ENTREVISTA
Roberto Romano da Silva; Ligia Fraga Silveira; Luiz Araujo Prado; Carlos Davidoff; Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes
Ent: "Quais as principais diretrizes de seu trabalho teórico?
M.S. "Parece-me que o melhor, como resposta, é reconstituir um pouco a atmosfera intelectual dos anos 50 e 60. Havia a preocupação de estabelecer, entre nós, a sociologia e a antropologia como disciplinas científicas autônomas e rigorosas, afastando-se tudo o que se considerava "impressionista" na discussão metodológica, tudo o que pudesse parecer menos técnico. Havia um esforço decidido para transformar as ciências sociais no Brasil em um saber positivo, desprezando-se seus aspectos humanísticos. Esta orientação definiu-se como crítica à "cultura de bacharel", encarada com desconfiança, vista como retórica, superficial, bombástica, burocrática. Suponhamos que assim fosse: em vez de se procurar corrigir as superficialidades ou lacunas dessa vertente do saber, o que se fez foi desvalorizá-la e eliminá-la dos quadros acadêmicos. Por isto mesmo, os argumentos acima, hoje, me soam algo duvidosos, menos determinados pelo caráter dos conhecimentos em causa, que pelo interesse em anulá-los.
Duas premissas parecem ter conduzido a essa orientação. Primeiro, a própria criação da Faculdade, o modo como foi implantada. A tradição francesa, com seu racionalismo de um lado, e seu positivismo de outro, veio ao encontro das tendências autoritárias do setor liberal paulista. Nem foi por outro motivo que o grupo de O Estado de S. Paulo, ligado ao organicismo e ao evolucionismo, empenhou-se em trazer a missão de jovens "agregés". Vindo com eles, o cientificismo passou pelas senhoras diletantes, como salienta Levi-Strauss sem dar-se conta de que isto não acontecia por acaso e do quanto o saber formal e abstrato de que era portador vinculava-se à burguesia que o festejava. Na sua benévola e bem humorada ironia de Tristes Tropiques talvez o alvo principal acabe por ser ele próprio: o movimento de reversão de significados, peculiar a essa figura de pensamento, o atinge em cheio, fazendo dele, e não apenas do seu público, a fonte de riso complacente. Afinal, a relação entre o Neveu de Rameau e o Rei é de dupla hilaridade... Mas, afinal, o cientificismo deixou os salões, para realizar-se como ideário político atuante, confluindo, inclusive com a tendência hegemônica na esquerda.
Nos setores de Ciências Sociais, Durkheim e Mauss tiveram grande importância. Mais tarde, os alemães, notadamente Weber e Tõnnies, foram lidos com espírito análogo, atravessados pelo interesse "positivo". Os conceitos a priori do último, ou as formas lógicas do primeiro, foram compreendidos pelo mesmo prisma analítico e empirista. Preparado este campo, o desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 teve seara fértil. A passagem do orgânico para o mecânico, do tradicional para o moderno, da comunidade para a sociedade, do estamento para a classe, tornouse a moeda corrente do pensamento, parâmetros propícios a colher os resultados da CEPAL. Criticava-se Parsons, mas prevalecia sua leitura "sistemática" dos alemães, aqui difundida pela versão de Gino Germani.
Nessa altura, o próprio Marx foi intensamente explorado em discursos didascálicos, sucedendo-se os esquemas doutrinários expressos pelas fórmulas estabelecidas, sem maiores preocupações de ordem conceituai.
Misturava-se, deste modo, noções dos mais divergentes setores intelectuais, mas não como simples "bovarismo", tal como dizia Cruz Costa. Longe disto, muito pelo contrário, a conciliação nominal de orientações teóricas opostas e mesmo incompatíveis, respondia ao imaginário - dotado de lógica própria - adequado às transformações pretendidas na realidade brasileira. Esta abstração - realidade brasileira - até hoje constitui a varinha mágica de valorização, bastante autoritária, dos estudos chamados "concretos". Este último termo, invocado sem nenhuma determinação e invariavelmente confundido como empírico, é tomado como critério normativo e horizonte das pesquisas que se desejam "práticas". Como resultado, temos o mesmo círculo repondo-se interminavelmente: do empírico ao empírico, sem mediação de pensamento criador, sem produção de conceitos novos. Não ocorre, um só instante, a esses defensores do "real", que este último, usado como Abre-te-Sesamo, não passa de metafísica deplorável.
