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Distribuição da população escravizada pelas unidades domiciliares de Guarapiranga, Mariana, Minas Gerais (1766-1810)

Distribution of the slaved population by the household units in Guarapiranga, Mariana, Minas Gerais (1766-1810)

Distribución de la población esclavizada por domicilios en Guarapiranga, Mariana, Minas Gerais (1766-1810)

RESUMO

O objetivo deste artigo consiste em analisar a distribuição e composição da população escravizada numa das freguesias mais prósperas do termo de Mariana no decorrer do século XVIII: a de Guarapiranga. Para tanto, é adotado como fonte o inédito “Rol dos que confessaram e comungaram no ano de 1766”, cujos números são comparados com os do pouco conhecido Mapa da população da Leal Cidade de Mariana no ano de 1810. Objetiva-se dessa maneira compreender a distribuição da população escravizada pelas unidades domiciliares da freguesia no decorrer das décadas.

Palavras-chave:
população; escravidão; unidades domiciliares

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the distribution and composition of the enslaved population in one of the most prosperous parishes of Mariana’s district during the 18th century: Guarapiranga. To this end, the original “Rol dos que confessaram e comungaram no ano de 1766” is adopted as a source, its numbers being compared with those of the little known Mapa da população da Leal Cidade de Mariana no ano de 1810. The purpose is to understand the distribution of slaved population by household units of the parish over the decades.

Keywords:
population; slavery; household units

RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar la distribución y composición de la población esclavizada en una de las parroquias más prósperas de región de Mariana durante el siglo XVIII: Guarapiranga. Para ello se toma como fuente el inédito “Rol dos que confessaram e comungaram no ano de 1766”, cuyos números se comparan con los del poco conocido Mapa da população da Leal Cidade de Mariana no ano de 1810. De esta manera, el objetivo es comprender la distribución de la población esclavizada por hogares en la parroquia a lo largo de las décadas.

Palabras clave:
población; esclavitud; unidades de hogar

A escravidão no Brasil tem suscitado uma grande quantidade de estudos. Múltiplos e extensos debates circunscreveram objetos, estabeleceram problemáticas, mobilizaram teorias, referendaram ou alteraram posições. O aprofundamento da pesquisa arquivística, bem como o levantamento de novas temáticas, enriqueceram significativamente o debate sobre a escravidão moderna, fomentando, entre outras perspectivas, análises sobre a ação sociocultural dos cativos, comparações entre diversos ambientes coloniais, o estudo de conexões firmadas por mecanismos administrativos e institucionais, a investigação de mobilidades comerciais e humanas que desenhavam os contornos dinâmicos das “economias-mundo”, e a valorização do conhecimento de diferentes sociedades africanas.1 1 Não é possível, nem intenção dos autores, realizar um balanço temático e bibliográfico sobre o complexo campo de estudos da escravidão, cabendo aqui a tarefa modesta de indicar alguns trabalhos a título de introdução. Para além da História Geral da África (2020), publicada pela Unesco, indicamos as obras de Verger (2002), Gorender (1990), Lara (2007), Russel-Wood (2005), Parron (2015), Marquese (2007) e Wallerstein (1974).

Sem desconsiderar a riqueza do debate produzido sobre o referido tema, o presente artigo traz contribuições mais pontuais de ordem demográfica, as quais, se não desenvolvem problemas relativos à escravidão, servem ao exercício comparativo e ao cômputo da presença africana ou escravizada em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII.2 2 Entre os trabalhos mais recentes sobre Guarapiranga, confere-se especial atenção ao século XIX e às listas nominativas de 1831-33 e 1838-39. Nesse sentido, ver: Lemos (2012) e Valente (2016). Uma exceção ao recorte temporal oitocentista, que recorre a inventários post-mortem, encontra-se em Alves (2012). Precisamente, aborda a freguesia de Guarapiranga recorrendo a duas listas populacionais referentes aos anos de 1766 e 1810, com especial destaque para a primeira, de caráter inédito. O artigo aborda as seguintes questões: qual era a população de Guarapiranga em 1766 e 1810? Qual a relevância, a composição e a disposição da presença escrava nessa freguesia?3 3 As considerações apresentadas neste artigo constituem um desdobramento das análises realizadas em texto anterior: ANTUNES, Álvaro de Araujo; SILVEIRA, Marco Antonio. Deixando de ser fronteira: território, população e conflito na conquista e colonização de Guarapiranga. Varia Historia, v. 35, n. 69, dez. 2019, p. 857-93.

Economia e população na freguesia de Guarapiranga

O encaminhamento de tais questões demanda, de início, uma breve caracterização da região mineradora e de sua produção, a qual ajudará a compreender a dinâmica populacional de Guarapiranga. Já há algumas décadas, os estudos sobre a economia mineira setecentista têm apontado para o desenvolvimento de atividades agropecuárias desde o início da colonização de Minas Gerais, as quais coexistiram com a atividade mineradora e se incrementaram após a decadência desta última, especialmente a partir da década de 1760 (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e pobres em Minas Gerais: produção e hierarquização social no mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte, MG: Argumentvm, 2010.; CARRARA, 2007CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais: produção e mercado interno de Minas Gerais: 1674 -1807. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2007.; MARTINS, 2018MARTINS, Roberto Borges. Crescendo em silêncio: a incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins e Associação Brasileira de Pesquisa em História Econômica, 2018.). A relevância da agropecuária como alternativa à mineração do ouro e como fator indispensável para a efetivação desta e para a formação da sociedade nas Minas consiste em fenômeno decisivo não apenas para se explicar a ocupação de inúmeras áreas pertencentes às quatro comarcas que constituíam a capitania, como também para se compreender a manutenção nela do maior contingente cativo e populacional do Brasil após a Independência de 1822.4 4 A constatação, feita por Roberto Borges Martins, de que o maior contingente de escravos no Brasil do século XIX estava em Minas Gerais deve ser associada ao fato de que na mesma época esta capitania, depois província, abarcava também a maior população brasileira (MARTINS, 2018). A expansão das atividades agropecuárias foi importante, por exemplo, para a ocupação mais intensa da comarca do Rio das Velhas, aspecto que foi acompanhado por fenômenos cruciais tais como, de um lado, a constituição nesta região de um grupo político que viria a desempenhar papel relevante no processo independentista e, de outro, a organização de unidades familiares mais amplas que assumiam em alguma medida a forma das estruturas patriarcais (LENHARO, 1979LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-1842). Rio de Janeiro: Símbolo, 1979.; SILVA, 2009SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada na Província de Minas Gerais (1830-1834). São Paulo: Hucitec, 2009.; BRUGGER, 2007BRUGGER, Silvia. Minas patriarcal: família e sociedade - São João Del Rey, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2007.).

