RESUMO
Os sistemas de trocas, vendas e transmissões de roupas de segunda mão formam práticas que podem ser reconhecidas na longa duração histórica. No início do século XX, esses sistemas foram confrontados com as formas de consumo que acionavam os produtos novos como testemunhos da modernidade. Este artigo parte do clássico episódio dos experimentos chefiados por Emílio Ribas, no ano de 1903, para se chegar ao estudo dos medos e dos usos que as pessoas fizeram das indumentárias de segunda mão. O argumento aqui apresentado é que as populações, perante os diferentes saberes em disputa, num período demarcado pelo encontro entre várias epidemias e de expansão do capitalismo industrial, produziram novas apreensões sobre as roupas utilizadas por outrem, revigorando a conexão entre saúde e novidade. Essa apreensão impulsionou a cultura de consumo baseada no descarte, na cidade de São Paulo, no período entre 1900 e 1914.
Palavras-chave: roupas de segunda mão; consumo; saúde; descarte; epidemia
ABSTRACT
The systems for exchanging, selling and transmitting second-hand clothes form practices that can be recognized in the historical record. At the beginning of the 20th century, these systems were confronted with forms of consumption that made new products testimonies of modernity. This article begins with the classic episode of Emílio Ribas’s experiments in 1903, which studied how people used second-hand clothing and their fears surrounding it. The argument presented here is that people, in the context of disputes over different types of knowledge and a period marked by various epidemics and the expansion of industrial capitalism, produced new apprehensions about clothes used by others, reinvigorating the connection between health and novelty. This apprehension boosted disposal-based consumer culture in the city of São Paulo in the period between 1900 and 1914.
Keywords: second-hand clothing; consumption; health; disposal; epidemics
RESUMEN
Los sistemas de intercambio, venta y transmisión de ropa de segunda mano forman prácticas reconocibles en el largo período histórico. A principios del siglo XX, estos sistemas se enfrentaron a formas de consumo que desencadenaron nuevos productos como testigos de la modernidad. Este artículo parte del episodio clásico de experimentos que dirigió Emílio Ribas, en 1903, para estudiar los miedos y usos que la gente hacía de la ropa de segunda mano. El argumento que aquí se presenta es que las poblaciones, ante los diferentes tipos de conocimiento en disputa, en un período marcado por el encuentro entre diversas epidemias y la expansión del capitalismo industrial, produjeron nuevas aprehensiones sobre la ropa usada por otros, revitalizando la conexión entre salud y novedad. Esta aprehensión impulsó la cultura de consumo basada en el descarte, en la ciudad de São Paulo, en el período comprendido entre 1900 y 1914.
Palabras clave: ropa de segunda mano; consumo; salud; descarte; epidemia
Introdução
Era o primeiro dia de um novo século na cidade de São Paulo. Nos jornais, vinha estampada uma medida sanitária: a partir daquela data, por meio de ordens federais, passava-se a adotar a desinfecção de passageiros e de bagagens na Linha Férrea Central1. Além da desinfecção dos usuários do trem e de seus objetos, tornava-se expressamente proibido portar ou despachar
Encomendas que ocultem a espécie remetida; couros e peles frescas; mobílias e guarnições usadas de sala e quarto; roupas de uso e seus acessórios; despojos e fragmento frescos de animais; frutas, legumes verdes, hortaliças e os laticínios frescos, retalhos de fazendas e tranca2.
No dia seguinte, ainda no jornal Correio Paulistano, esclarecia-se que os bens apreendidos seriam refugados e esmiuçava-se a lista dos “proibidos”, com ênfase nas carnes frescas e nas “roupas de uso”3.
Ao lado da matéria sobre as medidas sanitárias, havia um quadro com a atualização do número de “doentes, óbitos e pacientes curados” da febre amarela4. Era um momento de arrefecimento daquela epidemia e, por isso mesmo, período de construção das memórias acerca do ocorrido (BASSANEZI; CUNHA, 2019, p. 3).
A partir do dia 8 de janeiro daquele mesmo ano, o serviço de desinfecção de bagagens foi instituído na estação do Pary5. O jogo das palavras que se seguiu no jornal, durante todo o ano de 19006, foi transformando vestimentas em “trapos”, tecidos em “panos contaminados”, roupas em “objetos usados por amarelentos”7.
Em 1903, a epidemia de febre amarela já havia amainado em todo o estado de São Paulo, no entanto, a associação entre as roupas e a transmissão da doença prosseguiria8, criando uma confusão entre as diferentes doenças epidêmicas do período e suas formas de contágio.
Este artigo parte do clássico episódio dos experimentos com as “roupas dos amarelentos”, protagonizado por Emílio Ribas, no ano de 1903. Ao final do texto, busca-se descrever as estratégias vivenciadas pelas pessoas que lidaram com as vestes de segunda mão, na São Paulo do início do século XX. Não se quer, com isso, generalizar as estratégias das populações perante as doenças epidêmicas. O que se pretende demarcar é como foram sendo produzidas corporalidades e narrativas sobre a epidemia de febre amarela que se inscreviam, também, na história do consumo no Brasil. A fonte principal utilizada nesta análise foi o jornal Correio Paulistano, no período entre 1900 e 1914.
Roupas e contaminação
As epidemias que varreram o mundo no final do século XIX já tinham anunciado novas formas de conceber as roupas. Para o combate às moléstias, o descarte das vestes do doente era uma maneira de impedir a proliferação da contaminação. A partir desse período, as indumentárias dos entes queridos, guardadas, reutilizadas ou disponibilizadas em inventário9, adquiriram a pecha de “roupa de morto”.
O embate entre objetos novos e antigos não atingia somente as roupas naquele início de século. No consumo da movelaria, em países como a França, havia uma disputa entre um pastiche historicista, uma abordagem em estilo moderno e uma corrente que se caracterizou, mais tarde, como art nouveau. Foi o estilo historicista que se encarregou de colmatar as fissuras deixadas pela separação entre os espaços de produção e os lugares de consumo, fazendo com que o embate entre o novo e o antigo fosse resolvido pela cópia apresentada, nesse novo contexto, como novidade (AUSLANDER, 1996, p. 306-307).
Do ponto de vista das experiências político-econômicas, a racionalidade das trocas também era palavra de ordem. Nunca se traduziu e compilou tantos tratados de agricultura como no final do século XIX. Por trás dessa explosão editorial estavam as corporações, as novas infraestruturas e os direitos de propriedade. Transferir técnicas e normas de trabalho da Índia para a África e da África para o Brasil (independentemente das realidades desses mundos do trabalho) foi um dos vetores do processo de transformação da “cultura de consumo em escala global” (BECKERT, 2015, p. 302).