Esta limitação fechou o campo à própria compreensão da dialética moderna. Tome-se, por exemplo, o problema do materialismo. Dadas as restrições definidas pelas famosas três fontes - filosofia clássica alemã, socialismo francês e economia política inglesa - sua gênese em Marx é entendida apenas em função desses resultados históricos. Jamais se questiona o trabalho de remodelação realizado pelo renascimento inglês, pelas luzes francesas e pela revolução teológica alemã, frente ao materialismo greco-romano. Não é por mera erudição acadêmica que o jovem Marx inicia seu trabalho com a tese sobre a Diferença dos Sistemas de Demócrito e Epicuro, e termina com a inversão completa do idealismo, propondo, no Capital e na Critica do Programa de Gotha, uma distinção originária entre Natureza e a alienação radical vigente na sociedade capitalista.
De outra parte, o positivismo sempre foi contrário ao liberalismo e este sempre moveu-se em seu campo originário de rompimento com as bases teológicas do saber e do poder. Entre nós, uma seleção muito precisa foi operada no campo da consciência burguesa, em continuidade com a visão acadêmica herdada dos franceses: o pensamento sofreu, por assim dizer, um corte nítido e arbitrário no século XVII. De um lado, isto é compreensível pela vulgarização do iluminismo, onde o medievo confunde-se com as trevas. Conserva-se, entre nós, de preferência este lado das Luzes, sem incorporar sua contrapartida necessária: a valorização do pensamento anterior e independente do cristianismo. Até hoje o Departamento de Filosofia da U.S.P. não conta com um curso de filosofia medieval, visto como requinte de especialização, e os próprios cursos de filosofia antiga não recebem o apoio de que necessitam.
Os aspectos mais virulentos do liberalismo foram sistematicamente reprimidos no Brasil, até o ponto de se decretar que jamais existiram, que jamais tiveram qualquer nexo com a "realidade", que sempre constituíram um ideário importado, girando no vazio. Mas as idéias circulam mesmo, e vivem desse trânsito, seja pelos pés dos monges que unificaram culturalmente a Europa medieval, seja pelos navios imperialistas que venceram o "Non ultra" dos antigos. De estranhar, e a pergunta importante começa aí, é a constatação de que as idéias parecem estancadas, paralisadas.
A cultura clássica e o ideário liberal não terão efetivamente existido no Brasil, ou foram suprimidos? Que dizer das várias revoluções que pontearam o século XIX e atravessaram o País por todos os lados, logo abafadas pelo Exército, pela Igreja oficial e pelo Estado? Que dizer dos elementos deixados na cultura, como o neo-clássico disseminado pelo interior paulista? Por que teria "pegado" tanto essa linha arquitetônica entre nós, como o evidencia a pesquisa cuidadosa realizada pelo prof. Jorge Sydney?
No breve período de afirmação liberal contra o império, no interior do amplo programa de reformas políticas e administrativas então posto em movimento, determinou-se a Constituição de 1891, logo neutralizada pela aliança entre a Igreja, o Positivismo e o Exército, as três forças poderosas que entre nós afastaram todo pensamento agnóstico e materialista, e cuja sombra espalha-se sobre toda nossa formação acadêmica.
No campo da filosofia, os rumos foram um tanto diversos. Houve maior cautela teórica e até mesmo uma certa "polícia do conceito", como se dizia então, sobretudo no terreno da tradição dialética, mas sem grande repercussão construtiva. A divisão do trabalho intelectual, valorizando o tecnicismo, fechava, pela especialização, todo contato mais profícuo. Esta especialização, se de um lado consolidou um padrão de trabalho mais exigente, de outro teve efeitos negativos. O requisito de limitar-se a campos definidos e estanques deixou a cabeça do intelectual fechada e seu olhar imobilizado. Justamente por causa das restrições do cientificismo, as pessoas que se aventuravam a refletir sobre seus próprios procedimentos de trabalho ficavam sem recursos. Os únicos legitimamente incumbidos dessa reflexão eram os que se dedicavam à filosofia, tidos por competentes para a crítica epistemológica, fosse qual fosse o campo científico em questão.