No caso do termo de Mariana, destacado centro minerador, os estudos vêm apontando para a existência de uma economia diversificada e capaz de se adaptar aos reveses provocados pela decadência da exploração aurífera. Seu considerável território de 60 mil km² abrigava freguesias com distintas potencialidades econômicas, marcadas por graus diferentes de ocupação, aspectos que se refletiriam na distribuição desigual da população pelo termo ao longo do Setecentos (ANDRADE, 2008ANDRADE, Francisco Eduardo. Entre a roça e o engenho: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. Viçosa: Editora UFV, 2008.). No início da segunda metade do século XVIII, a freguesia de Guarapiranga se destacava por estar se tornando uma área consolidada de colonização, na qual se encontrava um contingente populacional importante, formado em sua maioria por escravos africanos. Ademais, como ocorreu em outras localidades da capitania de Minas Gerais, a colonização da região se deu em meio ao conflito com populações indígenas, que continuaram a se fazer presentes mesmo após o estabelecimento de Guarapiranga, ora se integrando à sociedade colonial, ora lutando para manter sua organização social e algum controle sobre o território que ocupavam havia muito tempo (RESENDE, 2003RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. 2003. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2003. Disponível em:Disponível em:http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280439 . Acesso em:20 jan. 2020.
http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
; PAIVA, 2010PAIVA, Adriano Toledo. Os indígenas e os processos de conquista dos sertões de Minas Gerais (1767-1813). Belo Horizonte: Argvmentum, 2010.).

O surgimento de Guarapiranga como foco colonizador deveu-se à exploração aurífera, o que não afastou o desenvolvimento agropecuário, ligado às necessidades básicas de alimentação e consumo. De todo modo, foi a descoberta do ouro nas margens do rio Piranga que serviu de atrativo para o deslocamento de um número considerável de migrantes.5 5 Segundo o relato de Luís José Ferreira de Gouveia, morador da freguesia, sua ocupação teria se dado desde o início da década de 1690 em razão da descoberta de ouro no rio Piranga por parte dos sertanistas paulistas Francisco Rodrigues Sirigueio e Antônio Pires Rodovalho (MATOSO, 1999, p. 258). Como era comum nos movimentos sertanistas que resultavam em assentamentos, ergueu-se uma primeira capela na localidade já em 1695. Em 1724, Guarapiranga foi reconhecida como freguesia colada, dentre outros motivos pelo considerável número de fiéis que nela residiam. Tratava-se de uma região produtiva e atrativa, como pode ser evidenciado pela análise de sua população, que indica a existência de expressivo contingente cativo. A freguesia contaria com uma economia dinâmica e diversificada, capaz de tornar-se o maior núcleo populacional do termo de Mariana na segunda metade do século XVIII e no início do XIX.

O inédito “Rol dos que confessaram no ano de 1766” permite que se conheça parte significativa dos indivíduos que habitavam a freguesia de Guarapiranga, apesar de, muito provavelmente, encontrar-se incompleto.6 6 É provável que se trate de um dos mais antigos documentos do gênero para a capitania de Minas Gerais. Existe um registro de 1749 embasado em róis de confessados, mas estes não foram localizados nos arquivos. A grande maioria dos róis de Mariana encontra-se conservada no Arquivo Eclesiástico da Cúria Metropolitana de Mariana (AEAM). Já o rol de 1766 encontra-se no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de ­Mariana (AHCSM), 2o Ofício, sob o título “Rol dos que confessaram no ano de 1766”. Para além do problema da incompletude, é preciso ressaltar que, de acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, deveriam ser registrados nos róis apenas os homens com mais de 14 anos e as mulheres com mais de 12 que comungassem ou confessassem os pecados cometidos (CPAB, 1953, p. 61). A análise crítica desse tipo documental também não deve considerar as listagens como um retrato fiel da sociedade (BACELLAR, 2001, p. 30). O arrolamento não menciona - ao menos não nominalmente - algumas áreas importantes da freguesia, em especial os povoados de Manja Léguas, de São José do Xopotó e do Desterro do Melo, bem como a barra do rio Bacalhau e a região do rio Turvo. Porém, mesmo parcial, o rol de 1766 traz elementos importantes para se conhecer a população de Guarapiranga, uma vez que apresenta registros pontuais, feitos domicílio por domicílio.

Figura 1:
Mapa da Freguesia de Guarapiranga

Nele são arrolados 3.702 habitantes, quantia que certamente não correspondia à totalidade dos moradores, o que fica claro quando são consultados registros populacionais de 1749 e 1810. No “Rol de pessoas de confissão e comunhão de diversas vilas de Minas Gerais”, datado de 1749, consta que o termo de Mariana possuía 11 freguesias e 36.102 habitantes. Destes, 5.536 seriam fiéis residentes em Guarapiranga, número só excedido pelo da cidade de Mariana, onde comungaram 7.329 pessoas (MATOSO, 1999MATOSO, Caetano da Costa. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999., p. 706-707). Mais de 60 anos depois, um mapa populacional de 1810, que se encontra sob a guarda do Arquivo Público Mineiro (APM), apresentava a população de 13 freguesias de Mariana, dentre as quais Guarapiranga figurava como a maior, com 14.290 habitantes. Este número compunha 30,2% de toda a população do termo, naquela altura com 47.378 moradores.7 7 Mapa da população da Leal Cidade de Mariana e seu termo no ano de 1810. Arquivo Público Mineiro (APM). Secretaria de Governo (SG), caixa 84, documento 54. Há um problema com a somatória desse mapa. Nele são indicados dois totais: um de 47.378, resultante do resumo das quantias apresentadas no mapa, organizadas por localidade, gênero e cor da pele; o outro, de 47.398, derivado do resumo das quantias relativas aos livres (e libertos) e escravos. Quando, porém, o pesquisador soma os totais de cada freguesia, o resultado geral é de 46.894, isto é, 481 ou 501 pessoas a menos do que o referido nos dois resumos apontados. É difícil entender a origem da contradição do mapa. Aqui se optou por adotar o mencionado total para Guarapiranga (14.290), resultante da soma de todas as colunas pertencentes à freguesia, bem como o total geral de 47.378. Como a diferença entre as três somas totais gira em torno de 1% da população do termo, ela não impacta a análise apresentada neste artigo e no anterior. Ressalte-se ainda que, segundo os dados apontados acima, em 1810 Guarapiranga possuía cerca de 2,5 vezes mais habitantes do que o registrado em 1749. Já a sede do termo, que na metade do século XVIII aparecia como a freguesia mais populosa, na primeira década da centúria seguinte declinara para 5.093 moradores, ou seja, 10,7% da população do termo. Assim, considerando-se a evolução ao longo do tempo com base nos documentos apresentados, é possível sugerir que a população de Guarapiranga fosse superior àquela encontrada no rol de 1766, já que a população desta freguesia achava-se em ascensão.

Apesar de não trazer o registro completo da população - tendo-se perdido provavelmente entre um terço e um quarto do total dos habitantes arrolados na freguesia - o rol de 1766 permite que sejam realizadas análises mais qualitativas sobre a população e a escravidão na região. Como dito anteriormente, o referido documento descreve cada um dos domicílios visitados, os quais abarcam 3.702 indivíduos. Desse conjunto, 2.173 eram escravos, o que representava 58,7% da população total. O percentual considerável de cativos ratifica a caracterização de Guarapiranga como uma região produtiva marcada por certa peculiaridade face ao contexto geral da escravidão em Minas Gerais - peculiaridade que se expressa na própria organização territorial da freguesia.