Foi nesse período, também, que a propaganda de cunho nacionalista, que criara uma iconografia da vida cotidiana, começava a ser mesclada com as associações entre progresso, bem-estar infinito e saúde10, esvaziando a própria caracterização dos bens e apostando num afastamento das imagens da vida comum. Era o momento de expansão das operações na bolsa de valores de Nova York e da profissionalização das empresas de publicidade e propaganda. Essas agências, embora ligadas aos conglomerados de mídia, cresciam a partir de suas habilidades em construir um “reino de brilho acima e além da fumaça cinzenta da cidade apressada” (LEARS, 1994, p. 196).
Muito embora esses movimentos informem o contexto de construção de uma racionalidade global de organização do comércio e das formas de vida; o declínio da importância das trocas de roupas usadas11, a substituição, ou cópia das antigas vestimentas, se deram de forma muito lenta e matizada por estratégias costumeiras, demonstrando como a mera absorção das novas racionalidades capitalistas, em muitos casos, tivera que incorporar o contraditório terreno das relações patriarcais, das distinções econômicas e das lutas políticas travadas pelas categorias intermediárias (OLIVEIRA, 2014, p. 209).
As peças de roupa carregavam um valor emocional e se ligavam às identidades de seus usuários, além de possuírem apreciações monetárias para boa parte da população no Brasil. Por essas razões, as roupas de segunda mão se tornaram um fino invólucro por meio do qual um grupo de imprensa, formado pela elite paulistana12, recobria suas percepções acerca da modernidade e do consumo, naquele início de século XX.
Os hábitos de troca e de venda de roupas de segunda mão se inscreviam num conjunto de costumes que mudava muito devagar13. A imprensa paulistana se encarregou de apressar essa transformação. Mesmo porque já estava colocada, desde o final do século XIX, a perspectiva de que as roupas usadas carregavam a mácula da contaminação.
Nos EUA, ocorreu uma feroz campanha contra as “roupas contaminadas”. Essa campanha foi ilustrada por charges que representavam saias longas, impregnadas por germes e bactérias e com a estampa da morte14.
Diferentemente da Europa, onde o comércio de roupas usadas permaneceu como atividade econômica relevante, nos EUA houve uma desqualificação desse comércio:
Na Figura 1 vê-se uma loja de roupas de segunda mão. O cenário apresentado pela ilustração aponta para a degradação total da rua, das pessoas e dos edifícios. A própria loja é um prédio em ruínas. Os únicos compradores daquele comércio são duas pessoas curvadas, apresentando idade avançada. O comércio de roupas usadas era coisa do passado. No final do século XIX, nos EUA, buscava-se olhar para o progresso. A indústria da roupa pronta surgiria como um desdobramento do avanço da indústria têxtil (BECKERT, 2014, p. 318).
A imagem refere-se a uma rua de Nova York. E Nova York ficava muito longe de São Paulo. Na pauliceia, destacavam-se as ruas Direita, Quinze de Novembro e São Bento.
Com frequência, a literatura que estuda o período reconhece o afã pelo novo como resultado de uma série de transformações sociais que redundou no que chamamos de belle époque. O triângulo de estabelecimentos comerciais de São Paulo e a rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, são tomados como exemplos dos novos hábitos de consumo. A elite enriquecida até aquele momento, segundo essas mesmas interpretações, almejava uma escalada de progresso sob as bases políticas da Primeira República. Essas inelutáveis transformações não podem nos levar a interpretações que ressaltem (apenas) o consumo de bens importados e a necessidade, por parte desses grupos, de transposição dos modelos europeus para o Brasil.
A gravura da Figura 1 estava em consonância com as reiteradas imagens do Tio Sam, apresentadas por meio do jornal Correio Paulistano, para ilustrar a fortuna financeira15.
Embora não se possa falar de um único ritmo de industrialização (nem entre as diferentes regiões dos EUA), as ideias acerca do progresso aterrissavam tantos na América quanto no Brasil. Bens materiais e as curas do corpo e da mente surgiam como integrantes do mesmo campo semântico. Tratava-se de ajustes sociais que acionavam os pressupostos do liberalismo de século XIX, uma parte da teologia protestante e acrescentava a esse repertório uma plataforma de comércio, bens e serviços, no início de século XX. O mercado editorial pertencia a essa nova plataforma de negócios (LEARS, 1994, p. 198; LEACH, 1993, p. 227).
Segundo André Mota (2005), a saúde pública em São Paulo passou a fazer parte, no final do século XIX, do planejamento da cidade e das formas de vida. Por meio do combate às doenças, buscou-se estabelecer o domínio sobre os corpos e sobre os espaços. O médico encarnava uma espécie de cientista social “integrando à sua lógica a História, a Geografia, a demografia e a topografia”. Esses profissionais empoderados começaram a esquadrinhar os espaços públicos e privados para remover os lixos. A medicina sanitária se torna o primeiro passo para se alcançar o sonhado desenvolvimento capitalista (MOTA, 2005, p. 23).
Em meio ao afã do desenvolvimento, o comércio de roupas usadas permanecia e acionava, dentre muitas possibilidades, o trabalho dos reparos das costuras. A experiência do usuário da roupa estava atrelada ao fazer e refazer da peça, ajustando-a ao corpo, encurtando a bainha, remendando os rasgos provocados pelo tempo. O contato entre o fazer e o usar a roupa produzia uma noção de gosto muito particular, ligada às marcas deixadas no artefato, às memórias afetivas e às possibilidades de uso (MONTELEONE, 2019, p. 3).
Ademais, São Paulo abrigava tanto ricos cafeicultores quanto comerciantes que, na condição de não possuidores de bens de raiz, estavam à mercê da confiança e do crédito no balcão e, por isso mesmo, representavam uma categoria bastante vulnerável (OLIVEIRA, 2005, p. 228).
Apagar todos esses circuitos de trocas não era investida simples. Os jornais atuaram com bastante afinco nessa tarefa, produzindo medos16 e embaralhando diferentes saberes.