Também aí o racionalismo e o positivismo franceses encontraram solo fértil. Por exemplo, o Discurso do Método era obrigatório, mas lido segundo sua "modernidade", tomada formal e abstratamente ou, no máximo, com suas raízes medievais, segundo a perspectiva de Gilson. Era esquecido seu contexto de crítica radical do materialismo renascentista, sua demolição das possibilidades de uma inteligência concreta do Eu e do Mundo, tal como esboçada no humanismo agnóstico que o precedera.
Ler interminavelmente Descartes, segundo a ordem das razões, é cortar de modo arbitrário uma questão subjacente ao próprio texto do filósofo: a recusa de fundar o saber sobre a ordem das matérias. Ora, este é o problema-chave de toda a controvérsia teológico-política, simultaneamente epistemológica, dessa virada dos tempos. Quando nos encontramos face a textos materialistas e anti cartesianos do século XVIII, como o anônimo Alma Material, constatamos a força com que se estabelecia a junção materialismo - ateísmo, no ataque desencadeado pela política religiosa. Descartes aí surge, num primeiro momento, como baluarte da Igreja, antes da segunda investida dos católicos aristotélicos contra sua obra. Querer captar a articulação interna do discurso cartesiano, sem considerar rigorosamente o ponto em que ele se torna significativo, é sem dúvida passar longe de sua "ordem das razões".
Foi nesse ambiente intelectual que me formei e contra ele procurei pensar. Por exemplo: foi com o acervo de conhecimentos recebidos em sociologia e em antropologia que iniciei uma pesquisa sobre comunidade, num vilarejo do interior de São Paulo, em região tida por "tradicional". Com surpresa comecei a constatar que nem teórica, nem empiricamente, minhas observações tinham qualquer coisa a ver com as chamadas relações comunitárias, de parentesco, de vizinhança ou de trabalho. Depois de demorada, atenta e infrutífera pesquisa de campo, e levada pelas pistas que aí se apresentaram, deime conta de que a única possibilidade de compreender o que se passava diante de mim seria através de uma reconstituição histórica da vida caipira.
Nos arquivos, nova surpresa: a violência que os esquemas acadêmicos atribuíam essencialmente à escravidão (esta, ainda hoje, com sua violência e irracionalidade, é contraposta à exploração capitalista racional; até hoje a violência colonial continua explicada tautologicamente pelo trabalho compulsório) revelava-se enraizada em outro solo, mais compreensivo, permeando a sociedade como um todo, inclusive as "harmoniosas" comunidades. Pouco a pouco o quadro foi tomando forma e o recurso ao regime escravista - sua própria violência - foi se determinando no interior do sistema capitalista, não como elemento justaposto pela atividade mercantil, mas como recurso rápido e plástico para suprir as necessidades de organização do trabalho postas pelas novas articulações da produção e da circulação de mercadorias.
Porque precisei enfrentar os problemas colocados por essa questão, fui levada ao estudo das fontes teóricas de Marx. Por força desses estudos, cheguei, com muito interesse, ao renascimento inglês, onde a especialização do trabalho científico perde completamente o sentido. Por exemplo, desconhecer os poetas e dramaturgos é deixar de lado grande parte da reflexão filosófica e política do tempo. Não atentar simultaneamente para a camada literária, filosófica, política, histórica e científica da obra de Bacon, ou negligenciar o nervo filosófico da poesia de Spencer, ou a discussão teológico-política da dramaturgia de Marlowe, é igualmente perder o pé. Por Milton de lado, é ignorar uma profunda crítica ao mecanicismo, realizada contemporaneamente à sua constituição. Afastá-lo, como se tem feito principalmente desde Eliot, é tão empobrecedor quanto o seria esquecer Donne ou Marvell. Não considerá-los, a todos, é mutilar a compreensão do pensamento "moderno" no século XVII, é vê-lo com olhar anacrônico, esquecendo o adversário contra quem, muitas vezes, ele se dirigiu.
Com essa trajetória da sociologia à história, à filosofia e à literatura; da pesquisa de campo ao arquivo e à análise e texto - minha carreira tem sido contestada por alguns de meus colegas "especialistas". Não obstante, a exigência de não me fechar em compartimentos estanques tem me valido, embora com dificuldades, a vantagem de pensar mais livremente e tem me permitido também - e aí a experiência com alunos é decisiva - ajudar outras pessoas a refletir com independência, a usufruir da cultura, a ser responsável na atividade intelectual. Nos últimos anos venho me empenhado - diante da febre do popular, do prático, do nacional - em discutir as falácias e os componentes de dominação, quando não a irresponsabilidade, presentes na imediatez das preocupações com a "realidade brasileira".
