suas especificidades flagrantes se comparado com os demais movimentos independentistas americanos, implica sua inserção no âmbito das transformações globais em curso na passagem do século XVIII para o XIX, o que significa incorporar à análise (como vários dos autores do Dicionário o fizeram) os movimentos revolucionários desencadeados pela Revolução Americana, pela Revolução Francesa, pela Revolução do Haiti e pelas revoluções nas diferentes partes da América hispânica, todos eles com substratos liberais. Nesse sentido, a perspectiva da revolução e do curso de um movimento revolucionário protagonizado por atores que defendiam projetos diversos, ora absolutistas, ora conservadores, ora ainda de um liberalismo mais radical, pode, ao mesmo tempo, iluminar e ofuscar circunstâncias, eventos e detalhes. A concepção de uma revolução liberal, digamos, “atlântica”, da qual o Brasil sem dúvida é parte, abre horizontes para o estudo e privilegiamento das transformações e para o modo como essas transformações (nas relações coloniais, nas relações sociais, na exploração e posse da terra, na configuração da chamada Segunda Escravidão, no delineamento de projetos políticos opostos ao absolutismo e voltados para a construção da cidadania, por exemplo) se manifestaram nas primeiras décadas do século XIX. Porém, olhar para as transformações requer cuidados para que não se apaguem ou minimizem, por exemplo, formas de dominação social e vínculos de compadrio e favor que se mantiveram apesar de inseridos numa dinâmica mercantilizada e liberal.

Por tudo isso, e ainda considerando-se a estreita vinculação da Independência com a Revolução do Porto, bem como algumas profundas e duradouras transformações implicadas na separação entre Brasil e Portugal (mais políticas econômicas, intelectuais e culturais do que propriamente sociais), é que seu entendimento como revolução deve ser levado a sério pelos historiadores. Senão como uma categoria autoimposta, seguramente como uma convidativa reflexão cheia de possibilidades positivas.

Kirsten Schultz: Considerando os amplos debates transatlânticos de hoje em dia sobre memória e comemoração históricas, especialmente no contexto do colonialismo e da escravidão, quais as melhores formas de marcar o Bicentenário da Independência do Brasil?

Cecilia Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta: Essa questão atravessa o conjunto de verbetes que compõem o Dicionário. Já no subtítulo, consideramos fundamental indicar as três dimensões históricas e reflexivas nas quais se situam os verbetes, e que mencionamos há pouco: história, memória, historiografia.

Esta obra é tributária de uma rede de contribuições para o estudo do tema que vem se constituindo, de forma bastante densa, nos últimos 40 anos, por intermédio dos programas de pós-graduação em História mantidos por universidades brasileiras. Reúne análises que, mesmo abordando biografias ou temáticas mais recortadas, oferecem possibilidades para que, a partir de conhecimentos anteriormente estabelecidos, o leitor enverede por caminhos inovadores, demonstrando-se de que modo a construção de memórias e celebrações ao longo desses 200 anos promoveu o silenciamento de vozes e situações que, no momento atual, podem ser reconstituídas e interrogadas, em face das experiências políticas contemporâneas, da parcial acumulação de conhecimentos e dos instrumentos teórico-metodológicos disponíveis. Nesse sentido, o Dicionário promove, por meio de seus verbetes, o reconhecimento de outros atores e de outros eventos, apontando não apenas novas perspectivas de investigação para o futuro, mas sobretudo a emergência de outras independências que ficaram eventualmente sombreadas frente ao reiterado jogo de poder entre esquecimento e memorização. Outras independências, no entanto, que acabaram por se organizar e gravitar em torno de certas “soluções” triunfantes, o que acaba por conectar, novamente, a historiografia à história e à memória.

O Bicentenário já está sendo tomado como objeto de pesquisa. Trata-se de um objeto de enorme interesse não apenas para a compreensão presente e futura da Independência, mas também para a compreensão do Brasil atual e de sua inserção no mundo. Esperamos que, também para isso, o Dicionário possa dar a sua colaboração. O futuro nos dirá.

Referência

  • PIMENTA, João Paulo; OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Dicionário da Independência do Brasil: história, memória e historiografia. São Paulo: EDUSP; Publicações BBM, 2022.
  • PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015.
  • PIMENTA, João Paulo. O livro do tempo: uma história social. Lisboa: Edições 70, 2021.
  • OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro, 1820-1824. 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2020.
  • OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Entre “reciprocidade de interesses” e “recolonização”: o debate na imprensa do Rio de Janeiro, 1821/1822. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 40, p. 81-115, 2022.
  • OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Ideias em confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825). São Paulo: Todavia, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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