Foi assim que os detentores da opinião publicada trataram de construir uma narrativa em torno da morte do senhor J. Bonilha de Toledo, funcionário do Serviço Sanitário da cidade de São Paulo. Naquele ano de 1903, surgiu um conjunto de “notícias” de que o senhor Bonilha de Toledo havia sido contaminado por meio de roupas de doentes do Hospital de Taubaté. As vestes tinham sido trazidas para análise em São Paulo. Com a morte de Bonilha, a disseminação das falsas notícias se ampliou.
O único fato verídico era a morte de Bonilha. Todo o resto foi uma trama composta a partir de informações desencontradas e publicadas de forma a produzir medos e preconceitos. As informações sobre a morte de Bonilha de Toledo se espalharam rapidamente. No Rio de Janeiro de 1903, essas notícias encontraram uma cidade repleta de descontentamentos provocados pelas medidas de combate às epidemias. As políticas sanitárias, na capital do Brasil, eram idealizadas por Pereira Passos e Oswaldo Cruz17.
Em São Paulo, Emílio Ribas apressou-se em relatar os resultados de seus experimentos. Para Ribas, a desinformação produzida por essas notícias acabava por desviar a população do verdadeiro problema que era o combate ao mosquito que provocava a febre amarela.
Parte dos experimentos - relativos ao monitoramento de pessoas que tiveram contato com as “roupas de Taubaté”18 - foi publicada no jornal de domingo, 28 de junho de 1903. No relato dos médicos destaca-se o volume expressivo das roupas de banho e quarto. Toalhas, cobertores, lençóis e fronhas compunham o grosso da amostra. Esses tecidos recobriam o leito de morte. Depois, essas “amostras” seriam transportadas de Taubaté para São Paulo e comporiam um novo espaço; o quarto dos “experimentos”. Estava-se diante de uma “apoteose do leito” (PERROT, 2011, p. 62), cuja representação do quarto ascendeu à cena pública, provando que as roupas dos doentes não eram contagiosas. Ao final, os participantes não foram contaminados. Poderiam começar suas trajetórias de imigrantes recém-chegados ao Brasil. Esse experimento correspondia à segunda etapa das experiências. Na primeira etapa, seis voluntários deixaram-se picar por mosquitos infectados. Já na fase aqui recuperada, três imigrantes recém-chegados ao Brasil dormiram com os pertences acima elencados, num quarto vedado e com estufa ligada. Os imigrantes foram submetidos a onze sessões (ALMEIDA, 2000, p. 586).
A pesquisa foi assinada pelos médicos Luiz Pereira Barreto, A. G. da Silva Rodrigues e Adriano de Barros. Segundo os médicos: “Não foram poucas as pessoas nacionais e estrangeiras que se expuseram à suposta ação maligna das roupas servidas por amarelentos. Nem uma só contraiu a moléstia, nem uma só adoeceu, nem uma só pereceu”19. As pesquisas de Ribas e Lutz, e seus resultados, constam nos anais dos fatos mais retomados da história da medicina no Brasil. No entanto, ainda é possível voltar para o “teatro de provas” (ALMEIDA, 2000, p. 584).
O discurso médico e a disposição dos quartos de hospital poderiam prescindir da descrição dos resultados. Contudo, a equipe chefiada por Emílio Ribas queria popularizar a pesquisa, por meio do jornal (ALMEIDA, 2000, p. 7). Enquanto os estudos de Ribas, junto à comunidade médica, seguiram percurso internacional, o imaginário social se concentrou nas “roupas usadas”, “manchadas com sangue”. Assim, ainda que a principal conclusão do experimento fosse a de que as orientações do sistema de polícia sanitária, indicadas no início deste texto, estavam completamente equivocadas e “sob pressão da crença em sua contagiosidade”, quando o real problema era o mosquito20; as estratégias continuaram na mesma direção, demonstrando que os métodos estabelecidos nas instituições científicas - relativos às etiologias e modos de transmissão das doenças - não eram acessados pela maioria dos clínicos e higienistas, e adquiriam um tom confuso quando assumido pelas diferentes vozes da imprensa (BENCHIMOL, 2013).
Emílio Ribas manteve o direcionamento do Serviço Sanitário “para que os trabalhos desenvolvidos respaldassem a teoria dos mosquitos e para continuar o enfrentamento de outras calamidades públicas de saúde”, decepcionando-se, no entanto, com as constantes críticas que enfrentava (ALMEIDA, 2000, p. 584). A divulgação dos resultados dos experimentos encontrava, por um lado, uma população alijada do debate sobre as transformações do meio urbano e, por outro, deparava-se com um setor de imprensa sustentado pela elite agrária e fascinado pelo progresso industrial/financeiro e pelos conglomerados de mídia dos EUA (BRIGGS; BURKE, 2016, p. 253).
Diante da mistura de informações, acabou que os imigrantes, os negros e os pobres se tornaram os alvos preferenciais, reiterando uma perigosa associação entre roupas velhas, situações de pobreza e contaminação.
A depreciação do valor das peças de roupas usadas foi tão forte que, no período subsequente a 1903, o descarte e a perda de roupas se tornaram mais frequentes21.
Consumo e descarte
Uma vez que em todo o mundo se assistia ao expurgo das roupas “contaminadas”, não estaria o Brasil apenas a seguir uma tendência, no início do século XX?
Mercados, feiras livres e leilões dessas indumentárias foram engastados às novas dinâmicas de comércio, em países como a França e a Dinamarca (LILJA; JONSSON, 2020, p. 83) e se tornaram alvos de combate no Brasil e nos EUA.
Quando se analisam os leilões do século XIX, o historiador depara-se com enorme quantidade de roupas usadas para negociação pública. Já para o século XX, os têxteis não aparecem com a mesma frequência nesses corpus documentais22. Embora ainda não se disponha de um conjunto suficiente de provas para comparar diferentes países, vale destacar alguns dispositivos característicos da cultura de consumo que se sedimentava no Brasil. Num período de franca ascensão do comércio de roupas prontas, os medos do adoecimento e da morte dolorosa criavam corporalidades mais aderentes à ideia de descarte dos têxteis.
Foi nessa época que se assistiu à proliferação de objetos esquecidos e abandonados pela cidade. Se até 1906 os objetos eram entregues de forma aleatória nas redações dos jornais, a partir dessa data, foi criado um sistema de achados e perdidos junto ao Serviço Público do Estado.
O gráfico apresentado não revela a totalidade do material coletado pelo serviço público; ele ilustra os objetos que foram anunciados por meio do Correio Paulistano23.