Ent: "Mas então, o seu juizo sobre a produção intelectual desse período é absolutamente negativo?"
M.S. "É inegável que o padrão profissional e especializado que se expandiu na Faculdade dos anos 50 e 60 apresentou vantagens: com ele definiu-se um tipo exigente de ensino e pesquisa. Isto foi sem dúvida um avanço, mas infelizmente essa tendência desenvolveu-se dentro da linha a que já me referi, de uma pretensão a rigor que deslizava facilmente para o jargão. Bastava usar uma linguagem complicada, às vezes confusa, para firmar-se uma reputação de erudito: a preocupação maior era usar expressões especializadas, sem interesse por escrever de maneira clara, simples e corrente.
Também para mim não foi fácil escapar dessa linguagem cifrada, pouco significativa, valorizada como sinal de competência. Creio que foi minha convivência com pessoas que dedicavam-se a outros setores, sobretudo os estudiosos de literatura, que me alertou para a necessidade de escrever de modo acessível. Nesse ponto, uma influência decisiva foi a de Antonio Cândido. A simplicidade, o requinte despretencioso, o sincero gosto pela cultura, o alargamento das aspirações e interesses chegaram até mim, como ideais, ouvindo o e lendo-o. Seu único livro de antropologia. Os Parceiros do Rio Bonito, mostrou-me como o observador cuidadoso e teoricamente preciso, simultaneamente, seria o artista imaginoso e sensível, o escritor comovido e comovente.
Outra influência decisiva nos rumos de minha produção intelectual foi Florestan Fernandes. Primeiro, o mestre admirado, depois, o opositor respeitado. Nossas divergências mantiveram-se na maior confiança e lealdade, padrão que hoje parece estar desaparecendo da cena universitária. Diferenças intelectuais, agora, rapidamente transformam-se em inimizades pessoais, perseguições, golpes políticos. A Florestan Fernandes devo também outra coisa que parece estar se esmaecendo: o estudo paciente, a disciplina da pesquisa, a prioridade da teoria face ao empenho imediatista na prática."
Ent: "Você falou várias vezes em preeminência da prática e na sedução imediata da política entre os intelectuais brasileiros. Entretanto, a massa de publicações teóricas é considerável. Como vê essa produção?"
M.S. "De fato, basta um pouco de atenção para nos darmos conta da pletora de "teorias explicativas" sobre o Brasil. Desde os anos 50, bem uma dezena delas se sucederam, só no interior da esquerda. O marxismo apologético e etapista começou a ser contestado quando pesquisas históricas mais cuidadosas revelaram que as relações feudais casavam mal com o latifúndio brasileiro, com sua importante circulação de mercadorias. Mas, como enfrentar o problema de conceituação, se o escravo lá estava? Esta figura, vista na sua existência mais imediata, excluía a possiblidade de tratar-se de uma ordem capitalista. Ademais, o latifúndio e as relações no campo eram considerados sinais de atraso e nessa medida contrapostas ao capitalismo. Este era visto como passagem necessária para o progresso, caso a burguesia nacional cumprisse a sua tarefa histórica, desenvolvendo as "condições objetivas" que, um dia, graças à industrialização, traria maturidade ao proletariado e o faria respirar o ar da liberdade nos grandes centros urbanos.
Quantos volteios de espírito foram necessários para ressaltar as oposições abstratas campo-cidade, escravismocapitalismo, imperialismo-nacionalismo, onde os primeiros termos eram sinônimos de reação e, os últimos, de progresso. No âmbito da economia, uma das soluções foi caracterizar as unidades de produção como internamente feudais e externamente capitalistas, compondo quimeras de metades disparatadas. Não só o espaço, enquanto suporte da vida socioeconómica, era desfigurado por essas operações classificatórias, mas o próprio tempo sofria igual violência: Quanto não foi escrito sobre a "contemporaneidade do não coetâneo", justapondo e combinando épocas supostamente defasadas, antigas umas e modernas outras, em encontros fantásticos, mas científicos e sem imaginação, presos à mais exterior visibilidade dos fenômenos.
Posta de lado a ortodoxia etapista - depois que seu papel político, explicativo do atraso da classe operária se cumprira - começaram as substituições. Feudais, as relações de produção no Brasil não eram; mas capitalistas também não poderiam ser. E isto por duas ordens de razões: o escravo impedia a presença do trabalhador livre, evidência imediata do capital; e o Brasil era colônia subjugada ao imperialismo, atrelado à rabeira do trem do progresso, índia ou China sem a sua Inglaterra capaz de colocá-lo - a ferro e fogo que fosse - na estrada redentora da técnica. E não sendo capitalista, o Brasil caia na vaga e salvadora categoria de PRÉ, em teleologías que o representavam seja como o absoluto não ser, por oposição ao mercado, seja segundo as várias possibilidades abertas pelo imaginário sistemático da sociologia.
Não constituindo uma sociedade de classes, dada a presença do escravo e do latifúndio, o Brasil passou a ser considerado estamental, palavra do espanhol arcaico com que o Fondo de Cultura Económica traduziu o Stand do alemão, ou oEtat do francês. A origem intelectual deste conceito, o contexto teórico em que foi incluído, os problemas políticos a que respondia no início do século XX , como se diferenciava nos escritos de vários autores, nada disto foi questionado. Usado por Weber, agnóstico, liberal, herdeiro da ponta crítica do idealismo alemão, plantado na demolição nietzscheana da cultura cristã, ou escrito por Tonnies, católico, romântico, apriorista, ou ainda sistematizado por Freyer, também religioso e autoritário, tudo vinha a dar na mesma. Poucas dificuldades essas diferenças traziam: a economia e a sociedade brasileiras eram sumariamente representadas como escravista e estamental, respondendo-se desse modo à necessidade de distingui-las do capitalismo. Era deste modo que se pretendia respeitar as "diferenças", matizando o aqui e o agora. . .
Entretanto, a pesquisa propriamente histórica, já acessível na época, havia caracterizado o "estamento" de maneira suficientemente precisa: referia-se a grupos em movimento para liberar-se das relações hierárquicas do feudalismo e que se auto-reconheciam como internamente homogêneos, exigindo cartas de privilégios e liberdades. Constituíam grupos que traçavam novas divisões na sociedade, que reclamavam direitos por oposição a outros grupos, defendendo-se juridicamente. Eram formações sociais que surgiam sobre a ruína medieval, anunciando o processo de fundação da sociedade civil, afastando-se do juramento e das sanções transcedentes para aproximarem-se do contrato. Aqui, a sociedade da colônia foi chamada de "estamental" por erguer-se sobre a tradição. . .
Nem do ponto de vista teórico, nem na pesquisa histórica, sustenta-se a caracterização "estamental" da sociedade brasileira, mas este rótulo cumpriu a importante tarefa ideológica de separar o economicamente "irracional e improdutivo", o "socialmente violento e preconceituoso", o "politicamente reacionário", do moderno, do progressista, do último termo no milenarismo, ora escondido, ora confessado: o capitalismo como instância civilizadora. Sociedade escravista e estamental, desrazão essencialmente diversa da sociedade de classes, do trabalho livre e da racionalidade capitalista: este o quadro em que se entrincheirava a teoria da história brasileira.
Este esquema pretensamente marxista valeu críticas a Celso Furtado, acusado de usar categorias do modo capitalista de produção para a análise de uma sociedade escravista; igualmente Caio Prado teria se afastado da ortodoxia. Entretanto, importantes notas de rodapé foram acrescentadas a análises escravistas, quando apareceu o livro de Eric Williams, comprometendo a chamada contradição entre capitalismo e escravidão, a desigualdade entre os dois sistemas. Aí, então, a acumulação primitiva e o capitalismo comercial, ainda uma vez, salvaram o imaginoso pré-capitalismo.
Ainda hoje essa condição primitiva e propedêutica é atribuída ao sertão brasileiro, às regiões fronteiriças onde a violência do trabalho forçado é imposta pelas multinacionais, pontas da modernidade. Não obstante, a violência dessa forma de acumulação é explicada pelo legado de antigos mores escravistas, por sobrevivencias culturais, embora seja posta em prática pelo capitalismo internacional mais adiantado.
Ao lado dessas interpretações, o ISEB também consolidava os temas do progressismo. Centralização do poder, esperança na eficácia do Estado, fé no planejamento, propaganda da produtividade, valorização unilateral da técnica: por esse caminho realizaram o mesmo corte ideológico na sociedade, agrupando de um lado os reacionários e atrasados e, de outro, os adiantados e modernos. Unificou-se ideologicamente, desse modo, setores sociais concretamente separados: ia-se do trabalhador rural à grande burguesia industrial, atravessando a vasta gama das classes médias.
