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Rousseau existencialista

Rousseau existentialist

Resumos

Segundo Rousseau, no estado de natureza o homem é solitário e independente e, ao se sociabilizar, converte-se num ser moral. Para Sartre, a angústia caracteriza a existência subjetiva do homem ao tomar decisões. Em ambos, o despertar da intersubjetividade depende do reconhecimento do outro e é determinante para a moral.

Rousseau; Sartre; Sade; contratualismo; existencialismo


According to Rousseau, in the state of nature man is isolated and independent, but as he becomes a social being, he becomes also a moral being. Sartre thinks that anguish caracterizes the subjective existence of man while making decisions. To both, the beginning of intersubjectivity depends on recognition of the other and is essential to morals.

Rousseau; Sartre; Sade; contractualism; existentialism


Rousseau existencialista 1 1 Trabalho apresentado na XXVI Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências Humanas: “A filosofia da existência e a tragédia moderna” realizada pelo Departamento de Filosofia da Unesp-Marília em novembro/2002.

Rousseau existentialist

Ricardo Monteagudo 2 2 Professor Assistente-Doutor do Departamento de Filosofia da Unesp, campus de Marília.

RESUMO

Segundo Rousseau, no estado de natureza o homem é solitário e independente e, ao se sociabilizar, converte-se num ser moral. Para Sartre, a angústia caracteriza a existência subjetiva do homem ao tomar decisões. Em ambos, o despertar da intersubjetividade depende do reconhecimento do outro e é determinante para a moral.

Palavras-chave: Rousseau; Sartre; Sade; contratualismo; existencialismo.

ABSTRACT

According to Rousseau, in the state of nature man is isolated and independent, but as he becomes a social being, he becomes also a moral being. Sartre thinks that anguish caracterizes the subjective existence of man while making decisions. To both, the beginning of intersubjectivity depends on recognition of the other and is essential to morals.

Key words: Rousseau; Sartre; Sade; contractualism; existentialism.

Não é novidade caracterizar o pensamento de Rousseau como pré-existencialista. Toda uma geração de comentadores mostrou a importância da reflexão sobre a existência por oposição às abstrações teológico-metafísicas no Cidadão de Genebra. Pierre Burgelin (1952, p.32) situa esta perspectiva e aponta o vínculo entre a existência concreta e, entre outros aspectos, a moralidade (idem, p.117) e a natureza humana (idem, p.219). Na mesma linha e mais recentemente, Bento Prado Jr. (1988) mostra a convergência entre literatura e filosofia no século XVIII em geral e a presença do tema da existência no pensamento de Rousseau em particular. A nosso ver, é mais do que coincidência encontrarmos o mesmo uso da literatura para demonstrar as hipóteses filosóficas do existencialismo, notadamente em Sartre.

Um viés profícuo que nos permite aproximar Rousseau e Sartre é a maneira como se apresenta intersubjetividade. Para ambos há uma solidão original que se converte em sociabilidade por meio de um sistema em que a reciprocidade é presumida. A rejeição deste pressuposto no Marquês de Sade fornece, como veremos, um anti-modelo para pensarmos este problema.

Em 1946, Sartre proferiu uma conferência (O existencialismo é um humanismo) para defender o existencialismo tanto de críticas marxistas quanto de críticas cristãs. Nesta conferência, o filósofo francês afirma que o que caracteriza o existencialismo é o fato de que “a existência precede a essência” (Sartre, 1984, p.3), isto é, primeiro o homem existe e encontra-se no mundo, só posteriormente define-se a si mesmo. O homem projeta-se no futuro a partir das escolhas que faz para si no momento presente. Mais que isso, uma vez que o homem se percebe no mundo com outros homens e por meio deles, ao escolher para si, o homem escolhe para a humanidade inteira, pois as regras de conduta envolvidas nas opções que cada um toma valem reciprocamente para toda a humanidade. Cada um está portanto moralmente obrigado a manter coerência entre aquilo que faz e a expectativa que tem pela ação do homem perante todos os outros. Desta extraordinária coerência e responsabilidade decorre a angústia de ver-se ao mesmo tempo absolutamente só e concernido por todos: “O homem é um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e à humanidade inteira” (idem, p.7).