Roupas e acessórios juntos representam a maioria dos artefatos perdidos. Dentre os acessórios, destacam-se os guarda-chuvas, que por óbvio eram pedidos quando o tempo estiava. Para o caso das roupas, perdia-se de tudo: casacos, blusas e roupas de criança eram deixados com frequência.
Ainda que os dados sejam inexatos, a insistência do jornal em publicar os “objetos perdidos” revela que esses bens, em muitos casos, não eram resgatados. E quando assim ocorria, depois de passados três meses, tudo era doado para uma instituição de caridade.
Como o Serviço de Achados e Perdidos atendia também às linhas férreas; os esquecidos poderiam não residir, exclusivamente, na capital. E alguns viajantes deixaram até suas malas, com todos os seus pertences dentro, no vagão do trem.
Nem todos os produtos abandonados eram dignos de nota. “Um embrulho com ossos” e “uma porção de barro amassado”24 poderiam não ocupar as páginas do jornal. A narrativa construída pelo Correio Paulistano, no entanto, ligava “uma caixa de roupas usadas”, oriunda de Gênova, aos ossos descartados no trem25. A repetição dessas listas inconsistentes construía o “serviço de utilidade pública”. Resta à história esclarecer quantas “invenções de tradições” compuseram as “utilidades públicas” da cidade de São Paulo.
Sob outra óptica, por mais trabalhoso que fosse reaver os objetos esquecidos, o aumento do número de artefatos abandonados26 revelou que a pressa e a velocidade da cidade impunham uma nova modalidade de descarte. As roupas usadas começaram a ser abandonadas27, ainda que de forma insuspeita.
Desvencilhar-se de roupas velhas poderia ser uma atividade mais elegante para homens e mulheres ricas. Objetos, roupas e alimentos eram recebidos nas quermesses, bazares das igrejas e associações beneficentes28. Nomes como os de Anna Whitaker, Maria Emilia Lacerda, Anna Lacerda Penteado, Anna Franco da Silveira apareciam no Correio Paulistano, quando as doações eram feitas para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A doação era um fenômeno antigo; a novidade era o destaque, nas páginas do jornal, dado aos nomes das senhoras beneméritas29. À proporção que se acelerava a moda da substituição das peças no guarda-roupa, as classes altas ampliavam suas práticas e narrativas sobre as suas ações caridosas. E mesmo quando a maioria dos problemas das populações pobres urbanas não podia ser resolvido por meio de doação de roupas, a transmissão caritativa continuava colocando as vestes usadas na rota da pobreza e a pobreza, no campo das doenças30.
A metonímia da perda, expressa pelo jornal, por meio da reprodução da seção de achados e perdidos, construía um sistema de compreensão da roupa que passava pelos “despojos das cargas” e pela miragem numa prosperidade ligada ao novo.
Já os corpos que se deslocavam pela cidade teriam que lidar com as suas próprias dores e com os seus próprios calores. E o casaco poderia ter sido esquecido, simplesmente, porque o tempo esquentara. Assim, a seção de “achados e perdidos” não permite desvendar os motivos individuais. Contudo, o suporte, a periodicidade da coluna, a disposição desses anúncios ao lado das notícias sobre a febre amarela, a longevidade desse serviço e as propagandas dispostas na mesma página são indícios que revelam um interesse do público-alvo do jornal pelas “perdas alheias” e uma necessidade (por parte do grupo intelectual que presidia o Correio Paulistano) de manter essa narrativa.
Enquanto os ricos importavam cada vez mais alimentos, roupas prontas e objetos, os artefatos perdidos, esquecidos ou abandonados evidenciavam parte da nova estrutura da moda na cidade31. E, embora não fosse imediatamente evidente àqueles que percorriam as páginas do jornal, essa apreensão da moda comportava o descarte.
O comércio e seus disfarces
A mercadoria não existe nela mesma. A produção de um bem é antes “um processo cognitivo e cultural”. “As mercadorias devem ser não apenas produzidas materialmente como coisais, mas também culturalmente sinalizadas como um determinado tipo de coisa” (KOPYTOFF, 2008, p. 89). As lavanderias e lojas de fantasias, na cidade de São Paulo, no início do século XX, serviram como canais sinalizadores de um importante comércio de roupas de segunda mão.
Ocorreu que, de fato, uma das atividades das lavanderias se tornou o comércio de roupas usadas. Assim, um paletó em ótimo estado podia ser comprado na Tinturaria Eletricidade, na rua Florêncio de Abreu, número 13, loja A32.
Todo o processo de lavar, engomar ou pintar as roupas exigia equipamentos e técnicas que as casas menores, os batedores das margens dos rios e os cortiços não possuíam. Muito além de luxo, as lavanderias eram necessárias para quem não tivesse um espaço adequado33.
Por outro lado, lavar as roupas fora de casa não era simplesmente delegar tarefas a terceiros. O efeito lavanderia criava uma roupa encorpada, graças ao processo de engomar as peças e, quando necessário, reaver as cores, por meio da cozedura do tecido em tinta. Essas tecnologias deixavam as roupas como novas.
Na São Paulo do início do século XX, as lavanderias e tinturarias se tornaram cada vez mais comuns, transformando-se num lugar ideal para higienização, recomposição da cor e para pequenos ajustes das peças. Neste último caso, as costureiras continuavam indispensáveis, evidenciando a persistência do trabalho feminino no cuidado com as roupas (MONTELEONE, 2019).
A propaganda da “desinfecção” que as lavanderias veiculavam ia ao encontro dos propósitos de sanitização dos corpos, largamente difundidos naqueles anos. Ao entrar na lavanderia, os tecidos seriam purgados de todos os males, libertados de todas as pragas e renasceriam para uma nova vida. Imbuídas de novas histórias, as vestes se tornavam não só limpas; ficavam também acompadradas a outras peças. Esse conjunto tinha o poder de apagar a associação entre um dono de antanho e uma roupa vestida, quiçá, até o momento da morte. Quando grassavam por suas novas vidas, as roupas de segunda mão se tornavam produtos livres de qualquer mal.
Nascia, por meio dessa purificação, também um novo comprador. O subestimado usuário de “coisas dos outros” poderia, agora, ser elevado à condição de consumidor. Essa variação na possibilidade de a roupa usada ser mercadoria, ou não, revela uma economia moral que subjazia às transações econômicas visíveis (COPYTOFF, 2008, p. 89).
A roupa usada caía em descrédito. Salvaguardadas foram as peças que representavam sinais de status e estavam acessíveis a um público que precisava dessas vestes. Esses clientes não eram tão ricos que pudessem ter uma “Noca”34 em suas casas, e não eram tão pobres a ponto de não poderem pagar por um serviço especializado.