O contingente de escravos em Guarapiranga

No que se refere à capitania de Minas Gerais, as investigações de Herbert Klein e Francisco Vidal Luna identificaram um aumento constante do número de escravizados ao longo da primeira metade do século XVIII: 20.000 cativos em 1710; 35.000 em 1717; 100.000 em 1730. Em 1760, década na qual se inscreve o rol de confessados aqui analisado, o número de escravos nas Minas, ainda em ascensão, teria atingido a quantia de 249.000 indivíduos. Assim, os 2.173 escravos contabilizados no rol de 1766 representariam 0,9% do total de cativos de toda a capitania, um número pequeno que deve ser considerado à luz da incompletude do documento e da extensão das Minas Gerais e de Mariana (LUNA; KLEIN, 2010LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. O escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.).

Em termos absolutos, Guarapiranga traçou uma curva ascendente em relação à posse de escravizados, de tal modo que em 1810 não apenas contava com a maior população do termo de Mariana, como também possuía o maior contingente de cativos. Nesse ano, Guarapiranga abarcava 5.646 escravos, o que representava 30,3% do contingente cativo de todo o termo de Mariana, que era de 18.612, e 39,7% da população da freguesia. Este último dado mostra que, apesar do crescimento absoluto no número de escravizados, houve queda em termos relativos. No entanto, este foi um fenômeno geral nas Minas da passagem para o século XIX, quando o número de livres e libertos - e, consequentemente, de pequenos e médios sitiantes - aumentou consideravelmente, impactando também o movimento de ruralização econômica. Uma vez que, como indicado anteriormente, em 1810, a população do termo de Mariana alcançava 47.378 habitantes, observa-se que 39,3% (os referidos 18.612) dela eram escravos. Essa constatação torna os números de 1766 ainda mais significativos, pois, como mencionado há pouco, o rol indica que na época 58,7% da população de Guarapiranga eram cativos.

O rol de 1766 viabiliza uma análise mais detalhada da população e dos escravizados que viveram em Guarapiranga, bem como permite que se conheça um pouco de seu perfil produtivo. A Tabela I apresenta a distribuição de habitantes e domicílios por diversas áreas que compunham a freguesia. Embora seja difícil separar a distribuição territorial e a organização dos domicílios da análise do perfil da população escrava, este último aspecto será priorizado neste artigo. De início, é possível observar que os dados do “Rol dos que confessaram e comungaram no ano de 1766” possibilita a avaliação de quais áreas se encontravam em situação de maior prosperidade nos limites da freguesia de Guarapiranga, e isto não apenas em razão do número de unidades domiciliares, mas primordialmente pela quantidade de habitantes no geral e de escravos em particular. Nesse sentido, é preciso distinguir duas regiões dentro da freguesia: aquela que envolvia as unidades domiciliares ao longo do rio Piranga, assinaladas em azul; e a que diz respeito aos domicílios estendidos ao longo e a oeste e leste do rio Xopotó, indicadas em verde. Há, assim, um eixo horizontal e outro vertical definidos, respectivamente, pelo Piranga e pelo Xopotó (Figura I). O maior peso do segundo em relação ao primeiro é indiscutível.

Tabela 1:
Distribuição de domicílios, habitantes e escravos por localidade: Freguesia de Guarapiranga

Embora o eixo vertical abarque apenas 94 unidades domiciliares, número bem inferior aos 299 situados no horizontal, a composição dos domicílios varia bastante de um caso para o outro: enquanto em torno do Piranga encontram-se 2.374 habitantes, dos quais 1.258 (53,0%) são escravizados, ao longo do Xopotó esses números são, respectivamente, 1.328 e 915 (68,9%). Mais ainda, se no eixo horizontal há 7,9 moradores por unidade domiciliar, dos quais 4,2 são cativos, no eixo vertical os valores são de 14,1 e 9,7. Tais números se explicam em parte pelo fato de a sede da freguesia encontrar-se às margens do Piranga, e não por acaso os espaços mais urbanizados do arraial do terreiro da matriz e do arraial de cima apresentam taxas baixas de habitantes e escravos por domicílio. De toda forma, é significativo que mesmo no eixo horizontal se encontrem áreas nas quais a maior presença de cativos indique a ocorrência de produção agropastoril em maior escala - como nos casos do Caminho de Pirapetinga e da Capela de Santo Antônio do Calambau.

Mas é no eixo vertical que se deu fundamentalmente a expansão econômica de Guarapiranga por volta da metade do século XVIII. Com exceção das poucas unidades situadas no Brejaúbas, todas as áreas ao longo, a oeste e a leste do rio Xopotó possuem índices que superam de maneira expressiva as médias totais. Merece destaque o núcleo de Nossa Senhora do Rosário do Xopotó, também conhecido como Brás Pires, que, localizando-se próximo ao rio Piranga - e, portanto, próximo ao cruzamento dos dois eixos -, abrigava algumas unidades domiciliares vastas e com expressivo contingente escravo. As cinco unidades desse núcleo eram as seguintes: a de Brás Pires Farinho, o fundador da localidade, com 23 escravizados; a de Manuel Pires Farinho, que vivia com Rosa Maria de Jesus, sua esposa, com Maria, provavelmente sua filha, e com oito cativos; a de Francisco Pires Farinho, que também vivia com sua esposa, Genoveva Maria da Luz, e mais quatro escravos; a de Antônio de Araújo Esteves e Bento Antunes, com expressivos 95 cativos; e a do padre Antônio Martins de Medeiros, com 23.

Esses dois últimos domicílios tinham composições que não eram propriamente incomuns nas grandes propriedades de Guarapiranga. Em relação ao maior deles, o rol traz a fórmula “escravos de Antônio de Araújo Esteves” ou “escravos de Bento Antunes”. Embora o primeiro personagem possuísse muito mais cativos que o último, é difícil saber ao certo quem era o chefe do domicílio ou mesmo se as terras não pertenciam também à família Farinho. Quanto à unidade domiciliar encabeçada pelo padre, ela era composta ainda por Francisco Martins de Medeiros e Januário Martins, ambos definidos como feitores e provavelmente parentes do sacerdote. Havia ainda outro indivíduo com o mesmo sobrenome dos demais, João Martins de Medeiros, o qual morava “na mesma casa”, era casado com Ana Fernandes Farinha e tinha cinco ou seis filhos.8 8 A dúvida advém do fato de que no rol aparecem em sequência seis nomes sem indicação de sobrenome, o que era comum na designação de filhos. No entanto, um deles, o de Joana, não é, como no caso dos demais, explicitamente definido como filho de João Martins de Medeiros. São nítidos, pois, os vínculos entre as cinco unidades que circundavam a capela do Rosário do Xopotó, todas derivadas da autoridade de Brás Pires, que, direta ou indiretamente, controlava 173 escravos, os quais representavam 88,4% do total de moradores do núcleo. Ademais, havia ainda três outras parentes do patriarca que viviam em paragens próximas: Liberata Pires Farinha, casada com Eduardo de Campos Maciel, que era chefe de uma unidade domiciliar com 33 escravizados no ribeirão de Santo Antônio, na margem leste do Xopotó, do outro lado do povoado do Rosário; Clara Pires Farinho, mulher de Manuel Leitão de Almeida, que também no Santo Antônio dirigia uma unidade com dez cativos; e Maria Pires Farinho, esposa de Veríssimo da Silva, que chefiava um domicílio com 15 escravos em São Caetano da Espera.

A pujança econômica de Guarapiranga na década de 1760 pode ser atestada ainda pelas características de gênero de seu contingente escravo, havendo, como indica a Tabela 2, ampla predominância de cativos do sexo masculino. Observe-se que, do total de 2.173 cativos constantes no rol, 1.779 (81,9%) são homens e 380 (17,4%) mulheres, não sendo possível identificar o gênero em 15 casos. A predominância do sexo masculino sobre o feminino, expressa numa relação de 4,7 homens para cada mulher, era resultado das práticas adotadas no comércio internacional de escravos, mas também, e de modo especial, das estratégias de exploração da mão de obra na economia colonial. Naquela época, os escravos homens eram privilegiados como força de trabalho sempre que as atividades em questão exigiam maior vigor físico, o que não afastava as mulheres dos rigores da escravidão. Vale lembrar que, embora Guarapiranga constituísse na metade do Setecentos um foco de exploração agropecuária, a produção aurífera ainda se mostrava relevante, e isto numa freguesia cuja expansão se deu claramente em função de rios mais ou menos caudalosos. No relato que elaborou em 1750, Luís José Ferreira de Gouveia, morador de Guarapiranga, descreveu o cenário da freguesia indicando a existência de estruturas e instrumentos tais como roças, fazendas, lavras, rodas de rio, engenhos de cana de bois, engenhos de água, pilões, moinhos, jiraus e pontes.9 9 “Informação das antiguidades da freguesia de Guarapiranga” (MATOSO, 1999, p. 255-261).

Tabela 2:
Total e porcentagem dos escravos segundo o gênero: Freguesia de Guarapiranga - 1766

Tomando-se arrolamentos de 1786 e 1805, Douglas Libby, analisando a capitania mineira como um todo, constatou que em tais ocasiões a proporção era de pouco mais de dois homens para cada mulher, somados os escravizados nascidos no Brasil e os oriundos do continente africano. Conforme Libby (2007), a diminuição na importação de escravos no período estudado foi acompanhada do aumento do número de cativos nascidos no Brasil e da consequente diminuição entre os gêneros. Tal constatação deve ser pensada juntamente à informação, referida acima, de que a porcentagem de livres e libertos na população mineira cresceu no mesmo período, suplantando à de escravos. Tais mudanças foram criando as condições para a ampliação, na virada para o século XIX, da quantidade de pequenas propriedades desprovidas de trabalho compulsório ou mantidas pela atividade de poucos cativos. Se em algumas regiões a grande propriedade ancorada em crenças e estruturas patriarcais prosperou, há de se sublinhar que esse fenômeno coexistiu com o seu oposto, isto é, com a proliferação de pequenos sítios e de trabalhadores livres em situação precária. Não se tratava de fenômeno novo, muito pelo contrário (SOUZA, 1982SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.). Mas a conjugação de fatores tais como o aumento da quantidade de livres e libertos com nenhum ou pouco recurso, a decadência da mineração, a ruralização econômica e a ocupação de terras em áreas de fronteira ou fracamente colonizadas tenderam a conferir ao problema um aspecto peculiar.

A Tabela 3 traz informações que não apenas ajudam a compreender o significado da presença de mulheres no contingente cativo de Guarapiranga, como também permitem que sejam aprofundadas algumas observações de caráter mais geral feitas anteriormente. Apresentar a distribuição do total de escravizados, assim como especificamente a de mulheres escravas, pelas diversas localidades de Guarapiranga, torna a comparação entre os eixos do Piranga e do Xopotó mais precisa. Embora, como se viu, a porcentagem de cativos em relação à população geral seja maior neste último eixo frente àquele (68,9% x 53,0%), nota-se por meio da Tabela 3 que havia mais escravos na extensão horizontal do que na vertical (58% x 42%). Tal constatação, todavia, ainda que sugira certo equilíbrio entre ambos os eixos, não parece esvaziar o protagonismo do rio Xopotó. Afinal, deve-se observar que, se excluídos os valores concernentes à curva de sentido setentrional do eixo horizontal - a qual abarcava o ribeirão da Tapera e, de modo especial, a capela de Santo Antônio do Calambau -, o peso deste cai significativamente. A região que compõe esta curva chega a ser de fato ambígua, pois não seria de todo inadequado compreendê-la como extensão do eixo vertical, o povoamento do caminho para Tapera (o qual ligava Guarapiranga à cidade de Mariana) sendo visto como prolongamento daquele que se deu às margens do Xopotó. É preciso ainda acrescentar, em relação a este rio, que sua parte situada no extremo-sul da freguesia, no caminho para Desterro do Melo, não consta do rol de 1766, provavelmente porque parte dele se extraviou. Tais observações, enfim, tendem a ratificar a maior importância do rio Xopotó na colonização de Guarapiranga, ainda que a sede da freguesia não estivesse nele estabelecida.

Tabela 3:
Distribuição de escravos por localidade: Freguesia de Guarapiranga - 1766

Quando se avalia a distribuição das mulheres escravas pelas localidades, percebe-se que, proporcionalmente, elas estavam mais presentes no eixo horizontal (traçado pelo rio Piranga) do que no vertical (do rio Xopotó): enquanto para o total do contingente a relação entre ambos os eixos é de 58% x 42%, no caso específico das mulheres é de 62% x 38%. Enfim, quase dois terços das escravizadas se achavam nas regiões em torno do rio Piranga, aí incluídas as do Perapetinga e do caminho para Tapera. Mesmo se este último for excluído do eixo horizontal, restam ainda, na extensão que vai do Pirapetinga ao Calambau (seis primeiras linhas da tabela), 157 cativas, ou 41,4% do total de escravizadas. Na sede da freguesia (terreiro da matriz e arraial de cima), aliás, havia 49 mulheres escravas, ou 12,9% do total. Tais valores têm de ser relacionados com o fato de que é também na extensão Pirapetinga/Calambau que as porcentagens de mulheres cativas por domicílio superam as porcentagens relativas aos escravos como um todo (nas quais predominam amplamente os homens) - basta comparar a segunda (% E) e a quinta coluna (% M) das ditas seis primeiras linhas. Conclui-se, assim, como previsto, que as mulheres cativas tinham peso maior nas áreas tendencialmente mais urbanizadas. A esse respeito, é importante sublinhar, com base na Tabela 1, que 248 dos 393 domicílios apontados no rol de 1766, isto é, 63,1% do total, localizavam-se na referida extensão Pirapetinga/Calambau. Quando são excluídos os números relativos à curva sul do eixo horizontal, nota-se que entre a sede e o entroncamento do Piranga com o Xopotó (linhas 1, 2, 5 e 6) havia 187 domicílios (47,6% do total). Aparentemente, essa era a região onde mais se concentravam atividades artesanais e comerciais.

Entre livres e libertos, que totalizavam 1.529 pessoas, havia 1,5 homem para cada mulher (920 / 609) - sendo 60,2% homens e 39,8% mulheres; entre os escravos essa relação subia para 4,7, já excluídos os 15 casos em que o gênero é desconhecido (1.779 / 379). A relação para a população total era de 2,7 (2.699 / 988), sendo 73,2% homens e 26,8% mulheres (sempre descontados os 15 casos referidos). Assim, Guarapiranga, em 1766, apresentava características comuns a regiões de colonização relativamente rápida, atraindo não apenas acentuado número de escravos, principalmente masculinos, em proporção superior à encontrada no período estudado por Libby, como também boa quantidade de solteiros. A consulta ao Mapa da população da Leal Cidade de Mariana e seu termo no ano de 1810, por sua vez, indica um quadro distinto em alguns aspectos, como se pode ver na Tabela 4.

Tabela 4:
População de Guarapiranga em 1810 segundo gênero e qualidade10 10 As categorias de “branco”, “pardo” e “preto” são referidas no próprio mapa de 1810. Durante o século XVIII o termo “preto”, que indicava qualidade, assumiu ora um sentido mais genérico, ora um sentido mais específico. No primeiro caso, designava a cor da pele sem distinguir a qualidade específica e a procedência do indivíduo. Esse uso é percebido no modo como eram identificadas as unidades militares: tropas ou regimentos de “homens pretos”. No segundo caso, o termo referia a procedência africana, contrapondo-se, portanto, ao termo “crioulo”, que indicava a pessoa nascida na América. No mapa de 1810 adota-se certamente o uso genérico. Na Tabela 4 foi adotado o uso mais específico.

Quase meio século depois da confecção do rol de 1766, a relação entre gêneros havia caído bastante, principalmente entre os cativos, embora continuasse a haver maioria masculina. As razões dessa mudança já foram apontadas acima: para além da decadência da mineração e do avanço da agropecuária, houve a conjugação do crescimento vegetativo na capitania (o qual contribui para o nivelamento quantitativo dos gêneros) com a diminuição da importação de escravos da África. Não por acaso a população parda alcançou a marca de 30,4% do total e os livres e libertos chegaram a 60,5%. Como visto anteriormente, os cativos, que representavam 58,7% da totalidade de habitantes da freguesia em 1766, eram agora 39,5%. Seja como for, entre todas as categorias descritas no mapa, a dos escravos pretos era a que alcançava a maior porcentagem (33,3% do total da população, exatamente um terço). Porém, apesar da importância assumida pela importação e reprodução internas, é impossível definir por meio do mapa de 1810 quantos escravos, classificados genericamente como pretos e pardos, haviam efetivamente nascido no Brasil.

Procedência e posse de escravos em Guarapiranga

A listagem de 1766 permite detalhar informações sobre a procedência dos escravos em 37,7% dos casos, o que não é possível para o registro de 1810. Porém, a análise mais ampla do documento de 1766 sobre esse ponto é prejudicada porque, embora em alguns casos o arrolador tenha considerado importante indicar a qualidade dos escravos para melhor identificá-los, no geral avaliou-se que tal operação não era necessária. De toda forma, como indica a Tabela 5, dos 862 cativos para os quais há informação, percebe-se a ampla predominância de africanos. Estes, denominados “pretos”, compunham expressivos 75,1% do total dos escravos para os quais foi informada a qualidade. Caso se adote a hipótese factível de que esse mesmo padrão, pouco mais ou menos, também conformava o grupo de 1.311 cativos para os quais não há informações, pode-se sugerir que os escravos africanos constituíam em torno de 45% da população total da freguesia, o que coloca questões sobre o impacto social, cultural e político desses indivíduos - provenientes de diferentes sociedades constituídas na África -, na vida de uma freguesia localizada em meio aos sertões do termo de Mariana.

Se não é possível explorar aqui a complexidade de tais aspectos, importa pelo menos destacar que a maior parte dos africanos escravizados em Guarapiranga provinha da África Central, principalmente de Angola e Benguela.11 11 É certo que as formas de organização do “reino Ndongo” sofreram alterações com as influências portuguesas no século XVI, a ponto de seus chefes adotarem a fé cristã e os modelos de governo europeus. No entanto, dificilmente isso apagaria a importância política das linhagens locais e as divergências que configuravam e reconfiguravam as identidades africanas na América (MACEDO, 2015). Deve-se, contudo, fazer a conhecida ressalva de que essas designações remetem aos portos de saída dos africanos, e não necessariamente a etnias, embora em alguns casos haja referência direta ou indireta a estas. Como aponta a Tabela 6, dos 637 casos em que há indicação de procedência ou etnia, 480 (75,3%) dizem respeito à África Central, com destaque para as duas localidades referidas. Logo em seguida surgem as menções à África Ocidental, com 143 indicações (22,4%), aparecendo com relevo a Costa da Mina. A predominância da região central do continente africano revela, para além da dinâmica do tráfico atlântico e de suas conexões com a América portuguesa por volta da metade de Setecentos, algo do perfil da importação de cativos em Minas Gerais, especialmente em sua parte centro-sul. Angola (260 menções) e Benguelas (133) eram os mais presentes entre os escravos das Minas Gerais em meados do século XVIII, ainda que os Minas (103) não devam ser negligenciados.12 12 Segundo Laird Bergad (2004), em Minas Gerais, entre 1715 e 1888, 28,3% dos cativos eram Benguelas, 23,9% eram Angolas e 16,7% eram do Congo. Para o autor, os Minas (sudeneses) estiveram em maior número até 1740; após esse período, os bantos se tornariam mais presentes entre os escravizados. Integrando uma rede mundial de comércio, dos portos e fortalezas de Luanda e Benguela saíram milhões de escravos destinados à América portuguesa e espanhola nos séculos XVII e XVIII. Mais do que números, os escravizados traziam consigo suas crenças e formas distintas de conceber a ordem social. Resgatar o perfil dessa população é uma etapa importante para a compreensão da contribuição dos escravizados para além do comércio de negros.13 13 Nesse sentido, Mariana Cândido (2013) pondera que os números “não revelam como essas pessoas foram capturadas e reduzidas à escravidão; além disso, estudos quantitativos priorizam a experiência coletiva e não casos individuais. O resultado é que a historiografia tende a tratar os chamados ‘prisioneiros de guerra’ como exemplos do modelo africano de escravização por excelência, negligenciando outras formas de captura que também resultaram em escravização”.

Tabela 5:
Qualidade dos escravos na freguesia de Guarapiranga em 1766

Em Guarapiranga a escravidão submeteria outros povos para além dos africanos. Como é possível observar na Tabela 5, os escravos nascidos na América portuguesa e que tinham ascendência africana, fosse direta ou indireta, quase atingiam os 10%, destacando-se entre eles os crioulos. Casos únicos, até onde foi possível apurar, o rol aponta ainda a ocorrência de um escravo índio e de outro denominado china. É possível, entretanto, que um número maior de indígenas estivesse oculto nas designações de pardo, mulato e cabra, as quais representavam 2,8% da amostragem, ou ainda nos casos em que não há menção a qualidade, procedência e etnia (RESENDE, 2003RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. 2003. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2003. Disponível em:Disponível em:http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280439 . Acesso em:20 jan. 2020.
http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
).

Tabela 6:
Procedências e etnias dos escravizados: Freguesia de Guarapiranga - 176614 14 A localização dos nomes mencionados nesta tabela baseou-se na consulta de dois trabalhos: Paiva (2006) e Sweet (2003).

Ainda que se levem em conta as estratégias de catequização adotadas nas Minas, é improvável que a quantidade de indígenas escravizados em Guarapiranga fosse tão insignificante. Com efeito, a quantidade de escravos indígenas era bem maior no início do século.15 15 Renato Pinto Venâncio (1997) revela a presença de 102 cativos indígenas escravizados em Guarapiranga no ano de 1718. Para além das suspeitas acerca de tais designações, é significativa a presença de ao menos um indígena identificado como escravo num contexto em que as leis formalmente proibiam o cativeiro indígena, deixando brechas legais como a “guerra justa”. É certo, como bem mostrou Hal Langfur, que as estratégias de catequização fizeram parte de um contexto mais amplo de conflitos armados contra os indígenas na região, bem como de resistência e tenacidade por parte destes. A freguesia de Guarapiranga foi marcada por incursões indígenas que não podem ser entendidas como mero ato de defesa ou de inevitável derrota frente ao domínio ou extermínio, os Croatos, Coropós, Coroados, Puris e Botocudos tendo se mostrado ativos e prontos para fazer a guerra.16 16 Segundo Hal Langfur, em 1766, moradores de Furquim, Barra Longa e Abre Campo buscaram a intervenção do governo para lidar com as contínuas hostilidades que vinham fazendo com que um grande número de habitantes abandonassem as terras que cultivavam: “Os indígenas haviam perpetrado assassinatos, roubos e incêndios em fazendas ao longo do rio Piranga e, o que talvez fosse ainda mais ameaçador, do rio do Carmo, que fluía por Mariana antes de descer para o sertão” (LANGFUR, 1999, p. 266).

Outro caso único encontrado no rol de 1766 é o de Luiz China, escravo do reverendo vigário Amaro Gomes Oliveira, morador no “arraial e terreiro da Igreja”. No mundo luso, a presença de escravos nomeados como “chinas” não era incomum, embora normalmente representasse uma pequeníssima parcela dos escravizados. A presença, em Guarapiranga e em outras localidades de Minas Gerais, de cativos vindos do Oriente atesta a participação da capitania num extenso e variado comércio de escravos, que ultrapassava a rota atlântica e se inseria em circuitos mundiais.17 17 Em Portugal, para além da presença de canarins - designação referente aos habitantes do Canará, também empregada pelos portugueses para referir-se aos escravos oriundos de Goa -, por vezes encontram-se referências a cativos nomeados como “china da índia”. Em meados do século XVIII, “Goa contava com cerca de 5 mil escravos, funcionando como o principal local de tráfico dos portugueses na Ásia - aí também chegavam numerosos chineses, vendidos em várias partes do Império, como foi o caso de Antônio, ‘china da Índia’, morador de Bento Rodrigues, freguesia de Mariana, Minas Gerais, em 1725”. A constatação da presença desses escravos vindos do Oriente em Minas Gerais pode suscitar uma série de hipóteses, como, por exemplo, a da participação desses indivíduos na produção artística (VENÂNCIO, 2012, p. 25 e 37). Sobre as diversas categorias e nomenclaturas dos escravos, ver: Paiva (2015).

Para além de indicar aspectos relativos à qualidade, à proveniência e à etnia dos escravizados, o rol de 1766 permite também que se trace sua distribuição pelos domicílios e em função do tamanho dos contingentes, o que contribui para o desenho da diversidade da freguesia em termos de ocupação e atividade. A Tabela 4 chama a atenção para o fato de que 30,8% das unidades domiciliares não possuíam cativos, aspecto que se coaduna com a ocorrência de estruturas residenciais mais fragmentadas e habitadas por pobres e remediados. Nem sempre os pesquisadores dão o devido destaque a essa larga camada de não-proprietários de cativos, embora tal informação seja decisiva na avaliação da presença de indivíduos pobres em áreas de expansão demográfica e econômica. Em áreas de relativa consolidação que ainda contavam com fronteiras a serem exploradas, as oportunidades estavam abertas para pessoas de camadas diversas, mas isso não implicava que todos tivessem sucesso nas empreitadas visando à ascensão social. Pelo contrário, em contexto de expansão demográfica, a busca por terras ou povoados com alguma prosperidade podia significar apenas o esforço para escapar à miséria.

A historiografia apontou a existência de certa distribuição da riqueza ao demonstrar que a maior parte dos proprietários de escravos em Minas detinha pequenos contingentes. Porém, o movimento de concentração era também expressivo. Vigia, na verdade, um quadro bastante comum na sociedade colonial da América portuguesa, caracterizado por uma situação paradoxal: se, de uma parte, havia desconcentração da propriedade em razão do grande número de indivíduos que tinham acesso aos cativos, de outra, a maior parte destes achava-se concentrada na mão de poucos.

Em Guarapiranga, ainda que a média de escravizados por domicílio, excluídos os mencionados 30,8%, fosse de aproximadamente 8,0, a disparidade entre pequenos, médios e grandes proprietários era abissal.18 18 Trata-se de 2.173 cativos distribuídos por 272 domicílios. Para se ter uma ideia dessa média, vale compará-la com dados apresentados por Tarcísio Botelho (2001): em 1721, Vila Rica, grande centro minerador, contava com 10.741 escravos e 1.757 proprietários, perfazendo uma média de 6,11 cativos por proprietário. Como se pode deduzir das tabelas 7 e 8, a relação de cativos por unidades domiciliares com 1 ou 2, 3 a 5, 6 a 10, 11 a 20, e mais de 20 escravos era, respectivamente, de 1,4, 3,7, 7,6,13,2 e 35,1. Enquanto que para o primeiro nível, isto é, para aquele com 1 ou 2 cativos, 26,9% dos domicílios abarcavam 6,9% do total de escravos, para o último esses valores eram de 8,4% e 53,3%. Quando se adotam como parâmetro os contingentes de 1 a 5 cativos, encontram-se 44,5% dos domicílios de posse de 18,9% dos escravizados. Era indiscutivelmente decisivo o peso das 33 grandes propriedades, as quais contavam com 1.159 escravizados. Os domicílios que possuíam mais de meia centena de cativos (20,5% dos escravos) eram somente 10, ou 2,5% do total. Dito de outra forma, por um lado, aproximadamente metade dos domicílios detinha apenas um quinto dos cativos; por outro, menos de um décimo deles controlava mais da metade do contingente total.

Entre os dois extremos achava-se uma camada intermediária, composta em grande medida por sitiantes, roceiros e fazendeiros de médio porte. Aqueles que possuíam de 6 a 10 e de 11 a 20 escravos representavam, respectivamente, 10,4% e 5,8% dos domicílios e reuniam 14,3% e 13,4% dos escravos. Juntos, esses dois grupos, tendencialmente distintos em seus extremos, envolviam, portanto, 16,2% das unidades domiciliares e 27,7 do contingente cativo. A esse respeito, é interessante valer-se da Tabela 8 com o intuito de, retomando algumas observações feitas mais acima, analisar onde se encontravam no território da freguesia as pequenas, médias e grandes unidades domiciliares. Evidentemente, os pequenos domicílios, isto é, aqueles com nenhum cativo ou com somente um ou dois, preponderavam nas duas seções do arraial de Guarapiranga: eram 90, ou 22,9% do total. Quando são acrescidos os casos que ficavam no limite entre os pequenos e médios contingentes - os de 3 a 5 escravos -, esses números sobem para 109 e 27,7%. O único caso de unidade domiciliar de grande porte na sede acha-se no arraial de cima: trata-se de propriedade chefiada por Miguel José Machado, que vivia com sua esposa, Maria Rosa, quatro filhos, um casal de agregados, um feitor, 22 cativos e dois africanos (um Mina e um Cobu) cuja condição não é referida.

Tabela 7:
Distribuição dos escravos pelos domicílios e segundo o tamanho do plantel: Freguesia de Guarapiranga - 1766

Mas há ainda outra área na qual ocorre certa concentração de pequenos domicílios (com zero a cinco escravos), sejam residências simples ou sítios: aquela em torno do entroncamento dos dois principais rios, que abarca o Calambau (quinta linha da tabela), o caminho do Xopotó (sexta linha), ao sul, e a capela de Santo Antônio, ao norte (décima sexta linha). Essa área, que devia servir de entreposto em razão de sua posição geográfica, abrangia 92 pequenas unidades, ou 23,4% do total de domicílios. Quando esta última porcentagem é somada aos 27,7% referentes à sede, chega-se a 51,1%. Uma terceira área composta por bom número de pequenas unidades situa-se no caminho do Pirapetinga (terceira e quarta linhas), onde existiam 45 domicílios desse tipo, ou 11,4% do total. Se somados os três valores, conclui-se que 62,5% das pequenas unidades distribuíam-se aproximadamente pelo eixo horizontal, nele havendo três focos: Pirapetinga, o arraial de Guarapiranga e o entroncamento do Xopotó. As grandes propriedades, por sua vez, se distribuíam, com algumas exceções, verticalmente, merecendo destaque dois focos principais, também conectados com o dito entroncamento: Brás Pires e circunvizinhanças e a capela de Santo Antônio do Calambau - esta última localização reunindo 11 das 33 maiores unidades. A despeito da perda de informações relativas a outras áreas da freguesia, é possível sugerir que, para além da sede, foi ali onde o eixo horizontal e o vertical se confundiam que a colonização de grande escala se organizou inicialmente. Entre as 15 maiores propriedades encontradas no rol de 1766, as únicas com mais de 40 escravizados, 11 distribuíam-se em torno do entroncamento.

Tabela 8:
Distribuição dos contingentes de escravizados por domicílio e localidade: Freguesia de Guarapiranga - 1766

A configuração da população, bem como do perfil do plantel, demonstra claramente que Guarapiranga, em 1766, estava em franca expansão, ainda contando com áreas de produção inexploradas atrativas aos migrantes e ao tráfico escravagista que se inseria nos circuitos da economia-mundo, tal como evidencia o significativo número de cativos, destacando-se amplamente os africanos e os homens. Quando considerada a lista de 1810, Guarapiranga demonstra ter a maior população do termo de Mariana, com pouca diferença entre os gêneros, incluindo os cativos. No início do século XIX, a baixa diferença numérica entre escravos e escravas, bem como o aumento da população livre, indicam um momento de transição e de reprodução interna da mão de obra escrava. Também nesse sentido vale observar o número dos habitantes livres ou libertos que, em 1766, perfaziam 41,3% e, em 1810, somavam 60,7%, majoritariamente homens e pardos. Notam-se, portanto, duas reduções: uma na proporção dos gêneros entre os escravos e outra no próprio número relativo de cativos, o que parece refletir tanto uma mudança no potencial produtivo da região no início do século XIX quanto um rearranjo da exploração da mão de obra e da produção direcionadas à agropecuária, fenômeno que seria comum a boa parte da capitania.

Por fim, valeria tecer um comentário com base na comparação do rol de 1766 com o mapa de 1810. Como se viu, entre uma data e outra a porcentagem da população escrava em Guarapiranga caiu de 58,7% para 39,5%, diminuindo bastante a relação entre os gêneros. Contudo, quando são consideradas as perdas de informações do documento da década de 1760, parece adequado afirmar que em termos absolutos não houve mudança significativa, isto é, a freguesia manteve basicamente a mesma quantidade de cativos, algo em torno de 5 ou 6 mil. A comparação, nesse sentido, sugere que, apesar das inevitáveis oscilações, foi mantido o número restrito de grandes propriedades compostas por expressivos contingentes escravos, provavelmente em parte nas mãos das mesmas famílias. Se essa afirmação procede, seria também correto dizer que a expansão demográfica ocorrida entre 1766 e 1810 implicou o aumento de unidades domiciliares pobres ou remediadas, nas quais, quando havia cativos, estes eram muito poucos. A essa altura o sul do Xopotó passou a contar com mais habitantes e Pomba foi se tornando um decisivo polo de atração. A quantidade de mestiços e crioulos cresceu, muitos deles sendo livres ou libertos, pois no início do século XIX os brancos representavam apenas um quarto da população total. Assim, o crescimento econômico de Guarapiranga parece ter dependido muito mais da multiplicação de pequenos proprietários do que da expansão da produção de grande escala. Tal fenômeno distinguiu esta e outras freguesias do termo de Mariana de muitas daquelas situadas, por exemplo, na próspera comarca do Rio das Mortes.

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  • 1
    Não é possível, nem intenção dos autores, realizar um balanço temático e bibliográfico sobre o complexo campo de estudos da escravidão, cabendo aqui a tarefa modesta de indicar alguns trabalhos a título de introdução. Para além da História Geral da África (2020), publicada pela Unesco, indicamos as obras de Verger (2002), Gorender (1990), Lara (2007), Russel-Wood (2005), Parron (2015), Marquese (2007) e Wallerstein (1974).
  • 2
    Entre os trabalhos mais recentes sobre Guarapiranga, confere-se especial atenção ao século XIX e às listas nominativas de 1831-33 e 1838-39. Nesse sentido, ver: Lemos (2012) e Valente (2016). Uma exceção ao recorte temporal oitocentista, que recorre a inventários post-mortem, encontra-se em Alves (2012).
  • 3
    As considerações apresentadas neste artigo constituem um desdobramento das análises realizadas em texto anterior: ANTUNES, Álvaro de Araujo; SILVEIRA, Marco Antonio. Deixando de ser fronteira: território, população e conflito na conquista e colonização de Guarapiranga. Varia Historia, v. 35, n. 69, dez. 2019, p. 857-93.
  • 4
    A constatação, feita por Roberto Borges Martins, de que o maior contingente de escravos no Brasil do século XIX estava em Minas Gerais deve ser associada ao fato de que na mesma época esta capitania, depois província, abarcava também a maior população brasileira (MARTINS, 2018).
  • 5
    Segundo o relato de Luís José Ferreira de Gouveia, morador da freguesia, sua ocupação teria se dado desde o início da década de 1690 em razão da descoberta de ouro no rio Piranga por parte dos sertanistas paulistas Francisco Rodrigues Sirigueio e Antônio Pires Rodovalho (MATOSO, 1999, p. 258).
  • 6
    É provável que se trate de um dos mais antigos documentos do gênero para a capitania de Minas Gerais. Existe um registro de 1749 embasado em róis de confessados, mas estes não foram localizados nos arquivos. A grande maioria dos róis de Mariana encontra-se conservada no Arquivo Eclesiástico da Cúria Metropolitana de Mariana (AEAM). Já o rol de 1766 encontra-se no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de ­Mariana (AHCSM), 2o Ofício, sob o título “Rol dos que confessaram no ano de 1766”. Para além do problema da incompletude, é preciso ressaltar que, de acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, deveriam ser registrados nos róis apenas os homens com mais de 14 anos e as mulheres com mais de 12 que comungassem ou confessassem os pecados cometidos (CPAB, 1953, p. 61). A análise crítica desse tipo documental também não deve considerar as listagens como um retrato fiel da sociedade (BACELLAR, 2001, p. 30).
  • 7
    Mapa da população da Leal Cidade de Mariana e seu termo no ano de 1810. Arquivo Público Mineiro (APM). Secretaria de Governo (SG), caixa 84, documento 54. Há um problema com a somatória desse mapa. Nele são indicados dois totais: um de 47.378, resultante do resumo das quantias apresentadas no mapa, organizadas por localidade, gênero e cor da pele; o outro, de 47.398, derivado do resumo das quantias relativas aos livres (e libertos) e escravos. Quando, porém, o pesquisador soma os totais de cada freguesia, o resultado geral é de 46.894, isto é, 481 ou 501 pessoas a menos do que o referido nos dois resumos apontados. É difícil entender a origem da contradição do mapa. Aqui se optou por adotar o mencionado total para Guarapiranga (14.290), resultante da soma de todas as colunas pertencentes à freguesia, bem como o total geral de 47.378. Como a diferença entre as três somas totais gira em torno de 1% da população do termo, ela não impacta a análise apresentada neste artigo e no anterior.
  • 8
    A dúvida advém do fato de que no rol aparecem em sequência seis nomes sem indicação de sobrenome, o que era comum na designação de filhos. No entanto, um deles, o de Joana, não é, como no caso dos demais, explicitamente definido como filho de João Martins de Medeiros.
  • 9
    “Informação das antiguidades da freguesia de Guarapiranga” (MATOSO, 1999, p. 255-261).
  • 10
    As categorias de “branco”, “pardo” e “preto” são referidas no próprio mapa de 1810. Durante o século XVIII o termo “preto”, que indicava qualidade, assumiu ora um sentido mais genérico, ora um sentido mais específico. No primeiro caso, designava a cor da pele sem distinguir a qualidade específica e a procedência do indivíduo. Esse uso é percebido no modo como eram identificadas as unidades militares: tropas ou regimentos de “homens pretos”. No segundo caso, o termo referia a procedência africana, contrapondo-se, portanto, ao termo “crioulo”, que indicava a pessoa nascida na América. No mapa de 1810 adota-se certamente o uso genérico. Na Tabela 4 foi adotado o uso mais específico.
  • 11
    É certo que as formas de organização do “reino Ndongo” sofreram alterações com as influências portuguesas no século XVI, a ponto de seus chefes adotarem a fé cristã e os modelos de governo europeus. No entanto, dificilmente isso apagaria a importância política das linhagens locais e as divergências que configuravam e reconfiguravam as identidades africanas na América (MACEDO, 2015).
  • 12
    Segundo Laird Bergad (2004), em Minas Gerais, entre 1715 e 1888, 28,3% dos cativos eram Benguelas, 23,9% eram Angolas e 16,7% eram do Congo. Para o autor, os Minas (sudeneses) estiveram em maior número até 1740; após esse período, os bantos se tornariam mais presentes entre os escravizados.
  • 13
    Nesse sentido, Mariana Cândido (2013) pondera que os números “não revelam como essas pessoas foram capturadas e reduzidas à escravidão; além disso, estudos quantitativos priorizam a experiência coletiva e não casos individuais. O resultado é que a historiografia tende a tratar os chamados ‘prisioneiros de guerra’ como exemplos do modelo africano de escravização por excelência, negligenciando outras formas de captura que também resultaram em escravização”.
  • 14
    A localização dos nomes mencionados nesta tabela baseou-se na consulta de dois trabalhos: Paiva (2006) e Sweet (2003).
  • 15
    Renato Pinto Venâncio (1997) revela a presença de 102 cativos indígenas escravizados em Guarapiranga no ano de 1718.
  • 16
    Segundo Hal Langfur, em 1766, moradores de Furquim, Barra Longa e Abre Campo buscaram a intervenção do governo para lidar com as contínuas hostilidades que vinham fazendo com que um grande número de habitantes abandonassem as terras que cultivavam: “Os indígenas haviam perpetrado assassinatos, roubos e incêndios em fazendas ao longo do rio Piranga e, o que talvez fosse ainda mais ameaçador, do rio do Carmo, que fluía por Mariana antes de descer para o sertão” (LANGFUR, 1999, p. 266).
  • 17
    Em Portugal, para além da presença de canarins - designação referente aos habitantes do Canará, também empregada pelos portugueses para referir-se aos escravos oriundos de Goa -, por vezes encontram-se referências a cativos nomeados como “china da índia”. Em meados do século XVIII, “Goa contava com cerca de 5 mil escravos, funcionando como o principal local de tráfico dos portugueses na Ásia - aí também chegavam numerosos chineses, vendidos em várias partes do Império, como foi o caso de Antônio, ‘china da Índia’, morador de Bento Rodrigues, freguesia de Mariana, Minas Gerais, em 1725”. A constatação da presença desses escravos vindos do Oriente em Minas Gerais pode suscitar uma série de hipóteses, como, por exemplo, a da participação desses indivíduos na produção artística (VENÂNCIO, 2012, p. 25 e 37). Sobre as diversas categorias e nomenclaturas dos escravos, ver: Paiva (2015).
  • 18
    Trata-se de 2.173 cativos distribuídos por 272 domicílios. Para se ter uma ideia dessa média, vale compará-la com dados apresentados por Tarcísio Botelho (2001): em 1721, Vila Rica, grande centro minerador, contava com 10.741 escravos e 1.757 proprietários, perfazendo uma média de 6,11 cativos por proprietário.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2020
  • Aceito
    05 Mar 2021
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