Como as ciências humanas podem enfrentar os desafios impostos pelo Antropoceno? A proposta do biólogo Eugene F. Stoermer e do químico Paul J. Crutzen de equiparar as atividades humanas às forças geológicas nos faz repensar a ideia moderna da separação entre história humana e a história profunda da natureza (CRUTZEN; STOERMER, [2000] 2015CRUTZEN, Paul J.; STOERMER, Eugene F. [2000]. O Antropoceno. Piseagrama, Belo Horizonte, 6 nov. 2015. Disponível em: https://piseagrama.org/extra/o-antropoceno/. Acesso em: 31 jul. 2023.
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). De acordo com o historiador Dipesh Chakrabarty (2009CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History: Four Theses. Critical Inquiry, n. 35, p. 197-222, 2009., p. 206), para caracterizá-las como agentes geológicos as humanidades se veem provocadas a ampliar sua imaginação em direção a escalas não previstas por nossas disciplinas. A ideia do Antropoceno estende a história humana em direção aos ciclos planetários de elementos e fenômenos, graças às constantes emissões industriais, urbanas e agrícolas de gases e substâncias. O desafio, para Chakrabarty (2009CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History: Four Theses. Critical Inquiry, n. 35, p. 197-222, 2009., p. 219-220), é refletir sobre a história da espécie em conjunto à do capitalismo industrial e à do colonialismo, em que recaem a grande fatia de responsabilidade pela crise ecológica.
Além do conceito de uma nova era geo-lógica antropogênica, ainda em discussão nas comissões internacionais de geologia, outra ideia-força oriunda das ciências naturais tem reverberado entre as humanidades: a chamada hipótese ou teoria de Gaia, proposta pelo cientista britânico James Lovelock ([1988LOVELOCK, James [1988]. The Ages of Gaia. A Biography of our Living Earth. Oxford: Oxford University Press, 2000.] 2000; 2004) e pela microbiologista estadunidense Lynn Margulis (1990MARGULIS, Lynn. Os primórdios da vida. Os micróbios têm prioridade. In: THOMPSON, William Irwin (org.). Gaia - uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990. p. 91-102.; 2004MARGULIS, Lynn. Gaia by Any Other Name. In: SCHNEIDER, S. H.; MILLER, J. R.; CRIST, E.; BOSTON, P. J. (eds.). Scientists Debate Gaia. The Next Century. Cambridge: The MIT Press, 2004. p. 7-12.; [1998] 2022) - fonte de controvérsias desde os anos 1960. Eles defendem que a evolução dos seres vivos ao longo de milhões de anos transformou as condições físico-químicas do planeta de maneira não intencional, mas com profundas consequências para a manutenção da vida. Isto é, as condições necessárias para a habitabilidade da Terra, como a salinidade dos oceanos, a temperatura atmosférica, os níveis de elementos encontrados no ar, nos solos e nos mares seriam resultantes, “em grande medida, de modificações, criações e invenções de organismos vivos” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 11).
A Terra não teria apenas se constituído geologicamente como um planeta propício para o desenvolvimento da vida, formulação que mantém os seres vivos como testemunhas de sua própria história, mas teria sido feita e refeita pela sucessão dos viventes.1 1 Para um panorama das possibilidades de Gaia, ver Schneider et al. (2004), com introduções de Lovelock e Margulis. O capítulo de Peter Bunyard interpreta a Amazônia como um sistema do tipo Gaia, devido às múltiplas conexões entre a floresta e o clima, a partir de pesquisas de cientistas brasileiros como Enéas Salati e Carlos Nobre (BUNYARD, 2004). Gaia é uma metáfora para tratar desses processos contingentes e vem acompanhada da conclusão de que as condições de habitabilidade possuem limites frágeis, passíveis de serem perturbados.
Essas novas formas de contar histórias, de tratar fenômenos naturais como agentes ativos e criativos e os humanos como força geológica, foram enfrentadas pelo filósofo, sociólogo e antropólogo francês Bruno Latour (1947-2022), em seu livro Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (2020). Gaia e o Antropoceno são as duas figuras que Latour esmiúça com detalhes para oferecer maneiras de nos livrarmos do que ele chama de nossos velhos hábitos de pensamento: a distinção entre os domínios relacionados de Natureza e Cultura - tratada por ele por diferentes ângulos desde suas primeiras obras, como Jamais fomos modernos (LATOUR, 1994LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994.).2 2 Ver Marini e Bailão (2023). Esta resenha mantém alguns conceitos com as iniciais em letras maiúsculas seguindo Latour, chamando a atenção para a necessidade de transformá-los em tópicos de discussão e não em recursos de explicação.