Foram os mesmos usuários, dos setores intermediários, que puderam dispor de um serviço que lhes permitiria aparecer em festas e eventos públicos com roupas de gala, sem ter que desembolsar dinheiro por um traje que seria usado numa única ocasião. Tratava-se do aluguel de roupas. Na sua maioria, esse aluguel acontecia em meio ao comércio de fantasias.
Para bailes à fantasia, ou para a fantasia da vida cotidiana, recorria-se às lojas de “figurinos”. Uma pessoa que precisasse ir a uma entrevista de emprego e que não tivesse traje respeitável, poderia alugá-lo.35 Na rua Líbero Badaró, número 9, os clientes resolviam os seus problemas, locando desde um paletó até a “roupas para baile”. Tudo estava à venda ou para locação. A forma de aluguel seria por meio do depósito do valor. No entanto, se o comprador desejasse uma roupa nova e não tivesse dinheiro para obtê-la, havia ainda a chance de participar do “club de roupas por prestação”, com sorteios semanais36.
Aluguéis, consórcios ou compras por meio de tinturarias e lojas de fantasias permitiam que os grupos intermediários continuassem lutando pela manutenção de suas imagens “apresentáveis” no âmbito público37. Mesmo que essa “apresentação” passasse a ser composta por modelagens cada vez mais padronizadas.
Anúncios de livros usados, móveis, cristais, joias, porcelanas e pianos continuaram aparecendo no jornal. Os endinheirados não renunciavam aos artefatos que pudessem ligá-los a uma linhagem aristocrática. Os novos ricos compravam essa linhagem por meio de leilões. Foi assim que os leilões se tornaram eventos que reuniam pessoas em torno de suas próprias promoções, e afastadas, física e socialmente, dos setores intermediários38.
Toda espécie de medo atingia os pobres, ao passo que também perturbava os setores intermediários. Tratava-se de um temor representativo da condição de insegurança social daqueles grupos que lutavam pela manutenção das linhas de crédito, contra a pobreza e pela conservação de seus status sociais39. A iminência das epidemias fazia com que essas inseguranças se estacionassem sobre corpos frágeis. A essas pessoas, cada vez mais pressionadas, a modernidade chegava como um amargo remédio que abria as portas para um novo mundo, mas que, também, lhes impunha a dura realidade das novas formas de trabalho e da exploração capitalista. Encurralados, esses setores procuraram disfarçar suas condições, comprando roupas nas lojas de fantasia ou no interior de uma lavanderia.
Um comércio secular disfarçado e o produto desse comércio exposto como forma de se agarrar a um status social perdido ou nunca alcançado. Disfarçar, fingir-se apresentável; essas máscaras encobriam tanto um vivo comércio de roupas usadas (em muitos casos protagonizado por mulheres)40 quanto escondiam as mazelas da conformação de uma classe média urbana na São Paulo de início do século XX. Os resultados dessa dissimulação não tardaram a aparecer. No pós-guerra, quando a cultura de consumo se instalou de forma definitiva, faltava-se formar ainda, no Brasil, a figura política do consumidor41.
Considerações finais
Um conjunto de informações publicadas a respeito de roupas usadas poderia apontar transformações numa dada cultura de consumo?
Partindo dessa questão, este artigo procurou escrutinar como o jornal Correio Paulistano, no período entre 1900 e 1914, produziu e testemunhou alterações na forma como as pessoas concebiam as roupas usadas.
Optamos por acionar a opinião publicada por um veículo de comunicação. Isso faz com que as vozes estudadas sejam extremamente recortadas. Valioso é o resultado desse recorte, uma vez que revela um pensamento decupado e preparado para ser discurso público. Esse conjunto textual amarrado faz com que a fonte se torne preciosa, não para compreender uma suposta “opinião pública” ou um “discurso dominante”, e sim para definir os lugares de gênero, de classe, de região e as visões políticas que demarcaram seus espaços no interior da cultura de consumo que nascia naqueles primeiros anos do XX.
Os sistemas de trocas, vendas e transmissão de roupas, entre as gerações, formavam práticas que orientaram convivialidades ao longo de séculos. Uma mudança tão profunda no olhar sobre a indumentária, embora fosse matizada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo industrial, não poderia prescindir das inúmeras formas como os indivíduos reinventavam suas corporalidades.
A primeira década do século XX, na cidade de São Paulo, foi esse momento de aceleração do tempo histórico, com as novas formas de transporte, comunicação e planejamento urbano. As constantes perdas de roupas, em diferentes espaços da urbe, revelam novas apreensões espaciais e temporais na azáfama da cidade; mas também ilustram corpos que, ao se movimentarem apressados rumo à modernidade, abandonavam os emblemas do século XIX.
Os mesmos corpos que deixavam as roupas no trem (e que não as resgatavam) aquiesciam com a caridade das senhoras ilustres da cidade. Essas senhoras doavam roupas e mais roupas, formando um cobertor sobre a pobreza. Um cobertor que seria sempre curto, é evidente.
Quando a imprensa, por meio de seus desencontrados textos sobre a epidemia de febre amarela, passou a reproduzir uma imagem da cidade relacionada ao progresso e à limpeza, o desprestígio das roupas usadas foi a fagulha que ajudou a produzir aquela fogueira que queimava os artefatos ligados ao passado. Embora os médicos indicassem que a febre amarela era transmitida por mosquito e que o periódico tenha publicado cartas ressaltando esse fato, ao lado dessas informações vinha o contínuo serviço de desinfecção das bagagens, a exposição da lista do número de mortos e a propaganda de produtos novos que salvava a humanidade de quase todos os males. Esse material editorial bem montado reforçava a repulsa pelas doenças e pelas “roupas dos doentes”. A palavra de ordem era a saúde ligada ao “novo”.
Alguns agentes de época - principalmente os mais pobres - resistiram a esses encantos da modernidade. Muitas lojas de objetos usados e lavanderias continuaram vendendo roupas de segunda mão. Fato marcante foi que na São Paulo de início do século, esse comércio se tornou cada vez mais disfarçado, pelo menos sob a óptica dos setores que queriam enxergar o progresso.