Este foi o movimento essencial do progressismo que, com suas particularidades e ramificações, atravessou os anos 60. Na produção desse ideário, a Faculdade de Filosofia não saiu de mãos limpas ou vazias: ela ofereceu um pensamento diverso do produzido pelo ISEB, certamente menos vinculado à prática política, mas não faltou na tarefa de fornecer o substrato doutrinário para o desenvolvimentismo e suas reformas.
Falidas as esperanças após 1968, circulava já intensamente a crítica da falácia do desenvolvimento. Embora desde 1964 a burguesia nacional já tivesse efetivamente cumprido a sua missão histórica, ainda assim, agora com novo eufemismo, o discurso voltou-se contra o capital estrangeiro, sempre fonte do mal absoluto, deixando intocadas as boas intenções do industrial nacionalista e moderno, possível salvador da autonomia do país.
Tomou então grande vigor a teoria da dependência, que se encarregou de apontar as teias de aranha do marxismo, repentinamente tornado obsoleto e necessitando revisões, face às novas formas assumidas pelo capitalismo, notadamente o desaparecimento das determinações de classe. Mais outra faceta da apologia do progresso, cuja propaganda atravessou novamente a sociedade: desde o sitiante ameaçado pela multinacional até as mais altas personalidades públicas repetiam o jargão da dependência que, então, já havia abandonado as fórmulas economicistas, campeãs na década de sessenta, para insistir nas soluções políticas supostamente tomadas em sua autonomia. Fulgor intenso mas rápido, o desta teoria, que se acoplou, de modo sucessivo, a orientações divergentes no amplo panorama progressista. Primeiro, à Igreja, com sua pastoral do pobre e do oprimido, depois, ao neo-liberalismo que se exprimia na insistência em fortalecer a sociedade civil para controlar o Estado autoritário.
Esta "sociedade civil", entretanto, teve sua natureza violenta apagada, e o enfrentamento de grupos sociais organizados foi ideologicamente traduzido para dissolver a luta de classes, diluindo-a na chamada ação comunitária e nas respostas "espontâneas" da sociedade. Este fugaz neo-liberalismo foi substituído pela doutrina dos informes movimentos sociais, onde se esvanecem os limites de classe, representação reforçada pelo novo sincretismo de religião e marxismo apologético.
Em resumo, a teoria do desenvolvimento-subdesenvolvimento, as etapas do marxismo ortodoxo, as combinações de conceitos sistemáticos ordenados em seriação histórica, a passagem do tradicional para o moderno, as clivagens isebianas, a teoria da dependência, a apologia da sociedade civil, o renascimento romântico da idealização comunitária e seu correlato necessário, a fragmentação dos movimentos sociais, o socialismo católico, sucederam-se em cerca de duas décadas, o que dá aproximadamente uma teoria para cada dois anos, acotovelandose na cena política e nos corredores acadêmicos.
Qualquer tentativa de reflexão séria sobre qualquer destas orientações está fadada ao insucesso, dada a vertigem com que se sucedem e a ligeireza com que mobilizam conceitos e sistemas de pensamento extremamente precisos e complexos em sua origem. Antes que se possa dar conta das fontes teóricas invocadas, a doutrina em pauta já caiu em desuso, "ninguém mais pensa assim". Na verdade, continua-se a fazê-lo exatamente da mesma maneira, mudando-se apenas a fraseologia.
Se formos levar a sério a última tendência editada, não se fará outra coisa senão correr, pois os próprios divulgadores não avaliam as exigências intelectuais de suas propostas. Por exemplo, atualmente há uma grande voga de Gramsci, do popular, etc. Quantos destes adeptos conhecem a obra de Croce, a leitura particular que fez de Hegel e Marx, sua importância no pensamento gramsciano? Se formos acompanhar estes vais-e-vens estamos perdidos, pois estas vogas têm a rapidez do imediato. Olha-se, e ela está aí, voltamo-nos, já desapareceu. Quando tornamos a olhar, já mudou."
Ent: "Qual seria a razão desta imediatez, desse não-parar-para-pensar?"
M.S.: "Tenho a impressão de que isto não diz respeito apenas à intelectualidade brasileira. Com algumas exceções, encontra-se a mesma coisa em outras partes do mundo atualmente. Tome-se o movimento da sociologia americana: é tão ligeiro quanto o nosso. Ou o caso dos nouveaus philosophes, voltados para a degredação do marxismo nos bastidores da política francesa conservadora. A celeridade e superficialidade do pensamento vincula-se diretamente ao processo de dominação: é fugaz e variável porque acompanha o ritmo ligeiro das conjunturas e não os processos mais profundos, efetivamente produtores de mudança social. Esta literatura pode ser rápida porque é repetitiva, respondendo às exigências do mercado ideológico do momento, ora pendendo para uma, ora para outra das forças dominantes na sociedade.
Em geral estas correntes defensoras da fecundidade "prática" criticam o academicismo, os leitores de livros estrangeiros indigestos e dissociados da indefectível "realidade brasileira". Entretanto, por suas mãos correm sempre os manuais, não raro estrangeiros, e nem sempre provenientes de uma tradição cultural feliz para resumir de modo correto as fontes apresentadas. Resultado: absorvemos americanos lendo e criticando, sem sair de seus quadros empiristas, Walter Benjamim ou Adorno, atribuindo-lhes pensamentos exatamente opostos aos que produziram. Com este tipo de leitura por atalhos e desvios, forjam-se instrumentos rápidos, capazes de modelar as relações de dominação e ao mesmo tempo delas se alimentar. É preciso ajeitar a novela ao gosto do público, e simultaneamente fazer com que ela constitua e consolide o gosto do espectador. Assim, os livros têm de ser feitos às pressas e facilmente consumidos, sem que o pensamento medeie nenhum dos dois processos.
Deste modo, como já disse, penso que as vogas intelectuais no Brasil não têm nada a ver com aquilo que Cruz Costa chama de "bovarismo"; tem a ver, isto sim, com o processo de dominação. Não se trata de ingenuidade intelectual, mas de resposta ágil a interesses políticos."
Ent: "Alfredo Bosi afirmou que a Faculdade de Filosofia teria passado a época do desenvolvimentismo com mãos limpas, mas vazias. O que você diz desta "tradução" de Peguy para a vida acadêmica brasileira?"
M.S.: "Já aludi a isto. Para começar, raros professores da "Maria Antonia" eram kantianos. Todos os progressistas (a maioria) pretendiam-se libertos das amarras do transcendental, pensavam-se materialistas e agnósticos, raros eram católicos. Parece-me que nessa passagem, Bosi não foi muito feliz: Peguy critica a impotência ética dos kantianos presos à forma do imperativo categórico e simultaneamente elogia a ação católica. Comparar o objeto desta boutade de Peguy ao ativismo que então imperava no Brasil pareceme um tanto problemático.
É verdade que a Faculdade de Filosofia vivia num mundo um tanto aparte do resto da produção brasileira. Estávamos afastados da propaganda imediata do desenvolvimentismo, talvez até mal informados do que se fazia em outros cantos do país. Eu própria, quando escrevi o Tempo das Ilusões, fiquei surpresa ao constatar a reação violenta que esta crítica suscitou por parte de pessoas ligadas aos meios intelectuais produtores da ideologia nacional-desenvolvimentista, hoje radicadas em São Paulo. Na ocasião em que foi publicado o livro de Álvaro Vieira Pinto, no período J.K., eu própria fiz uma resenha que já incluía as principais idéias retomadas no referido ensaio. Não houve, então, grandes comoções, pelo contrário.
Não obstante este alheiamento, não se pode dizer que estivéssemos fora do processo político como um todo. Eu própria, que não era das mais entusiasmadas, trabalhei com as chamadas "reformas de base". Só que o clima era um pouco diferente do atual, mais irreligioso em todos os sentidos. Por exemplo, quando examinei as fontes referentes à reforma agrária, surpreendeu-me a quantidade de materiais que repousavam sobre o argumento, estranhos ao meu olhar científico, de que a "terra havia sido dada por Deus para o uso de todos". Para mim, formada no marxismo, a questão da reforma agrária jogava-se no plano da história, sem preocupações transcedentes. Se nem eu mesma, que sempre fui criticada por desconfiar das possibilidades redentoras do planejamento aliado à mobilização de massas e por não acreditar em vanguardas de classe média, escapei desse clima geral, que dizer dos demais?