Sartre diz que “o homem está condenado a ser livre”, já que o homem não se criou a si mesmo e, uma vez no mundo, é livre e responsável por tudo o que faz (idem, p.9). Assim, ao nascer, o homem não deve nada a ninguém (não pediu para ser criado) e sua conduta não tem nenhum limite moral prévio. O que está em jogo portanto não é uma abstração metafísica, mas a moralidade presente desde as atitudes mais comezinhas do cotidiano, donde a importância da literatura existencialista para ilustrar a filosofia. De um lado, a liberdade é infinita porque a subjetividade é intransponível. De outro, a moral é eminentemente prática, a ação de um homem implica reciprocamente a autorização para que outro homem faça o mesmo. Dessa forma, todos os filósofos que instituíram algum conteúdo moral no homem antes de sua existência efetiva se equivocaram. Este conteúdo precisaria estar na natureza humana, numa essência humana anterior à existência, o que eliminaria o principal traço que caracteriza o existencialismo.

A esse respeito, Sartre cita como exemplo Descartes e Leibniz, que associaram a vontade ao entendimento de modo a garantir que a razão condicionasse a liberdade. De fato, a Escola do Direito Natural moderno, – Grotius, Hobbes, Pufendorf e outros –, acompanha o racionalismo clássico e considera que o homem só é livre porque é racional. Grosso modo, leis morais presentes na racionalidade orientam a futura ação humana.

Desde os antigos, Hobbes é o que tem a mais ampla definição de liberdade: “por liberdade entende-se (...) a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem” (Leviatã, 14; Hobbes, 1979, p.78). Numa palavra, o homem é livre para fazer o que quiser limitado somente pelas forças de seu corpo. Aparentemente, não há nenhuma limitação de ordem moral. Contudo, o objetivo do direito natural que concede tal liberdade ao homem é a “preservação de sua própria natureza” (idem), a autopreservação, o que conduz o homem a calcular sua ação de acordo com esta finalidade maior. Este cálculo, por sua vez, está presente em um conjunto de leis naturais entendidas como “regras gerais estabelecidas pela razão” (idem). Dessa forma, surge um certo paradoxo, pois a liberdade autoriza o que o direito restringe. O resultado todo mundo conhece: as leis naturais levam o homem a procurar a paz e com esse intuito a aceitar ser comandado por outro homem, donde o pacto de cada um com cada um que cria o Estado instituindo um “poder capaz de manter a todos em respeito” (Leviatã, 13; idem, p.75). Este poder comum superior – o governo seja monárquico ou não – estabelece uma moralidade que deve ser obedecida, mas que tem o direito natural como parâmetro ou como idéia reguladora (isto é, como vimos, tem como finalidade a preservação de cada um).

Por outro lado, mesmo os críticos da razão clássica e do direito natural nela baseados ainda supõem alguma forma de essência anterior à existência. Kant considerava a razão clássica excessivamente dogmática e por isso propôs um programa crítico que limpasse o terreno. Contudo, em seu âmago para evitar todo aspecto arbitrário ou acidental na definição, é obrigado a conceder que o entendimento no homem é uma faculdade universal por meio da qual a consciência e a liberdade se manifestam. Por isso, segundo Sartre na conferência supracitada, há em Kant uma “essência no homem que precede sua existência histórica na natureza” (Sartre, 1984, p.5).

Rousseau, por sua vez, também considera que há uma natureza humana que tem uma essência mas, ao contrário de Kant, a essência humana é exclusivamente potencial e só se manifesta historicamente. Antes da história, o homem é apenas um animal solitário e instintivo, um “ser sensitivo” e não racional (cf. Emílio, “Profissão de fé”; Rousseau, 1995, p.361). Os seres sensitivos têm duas características: o amor-de-si e a piedade natural; a primeira visa a conservação de si mesmo, e a segunda a conservação de toda a espécie (cf. Segundo discurso; Rousseau, 1978b, p.230, 254). Duas outras características potenciais que estão dormentes no estado de natureza distinguem o homem dos outros seres sensitivos: a liberdade e a perfectibilidade. Para combater os teóricos do direito natural no Discurso sobre a desigualdade, Rousseau mostra que a liberdade é virtual no estado natural do homem e só desperta na medida em que se torna necessária, na medida em que o puro instinto não é mais suficiente para a sobrevivência do homem em seu estado natural. Ocorre o mesmo com a perfectibilidade, graças à qual o homem desenvolve posteriormente a linguagem articulada, a consciência e a faculdade da razão.

Rousseau quer demonstrar que o direito natural que vale para o estado de natureza “puro” se transforma num direito completamente diferente depois que o homem se torna sociável. Dessa forma, o homem natural e o homem histórico são completamente diferentes. No estado de natureza, todas as necessidades estavam satisfeitas, não havia mediação com outro homem para garantir a sobrevivência. O simples instinto animal bastava para a preservação da espécie. A partir do momento em que um “funesto acaso” mudou a relação da natureza com o homem – um terremoto, uma mudança climática, uma catástrofe natural qualquer –, os homens precisaram se unir para superar novos obstáculos naturais que não existiam antes. Se o homem não fosse livre para contrariar seu instinto, não se associaria a outros homens, e ademais aqueles que não se uniram nesse momento pereceram. A união introduziu a mediação dos homens entre si para satisfazerem suas necessidades naturais e surgiram novas necessidades – artificiais – como conseqüência dessa união, também artificial. Então, com o despertar da liberdade, nasce também a história.

O homem se sociabilizou portanto contra a sua própria natureza para não perecer (“se não mudasse o modo de vida pereceria”: cf. Contrato social, I, 6; Rousseau, 1978a, p.31). Em outras palavras, isso quer dizer que para continuar existindo, o homem precisou contrariar sua essência: como ser sensitivo, o homem é solitário e naturalmente independente, mas tornou-se um ser moral consciente e socialmente dependente. Na natureza, bastavam os sentimentos naturais, amor de si e piedade; em sociedade, são também necessários sentimentos morais e artificiais. Isso só foi possível porque o homem é livre. Como é livre pode adaptar-se a novas circunstâncias e melhorar suas condições de vida, isto é, o homem pode se aperfeiçoar. O problema se agrava porque a melhora de uns implica na piora de outros, donde a desigualdade – mas não é disso que vamos tratar.

A solidão natural do homem já fora defendida por Hobbes, por isso Rousseau afirma que “Hobbes viu bem o defeito das definições modernas do direito natural, mas as consequências que tira das suas mostram que o toma num sentido que não é menos falso” (Segundo discurso; Rousseau, 1978b, p.252). O problema é que Hobbes introduz dados históricos para analisar o homem natural, confundindo o fato com o direito, isto é, estabelece o direito natural mesclando-o com resultados históricos quando na verdade a história suprime o direito natural. Segundo Hobbes, o direito natural é uma das condições do pacto. Para Rousseau, ao contrário, o contrato substitui o direito natural do homem solitário por outro tipo de direito – o direito político – pelo qual o homem se torna um ser moral. Ora, qual é o direito natural do homem anterior à história? No estado de natureza, o homem age por instinto, não tem liberdade moral e política porque não se relaciona com outros homens (senão instintivamente). Quando o homem natural se sociabiliza, estas carcterísticas se desencadeiam, a história e a cultura humanas começam. Rousseau então inaugura a idéia que será bastante desenvolvida depois: tudo o que é histórico pode ser diferente, pode ser modificado pelo homem. Note-se com isso que rejeitar a liberdade no homem equivale a naturalizá-lo, isto é, fazer do homem resultado de sua própria natureza, e equivale a fazer da história fruto de leis naturais. Para Rousseau, só o homem livre é moral, ou seja, a moralidade está implícita na liberdade.

Do ponto de vista metafísico, o homem é livre para fazer o que quiser, independentemente de todos os outros, pois o homem é naturalmente independente. Por outro lado, do ponto de vista histórico, a liberdade natural é substituída pela liberdade moral no momento em que o homem se sociabiliza, isto é, o homem aliena sua liberdade natural em favor da associação criando assim a liberdade moral. No Contrato social Rousseau diz (1978a, p.32): “alienação total de cada associado com todos os seus direitos à comunidade toda”. Aliena direito natural para criar direito moral e político que não existem na natureza, só existem na cultura, são históricos. Em outras palavras, o homem só se torna livre ao reconhecer-se moralmente no outro, ao perceber que toda ação de um sobre outro pode reproduzir-se no outro sobre o primeiro (“faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti mesmo”).

A esse respeito, Victor Goldschmidt (1974, p.446) – um importante comentador de Rousseau – afirma o seguinte: “Desse desenvolvimento [do homem natural em homem moral] procede diretamente o ‘reconhecimento’ hegeliano e também provavelmente a teoria sartreana do olhar”. Voltemos então a Sartre. O homem se encontra consciente e desamparado no mundo, donde a angústia que surge em cada escolha que envolva outros homens, pois suas opções atingem toda a humanidade. De maneira um pouco hobbesiana, primeiro se dá a consciência e somente depois se dá a livre adesão da consciência à moralidade. Para Rousseau, por outro lado, a consciência do homem desperta junto com a moralidade, não pode estar presente antes. Contudo, a diferença talvez esteja mais na letra do que no espírito. Vamos conferi-la num dos escritores mais controversos do século XVIII.

O marquês de Sade é profundo estudioso de Rousseau e dos moralistas franceses em geral, e acompanha o autor genebrino na desconsideração do direito natural do homem em sociedade. Os romances do Marquês de Sade e as discussões morais e filosóficas neles incluídas introduzem paradoxos sobre a superioridade dos que não impõem limites à própria liberdade natural. Por exemplo, na obra A filosofia na alcova, nos interstícios da iniciação libertina da jovem Eugênia, um dos responsáveis pelas lições práticas, Dolmancé, também expõe preceitos morais:

Quem poderá vislumbrar no que estamos fazendo o menor ultraje à natureza, ao céu, à humanidade? Só os hipócritas é que ainda falam nisso! A natureza só pode viver em equilíbrio quando a virtude e o vício se misturam, se equivalem. Ela nos inspira o bem e o mal pois vive nesse balanço. Só há um motor em todo o universo: a natureza que age. (...) O que os imbecis chamam de humanidade é apenas uma fraqueza proveniente do temor e do egoísmo. Essa quimérica virtude só acorrenta os fracos; os filósofos têm o caráter bem formado e desconhecem esta baboseira. (...) É impossível ao homem cometer um crime. Afirmo que tudo é permitido. Nunca a natureza seria imprudente ao ponto de conceder que a perturbemos ou a atrapalhemos na sua marcha certeira. Somos os instrumentos cegos de sua inspiração; todos os celerados da terra não passam de agentes de seus caprichos. O único crime estaria em desobedecer ou resistir, mesmo no caso dela nos ordenar que incendiássemos o universo (Sade, 1995, p.216-7).

Para o marquês de Sade, portanto, a liberdade e a consciência prescindem totalmente da moralidade, a natureza já dá ao homem tudo o que ele precisa para compreender e para agir e somente os “hipócritas” e os “imbecis” pretendem reprimir os mandamentos naturais. O argumento reproduz aliás uma idéia do livro I da República de Platão: segundo o sofista Trasímaco, a moral só existe na forma da justiça para os fortes dominarem os fracos (República, I, 338c; Platão, 1987, p.23).

Neste âmbito de uma justiça sem garantia divina, Sartre retoma uma idéia do século XIX (oriunda do iluminismo francês) presente tanto em Nietzsche quanto em Marx, a morte de deus, por meio do romancista russo Dostoievski que escreve, n’Os irmãos Karamazov, “se deus morresse, tudo seria permitido”. De fato, ao rejeitar a idéia de deus, o homem estaria livre para transformar-se num personagem do marquês de Sade sem nenhum constrangimento de consciência. No século XVIII este problema era grave: Diderot, por exemplo (1979, p.205), escreveu Diálogos com a marechala para demonstrar que um ateu poderia ser virtuoso, que a moral natural é justa. Por isso, Diderot defende uma moral apoiada na razão natural, contra a moral cristã, que depende de fé e revelação. A natureza introduz no homem regras de conduta que devem ser seguidas e que prescindem totalmente da existência ou não de deus.

Rousseau, por sua vez, mostra que o direito natural é superado quando o homem se sociabiliza estabelecendo assim uma moral de ordem convencional. O contrato social introduz leis em função das quais o homem deve ser educado e que garantam dessa forma seu consentimento a elas. O homem nasce portanto devendo obediência a um conjunto de leis morais convencionais sem as quais não há consciência. Como a convenção é artificial, não há como impedir o desrespeito. Dessa forma, a idéia de deus é para Rousseau a única que pode evitar a maldade humana de se realizar completamente e sem limites de consciência, sem o peso da culpa. O surpreendente contudo é que a idéia de deus pode ser eliminada do sistema de Rousseau sem prejuízo de seu pensamento, pois a consciência e a moralidade estão sempre juntas, isto é, a dívida e a culpa estão sempre presentes. É esse viés que segue o marquês de Sade, basta considerar a moralidade como um instrumento de dominação seguindo o argumento de Trasímaco na República, o que inverte a dívida num crédito e cria ressentimento com a culpa.

Sartre precisa então resolver este problema moral de outra forma. Para evitar que a liberdade se torne socialmente sádica ou ressentida, é preciso que a subjetividade pressuponha de alguma forma a intersubjetividade:

Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O outro é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nessas condições a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma liberdade colocada na minha frente, que só pensa ou só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros (Sartre, 1984, p.16).

Note-se então que, em primeiro lugar, só sou livre porque sou igual a outro e só reconheço minha liberdade diante da liberdade do outro. Nesse caso, só sou o que sou porque o outro também é, só posso o que posso porque o outro também pode. Minha consciência desperta com a consciência do outro e só a má fé pode me dissociar dessa comunhão pressuposta.

Se Rousseau é obrigado a recorrer à noção de convenção (ou de moralidade) para introduzir a intersubjetividade, Sartre por sua vez pode fazê-lo de maneira abstrata. Minha liberdade é a liberdade do outro e, com isso, a moralidade não surge de uma vontade comum, mas do simples e singular ato de ver-se no outro vendo-se visto. Há então uma mediação reflexiva em Sartre que substitui o contrato moral em Rousseau. A construção da moralidade se dá por um conjunto de situações e não por meio de um passe de mágica contratual que Rousseau caracteriza como o “milagre do legislador” (Contrato social, II, 7; Rousseau, 1978a, p.59). O que para um é construção intersubjetiva, para o outro é milagre histórico que estabelece a intersubjetividade. É preciso reconhecer uma diferença sutil e muito importante daí decorrente: para um, a política depende da decisão singular de cada um enquanto que para outro tudo é moral e político (“tout tient à la politique”). Por outro lado, é por acentuar essa singularidade que há alguns existencialistas “a-políticos”...

Compreende-se assim a simpatia de alguns rousseauístas por Sartre: a crítica de Rousseau ao direito natural coincide com a crítica de Sartre à idéia de essência. Para ambos a intersubjetividade e a moral se tornam um problema atual e eminentemente filosófico (independente da teologia). A formulação de ambos carrega os sinais de seu tempo mas, como vimos, têm muitos elementos comuns que ademais abrem-nos os olhos para os fundamentalismos morais e políticos que grassam em nossos dias.

  • BURGELIN, P. La philosophie de lexistence de J.-J. Rousseau. Paris: PUF, 1952.
  • DIDEROT, D. Diálogo de um filósofo com a marechala Săo Paulo, Abril, 1984. Coleçăo Os Pensadores.
  • GOLDSCHMIDT, V. Anthropologie et politique - Les principes du systčme de Rousseau Paris: Vrin, 1974.
  • PRADO Jr., B. Romance, Moral e Política no Século das Luzes: o caso de Rousseau. Discurso, Săo Paulo, v.17, 1988.
  • HOBBES, T. Leviată Săo Paulo: Abril, 1979. Coleçăo Os Pensadores.
  • PLATĂO. República Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.
  • ROUSSEAU, J.-J. Contrato social Săo Paulo: Abril, 1978a. Coleçăo Os Pensadores.
  • ROUSSEAU, J.-J.Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade Săo Paulo: Abril, 1978b. Coleçăo Os Pensadores.
  • ROUSSEAU, J.-J.Emílio Săo Paulo: Martins Fontes, 1995.
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  • SARTRE, J.-P. O existencialismo é um humanismo Săo Paulo: Abril, 1984. Coleçăo Os Pensadores.
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    Trabalho apresentado na
    XXVI Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências Humanas: “A filosofia da existência e a tragédia moderna” realizada pelo Departamento de Filosofia da Unesp-Marília em novembro/2002.
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    Professor Assistente-Doutor do Departamento de Filosofia da Unesp, campus de Marília.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2007
    • Data do Fascículo
      2004
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