Foi assim que um vivo e importante setor do comércio de roupas, em muitos casos protagonizado por mulheres, passou a funcionar nos espaços das lavanderias e das lojas de fantasias. A lavanderia purificava os tecidos, reificava a história das vestes e redefinia o lugar do comprador. Já as lojas de fantasias se firmavam pelo comércio exclusivo de figurinos exógenos. Ao entrar nessas lojas, os corpos sofridos poderiam travestir-se. Foi nesses espaços que sobreviveu um nicho comercial de roupas usadas, no princípio do século XX. Tratava-se de um comércio disfarçado e que, por isso mesmo, reforçava o imaginário da doença e da pobreza associados às roupas de segunda mão.
Os medos, os anseios e as estratégias da população, perante os diferentes saberes em disputa, num contexto entre epidemias, reforçaram as apreensões cognitivas que já estavam em curso, acelerando a conformação de uma cultura de consumo balizada pelo descarte. A imprensa, que misturava esses saberes às suas expectativas e aos desígnios da propaganda, teve papel fundamental na construção da associação entre consumo, doença e descarte.
Fontes primárias
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1
Designação para a Estrada de Ferro Central do Brasil.
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2
PROVIDÊNCIAS Sanitárias. Correio Paulistano, 1º jan. 1900. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 2 maio 2020.
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3
Idem.
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4
Idem.
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5
A estação do Pary atendia à Estrada de Ferro São Paulo Railway.
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6
Para Jaime Larry Benchimol, havia uma confusão entre teorias microbianas, interpretações baseadas nos miasmas e a nova abordagem que enfocava diferentes etiologias e formas de transmissão. Esse embaraço de proposições vinha desde o final do século XIX, permitindo que um relativo consenso fundamentado na teoria miasmática a respeito do que se devia fazer para higienizar portos como o do Rio de Janeiro desse “lugar a um impasse e as controvérsias sobre os elos que deviam ser rompidos na cadeia da insalubridade urbana. As escolhas variavam conforme os habitats e necessidades específicas de cada germe incriminado, e o ponto de vista de vários atores sociais interessados na reforma do espaço urbano” (BENCHIMOL, 2000, p. 272; 2013, p. 122).
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7
PROVIDÊNCIAS Sanitárias, op.cit.
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8
A contaminação por meio das roupas era uma crença antiga. As roupas velhas além da contaminação por doenças - acreditava-se - poderiam também significar “contaminação dos hábitos” (ROCHE, 2004, p. 228).
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9
Os tecidos, de forma geral, e as roupas, em particular faziam parte dos inventários dos séculos XVIII e XIX no Brasil. Em um único inventário da região de Itu foi possível contabilizar: “No total, as roupas somaram 24$400 (vinte e quatro mil e quatrocentos réis). As peças de pano azul foram avaliadas em 9$480 (nove mil, quatrocentos e oitenta réis) e consistiam em um casacão, um fraque e um capote, de baeta azul havia um timão novo em 3$200 (três mil e duzentos réis). Ademais, encontramos duas camisas de bretanha no preço de 2$560 (dois mil quinhentos e sessenta réis), dois pares de meias de algodão em $480 (quatrocentos e oitenta réis), um jaleco e um par de meias de fustão em $800 (oitocentos réis) cada, um calção preto de duraque em $880 (oitocentos e oitenta réis), um lenço de pescoço sem informar tecido no preço de $200 (duzentos réis) e um hábito de terceiro do Carmo descrito pelo avaliador como já muito usado e com todos os seus pertences, no valor de 6$000 (seis mil réis)” (GUIDO, 2015, p. 2).
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10
A própria publicidade impressa, no final do século XIX e início do XX, passara da identificação do produto para a exposição de um ethos social. Foi em 1910, por meio da revista A Lua, que surgira no Brasil a figura do Homem-Reclame. O periodismo, no entanto, emprestava suas novas estratégias da indústria farmacêutica que criara a figura do propagandista como uma suposta “testemunha” da cura por meio do uso de novas fórmulas. Encontrava-se em curso uma “fábula da abundância”, mobilizada pelos conceitos de progresso infinito associado ao corpo permanentemente saudável (LEARS, 1994, p. 214; MARTINS, 2003, p. 300).
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11
Neste texto se usará o termo “roupas usadas” como sinônimo de “roupas de segunda mão”, seguindo os empregos feitos nas próprias fontes de início de século XX e pelos usos correntes na expressão oral em língua portuguesa.
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12
O jornal Correio Paulistano, em seu primeiro formato, existiu entre os anos de 1854 e 1963. No tempo que transcorre esta narrativa, o periódico possuía uma tiragem, em média, de 8.500 exemplares/dia. Durante sua longa existência, a publicação possuiu perspectiva conservadora, liberal e, desde 1889, encetou uma franca aproximação do Partido Republicano. Em 1900, o jornal era administrado por uma Sociedade Anônima. Por essas razões, o Correio Paulistano representava uma síntese das diversas correntes de pensamento da elite paulistana de início do século XX.
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13
A passagem das indumentárias de uma geração para a outra criava um elo difícil de ser rompido. Desde a época moderna, o comércio de roupas de segunda mão acalentou uma circulação de tecidos e modelagens, possibilitando um comércio regular de pequenos negociantes que sobreviveram frente à concorrência dos grandes mercantilistas, exatamente porque tramavam uma cadeia particular de produtos, gentes e espaços (LEMIRE, 2018, p. 115). Especialmente para o caso da capitania de São Paulo, Lígia Guido relata: “Se no momento da partilha dos bens aparentemente a divisão das peças de roupas e demais objetos relacionados à aparência segue uma divisão equânime entre os herdeiros, nas relações dos objetos transferidos na forma de dotes para as filhas no momento do casamento, notamos uma preocupação dos pais em proporcionar um padrão mínimo de comodidade ou mesmo de prover com alguns objetos o início do domicílio dos filhos. As roupas da pessoa falecida continuavam a vestir e proteger outros corpos, sendo doadas, arrematadas em leilão ou herdadas por filhos, netos ou pessoas próximas” (GUIDO, 2015, p. 190).
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14
A referência aqui é à imagem de Samuel D. Ehart, publicada na revista Puck, em 8 de agosto de 1900, intitulada The Trailing Skirt - Death Loves a Shinning Mark. Essa imagem foi utilizada em muitos escritos que procuram descrever a relação entre epidemia e indumentária.
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15
Desde o início do século a ideia de “fazer riqueza” era associada à cultura norte-americana. No dia 25 de abril de 1905, no jornal Correio Paulistano, anunciava-se a loteria nacional por meio da “feliz agência” de Ruben Guimarães. O garoto propaganda da loteria era uma imagem estilizada do Tio Sam (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 25 abr. 1905, p. 6. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br. Acesso em: 2 nov. 2020).
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16
O medo de contrair doenças não era infundado no início do século. Para o ano de 1912, “Registraram-se, na cidade de S. Paulo, 8585 fallecimentos, o que dá uma media diária de 24 e um coeficiente sobre mil habitantes de 21,46, calculada a população em 400.000 almas. Esse algarismo foi maior que o dos últimos anos e superior a ele só encontramos em 1897” (SÃO PAULO. Diretoria de Serviço Sanitario. Annuario Demographico: secção de estatística demógrafo-sanitaria: 1912. São Paulo: Typografia Brasil Rothschild, 1913, p. 19. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5187. Acesso em: 20 nov. 2020).
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17
No ano seguinte, esses descontentamentos culminaram na Revolta da Vacina, um dos acontecimentos mais importantes da história da República no Brasil. Para Sidney Chalhoub, a destruição das antigas formas de moradia, no final do século XIX, aliada à perseguição aos seus moradores e seus projetos republicanos impulsionaram as revoltas no início da centúria seguinte. Já Nicolau Sevcenko reconheceu nas causas imediatas de implementação de novas medidas sanitárias e urbanísticas, a partir do ano de 1902, os estopins para a Revolta. Cf. a esse respeito: Chalhoub (1996), Sevcenko (2003) e Fernandes (2003).
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18
Em 1902, Emílio Ribas iniciou os experimentos que refaziam os testes ocorridos em Havana, em 1901, e que já haviam indicado a transmissão da febre amarela por mosquitos. Buscava-se provar a transmissão por mosquitos e o caráter não contagioso da febre amarela. Além da publicação em jornal, os resultados das pesquisas foram relatados no 5º Congresso de Medicina, na sessão de medicina geral, da qual Emílio Ribas não participou pessoalmente (ALMEIDA, 2005, p. 84-85).
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19
CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 28 jun. 1903. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 20 maio 2020.
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20
Idem.
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21
Nosso recorte se inscreve sobre a cidade de São Paulo, no entanto, pesquisas já demonstraram que no início do século XX surgem novas categorias de produtos descartados em todo o mundo. Para o caso de Nova York, onde se têm dados em quilograma per capita desde 1900, verificou-se uma diminuição no número de resíduos de cinzas e um aumento no volume de papel, plástico e metal descartados diretamente no lixo residencial. Para além desse descarte direto, os considerados “affluents wastes” são formados também por têxteis, madeira, couro, borracha, entre outros. Enquanto os estudos ambientais já trabalhavam com esses dados há pelo menos trinta anos, a História do Consumo apenas recentemente alargou seus horizontes de pesquisa, passando a compreender o consumo não apenas como o que se adquire, mas também como o que se descarta na relação direta com as aquisições. Importante se torna destacar (e é esse o enfoque deste artigo) as narrativas construídas a respeito do descarte. Essas narrativas parecem-nos cada vez mais importantes para construir as novas sociabilidades urbanas, porque o inconcebível despojo dos objetos pessoais, para a geração de 1890, se tornou o novo lixo na década de 1905. Esse lixo teve seu volume dobrado (dado residencial per capita) entre o início da Primeira Grande Guerra e o final da Segunda Guerra Mundial (TRENTMANN, 2016, p. 624-625).
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22
A constatação de que durante o século XIX não se dispensavam as roupas de segunda mão com tanta facilidade pode ser comprovada pela comparação entre anúncios de jornais de meados do século XIX e os periódicos do século XX. Para esta pesquisa, cotejamos os anúncios do Correio Mercantil do Rio de Janeiro (C.1850) com os do Correio Paulistano (c.1900), podendo-se verificar nos leilões do século XIX uma variedade de “trastes, roupas usadas, lenções, fronhas, chapeos, cestas, quadros [...] e muitos outros artigos” e comprovando-se que no século XX, para um leilão com 194 lotes de produtos, não havia nenhuma peça de roupa (CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, 5 dez. 1853, p. 3; CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 23 fev. 1902, p. 4. Disponíveis em: http://memoria.bn.br/. Acesso em: 18 fev. 2021).
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23
Em 3 de outubro de 1911, havia 1.740 objetos em depósito no “Gabinete de achados e perdidos”. Nem todos esses objetos estão levantados no nosso levantamento. Como as fontes utilizadas foram os anúncios de jornal, a amostra é ilustrativa, mas não absoluta. Um outro problema metodológico é que uma vez que os números foram recuperados por meio dos anúncios do periódico e os objetos perdidos que não eram resgatados num período de três meses poderiam aparecer em mais de uma edição, a amostra pode ter sido inflacionada em alguns períodos. No entanto, para o propósito desta investigação essas distorções não formam empecilho à análise, uma vez que a curva de objetos, quer sejam perdidos, não resgatados ou repetidos em várias edições do jornal apontam para o mesmo problema: a desvalorização das roupas de segunda mão na São Paulo de início do século XX.
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24
CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 9 jan. 1913. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 2 maio 2020.
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25
Essa não era uma opinião geral. Era a opinião de um veículo de comunicação. Já faz algum tempo a História da Imprensa tem defendido a necessidade de problematizar os processos de engendramento de uma opinião como “opinião pública”, num dado tempo histórico. A pergunta necessária é: quais foram as forças políticas e econômicas que foram nomeadas como “opinião pública”? Geralmente, a partir dessa pergunta inicial, se descobre que essas forças agregavam uma viva repulsa pelo proletariado nascente (THOMPSON, 2013, p. 31).
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26
Os anúncios destacam: “um embrulho de roupas usadas”. Para todos os casos analisados não houve nenhuma ocorrência de esquecimento de uma peça nova, acabada de sair da loja (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 16 maio 1913. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 20 jun. 2020).
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27
Na década de 1910 houve uma mudança fundamental na indumentária feminina. Enquanto as abas dos chapéus aumentavam, as saias se tornavam mais afuniladas. Começava-se também a moda da bainha virada, que impedia o contato direto do tecido com o chão. As blusas mais folgadas substituíram as de busto sufocado, do período anterior. Os antigos tons claros foram substituídos por cores vivas. Em 1913, os vestidos com gola foram superados pelos com decote V. Eram muitas novidades para um curto período. A moda se transformava na velocidade do capitalismo industrial e, ao mesmo tempo, retratava movimentos artístico-culturais e anseios sociais pela transformação da roupa em meio ao processo de transformação dos lugares sociais do corpo. A lei do valor simbólico que fez com que o essencial estivesse “além do indispensável” revela aspectos fundamentais para o estudo das transformações das práticas de consumo: a despesa e a perda, tanto quanto na apropriação de bens (BAUDRILLARD, 2008, p. 42).
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28
Este foi o caso da Associação São Vicente de Paulo, em Higienópolis. Nessa associação, além das doações de roupa também havia confecção de peças para crianças (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 10 jun. 1913. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 16 fev. 2021).
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29
Num contexto de crise, como foi o final do século XIX e início do XX, o conceito e as práticas de caridade foram alterados. Para o caso da elite brasileira, a caridade reforçava uma situação de proteção patriarcal e, ao mesmo tempo, reafirmava a despolitização da compreensão sobre a pobreza. Os desvalidos ficavam à mercê da reciprocidade desigual, característica do liberalismo, ou, da ação benevolente que reforçava a estatura da elite dominante. Numa outra chave, é possível compreender como a caridade burguesa moldou os próprios sistemas públicos de saúde na tradição ibero-brasileira (NEVES, 2014).
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30
A partir de 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, as roupas usadas entraram, também, no circuito da Guerra. A “Commissão das Senhoras Paulistas” encarregara-se de recolher e reparar roupas de adultos e crianças para ajuda humanitária à Bélgica (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 9 jan. 1915. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 16 fev. 2021).
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31
Não se quer, neste artigo, romantizar o comércio de roupas usadas. A Historiografia, com frequência, joga um brilho de atividade alternativa sobre esee trato. Estudos recentes sobre o comércio de roupas usadas no tempo presente têm demonstrado como países como Moçambique, na África, possuem um largo comércio de roupas usadas dispensadas pelos ricos da Europa e da América do Norte. Esse comércio sustenta uma identificação dos moçambicanos com as marcas globais que produzem seus artigos utilizando-se de extrema exploração da força de trabalho em países como Índia, China e Indonésia. Para a África, o saldo dessas trocas “caridosas” é a desindustrialização e a menor aceitação dos africanos aos produtos locais; já para os países ricos, trata-se de um violento descarte baseado na cultura da fast fashion (BROOKS, 2015, p. 77).
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32
CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 6 jun. 1900.
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33
A água, a luz e o gás eram luxos que apenas os mais ricos possuíam. Assim, quando se queria alugar uma casa de alto padrão esses atributos vinham destacados: “Aluga-se uma esplendida casa para família de tratamento, com cinco quartos, escriptorio, sala de visitas, varanda, copa, banheiro, aluminada a gás e luz elétrica, com galinheiro, dois quartos, latrina para criados e lavadouro de roupas no quintal. Rua Pedroso, 52” (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 4 out. 1904. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 20 jun. 2020).
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34
Noca é o nome da personagem da empregada de Camila, no romance A falência, de Julia Lopes. A construção da personagem é elaborada a partir de uma característica central: Noca era uma exímia passadeira de roupas.
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35
RIO, João do. Psycologia urbana. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1911, p. 75. Vale lembrar que João do Rio é o pseudônimo de Paulo Barreto.
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36
CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 19 fev. 1900. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 20 jun. 2020.
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37
Essa luta das classes pobres e intermediárias pela manutenção de suas figurações no mundo público já era uma batalha perdida. Segundo Richard Sennett, “a cidade do espetáculo passivo era nova; era também uma consequência da civilidade pública estabelecida no antigo regime. Essa cultura anterior tivera que existir para que a burguesia a inflasse até chegar ao espetáculo, e dessa maneira despojasse, por fim, o âmbito público de sua significação enquanto uma forma de sociabilidade” (SENNETT, 2014, p. 186).
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38
Alguns leilões aconteciam no Parque Balneário, clube da elite paulistana que ficava na cidade de Santos. Esse deslocamento entre as cidades de São Paulo e de Santos parece indicativo da necessidade de encobrir e demonstrar, ao mesmo tempo, os objetos de luxo adquiridos durante esses eventos.
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39
A posição de classe é sempre dada historicamente sob condições político-econômicas e no campo de disputas e possibilidades construídas entre grupos diferenciados. Para o caso das classes médias, para além da carga normativa, é importante destacar os processos políticos e discursivos que determinaram que conjuntos de pessoas com condições socioprofissionais distintas se agrupassem em torno de projetos, ou, como se tem demonstrado neste artigo, se identificassem por meio da resolução, ainda que precária, de suas próprias inseguranças (ESTANQUE, 2015, p. 69; OLIVEIRA, 2014, p. 29; LEITE, 2019).
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40
A recomposição das roupas também possuía especializações. O anúncio da “Casa Nenê” destacava: “concertam-se roupas brancas usadas” (CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 3 set. 1904. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso em: 5 nov. 2020).
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41
O tema do papel político do consumidor, na história recente do capitalismo, é central no campo de estudos do consumo. As primeiras pesquisas sobre esse assunto surgiram das próprias questões de como as pessoas agiam nos mundos públicos e quais leituras esses indivíduos faziam dos equipamentos de Estado. Essas investigações superaram a ideia de que houve uma substituição das experiências baseadas em construções coletivas por uma alienação provocada por devaneios consumistas. O jogo foi muito mais complicado. As leis, o incentivo ao crédito, a propaganda, e a própria forma de organização dos partidos políticos gestaram sociabilidades, dando novos sentidos às práticas de consumo. Nos últimos 30 anos, pesquisadores buscaram compreender a ideia de cidadania através do próprio “consumidor cidadão”, salientando que quando o consumo se tornou importante definidor de sociabilidade, ele imprimiu as marcas, os tipos de participação, de vivências e de reivindicações nos espaços públicos (LEITE, 2019). É certo que essas histórias se concentram apenas nos domínios da economia. O importante a reter desse debate é que, ao despolitizar a figura do consumidor, no momento de expansão do mercado de produtos industriais no Brasil, renunciou-se a um ente político fundamental para o jogo capitalista: o trabalhador assalariado. Assim, as práticas de consumo demonstram que a anátema de Florestan Fernandes continua válida: um eterno círculo onde as estruturas de referência acionam as antigas formas de mando para construir a modernidade de suas práticas, formando “um mundo capitalista singular e problemático” (FERNANDES, 2006).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Dez 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
23 Fev 2021 -
Aceito
22 Jun 2021