Bosi se engana: nossas mãos não estiveram nem limpas nem vazias. A Faculdade contribuiu em grande parte para sustentar o desenvolvimento do capitalismo. Lembremo-nos, ainda uma vez, dos trabalhos que fizeram a crítica do précapitalismo e da sociedade escravista, silenciosamente iluminando a racionalidade civilizadora da modernidade. Ou lembremo-nos ainda da fundação do CESIT, de onde saíram os estudos sobre o empresariado e sobre a classe operária, projetados sobre o pano de fundo do capitalismo clássico, e tributários do "atraso" brasileiro. Parece-me que Bosi foi um tanto condescendente, diminuindo a participação da Faculdade nessa cultura que preparou a concentração do poder do Estado em nome do planejamento e que desaguou no "milagre brasileiro".
Ent: "Maria Sylvia, uma das censuras feitas ao seu trabalho, sempre repetidas, fala do esmaecimento das diferenças históricas. Você estabeleceria uma continuidade abstrata em termos da história social brasileira, supervalorizando, por exemplo, o movimento do capital, a ponto de esquecer as diferenças internas. Como responderia a essas objeções?"
M.S. "Posso começar a responder, considerando que as diferenças aludidas não passam de diversidades empíricas, cujo estatuto é serem-aí. As pessoas realizam observações, as mais imediatas, no plano exato dos fenômenos, isto é, das aparências, e elevam singelamente as descontinuidades constatadas ao nível da essência. Deste modo, constroem as "teorias" que duram o tempo de seu objeto, ou seja, permanecem no tempo das conjunturas. É evidente que os programas políticos no interior da sociedade civil, por exemplo, podem se diversificar. Mas onde está a diferença entre os que defendem o lucro nacional e os que defendem o lucro estrangeiro, para quem situa-se em contradição com o movimento do capital: o proletariado? A mais-valia extraída pelos primeiros será mais libertadora?
Além disso, essas explicações que se pretendem respeitadoras das diferenças estão imersas em esquematismos tais, que o acúmulo de dados sobre o mesmo aumenta sem que se pergunte, efetivamente, o que mudou na forma e no conteúdo. Estes esquemas funcionam como uma espécie de transcedental: variam apenas os dados empíricos. E se essas pessoas resolvessem mesmo procurar as diferenças? Teriam de romper com pressupostos ainda hoje inquestionados, com a busca de justificar primeiro a instalação, a todo custo, das instituições burguesas, para depois (ninguém sabe quando) passar para outra forma de gestão social da riqueza.
Diferença é conceito que exige determinação de essência, que se afirma nos momentos particulares, constituindo-os. As pessoas se esquecem de que, nas formações sociais modernas a presença do capital determina as diferenças, é ele o elemento que afirma a determinação própria do sistema de produção. Isto é verdadeiro particularmente para a história do Brasil, enraizada originariamente no movimento do capital e cuja lógica não é dada, como no caso da Grécia arcaica e clássica, sobremaneira pelo político.
No caso brasileiro, quando se aponta para a determinação essencial do lucro, não se quer dizer que o capital saia por aí pipocando por toda parte sua manifestação de essência. O que se diz, é que o nexo estabelecido entre a "periferia" e o "centro" do sistema não é uma relação mecânica de desigualdade, onde influências são emitidas e recebidas, como se proviessem e chegassem a mundos exteriores um ao outro. O que se diz é que sem o capital, sem que o pensamento colha seu movimento interno de reflexão, percorrendo os momentos em que se desdobra, se nega, se reproduz e se acrescenta, simplesmente não há como determinar ou expor diferenças, seja no tempo, seja no espaço.
A crítica que me é dirigida no sentido de que trabalho com uma totalização que unifica indevidamente, que aplaina as várias partes e relevos do social, deve-se à atitude dos que se atêm à dispersão dos fenômenos, que fixam as árvores e perdem a floresta, o fio condutor que pode guiar através dela. Isto pode ser bastante conveniente, obscurecendo ou iluminando apenas setores isolados, discretos e abstratamente encadeados. Quando afirmam as diferenças sociais, projetam imaginariamente a sua diferença pessoal, sempre post festum. Já Hegel notava que toda referência imediata à variação dos objetos esconde uma apologia do sujeito.
São Paulo, janeiro de 1981.
Maria Sylvia de Carvalho Franco - Professor Adjunto - Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - U.S.P
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Dez 2011 -
Data do Fascículo
Jan 1981