Open-access Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno

Education, formative experience and dialectic thinking in Theodor W. Adorno.

Resumo:

No século XVIII, Kant avaliou que seu período histórico não era uma época de esclarecimento, mas de menoridade, devido à incapacidade do homem de se servir de seu próprio entendimento. Adorno atualizou esse problema, interpretando a menoridade, em nossa época, em termos de perda da experiência. Os homens não são mais aptos à experiência, pois a aparelhagem técnica e econômica impede o esclarecimento e a conscientização da realidade. A partir desse diagnóstico, o objetivo do presente artigo é investigar o pensamento educacional de Adorno, em suas possibilidades de emancipação. Em nosso ponto de vista, o papel da educação, no pensamento do frankfurtiano, é recuperar a autonomia crítica dos indivíduos, por meio do pensamento dialético, para a reconstrução da experiência danificada.

Palavras-chave: Adorno; Educação; