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Micro-história e história global: decifrando os procedimentos literários e filológicos na contribuição de Carlo Ginzburg para o debate historiográfico1 1 Gostaria de agradecer a Daniel Berbert Dias Rezende pelos insights sobre Erich Auerbach, e também a Cleber Amaral Felipe pela leitura crítica do ensaio. Por fim, gostaria de agradecer a Carlo Ginzburg pelas críticas e sugestões, bem como pelo envio de textos inéditos que auxiliaram minhas reflexões.

Microhistory and Global History: deciphering literary and philological procedures in the contribution of Carlo Ginzburg for historiographical debate

Microhistoria e historia global: descifrando procedimientos literarios y filológicos en la contribución de Carlo Ginzburg al debate historiográfico

RESUMO

O objetivo deste ensaio é discutir as contribuições oferecidas por Carlo Ginzburg a um debate historiográfico internacional que perdura desde o início do século XXI: a micro-história italiana ainda é relevante em um contexto dominado pela história global? Entretanto, é preciso ressaltar que analisaremos tal contribuição de Ginzburg a partir dos procedimentos literários adaptados da História da Arte de Aby Warburg e da Filologia de Erich Auerbach. Para tal examinaremos como o autor de O queijo e os vermes se utiliza do conceito de ­Logosformeln para analisar a maneira pela qual as ideias e memórias se deslocam pelo tempo e pelo espaço. Observaremos como a leitura filológica das fontes históricas o capacitou a produzir estudos de caso capazes de clarear efeitos globais do comportamento humano.

Palavras-chave:
Carlo Ginzburg; Logosformeln; Erich Auerbach; filologia; micro-história

ABSTRACT

The aim of this essay is to discuss the contributions offered by Carlo Ginzburg to an international historiographical debate that has lasted since the beginning of the 21st century: is Italian microhistory still relevant in a context dominated by Global History? However, it should be noted that we will analyze this contribution of Ginzburg from the literary procedures adapted from the History of Art by Aby Warburg and the Philology of Erich Auerbach. To do this, we will examine how the author of the cheese and the worms uses the concept of Logosformeln to analyze the way in which ideas and memories move through time and space. We will observe how the philological reading of historical sources enabled him to produce case studies capable of clarifying global effects of human behavior

Keywords:
Carlo Ginzburg; Logosformeln; Erich Auerbach; philology; microhistory

RESUMEN

El propósito de este ensayo es discutir las contribuciones ofrecidas por Carlo Ginzburg a un debate historiográfico internacional que dura desde principios del siglo XXI: ¿sigue siendo relevante la microhistoria italiana en un contexto dominado por la historia global? Sin embargo, es necesario recalcar que analizaremos tal aporte de Ginzburg a partir de procedimientos literarios adaptados de la Historia del Arte de Aby Warburg y la Filología de Erich Auerbach. Para ello, examinaremos cómo el autor de O queijo e os vermes utiliza el concepto de Logosformeln para analizar el modo en que las ideas y los recuerdos se mueven a través del tiempo y el espacio. Observaremos cómo la lectura filológica de las fuentes históricas le permitió producir estudios de casos capaces de esclarecer efectos globales del comportamiento humano.

Palabras clave:
Carlo Ginzburg; Logosformeln; Erich Auerbach; filología; micro-historia

1

O objetivo deste ensaio (ou seja, um texto experimental, de tentativa, de liberdade reflexiva e, por isso, marcado pela incompletude) é discutir as contribuições de Carlo Ginzburg para um importante debate historiográfico internacional que já dura quase 20 anos: a micro-história é capaz de contribuir com o desenvolvimento de uma Global History empírica, menos abstrata e generalizante2 2 Como ficará claro ao longo deste ensaio, as reflexões aqui expostas não discutirão diretamente com as características centrais da História Global, mas especificamente com a contribuição da micro-história de Carlo Ginzburg para a produção de uma Global History mais empírica e, a meu ver, relevante. Para mais informações sobre uma análise ampla sobre as contribuições e divergências no seio dessa corrente historiográfica, ver, dentre outros: Santos Júnior e Sochaczewski (2014), Armitage (2014) e Conrad (2016). Além disso, existe uma série de trabalhos desenvolvidos por historiadores e historiadoras ligados, direta e indiretamente, à micro-história que oferecem importantes subsídios para o debate. Para mais detalhes, ver, dentre outros: Levi (2020), Torre (2018), Trivellato (2011), Cerutti e Grangaud (2017), De Vito (2020), De Vito (2015) e Trivellato (2009). ? Que desafios a história global traz para uma questão formulada nos primórdios do surgimento da micro-história italiana: pode um caso individual, se explorado em profundidade, ser teoricamente relevante?

Pretende-se, em linhas gerais, ressaltar a influência de procedimentos adaptados da História da Arte e da Filologia na construção narrativa de Ginzburg, partindo de um texto escrito recentemente (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 446-473). Esses elementos literários e textuais possuem, em seu escopo metodológico, uma importância tão grande quanto os elementos historiográficos para o resultado de suas pesquisas. E é esse o objetivo central desse texto: apresentar ao leitor não os já conhecidos recursos teórico-metodológicos praticados pelo autor de O queijo e os vermes, mas examinar especialmente a influência de procedimentos adaptados de Aby Warburg (logosformeln) e Erich Auerbach (leitura filológica da História) no modo como Ginzburg concebe sua contribuição ao referido debate, bem como na sua reformulação da sua concepção de micro-história. Não supomos, evidentemente, que um estudo das referências literárias que marcaram a formação de Ginzburg consiga explicar seu pensamento ou flagrar suas intenções. Se recorremos a obras que considerava incontornáveis, foi com o único propósito de demarcar as linhas de força de sua argumentação.

Talvez seja verdade, por conta das questões metodológicas que aqui serão apontadas, dentre outras, que Ginzburg tenha se tornado um marginal dentro do contexto maior do que foi produzido pela micro-história italiana. Acreditamos, todavia, que ele seja um marginal dentro das margens; um excepcional normal, já que sua contextualização cultural não se furta de dados fundamentais para a compreensão do social. Mesmo que praticada de maneira metodologicamente diferente da maioria dos micro-historiadores, para Ginzburg, sabendo menos, estreitando o escopo de nossa investigação, esperamos compreender mais (GINZBURG, 2007GINZBURG, Carlo. Latitudes, escravos e a Bíblia: um experimento em micro-história. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 85-98, jul.-dez. 2007., p. 86).

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Em um texto recente, Carlo Ginzburg defende a hipótese de que a micro-história, entendida como história analítica, longe de contrastar com a História Global, é de fato uma ferramenta indispensável para ela (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 447-448). Seu primeiro argumento, antes de testar essa hipótese por meio de um estudo de caso, é o de que haveria uma aparente contradição entre as análises micro e aquelas em perspectiva global, visto que pesquisas analíticas baseadas na análise de fontes primárias são muito difíceis de serem feitas, por motivos óbvios, numa perspectiva mais ampla e global. Segundo o autor, essa contradição é apenas aparente se adotarmos um importante recurso metodológico: a comparação. Ginzburg, na verdade, acentua seu argumento ao afirmar que a melhor maneira para realizarmos uma história comparada em escala global é a adoção de certos pressupostos desenvolvidos pela micro-história. Mas, segundo ele, uma micro-história que precisa ser repensada do zero.

Ao repensar a micro-história do zero, Ginzburg segue um caminho, como observaremos, bem diferente da maioria dos micro-historiadores da sua geração. Ao contrário de Levi e Grendi, que se ampararam em métodos e insights da antropologia social de matriz britânica, o autor de O andarilho do bem busca na história da arte warburguiana e na filologia síntese de Auerbach elementos para uma micro-história que possibilite uma história comparada em escala macro e que forneça subsídios da micro-história para a feitura de pesquisas mais empíricas de história global. Para compreendermos as escolhas epistemológicas de Ginzburg, proponho que sigamos seus próprios passos em um ensaio que ele discute essas questões.

O historiador italiano constrói seus argumentos a partir de uma metodologia, que requer bastante erudição, e que consiste na análise profunda de ideias e conceitos de um texto singular para, em seguida, apreender como essas ideias são apropriadas, conscientemente ou não, em outros textos, relacionados a tradições culturais diversas3 3 Apesar de não ser esse o objetivo deste ensaio, é importante ressaltar que essa metodologia de Carlo Ginzburg foi alvo de duras críticas ao longo dos anos. Segundo alguns críticos, várias lacunas e perguntas lançadas pelo autor de O queijo e os vermes acabam não sendo respondidas adequadamente. De acordo com Peter Burke, “os leitores são levados a acabar cada ensaio (de Carlo Ginzburg) com a cabeça repleta de questões não respondidas”. Outro historiador, Tony Molho, argumenta da seguinte maneira: “gostaríamos que Ginzburg tivesse adicionado algumas páginas a mais a fim de clarificar os obscuros, ainda indefinidos aspectos de sua formulação. Ele aventurou-se nessa questão em incursões posteriores. Mas, se formos julgar pelas respostas de alguns de seus críticos, não o fez satisfatoriamente”. Para mais detalhes, ver o provocativo artigo de Francisco Murari Pires (2013, p. 29), de onde essas citações foram retiradas. . Mais especificamente, ele mostra ao leitor como certa ideia, de início teológica - a de que o conhecimento verdadeiro de algo só pode ser obtido por quem o cria: somente Deus pode conhecer a natureza, enquanto o homem é capaz de conhecer, por exemplo, a justiça, a história, a política etc., por serem invenções humanas - apresentada por Hobbes em O Leviatã, liga o pensador inglês a Giambattista Vico no que diz respeito aos experimentos mentais (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 451).

A convergência entre Hobbes e Vico na questão dos experimentos mentais é explicada sem dificuldade. Já trajetória que liga Vico a Marx é especulada por Ginzburg, que articula muito bem como as ideias do italiano fundamentaram importantes elementos centrais da filosofia marxiana. Vico teria influenciado Marx na construção de suas teses sobre ­Feuerbach e, finalmente, teria inspirado uma das principais concepções de Marx em O Capital. Aqui a ideia primeva de que o homem só é capaz de analisar aquilo que fabrica, produz ou constrói, readaptada por Vico de Hobbes, fornece a Marx a ideia de que a tecnologia, ou seja, o produto do labor humano, revela o comportamento ativo do homem em relação à natureza e também o processo imediato de produção de suas relações sociais vitais e as ideias do intelecto que vem com ela (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 454).

Uma ideia de cunho teológica em Hobbes (o homem não é capaz de compreender aquilo que Deus criou, mas apenas aquilo que o homem é capaz de criar), reelaborada por Vico (é o ato de criar que transforma o homem, o separando das demais “bestas”), fornece a Marx o escopo materialista fundamental de sua teoria: o homem faz a história transformando a natureza através do trabalho. Ginzburg argumenta também que essa influência direta de Vico em Marx foi evidenciada por Paul Lafargue. Em uma série de palestras sobre o materialismo econômico de Marx, dirigida em 1884 a uma plateia socialista, Paul Lafargue contrastou dois tipos de ambiente: o cósmico, natural e artificial, e aquele “fruto do artifício humano”, que haviam sido analisados, respectivamente, por Darwin e Marx - um Marx inspirado em Vico. Dez anos depois, em uma discussão com Jean Jaurès, Lafargue enfatizou a continuidade entre Vico e Marx. Nessa atmosfera fin-de-siècle do marxismo, a obra de Vico tornou-se o centro de uma discussão acalorada.

No ano anterior (1895), Antonio Labriola havia proposto uma leitura muito mais profunda de Vico, em um ensaio, publicado no le Devenir Social, que emocionou o jovem Trotsky, preso em Odessa: “O homem é o animal experimental por excelência”, escreveu Labriola “e, portanto, tem uma história - na verdade só faz sua própria história”. Algumas páginas depois, Labriola esclareceu algumas das implicações desta declaração densa, fazendo uma pergunta retórica: “E o próprio Vico, já um século à frente de Morgan, não havia reduzido a história a um processo, que o homem realiza por conta própria como para um experimento subsequente, que é a descoberta de línguas, religiões, costumes e direito?” Tanto o processo histórico quanto o conhecimento histórico, argumentou Labriola, implicam uma descoberta através do experimento. E assim, segundo ele, os homens agiriam em um ambiente artificial, que eles mesmo construíram através de experimentos (mentais e de transformação da natureza) e tal fato, além de aproximar Vico a Marx, aproxima, nessa perspectiva, o materialismo às ciências empíricas (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 457).

Ginzburg segue sua argumentação afirmando que, assim como Labriola, Giovanni Gentile promoveu um entrelaçamento entre Vico e Marx, e tal amalgama gerou uma forte influência tanto em Lenin, em sua versão original do marxismo, quanto em Benedetto Croce em seu idealismo presentista, que por sua vez exerceu bastante inspiração nas concepções sobre história de Collingwood, para quem o conhecimento histórico seria uma reencenação de um pensamento passado, encapsulado em um contexto de pensamentos presentes. A história como um ato de presentificação.

Ao analisar as ideias de Collingwood sobre a história, Ginzburg demonstra sua discordância dessa presentificação idealista do passado. Para o historiador italiano, a legítima “reencenação” seria, na verdade o resultado de um diálogo assimétrico entre a linguagem dos observadores e a dos atores: entre dados éticos e dados êmicos4 4 Em linhas gerais, uma abordagem êmica é aquela que parte do ponto de vista dos atores sociais para a formulação de questões. Já a ética é aquela cujo fundamento é a perspectiva adotada pelo pesquisador. . De acordo com Ginzburg o observador, a partir de perguntas inevitavelmente anacrônicas, seria capaz de compreender as linguagens esquivas dos atores: não através da empatia, mas por meio da filologia no sentido mais amplo - proposta por Vico. A presentificação do passado implicaria, para Ginzburg, sempre em uma experiência limitada e parcial, baseada no diálogo entre dois contextos, o do observador e o dos atores. Em outras palavras, toda história verdadeira é sempre história comparada.

Ginzburg, a esse respeito, afirma o seguinte:

o historiador pode presentificar o passado (todos os tipos de passados, não apenas os pensamentos do passado) através de uma série, gradualmente modificada, de experimentos mentais. No caso da “arqueologia experimental” esta presentificação pode ser complementada pela reconstrução material de certos aspectos do passado, ligados à tecnologia no sentido mais amplo. Esses experimentos não devem ser confundidos com os acontecimentos da chamada “história pública”, em que os atores, devidamente disfarçados, imaginam reviver batalhas, ou episódios do cotidiano do passado. Fenômenos históricos não podem (e não devem) ser encenados duas vezes, escreveu Marc Bloch, ecoando Durkheim. Daí sua conclusão: experimentos não são acessíveis aos historiadores. Mas experimentos mentais (e aqui, talvez pela primeira vez, eu me vejo discordando de Bloch) são acessíveis tanto para historiadores quanto para cientistas (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 461).

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Para fins analíticos, farei uma digressão a partir de agora. A minha hipótese é a de que, ao fazer uso de técnicas inspiradas em Warburg e Auerbach, Ginzburg chega a conclusões parecidas - porém muito mais amplas - às de Giovanni Levi (LEVI, 2000LEVI, Giovanni. A herança imaterial: a trajetória de um exorcista no Piemonte no século XVII. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000..) acerca do caráter experimental da micro-história. Evidente que são dois caminhos muito diferentes: Levi adapta para a História o modelo generativo utilizado pelo antropólogo Fredrik Barth, no qual o modelo seria basicamente uma pergunta geral (um experimento) que se origina de formas diferentes a partir do exame da vasta documentação coletada, “as quais podem ser explicadas se aceitarmos que elas sejam o resultado cumulativo de um número de escolhas e decisões de ações criadas por meio de processos de interação e refletem, ao mesmo tempo, as coerções e incentivos com base nos quais as pessoas agem conforme um processo de escolha e obrigações em cada contexto específico” (BARTH, 1981BARTH, Fredrik. Process and form in a social life. London: Routledge, 1981., p. 32-47).

O modelo implícito ao qual essa abordagem remete é o de um processo histórico que se desdobra por meio de dinâmicas que coloca em análise configurações sociais complexas, que são não-lineares e, a cada momento, imprevisíveis. A análise de Levi é experimental, pois percebe a causalidade como uma ampla abertura de possibilidades que precisam ser testadas e instrumentalizadas. As dinâmicas reconstituídas seguem as referências simbólicas e os espaços de relações que forem pertinentes nas diversas e sucessivas perspectivas individuais (GRIBAUDI, 1998GRIBAUDI, Maurizio. Escala, pertinência, configuração. In: REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: EdFGV, 1998., p. 129-130). Nessa perspectiva adotada por Levi, experimentos físicos e mentais são realizados pelo historiador, já que ele deve examinar cada possibilidade da forma concreta em sua dinâmica e complexidade, sem descartar, aprioristicamente, qualquer elemento, seja ele geral (global) ou específico (micro/local) (LEVI, 2020LEVI, Giovanni. Micro-história e história global. In: VENDRAME, Maíra; KARSBURG, Alexandre. Micro-História: um método em transformação. São Paulo: Letra & Voz, 2020., p. 21).

No caso de Ginzburg, como demonstrarei, o experimento mental é fundamentado por meio daquilo que ele chamou de Logosformeln, uma adaptação criativa do conceito de Pathosformeln criado por Aby Warburg. Ou seja, através de um procedimento adaptado da história da arte, Ginzburg consegue desenvolver formas de fazer experimentações no intuito de construir uma micro-história experimental diferente daquela realizada por Levi e outros, partindo de princípios epistemológicos completamente diversos. Senão vejamos.

Conceito fundamental para a compreensão do pensamento de Aby Warburg, a Pathosformeln ou “Fórmula de Pathos”, expressaria inicialmente esse encontro entre o homem e o mundo, entre o homem, o trauma e o medo, resultando em uma fixação visual, baseada em um processo de mimetização de algumas qualidades (biomórficas) que se tornam petrificadas e fixadas como imagem. O referente original se caracteriza por exceder os limites da consciência cotidiana humana, ameaçando sua segurança e coerência (EFAL, 2018EFAL, Adi. A “fórmula de Pathos” de Warburg nos contextos psicanalítico e Benjaminiano. Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, n. 35, ago. 2018., p. 198). Além disso, a imagem, que é o resultado do encontro, registra a excessiva vitalidade da força externa em formas que usualmente expressam movimento. Em suma, A “Fórmula de Pathos” guardaria uma memória do encontro traumático com essa força ameaçadora da natureza e no curso do tempo, sendo fixada como um produto cultural, expressando conteúdos diferentes e particulares à medida que a história se desenvolve (EFAL, 2018, p. 198).

Se as fórmulas de pathos ajudariam na iluminação das raízes antigas presentes em imagens modernas (não só as renascentistas, mas em obras como as de Pablo Picasso ou de David, por exemplo) e na percepção de como essas raízes são reelaboradas em cada presente, a fórmula das ideias ou dos pensamentos é utilizada em fenômenos muito diferentes daqueles imaginados pelo historiador da arte: Ginzburg se utiliza da Logosformeln como uma maneira de explicar como as raízes, não só antigas, de uma ideia ou de um pensamento - e ousamos a dizer, mitos e memórias - são recompostas em escritos com o intuito de produzir não somente a compreensão de um dado presente, mas na formulação de críticas das linguagens e das imagens políticas.

Em suma, cada época selecionaria e elaboraria determinadas Pathosformeln e/ou Logosformeln de acordo com suas necessidades de expressão. Tais formulas se mantém vivas e em contato com a “vontade seletiva” de um período, podendo se modificarem e trazer novos significados. Nesse sentido, ao perceber uma dimensão dionisíaca do Renascimento, oposta à visão habitualmente defendida, de um Renascimento apolíneo no qual triunfariam a ordem, a clareza e a harmonia, tal como em Jacob Burckhardt, referência importantíssima para ele; Warburg consegue apontar as hibridizações características dos objetos artísticos ao sobrepor temporalidades distintas (TAVARES, 2012TAVARES, Marcela Botelho. O(s) tempo(s) da imagem: uma investigação sobre o estatuto temporal da imagem a partir da obra de Didi-Huberman. Dissertação (Mestrado em Estética e Filosofia da Arte) - Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte, Universidade Federal de Ouro Preto, 2012., p. 214).

Desse modo, o homem do Renascimento recorria às formulas do patético na tentativa de romper com as formas medievais de expressão. O Renascimento italiano se constitui, pois, como o campo privilegiado de estudos para ele, já que tal período se configura como o exemplo histórico que melhor apresenta o funcionamento da memória cultural e das sobrevivências primitivas, e para ele somente através da noção da fórmula do patético que as representações dos mitos antigos poderiam ser compreendidas como testemunhos de estados de espírito transformados em imagens (TAVARES, 2012TAVARES, Marcela Botelho. O(s) tempo(s) da imagem: uma investigação sobre o estatuto temporal da imagem a partir da obra de Didi-Huberman. Dissertação (Mestrado em Estética e Filosofia da Arte) - Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte, Universidade Federal de Ouro Preto, 2012., p. 75).

Já Carlo Ginzburg, ao recorrer às logosformeln procura sempre mostrar que não somente o patético, mas também as ideais, os pensamentos, as emoções e os conceitos são transmitidos em circunstâncias das mais diversas e completamente diferentes, nas quais os tempos mais ou menos curtos da história se entrelaçam com os tempos longos da evolução.

Dessa maneira, por meio da análise da ideia - logosformeln - do homem como poeta (construtor, fabricante) e como autor da sua própria história, Ginzburg revela ao leitor que uma trajetória muito longa, baseada em uma série intrincada de leituras, liga Hobbes a Vico, Vico a Marx, Marx (e Vico) a Labriola, Labriola a Gentile e Croce, Croce (e Gentile) a Collingwood. Nessa trajetória decididamente descontínua e, por vezes, contraditória, os temas do artifício e do experimento surgiram repetidamente. No entanto, o núcleo original (Hobbes interpretado por Vico) foi marginalizado e esquecido, restando o modelo materialista de Marx e o idealista de Collingwood (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 461). O modelo que esse último herdou de Croce e Gentile pode ser reformulado, na opinião de Ginzburg, em duas direções: por um lado, incluindo obstáculos materiais e por outro, insistindo na assimetria entre perguntas e respostas, e seus respectivos contextos.

A partir daí Ginzburg reformula esse modelo idealista e aponta para duas conclusões: a de que toda história verdadeira é história comparada; e que cada pesquisa histórica é pontuada por experimentos mentais ou (mais raramente) materiais: conjecturas (“como se”) que são testadas e, possivelmente, descartadas. Temos aqui a construção de uma micro-história como um experimento contrafacutal e, assim como em Levi, um experimento que é um meio, e não um fim. A micro-história, baseada em casos artificialmente escolhidos, analisada de perto, pode ser considerada um caso extremo dessa perspectiva experimental5 5 A natureza experimental da micro-história, e a diferença dela para a história contrafactual formulada pela New Economic History foram apontadas por Jacques Revel na sua introdução ao livro de Giovanni Levi (LEVI, 2000). . Mais que isso: a perspectiva microanalítica e experimental adotada por Ginzburg pode ajudar o historiador a formular hipóteses em uma escala muito maior, em alguns casos até mesmo numa escala global, como veremos a seguir.

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Ainda em seu artigo sobre a “história do mundo e a micro-história”, Ginzburg analisa um caso anômalo que permite a ele construir uma micro-história experimental que fornece elementos para a construção de uma história em escala macro. E, para compreendermos metodologicamente o que o historiador italiano propõe, devemos seguir detalhadamente o caminho adotado e o estudo de caso realizado por ele (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473.).

Inicialmente ele analisa um livro intitulado Conformité des coutumes des Indiens orientaux avec celles des Juifs et des autres peuples de l’antiquité, publicado em Bruxelas em 1704. O autor, “Monsieur de La Créquinière” - um militar que aparentemente viveu por algum tempo em Pondichéry, o posto colonial francês localizado no sudeste da Índia. Ginzburg afirma que nada conhece da trajetória desse sujeito ou sobre o seu treinamento. A única afirmação feita em um primeiro momento é que Conformité é um testemunho eloquente da hipótese formulada por Arnaldo Momigliano: que a etnografia surgiu do conhecimento de antiquários.

No início de seu livro, La Créquinière afirma que seu objetivo com a obra é de coletar informações sobre formas de cultivar a terra, roupas, alimentos, provérbios, peculiaridades linguísticas, “relíquias da antiguidade”. No final de seu livro, ele acabou por abandonar comparações etnográficas mais específicas, propondo uma reflexão global sobre dois mundos diferentes, para não dizer opostos: a Europa e o Oriente, analisadas em termos de uma oposição entre a modernidade e a antiguidade. A Europa, argumentou La Créquinière, foi dominada pelas modas impostas pelos tribunais, pelo luxo, por uma busca incessante pelo novo. Já o Oriente, incluso aí também os judeus, era percebido como dominado por uma atitude submissa à lei. A atitude contraditória de La Créquinière pode ser comparada ao lado sombrio do Iluminismo: a Europa falava em nome dos povos colonizados no momento em que estava colonizando o mundo (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 464).

Apesar de ser um livro que aparentemente não tinha nada de especial, ele mereceu a atenção de Ginzburg por alguns motivos. Não somente pela erudição do autor, algo que nos possibilita uma visão de um europeu acerca do “outro”, mas também por se tratar de um documento anômalo: o manuscrito preserva traços indiretos de um diálogo entre Raguet e La Créquinière; entre o censor e o censurado. Provavelmente ambos pertenciam, em níveis diferentes, à mesma instituição: a Companhia das Índias Orientais. Raguet era o diretor espiritual da Sociedade; La Créquinière um oficial de baixo escalão.

Materiais manuscritos acumulados para a segunda edição inédita do La conformité, arquivados na Biblioteca Nacional da França, em Paris, mostram que La Créquinière possuía uma boa erudição. A gama de suas referências vai desde os textos dos escritores gregos e latinos pagãos até os pais da Igreja (Agostinho, Clemente Alexandria). Um exemplo será suficiente para exemplificar a forma de trabalho de La Créquinière. Em um capítulo sobre perfumes, que seria incluído na segunda edição, ele propôs algumas alterações textuais à Vulgata e à Septuaginta pela forma como traduziram Isaías,18, v. 2 e 18, v. 7. La Créquinière (que não sabia hebraico) substituiu “dilaceratam” por “depilatam”, comparando o costume de raspar a cabeça dos antigos egípcios e o dos mouros leais ao Islã (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 466). Na página seguinte, ele comentou a palavra “σισόην” (krobulon, um nó de cabelo em cima da cabeça) usada nos Setenta para traduzir Levítico 19, 27, evocando o capacete mongol e indiano. Essa forma de combinar textos diferentes nasceu da experiência de um antiquário muito especial: um homem que rapidamente poderia mencionar coisas que tinha visto “não só na Guiné, mas também em outras partes da América e Ásia que tive a oportunidade de visitar” (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 466).

De acordo com Ginzburg, essa erudição e a análise do Antigo Testamento pode ter despertado a curiosidade do censor de La Créquinière - especialmente se ele for ser identificado com o autor das Histoire des contestations sur la diplomatique, avec l’analyse de cet ouvrage composé par R. P. dom Jean Mabillon, publicado pela primeira vez em 1708 na cidade de Paris, anonimamente, e depois atribuído ao Jesuíta Lallemant e, finalmente (mais convincente), ao Abade Raguet. A mesma atenção às peculiaridades ortográficas, ligadas a tempos e locais específicos, analisadas detalhadamente nas Histoire des contestations, pode ser sido usada para analisar costumes compartilhados por populações diferentes da europeia. Em seus Moeurs des Israelites, o Cardeal Fleury, protetor de Raguet, mencionou judeus, turcos, índios, chineses, argumentando que a distância temporal e a distância espacial se reforçavam mutuamente: “Se levarmos em conta esses dois tipos de distância, não nos surpreenderemos ao descobrir que a população que vive na Palestina há três mil anos tinha costumes diferentes dos nossos; e em vez disso, seremos surpreendidos pelo que é semelhante (compatível)”.

Surge, então, uma das primeiras hipóteses de Ginzburg: a partir dos antiquários (e da filologia) nasceu a etnografia: ambas formas de conhecimento que também eram formas de dominação.

O autor de O queijo e os vermes também revela as ações do censor (através das suas anotações nas margens do manuscrito de Paris), nos revelando como se deu essa interação. As reflexões de La Créquinière sobre as atitudes indígenas em relação aos europeus não foram de forma alguma censuradas (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 466). A inversão de perspectiva - um gesto potencialmente subversivo - não colocava em causa a revelação divina e por isso não ofereciam perigo. Mas quando La Créquinière ousou fazer um gesto nessa direção, embora de forma tortuosa, Raguet não deixou de reagir. Após um exame detalhado de uma longa série de textos sobre a disseminação da circuncisão entre egípcios e outras populações, La Créquinière escreveu:

Seria possível encontrar mais evidências de que os judeus receberam circuncisão do céu como um sinal para distingui-los das outras populações que os imitaram nesta prática [o que se segue no manuscrito é riscado], mas me parece que os que apresentei serão suficientes para sinalizar o risco que surgiria se admitíssemos a hipótese oposta; Portanto, estou surpreso que tenha sido compartilhado por muitas pessoas, incluindo dois contemporâneos bem conhecidos; porque essas hipóteses, se aceitas, levariam a consequências perigosas alguns partidários do novo, que concluiriam que Abraão primeiro, e Moisés, então, moldaram seus cultos com uma mistura de outras religiões: e uma vez que eles tiraram dos gentios o selo principal de sua justificativa, eles poderiam tirar deles todo o resto também (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 466).

A disseminação da circuncisão foi apenas um exemplo de uma mistura que o judaísmo bíblico compartilhava com outras religiões, fazendo com que a própria ideia de revelação fosse considerada como algo irreal ou absurdo. O abade Raguet leu essa página, mas, por algum motivo, deixou de comentar. No final do manuscrito, Raguet escreveu que o livro de La Créquinière estava “cheio de erudição” e recomendou sua publicação.

Para Ginzburg, o manuscrito parisiense deve ser apreendido como um espaço no qual duas forças colidem, alternando momentos de conflitos (censura) e interação. Nesse sentido, esse texto pode ser submetido - e o foi por Ginzburg - a uma série de experimentações repetidas; um método generativo não a partir da antropologia, mas a partir de uma leitura filológica aprendida com Eric Auerbach e Leo Sptizer. Essa cumplicidade imaginada (experimental) e inesperada entre Raguet e La Créquinière sugeriu ao historiador italiano a reformulação de uma hipótese feita anteriormente. O que parecia ser uma ambivalência do Iluminismo como tal - ora fundamenta elementos para um pensamento em que o europeu se coloca no lugar do outro, ora age de forma imperialista em relação ao outro - resulta de suas raízes cristãs. A ambivalência em relação ao outro começa a ganhar contornos “globais”.

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Um documento anômalo que revela o diálogo indireto entre censor e censurado. Um documento anômalo; excepcional normal, que possibilita a Ginzburg realizar uma reflexão, um experimento mental através de um estudo de caso. Ao analisar o livro do “antiquário etnógrafo” e seu diálogo com Raguet, Ginzburg percebe - com a mesma perspectiva pautada na Logosformeln que o guiou de Hobbes a Collingwood - um tipo de ambivalência como uma característica específica e duradoura do cristianismo, resultante da relação entre o cristianismo e o judaísmo.

A apropriação cristã da Bíblia hebraica como “Antigo Testamento” e como fundamento de uma série de profecias sobre Jesus - sobretudo o livro de Isaias - implicou em uma reversão da relação histórica entre as duas religiões. De tudo isso surgiu um entrelaçamento de continuidade e descontinuidade, deferência e desprezo, inclusão e negação. Para Ginzburg, essa atitude ambivalente produziu não apenas duas perspectivas de leitura (alegórica e literal) para a Bíblia hebraica, mas a construção da própria noção de perspectiva histórica.

Assim, através da análise de um único caso, mesmo que anômalo, o historiador italiano apreendeu algo mais geral, mais amplo e, por que não, mais global: a ambivalência cristã como um fenômeno histórico duradouro. Segundo ele, essas ferramentas cognitivas - distância, perspectiva, múltiplas estratégias de leitura - funcionavam como armas na expansão colonial europeia (GINZBURG, 2015GINZBURG, Carlo. Microhistory and world history. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (eds.). The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 446-473., p. 472). Mas essas mesmas ferramentas filológicas, como veremos agora, também forneceram a Ginzburg uma chave de leitura; a chave interpretativa para observar em um caso aparentemente sem grande importância, repercussões globais, tanto espaciais quanto cronológicas.

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Em uma entrevista realizada recentemente, Carlo Ginzburg6 6 LAHTEV-UFU. Entrevista com Carlo Ginzburg. I Ciclo de debates do LAHTEV-UFU (Laboratório de História do Trabalho, da Educação e da Violência). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HxAatnAfGF8. Acesso em: 12 mar. 2021. A página do LAHTEV-UFU no YouTube contém entrevistas, realizadas com os principais micro-historiadores italianos. afirmou o papel que a “filologia ampla” de Giambattista Vico desempenhou na sua leitura sobre a história, bem como na maneira que se utiliza dos procedimentos do estranhamento e da distância como artifícios para uma leitura densa dos seus objetos de pesquisa. Pretendo aqui recompor, à maneira do próprio Ginzburg, o caminho que liga Vico, Auerbach e a reformulação que o autor de História noturna construiu acerca da micro-história italiana; reformulação essa que permite um novo olhar e uma excelente contribuição para se pensar a relação entre o micro e o global.

Em um livro - Scienza nuova - cuja importância foi descoberta muito tempo depois do seu lançamento, Vico afirma que não há conhecimento sem criação, ou seja, somente o criador tem consciência daquilo que ele próprio criou. Dessa feita, il mondo della natura só pode ser conhecido por Deus, mas o mundo histórico, ou político; o mundo da humanidade, pode ser conhecido pelos homens, já que foram eles que o fizeram (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 347).

Não temos espaço para discutir agora toda a teoria de Vico, mas é importante relembrar que o napolitano construiu sua teoria sobre o conhecimento histórico com pouco material disponível. Ele não possuía conhecimento científico das civilizações pré e pós-neolítico; apenas um pouco de conhecimento da Idade Média e apoiava-se, sobretudo, em um conhecimento da filologia clássica e do direito romano. Com esse conhecimento e bastante imaginação, conseguiu interpretar, de forma inédita até então, o mito, a poesia antiga e o direito.

Resumidamente, para Vico, os homens primevos - nômades solitários - eram seres com pouca faculdade de raciocínio, fundamentados em sensações intensas e em um forte poder de imaginação. Essa imaginação se desenvolve arraigada a religiões animistas na qual as divindades expressavam sua majestade e poder através dos fenômenos da natureza. E para entender a vontade desses deuses, os homens criaram um sistema de cerimônias e sacrifícios mágicos que passaram a governar o cotidiano de suas vidas. Desse movimento, Vivo percebe que essa religião mágica primitiva se tornou a base das instituições sociais: a sociedade primitiva de famílias isoladas cria o poder patriarcal; o patriarca se torna, ao mesmo tempo, sacerdote e juiz que, através de rituais e leis severas, detêm o poder absoluto sobre sua família e, posteriormente, sobre os clãs (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 349). Esses foram os primeiros a enterrarem seus mortos e a cultuar a memória deles. Tal mundo e suas instituições, de acordo com Vico, não eram racionais, mas de um tipo mágico-fantástico. Essa fase de ouro foi seguida pela idade heroica.

No momento no qual pequenas cidades começam a surgir, a partir da agricultura, isso propiciou a esses primeiros colonos poder material e prestígio sobre os nômades remanescentes. Esses, para conseguirem proteção e melhores condições material de vida, se associaram como membros dependentes a essas colônias. Inicialmente, estariam fora da administração religiosa, política e econômica das cidades, mas se revoltaram. E para se defenderem de uma tentativa de revolução, os patriarcas, donos da produção material e espiritual, se uniram e criaram estados oligárquicos, preservando sua disciplina cruel e seu formalismo mágico. Nesse período, a elite ainda era incapaz de agir racionalmente, mas não os rebeldes plebeus que eram submetidos à servidão pelos patriarcas. Eventualmente os plebeus vencem a disputa e criam um período visto por Vico como racionalista e democrático (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 352).

Essa breve história foi narrada aqui com o objetivo de mostrar que Vico criou um modelo de desenvolvimento histórico no qual a civilização humana evolui através de etapas distintas; uma evolução que ocorreria - por meio de variantes, ele admitia - em ciclos eternos onde quer que o homem vivesse. Além disso, fizemos questão de mostrar de forma resumida, o desenvolvimento do pensamento de Vico em direção a uma teoria geral da civilização humana através de uma leitura filológica da história.

Como afirma Auerbach, Vico cria uma teoria sobre o comportamento e desenvolvimento humano com base, sobretudo, na sua leitura filológica do direito romano e também com a leitura de pouco autores latinos que ele tinha à mão. Ele cria uma concepção de história e de ação humana, que chegará, como vimos, até Marx, na forma do homem que é o que é por transformar a natureza através do trabalho. Vico constrói esse pensamento através de uma filologia irradiadora: partindo da análise do direito romano (ou seja, a partir de um conjunto limitado de fontes), ele percebeu como os pensadores romanos ficcionaram instituições para moldar o comportamento humano - nos alterando enquanto espécie - para poderem criar um controle racional sobre a sociedade.

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Carlo Ginzburg, evidentemente, não partilha dessa perspectiva histórica desenvolvida por Vico. Entretanto, a metodologia de Vico mediada inicialmente por Auerbach - essa é minha hipótese, já que Ginzburg faz uso de palavras e reflexões muito similares às de Auerbach quando analisa o texto de Vico em seu artigo sobre história do mundo e micro-história - forneceu ao historiador italiano ferramentas filológicas e epistemológicas para a sua concepção de história e para a reformulação e amadurecimento da sua perspectiva microanalítica. Mas, antes de adentrarmos nessa questão, vejamos os elementos centrais dessa filologia irradiadora, que produz amplo conhecimento através da análise de um material reduzido.

Em seu livro Introduction Aux Etudes de Philologie Romane (AUERBACH, 1965AUERBACH, Erich. Introduction Aux Etudes de Philologie Romane. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1965. ) escrito em 1943, Eric Auerbach termina a primeira parte, em que fala da filologia e suas diferentes formas, com o tema “D. Explication de texte”:

A explicação literária se aplica de preferência a um texto de extensão limitada, e parte de uma análise por assim dizer microscópica de suas formas linguísticas e artísticas , dos motivos do conteúdo e de sua composição; no curso dessa análise, deve servir-se de todos os métodos semânticos, sintáticos e psicológicos atuais, é mister fazer abstração de todos conhecimentos anteriores que possuímos ou acreditamos possuir do texto e do escritor em questão, de sua biografia, dos julgamentos e das opiniões correntes ao seu respeito, das influências que ele pode ter sofrido, etc; cumpre considerar somente o texto propriamente dito e observá-lo com atenção intensa, sustentada de modo que nenhum dos movimentos da língua e do fundo nos escape [...] Todo o valor da explicação de textos está nisso: é preciso ler com atenção fresca, espontânea e sustentada, e é preciso guardar-se escrupulosamente de classificações prematuras. Somente quando o texto estiver inteiramente reconstruído, em todos os seus pormenores e no conjunto, é que se deve proceder às comparações, às considerações históricas, biográficas e gerais [...] (AUERBACH, 1965AUERBACH, Erich. Introduction Aux Etudes de Philologie Romane. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1965. , p. 36)7 7 Tradução minha. No original: “L’explication littéraire s’applique de préférence à un texte d’une étendue limitée, et elle part d’une analyse pour ainsi dire microscopique de ses formes linguistiques et artistiques, des motifs du contenu et de sa composition; pendant cette analyse, qui doit se servir de toutes ies méthodes sémantiques, syntaxiques et psychologiques ac­ tuelles, il faut faire abstraction de toutes les connaissances antérieures qu’on possède ou qu’on croit posséder sur le texte et l’écrivain en ques­ tion, sur sa biographie, sur les jugements et opinions en cours sur lui, sur les influences qu’il peut avoir subies, etc.; il ne faut regarder que le texte lui-même, et l’observer avec une attention intense, soutenue, de sorte qu’aucun des mouvements de la langue et du fond ne vous échappe [...] Toute la valeur de l’explication des textes est là: il faut lire avec une attention fraîche, spontanée et soutenue, et il faut scrupuleusement se garder des classements prématurés. Ce n’est que quand le texte en question est entièrement reconstruit, dans tous ses détails et dans son ensemble, qu’on doit procéder aux com­ paraisons, aux considérations historiques, biographiques et générales […]”. .

A compreensão dessa metodologia é importante para nossos propósitos pois Ginzburg afirma ter começado a praticar o ofício de historiador (GINZBURG, 2004GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 14) utilizando os instrumentos interpretativos desenvolvidos por Leo Spitzer e Erich Auerbach, com o intuito de ler textos não literários, tais como os processos da Inquisição, para conduzir interpretações originais a partir de fontes documentais. Portanto, para nosso propósito específico, é importante tentar traçar as minúcias e meandros do explication de texte para assim tentar perceber de forma mais aprofundada quais os “instrumentos interpretativos” esses autores desenvolveram, concomitantemente com a empresa de distinguir como Ginzburg utilizou-se deles em seu ofício.

A explicação do texto feita por Auerbach têm como ponto nevrálgico a seleção de um texto de extensão limitada, possuindo sempre como critério para tal escolha dois elementos fundamentais: um ponto de partida e a “irradiação” que o trecho possa proporcionar. Auerbach afirma também a necessidade de se ocupar para além do texto literário em si com as condições religiosas, filosóficas, políticas e econômicas em que ele foi produzido, sem ignorar mesmo as artes plásticas e a música nesses fins (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 363).

Na escrita da sua obra-prima, Mimeses, em condições extremamente desfavoráveis de um judeu emigrado em Istambul, me parece mais do que falar da “força de irradiação” dos trechos escolhidos para a construção desta magnífica obra, importa salientar a excepcional capacidade do filólogo judeu em por assim dizer de “fazê-los irradiar”. Ele mesmo via nesse processo duplo de escolha-irradiação (e em todo expediente da explication de texte) não só um mecanismo metodológico científico, mas também um procedimento ligado a processos mais subjetivos e intuitivos. Diante de tal contexto, o filólogo judeu se pergunta como é possível pensar numa filologia sintético-científica da literatura mundial “Não partir de considerações amplas e gerais, mas sim de um único fenômeno bem delimitado e quase estreito” (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 364).

Auerbach acreditava que era preciso olhar para Ansatzpunkte, isto é, para pontos de partida, para detalhes concretos a partir dos quais o processo global poderia ser reconstruído indutivamente (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Vico e o historicismo estético. In: AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 357-373).

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Filologia irradiadora: a leitura de pequenos trechos de obras literárias (ou históricas) com o intuído de extrair desses textos conhecimentos para além deles mesmos. Um método anti pós-moderno, advindo de uma slow reading (a partir da experiência como aluno de Arnaldo Momigliano) da obra de Erich Auerbach que possibilitou a Carlo Ginzburg, juntamente com suas análises pautadas na transmissão históricas e/ou morfológicas de ideias, pensamentos, símbolos etc. - logosformeln -, descobrir algo extremamente global e macro a partir da feitura de vários estudos de caso: o perspectivismo cristão como fundamento do pensamento europeu que vai definir desde a forma que o homem europeu construiu sua visão de mundo - como ambivalência, conflito e multiplicidade - quanto a moderna filosofia ocidental e até mesmo o iluminismo. Através de limitados estudos de caso, o historiador italiano fez irradiar elementos amplos e globais da visão de mundo ocidental.

Em um texto fundamental sobre a distância, Carlo Ginzburg afirma que, em qualquer cultura, a memória coletiva, transmitidas por ritos e cerimonias, reforça o nexo de um grupo com o passado. Todavia, isso não pressupõe ou gera uma reflexão explícita sobre a distância que nos separa deles. Essa reflexão é gerada normalmente pela historiografia (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 179).

Com o intuito de exemplificar esse raciocínio, Ginzburg relata o episódio da última ceia de Jesus, na qual Ele afirma: “isso é meu corpo oferecido por vós; fazei isso em memória de mim” (Lucas 22:19) e mostra como o apóstolo Paulo interpreta essas palavras de Jesus de uma forma um pouco diferente na primeira epístola aos coríntios, transformando o corpo de Cristo no que muito mais tarde foi definido como corpus mysticum; um corpo místico no qual eram incorporados todos os crentes. Tal fato, que implicava o desaparecimento de qualquer particularidade étnica, social ou sexual, gerou uma nova relação cristã com o passado judaico, assumindo novas formas (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 180).

De acordo com Ginzburg, em Agostinho, neoplatônico assim como Paulo, o passado judaico e o passado cristão se unem por meio da noção de figura, conforme desenvolvida por E. Auerbach. Dessa forma, as palavras de João 6:53 - “Se não comedes a carne do Filho do Homem e não Beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos” passa a ter um sentido figurado, no qual a memória do sacrifício de Jesus seja recordada diariamente, mas também no momento da comunhão; da Santa Ceia.

Além disso, Ginzburg demonstra que, através do estudo dos escritos de Cícero, que lera na adolescência, Agostinho de Hipona elaborou sua teologia cristão com forte fundamento vindo da retórica. Em suma, assim como Tucídides e Políbio, Agostinho aprendera que as instituições e os costumes mudam ao longo do tempo. Todavia, ele via no passado judaico um caso especial, ligado ao presente cristão por uma relação tipológica, uma leitura figural - a de que o Velho Testamento é, ao mesmo tempo, verdadeiro e superado - Agostinho voltou-se para a retórica de Cícero, segundo a qual a excelência artística é intrinsicamente refratária à comparação (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 184-186).

E aqui entramos no cerne da argumentação de Ginzburg: segundo ele, nem os gregos nem os judeus construíram uma noção de perspectiva história que nos é familiar. Somente um cristão como Agostinho, refletindo sobre a relação fatal entre o cristão e os judeus, entre Velho e Novo Testamento, pôde formular a ideia, que se tornou um elemento crucial da consciência histórica, de que o passado deve ser compreendido tanto em seus próprios termos, quanto como um anel de uma corrente que, em última análise, chega até nós.

Ambivalência da consciência histórica, segundo Ginzburg, que deve ser vista como uma projeção secularizada da ambivalência cristã para com os judeus: por um lado o modelo baseado na adaptação divina, em que a verdade (judaísmo) conduz a uma verdade superior (cristianismo). E do outro, um modelo puramente secular, baseado no conflito. O antagonismo entre as representações da realidade política nasce das coisas, da sua natureza intrinsicamente conflituosa - uma consciência advinda de uma longa experiência das coisas modernas e de uma contínua lição das coisas antigas (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 190-191).

Através do artifício da logosformeln Ginzburg demonstra que tal perspectiva analítica aparece em Maquiavel, de forma secularizada, por meio da sua visão de que perspectivas diferentes produzem representações diferentes da realidade política: tanto a representação das posições políticas criadas pelo príncipe quanto daquelas criadas pelo povo são sempre perspectivas limitadas. Em suma, Maquiavel constrói um modelo muito diferente daquele de Agostinho, na qual a verdade conduziria a uma verdade superior (cristianismo). Seu modelo puramente secular, baseado na suposta “verdade efetiva das coisas” fundamenta o conflito como o antagonismo entre as representações políticas das coisas. Ambivalência e conflito começam a ser fundamentais para análise da realidade na Europa da modernidade.

Ecos da teoria política de Machiavel chegaram, por vias complexas, em Descartes. Em cartas trocas com Elizabeth, princesa do Palatinado, em 1646, o filósofo francês, negando a metáfora simétrica de Maquiavel e ressaltando a posição especial dos príncipes, reestabelece a hierarquia social e cognitiva, alçando os comportamentos conflitivos da elite às circunstâncias e não necessariamente ao conflito inerente das interações humanas (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 192).

Da mesma forma, Leibniz que já era leitor de Maquiavel, descobre a leitura do teórico florentino feita por Descartes. Para Leibniz, assim como Maquiavel, a perspectiva consistia numa metáfora que permite a construção de modelo cognitivo fundamentado numa pluralidade de pontos de vista. Contudo, enquanto o modelo de Maquiavel se baseava no conflito, o de Leibniz se baseava na coexistência harmoniosa de uma infinita multiplicidade das coisas (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 193). Temos aqui, o terceiro modelo cognitivo de compreensão da realidade.

Ginzburg então chega à conclusão de que os modelos elaborados por Agostinho a partir de Paulo, por Maquiavel e por Leibniz podem ser postos, respectivamente, sob o signo da adaptação, do conflito e da multiplicidade. Todos tiveram influência duradoura. Enquanto Hegel combinou o modelo conflituoso de Maquiavel com a versão secularizada do modelo de Agostinho, a reelaboração do modelo conflituoso do filosofo florentino é evidente na obra de Karl Marx. Além disso, o perspectivismo é fundamental para compreendermos a luta de Nietzsche contra a objetividade positivista. Em suma, para Ginzburg, as metáforas ligadas à distância e à perspectiva ainda desempenham função importante na nossa tradição intelectual e foram elementos centrais na construção da modernidade europeia.

Nesse ponto, mais especificamente numa perspectiva histórica, o historiador italiano avança em relação a Auerbach a partir de Spitzer. Erich Auerbach, em seu texto Epilegomena zu Mímesis, publicado em 1954, afirma que a moderna visão perspectivista e “historicista” se desenvolveu plenamente apenas há um século e meio. Mas o mesmo Auerbach, no ensaio Figura, escrito pouco tempo depois, sugere que essa tal visão moderna possuía raízes muito mais antigas. Já Leo Spitzer, no seu ensaio Linguistic perspectivism, afirma que o perspectivismo é inseparável do pensamento cristão, segundo o qual o homem comum tem acesso à sabedoria tanto quanto o homem culto e a letra da lei e seu espírito podem ser compreendidos por qualquer um. Todavia, nem Auerbach nem Spitzer perceberam que o perspectivismo cristão tinha suas raízes na relação ambivalente com o judaísmo, talvez, segundo Ginzburg, devido a algum bloqueio para o qual possa ter contribuído a condição de judeus assimilados dos dois (GINZBURG, 2001GINZBURG, Carlo. Distância e perspectiva: duas metáforas. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 288, nota 33).

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Correndo o risco de ser redundante, creio ser possível afirmar que Ginzburg reformulou a micro-história no que diz respeito à maneira de se chegar a conhecimentos globais de longa duração, tanto temporais quanto espaciais, por meio da análise de um conjunto de estudos de caso. Na verdade, a micro-história primeva de Ginzburg, produzida nos anos 1970 e 1980 (Andarilhos do Bem, de 1966, também pode ser incluído nesse panorama), já nos fornece elementos para se pensar elementos macro: a análise da cosmovisão de um moleiro friuliano nos permite pensar na margem de manobra que os camponeses passaram a ter depois da invenção da imprensa móvel por Gutemberg, bem como pelos efeitos políticos irradiados da Reforma Protestante.

Entretanto, em seus ensaios dos anos 1990 e 2000, Ginzburg avança nesse movimento. Os estudos de casos, examinados pela adaptação das lentes metodológicas e conceituais de Warburg e Auerbach, dentre outros, lhe fornece elementos para uma leitura da relação do cristianismo com o judaísmo. Isso é muito importante visto que o possibilitou perceber algo extremamente global e macro: o fundamento gnosiológico da relação do europeu com o outro em longa duração. O cristianismo, nesse sentido, ao ser visto por seus teólogos como o ramo enxertado na oliveira, cujos ramos originais (judeus) haviam caído devido a sua incredulidade no messias; e ao se ver como o verdadeiro Israel de Deus, fundamentou uma relação de distância e continuidade entre cristãos e judeus; uma relação de proximidade e hostilidade.

A insistência na unicidade da Encarnação produziu assim uma nova percepção da história humana. E para o historiador italiano, o núcleo central do paradigma historiográfico pode ser visto como uma versão secularizada do modelo de adaptação, combinado com doses variadas de conflito e multiplicidade. Nosso modo de conhecer o passado estaria assim impregnado de uma atitude similar àquela da atitude do cristianismo em relação aos judeus. Da mesma forma, a própria maneira como o europeu olhou para o “outro” ao longo dos últimos 500 ou 600 anos - permeada por conflito, mas eventualmente composta por doses de um perspectivismo carregado de multiplicidade, como o estudo de caso da trajetória da obra de La Créquinière demonstra - também pode ser remetida a essas questões tratadas aqui8 8 Um outro estudo de caso que também fornece fundamentos para o modelo de influência da ambiguidade do cristianismo em relação ao judaísmo como um dos elementos constituidores da modernidade é o que Ginzburg realiza a respeito de Jean-Pierre Purry, nascido de uma família Calvinista em Neuchâtel, Suíça, em 1675. Em 26 de maio de 1713, ele embarcou como oficial em um navio de propriedade da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais, o instrumento da expansão econômica e política da Holanda no Sudeste da Ásia. A partir da análise de suas memórias - Mémoires sur le Pais de Cafres et la Terre de Nuyts - Ginzburg analisa a relação de ambivalência que marcou a vida de Purry em relação à escravidão e à colonização. Segundo Ginzburg, Purry foi capaz de ver a Terra como um todo. Não foram muitos os indivíduos antes dele que possuíam um ponto de vista tão amplo e global; menos ainda tiveram a oportunidade ou a capacidade de dar expressão escrita àquilo que viram e ao que pensaram sobre isso. Como Purry conseguiu fazer isso? De acordo com Ginzburg, antes de mais nada, Purry pensava com a Bíblia, uma experiência que ele compartilhava com inumeráveis indivíduos, antes e depois dele. A Bíblia lhe dava as palavras, os argumentos, as histórias; ele projetava palavras, experiências e eventos sobre a Bíblia. Outros livros lhe forneciam as lentes através das quais ele lia a Bíblia e vice-versa. Purry articulava sua justificativa ao direito europeu de conquista do mundo em termos do direito natural, que ele derivava de uma passagem bíblica, ainda que alguém pudesse argumentar o oposto, isto é, que a noção de direito natural inspirada pelo Segundo tratado de Locke houvesse inspirado a leitura que Purry fazia da Bíblia. A passagem de Locke sobre o vínculo humano que conectava “um suíço e um índio nas florestas da América” que estão em “referência um ao outro [...] em perfeito Estado de Natureza” deve ter produzido uma ressonância especial para Purry, ele próprio suíço. Diante de Deus não havia hierarquias; todos os seres humanos têm o mesmo direito ao uso da Terra. Em alguns momentos de sua trajetória, a ambivalência de Purry se transformara em conflito: o antiascetismo de Purry e sua justificação, baseada na sua própria leitura da Bíblia, e especialmente da narrativa do Êxodo, da conquista europeia (que incluía a escravidão e o uso da força) do mundo. Para mais detalhes, ver Ginzburg (2007). .

Numa interpretação tradicional do século XIX, história global é o rejuvenescimento de tentativas heroicas passadas de se escrever uma história universal, como ela foi concebida através dos séculos e em múltiplas civilizações por autores tão diversos como Heródoto e Arnold Joseph Toynbee (CROSSLEY, 2008CROSSLEY, Pamela. K. O que é História Global. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.). Elas examinam catástrofes demográficas, grandes migrações forçadas ou voluntárias, desastres ecológicos, invasões militares e progressos tecnológicos. Elas oferecem comparações estruturais entre continentes, impérios e oceanos (TRIVELLATO, 2011TRIVELLATO, Francesca. Is there a future for Italian microhistory in the age of global history? Californian Italian Studies, v. 2, n. 1, p. 571-611, 2011., p. 582). Ginzburg evidentemente não produz esse tipo de história. Entretanto, sua reformulação da micro-história pode fornecer uma ampla abertura para uma história global revigorada.

Nesse sentido, mais que o uso de um modelo generativo, adaptado da antropologia - que fundamentou muitos dos melhores trabalhos de alguns micro-historiadores - no qual devemos utilizar uma gama enorme de documentos e sistematizá-los através de experimentos, produzindo uma visão mais realista dos comportamentos sociais, Ginzburg reelabora sua concepção da micro-história. Na verdade, a reformula em direção de uma história pautada em procedimentos da literatura e da história da arte (procedimentos talvez menos “científicos” e mais artísticos). Esses procedimentos lhe permitiram vislumbrar um elemento de longa duração no tempo e no espaço que moldou, de inúmeras formas, a relação do europeu consigo mesmo, com os “outros”, com os orientais e assim, com o mundo. A micro-história reformulada por Ginzburg radicaliza a possibilidade de um conhecimento muito mais amplo de valores e ideias, sem, efetivamente, se voltar para as metodologias da História Social. Também não seria exagero afirmar, que por outros intrincados caminhos, Ginzburg já havia tentado realizar algo semelhante no seu História noturna.

O pesquisador italiano, através de caminhos poucos usuais aos historiadores da sua geração, nos revela que o global não pode ser verdadeiramente conhecido sem antes analisarmos e conhecermos a maneira como as pessoas, em seus locais de interação com os outros, criam perspectivismo fundamentados na distância, conflito, ambivalência e também, na multiplicidade. E para apreendermos tal coisa, precisamos aprender, através de uma leitura lenta e filológica, como as ideias, pensamentos, imagens e símbolos viajam no tempo e no espaço, para então, serem apropriados, reelaborados e enfim, reformulados.

Referências

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  • TRIVELLATO, Francesca. The Familiarity of Strangers - The Sephardic Diaspora, Livorno and Cross-Cultural Trade in the Early Modern Period Yale: Yale University Press, 2009.
  • 1
    Gostaria de agradecer a Daniel Berbert Dias Rezende pelos insights sobre Erich Auerbach, e também a Cleber Amaral Felipe pela leitura crítica do ensaio. Por fim, gostaria de agradecer a Carlo Ginzburg pelas críticas e sugestões, bem como pelo envio de textos inéditos que auxiliaram minhas reflexões.
  • 2
    Como ficará claro ao longo deste ensaio, as reflexões aqui expostas não discutirão diretamente com as características centrais da História Global, mas especificamente com a contribuição da micro-história de Carlo Ginzburg para a produção de uma Global History mais empírica e, a meu ver, relevante. Para mais informações sobre uma análise ampla sobre as contribuições e divergências no seio dessa corrente historiográfica, ver, dentre outros: Santos Júnior e Sochaczewski (2014), Armitage (2014) e Conrad (2016). Além disso, existe uma série de trabalhos desenvolvidos por historiadores e historiadoras ligados, direta e indiretamente, à micro-história que oferecem importantes subsídios para o debate. Para mais detalhes, ver, dentre outros: Levi (2020), Torre (2018), Trivellato (2011), Cerutti e Grangaud (2017), De Vito (2020), De Vito (2015) e Trivellato (2009).
  • 3
    Apesar de não ser esse o objetivo deste ensaio, é importante ressaltar que essa metodologia de Carlo Ginzburg foi alvo de duras críticas ao longo dos anos. Segundo alguns críticos, várias lacunas e perguntas lançadas pelo autor de O queijo e os vermes acabam não sendo respondidas adequadamente. De acordo com Peter Burke, “os leitores são levados a acabar cada ensaio (de Carlo Ginzburg) com a cabeça repleta de questões não respondidas”. Outro historiador, Tony Molho, argumenta da seguinte maneira: “gostaríamos que Ginzburg tivesse adicionado algumas páginas a mais a fim de clarificar os obscuros, ainda indefinidos aspectos de sua formulação. Ele aventurou-se nessa questão em incursões posteriores. Mas, se formos julgar pelas respostas de alguns de seus críticos, não o fez satisfatoriamente”. Para mais detalhes, ver o provocativo artigo de Francisco Murari Pires (2013, p. 29), de onde essas citações foram retiradas.
  • 4
    Em linhas gerais, uma abordagem êmica é aquela que parte do ponto de vista dos atores sociais para a formulação de questões. Já a ética é aquela cujo fundamento é a perspectiva adotada pelo pesquisador.
  • 5
    A natureza experimental da micro-história, e a diferença dela para a história contrafactual formulada pela New Economic History foram apontadas por Jacques Revel na sua introdução ao livro de Giovanni Levi (LEVI, 2000).
  • 6
    LAHTEV-UFU. Entrevista com Carlo Ginzburg. I Ciclo de debates do LAHTEV-UFU (Laboratório de História do Trabalho, da Educação e da Violência). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HxAatnAfGF8. Acesso em: 12 mar. 2021. A página do LAHTEV-UFU no YouTube contém entrevistas, realizadas com os principais micro-historiadores italianos.
  • 7
    Tradução minha. No original: “L’explication littéraire s’applique de préférence à un texte d’une étendue limitée, et elle part d’une analyse pour ainsi dire microscopique de ses formes linguistiques et artistiques, des motifs du contenu et de sa composition; pendant cette analyse, qui doit se servir de toutes ies méthodes sémantiques, syntaxiques et psychologiques ac­ tuelles, il faut faire abstraction de toutes les connaissances antérieures qu’on possède ou qu’on croit posséder sur le texte et l’écrivain en ques­ tion, sur sa biographie, sur les jugements et opinions en cours sur lui, sur les influences qu’il peut avoir subies, etc.; il ne faut regarder que le texte lui-même, et l’observer avec une attention intense, soutenue, de sorte qu’aucun des mouvements de la langue et du fond ne vous échappe [...] Toute la valeur de l’explication des textes est là: il faut lire avec une attention fraîche, spontanée et soutenue, et il faut scrupuleusement se garder des classements prématurés. Ce n’est que quand le texte en question est entièrement reconstruit, dans tous ses détails et dans son ensemble, qu’on doit procéder aux com­ paraisons, aux considérations historiques, biographiques et générales […]”.
  • 8
    Um outro estudo de caso que também fornece fundamentos para o modelo de influência da ambiguidade do cristianismo em relação ao judaísmo como um dos elementos constituidores da modernidade é o que Ginzburg realiza a respeito de Jean-Pierre Purry, nascido de uma família Calvinista em Neuchâtel, Suíça, em 1675. Em 26 de maio de 1713, ele embarcou como oficial em um navio de propriedade da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais, o instrumento da expansão econômica e política da Holanda no Sudeste da Ásia. A partir da análise de suas memórias - Mémoires sur le Pais de Cafres et la Terre de Nuyts - Ginzburg analisa a relação de ambivalência que marcou a vida de Purry em relação à escravidão e à colonização. Segundo Ginzburg, Purry foi capaz de ver a Terra como um todo. Não foram muitos os indivíduos antes dele que possuíam um ponto de vista tão amplo e global; menos ainda tiveram a oportunidade ou a capacidade de dar expressão escrita àquilo que viram e ao que pensaram sobre isso. Como Purry conseguiu fazer isso? De acordo com Ginzburg, antes de mais nada, Purry pensava com a Bíblia, uma experiência que ele compartilhava com inumeráveis indivíduos, antes e depois dele. A Bíblia lhe dava as palavras, os argumentos, as histórias; ele projetava palavras, experiências e eventos sobre a Bíblia. Outros livros lhe forneciam as lentes através das quais ele lia a Bíblia e vice-versa. Purry articulava sua justificativa ao direito europeu de conquista do mundo em termos do direito natural, que ele derivava de uma passagem bíblica, ainda que alguém pudesse argumentar o oposto, isto é, que a noção de direito natural inspirada pelo Segundo tratado de Locke houvesse inspirado a leitura que Purry fazia da Bíblia. A passagem de Locke sobre o vínculo humano que conectava “um suíço e um índio nas florestas da América” que estão em “referência um ao outro [...] em perfeito Estado de Natureza” deve ter produzido uma ressonância especial para Purry, ele próprio suíço. Diante de Deus não havia hierarquias; todos os seres humanos têm o mesmo direito ao uso da Terra. Em alguns momentos de sua trajetória, a ambivalência de Purry se transformara em conflito: o antiascetismo de Purry e sua justificação, baseada na sua própria leitura da Bíblia, e especialmente da narrativa do Êxodo, da conquista europeia (que incluía a escravidão e o uso da força) do mundo. Para mais detalhes, ver Ginzburg (2007).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Aceito
    03 Jul 2021
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