Diante de Gaia é baseado nas Gifford Lectures, conferências sobre “religião natural” que Latour deu em Edimburgo, na Escócia, e que já foram ministradas por filósofos como William James e Alfred North Whitehead - importantes referenciais teóricos para o autor. Elas foram proferidas em 2013 e as seis conferências originais foram ampliadas e acrescidas de duas, publicadas na França em 2015 e dois anos depois em língua inglesa. A tradução brasileira de Maryalua Meyer, pela Ubu e pelo Ateliê de Humanidades, ganhou um prefácio escrito por Latour em meio à pandemia de Covid-19 e durante o governo Bolsonaro, cuja política era conduzida de maneira a “denegar a crise ecológica e sanitária, evitando, assim, seu enfrentamento” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 4).
O ponto de partida da discussão são as chamadas crises ecológicas. Isabelle Stengers (2015)STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015. interpreta que a figura Gaia se refere ao conjunto de reações do mundo às nossas ações. O incômodo que ela causa em nossos saberes e nossas vidas, sua “intrusão”, nos demanda novas reflexões. Contudo, como Latour nos lembra, a própria ideia de crise nos dá uma falsa esperança de melhora. O que o autor afirma, todavia, baseado nas pesquisas de climatologistas, é que a situação não vai passar. Mesmo que fossem interrompidas as emissões de carbono, seus efeitos persistentes a longo prazo continuarão a afetar o planeta e seus viventes por muitos séculos.
Sobre o que comumente chamamos de “mundo natural”, o que antes considerávamos como um cenário de fundo parece, em nossa época, ter “subido ao palco para compartilhar a trama com os atores” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 18). Clima e ecologia deixam de ser assuntos para especialistas ou uma maneira de olhar para o mundo à distância, como uma astrônoma observando uma estrela longínqua ou uma artista pintando uma “natureza morta”, estática e inerte. As pesquisas sobre mudanças climáticas produzem um paradoxo: como manter a posição indiferente e distante perante o mundo, enquanto falamos das consequências de nossas ações em nosso próprio mundo? Se antes poderíamos olhar pela janela e contemplar o clima variável, mas indiferente às nossas vidas, hoje as nuvens carregam um pouco de nossas ações (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 395).
Apesar disso, as notícias parecem não nos comover. O “novo regime climático”, como Latour batiza o nosso tempo, não modificou nossas ações. As reações às notícias sobre os novos recordes de temperatura, sobre a extinção de espécies e sobre os desastres socioambientais vão da negação, típica dos chamados climacéticos, a outras posturas, como a depressão, a apatia, o escapismo e até projetos mirabolantes de modificar a atmosfera para frear os efeitos do aquecimento global - em vez de sanar suas causas. Essas reações advêm, segundo Latour, de nossa cosmologia que encara a natureza como um cenário inerte a serviço dos humanos e das discrepâncias entre manter os nossos modos de vida e a necessidade de enfrentarmos as transformações ecológicas decorrentes.
O mundo moderno produziu o paradoxo de definir as ciências como uma operação de pura descrição dos fatos, fora da moral. Mas à medida que as ciências constatam os efeitos e as consequências de certas atividades humanas no futuro, elas performam valores e políticas, buscando provocar reações no mundo (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 63). A chamada “curva de Keeling”, que apresenta o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera,3 3 A curva de Keeling deve seu nome ao estadunidense Charles Keeling, que instalou sensores no observatório de Mauna Loa no Havaí, história que é contada por Latour na segunda conferência. é tanto uma descrição de uma quantidade medida por instrumentos quanto uma prescrição, já que está carregada da ideia de uma fronteira perigosa que não deve ser ultrapassada. Desse modo, o Antropoceno e as mudanças climáticas colapsam com todos os divisores da modernidade: além de natureza e cultura, também ciência e política, fato e valor.4 4 Ver Latour (1994) e Stengers (2002).
Latour inicia as duas primeiras conferências, “Sobre a instabilidade da (noção de) natureza” e “Como não (des)animar a natureza”, com o que afirma ser o problema dos modernos: a instabilidade e os paradoxos de sua cosmologia bifurcada. O Antropoceno não nos levaria a um retorno ao mundo natural, como ouvimos entre certos discursos ambientalistas, já que pensar assim mantém a divisão intocada. Sua solução é se afastar das características estáveis de uma Natureza inerte, por um lado, e de sujeitos humanos ativos, por outro, e tratá-los, não como recursos de explicação, mas como tópicos a serem investigados.
Latour reafirma sua inspiração no filósofo Michel Serres ([1990] 1994SERRES, Michel [1990]. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.) e retoma sua noção de agência distribuída entre humanos e não humanos, exposta em outros livros (LATOUR, 1994LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994., 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, São Paulo: Edufba; Edusc, 2012.). Para compreendermos como o nosso mundo é feito, desfeito e refeito a todo o tempo, devemos seguir as pistas das ações, dos efeitos e das performances dos seres diversos - princípio metodológico que acompanha seus trabalhos e de seus colegas da teoria ator-rede desde os anos 1980, como o sociólogo Michel Callon (CALLON, 1984CALLON, Michel. Some Elements of a Sociology of Translation. Domestication of the Scallops and the Fishermen of St. Brieuc Bay. The Sociological Review, v. 32, n. 1, supl., 1984 [online]. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x. Acesso em: 31 jul. 2023.
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; LATOUR, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, São Paulo: Edufba; Edusc, 2012., p. 24-30). Latour reforça sua interpretação de que os ditos modernos se assemelham muito mais aos outros povos do que gostariam: olhando para as ações, para como os seres agem uns em relação aos outros e fazem os outros agirem, torna-se bastante difícil distinguir sujeitos de objetos.5
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Para uma crítica, ver Hornborg (2017; 2022); para uma elaboração a esse respeito, ver Marras (2022).
Para a cosmologia moderna, Gaia representa uma contrarrevolução, análoga à de Galileu e Copérnico. Enquanto os modernos retiraram a animação do mundo (que antes estava nos espíritos, nos anjos, em Deus) e o caracterizaram como uma esfera de puro movimento no espaço infinito, Latour vê na hipótese de Gaia uma possibilidade de reanimá-lo, ao mostrar como os seres viventes são afetados pelo mundo, mas também o afetam de volta, uns agindo sobre os outros - motivo pelo qual a Terra é única entre nossos planetas vizinhos.
As ideias em torno de Gaia e do Globo são discutidas na terceira e na quarta conferência, “Gaia: uma figura (enfim profana) da natureza” e “O Antropoceno e a destruição (da imagem) do Globo”, acompanhado por suas leituras de James Lovelock e do filósofo Peter Sloterdijk. Latour busca superar compreensões holísticas de Gaia como um supraorganismo com intenções ou uma máquina coerente, e do Globo como uma totalidade pronta e utópica, a favor de versões mais contingentes e mundanas. Gaia não seria uma substituta da Providência ou da Natureza, pois possui uma história. Se tem um começo, pode ter um fim, e é suscetível devido à fragilidade dos ciclos de retroalimentação, perigosamente perturbados pelos modos de vida capitalista-industrial. Ele também abre mão do conceito universalista de Humano, a favor de uma atenção aos modos de existência diversos e das potências de agir dos variados seres.
Uma das críticas mais recorrentes à noção de Gaia foi a de que seria uma figura demasiadamente viva para falar de processos biogeoquímicos planetários complexos, como se fosse um tipo de organismo. Mas se ela não é um ser vivo único, também não está morta (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 120). Trata-se de uma leitura generosa de Lovelock - e que Latour já havia apresentado no Brasil durante o colóquio Os Mil Nomes de Gaia, realizado no Rio de Janeiro em 2014 (LATOUR, 2022LATOUR, Bruno. Como ter certeza de que Gaia não é uma deusa? Com atenção especial ao livro de Toby Tyrrell sobre Gaia. In: DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SALDANHA, Rafael (orgs.). Os mil nomes de Gaia. Do Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro: Machado, 2022.). Contra os comentadores da teoria, que tentam encerrar Gaia no plano das certezas absolutas, Latour lê Lovelock de maneira mais aberta, explorando as possibilidades, as incertezas e os fios soltos da hipótese.
A origem de Gaia como figura mitológica remonta à Grécia antiga, a uma força ctônica prolífica que surge do caos para dar origem a todos os seres. Hesíodo, o poeta que canta a origem dos deuses, nunca diz quem Gaia é, nem lhe dá uma essência ideal, mas enumera o que ela faz. Latour incorpora esse modo de apresentá-la e o aproxima aos seus próprios métodos de enumeração de atributos e de performances dos seres antes de definir suas identidades.6 6 Ver Latour (2012).
Se a Terra não é um planeta estéril, é porque os organismos vivos são parte integrante e em coevolução com o meio em que vivem e com os demais seres, regulando os ciclos planetários num processo complexo e imbricado (LOVELOCK, 1990LOVELOCK, James. Gaia - um modelo para a dinâmica planetária e celular. In: THOMPSON, William Irwin (org.). Gaia - uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990. p. 77-90., p. 87). Gaia seria um antissistema, uma sequência de conexões, ao que Latour aproxima de sua teoria ator-rede, apostando numa convergência entre seu programa teórico-metodológico e o debate sobre Gaia: ambos seriam contrários ao holismo das grandes essências (Organismo, Sociedade, Natureza etc.), a favor das conexões contingentes, historicamente criadas, e das composições instáveis (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 127-180).7 7 O argumento de que o ator-rede é um agregado menor do que a soma de suas partes, contra a sociologia herdeira de Durkheim, passou por uma recuperação da obra do sociólogo francês Gabriel Tarde (LATOUR, 2012; LATOUR et al., 2012).
Porém, falta ao livro um engajamento aprofundado com a coautora da hipótese, Lynn Margulis - com quem dialoga a filósofa Donna Haraway (2016)HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016. num livro sobre o Antropoceno.8 8 Haraway parte da noção de simbiose e simbiogênese de Margulis para formular seu conceito de simpoiese (“fazer-com”, compor) e para pensar nas vidas multiespécies, tema de seus outros livros. A convergência entre Lovelock, trabalhando num laboratório da Agência Espacial Norte-Americana (NASA), com Margulis, uma microbiologista elaborando sobre as origens da vida, foi essencial para dar “músculos ao esqueleto de Gaia” (LOVELOCK, 2004LOVELOCK, James. Reflections on Gaia. In: SCHNEIDER, S. H.; MILLER, J. R.; CRIST, E.; BOSTON, P. J. (eds.). Scientists Debate Gaia. The Next Century. Cambridge: The MIT Press, 2004. p. 1-5., p. 2). Apesar de mencionar a autora brevemente, Latour reconhece sua importância para o problema de Gaia: superar noções de organismos adaptados a um contexto já pronto a favor das coproduções e composições mútuas, complexas e não lineares de organismos e ambientes (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 164; MARGULIS, 2022MARGULIS, Lynn [1998]. Planeta simbiótico: um novo olhar para a evolução. Rio de Janeiro: Dantes, 2022.).
A quinta e a sexta conferência, “Como convocar os diferentes povos (da natureza)?” e “Como (não) terminar com o fim dos tempos”, são ensaios de teologia, de escatologia e de cosmologia dos modernos, que ele chama de o “povo da natureza”, obcecados por uma ideia de Natureza que busca encerrar as controvérsias e ser indiscutível, uma verdade absoluta contra a qual não haveria disputa - diferente, ele nota, das práticas mundanas de muitos cientistas. Segundo Latour, como escreveu Renato Sztutman, “no pensamento modernista, a ideia de natureza funda uma espécie de teologia política: a natureza é por definição transcendente, é o que se mantém imutável” (SZTUTMAN, 2022SZTUTMAN, Renato. No limiar entre ciência e ficção: especulação e imaginação para responder ao Antropoceno. In: MARRAS, Stelio; TADDEI, Renzo (orgs.). O Antropoceno: sobre modos de compor mundos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. p. 133-188., p. 153) - e contra essa Natureza com ares divinos dos modernos, Gaia aparece como uma entidade profana e imanente.
A sétima conferência, “Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz”, apresenta uma leitura do jurista alemão Carl Schmitt9 9 As leitoras e os leitores certamente estranharão escolhas de leituras feitas por Latour para compor duas conferências: Peter Sloterdijk, filósofo conservador, e Carl Schmitt, jurista ligado ao partido nazista. para pensar os desafios de criar um mundo comum e a necessidade de admitirmos que estamos num estado de guerra.10 10 Ver Fausto (2013). Aqui ele expõe seu conceito de “terranos” (Earthbound people ou Earthlings, “terrestres” na tradução brasileira) contra a de ‘‘humanos’’. Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro criticam sua falta de precisão na definição dos “terranos”. Os autores discutem a possibilidade de “nomear os bois”: na guerra de Gaia, quem seriam, afinal, os terranos e os humanos - estes últimos ainda presos à cosmologia moderna? Danowski e Viveiros de Castro (2014DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis; São Paulo: Cultura e Barbárie; ISA, 2014., p. 123-142) identificam nas multinacionais petroquímicas, nos conglomerados do agronegócio, nos bancos e em certos governos o papel dos humanos latourianos. Se Latour evita definir os “terrestres” ou “terranos” e caracteriza sua figuração como um porvir, Danowski e Viveiros de Castro identificam nos povos indígenas, sobreviventes dos genocídios da colonização, um verdadeiro ‘‘fim do mundo’’, possibilidades já existentes de relações com Gaia.11 11 Ver Sztutman (2022).
A última conferência, “Como governar os territórios (naturais) em luta?”, fala dos acordos possíveis. O autor encerra o livro com um experimento pedagógico e artístico realizado às vésperas da COP-21 (Conferência das Partes) em Paris com alunos da Sciences Po. Simulando uma conferência internacional, os estudantes estenderam aos não humanos, como o oceano, a floresta e o clima, a representação por delegações com porta-vozes - não da Natureza única, mas da multiplicidade de territórios. Muitas pessoas reconhecerão que tal evento espelha o Parlamento das Coisas de Jamais fomos modernos - Latour não comenta, entretanto, as variadas experimentações políticas ao redor do mundo, a maioria a partir de lutas indígenas, de reconhecimento de territórios, seres, rios, florestas como sujeitos de Direito dotados de personalidade jurídica.
Outra ausência é um enfrentamento da economia política capitalista - crítica que vem sendo feita há alguns anos por autores como Alf Hornborg (2017)HORNBORG, Alf. Dithering While the Planet Burns: Anthropologists’ Approaches to the Anthropocene. Reviews in Anthropology, v. 46, n. 2-3, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/00938157.2017.1343023. Acesso em 31 jul. 2023.
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Tema que vem sendo explorado por autores como Jason W. Moore (2015), que faz leituras do marxismo a partir dos debates materialistas e ontológicos.
A opção de Latour foi a de começar por nos desemaranhar de nossas cosmologias, das figuras unívocas de nosso pensamento bifurcado. A revolução ecológica já teria iniciado e, nesta “geo-história”, nós somos os contrarrevolucionários, teimando em não reagir (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 71-73). Como não podemos mais fingir que somos meros espectadores do mundo, é preciso trazer a filosofia e as ciências de volta à Terra. É preciso reterritorializar o pensamento ou, como ele prefere, reterrestrializá-lo em meio às potências de agir dos seres e fenômenos diversos (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Ateliê de Humanidades, 2020., p. 348-349).
Num trabalho denso e complexo, Latour oferece ao público iniciante um panorama de sua própria trajetória. Aos leitores já iniciados, Diante de Gaia apresenta reverberações e convergências - polêmicas, mas interessantes - entre seu programa téorico-metodológico e a hipótese de Gaia, que podem servir de inspiração para diálogos transdisciplinares. A edição brasileira deve estimular ainda mais o debate a respeito do Antropoceno a partir de leituras de Latour, como vem sendo feito por Alyne Costa (2014)COSTA, Alyne de C. Guerra e paz no Antropoceno: uma análise da crise ecológica segunda a obra de Bruno Latour. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014., Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014), Juliana Fausto (2013)FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1, p. 165-181, 2013., Renato Sztutman (2022)SZTUTMAN, Renato. No limiar entre ciência e ficção: especulação e imaginação para responder ao Antropoceno. In: MARRAS, Stelio; TADDEI, Renzo (orgs.). O Antropoceno: sobre modos de compor mundos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. p. 133-188. e Stelio Marras (2022)MARRAS, Stelio. A herança do dualismo modernista natureza/sociedade. In: MARRAS, Stelio; TADDEI, Renzo (orgs.). O Antropoceno: sobre modos de compor mundos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. p. 247-273..
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Para um panorama das possibilidades de Gaia, ver Schneider et al. (2004)SCHNEIDER, S. H.; MILLER, J. R.; CRIST, E.; BOSTON, P. J. (eds.). Scientists Debate Gaia. The Next Century. Cambridge: The MIT Press, 2004., com introduções de Lovelock e Margulis. O capítulo de Peter Bunyard interpreta a Amazônia como um sistema do tipo Gaia, devido às múltiplas conexões entre a floresta e o clima, a partir de pesquisas de cientistas brasileiros como Enéas Salati e Carlos Nobre (BUNYARD, 2004BUNYARD, Peter. Climate and the Amazon-a Gaian System? In: SCHNEIDER, S. H.; MILLER, J. R.; CRIST, E.; BOSTON, P. J. (eds.). Scientists Debate Gaia. The Next Century. Cambridge: The MIT Press, 2004. p. 335-342.).
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Ver Marini e Bailão (2023)MARINI, Marisol; BAILÃO, André S. Bruno Latour. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo, 2023. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/bruno-latour/. Acesso em: 31 jul. 2023.
https://ea.fflch.usp.br/autor/bruno-lato... . Esta resenha mantém alguns conceitos com as iniciais em letras maiúsculas seguindo Latour, chamando a atenção para a necessidade de transformá-los em tópicos de discussão e não em recursos de explicação. -
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A curva de Keeling deve seu nome ao estadunidense Charles Keeling, que instalou sensores no observatório de Mauna Loa no Havaí, história que é contada por Latour na segunda conferência.
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Ver Latour (1994)LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994. e Stengers (2002)STENGERS, Isabelle [1993]. A invenção das ciências modernas. São Paulo: 34, 2002..
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Para uma crítica, ver Hornborg (2017HORNBORG, Alf. Dithering While the Planet Burns: Anthropologists’ Approaches to the Anthropocene. Reviews in Anthropology, v. 46, n. 2-3, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/00938157.2017.1343023. Acesso em 31 jul. 2023.
http://dx.doi.org/10.1080/00938157.2017.... ; 2022HORNBORG, Alf. O Antropoceno realmente implica o fim das distinções Natureza/Cultura e Sujeito/Objeto? In: DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SALDANHA, Rafael (orgs.). Os mil nomes de Gaia. Do Antropoceno à Idade da Terra. Rio de Janeiro: Machado, 2022. p. 400-417.); para uma elaboração a esse respeito, ver Marras (2022)MARRAS, Stelio. A herança do dualismo modernista natureza/sociedade. In: MARRAS, Stelio; TADDEI, Renzo (orgs.). O Antropoceno: sobre modos de compor mundos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. p. 247-273.. -
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Ver Latour (2012)LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, São Paulo: Edufba; Edusc, 2012..
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O argumento de que o ator-rede é um agregado menor do que a soma de suas partes, contra a sociologia herdeira de Durkheim, passou por uma recuperação da obra do sociólogo francês Gabriel Tarde (LATOUR, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, São Paulo: Edufba; Edusc, 2012.; LATOUR et al., 2012LATOUR, Bruno; JENSEN, Pablo; VENTURINI, Tommaso; GRAUWIN, Sébastian; BOUILLER, Dominique. ‘The Whole is Always Smaller than its Parts’ - A Digital Test of Gabriel Tarde’s Monads. The British Journal of Sociology, v. 63, n. 4, p. 590-615, 2012.).
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Haraway parte da noção de simbiose e simbiogênese de Margulis para formular seu conceito de simpoiese (“fazer-com”, compor) e para pensar nas vidas multiespécies, tema de seus outros livros.
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As leitoras e os leitores certamente estranharão escolhas de leituras feitas por Latour para compor duas conferências: Peter Sloterdijk, filósofo conservador, e Carl Schmitt, jurista ligado ao partido nazista.
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Ver Fausto (2013)FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1, p. 165-181, 2013..
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Ver Sztutman (2022)SZTUTMAN, Renato. No limiar entre ciência e ficção: especulação e imaginação para responder ao Antropoceno. In: MARRAS, Stelio; TADDEI, Renzo (orgs.). O Antropoceno: sobre modos de compor mundos. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. p. 133-188..
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Tema que vem sendo explorado por autores como Jason W. Moore (2015)MOORE, Jason W. Capitalism in the Web of Life Ecology and the Accumulation of Capital. Londres: Verso, 2015., que faz leituras do marxismo a partir dos debates materialistas e ontológicos.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
03 Ago 2023 -
Publicado
06 Ago 2023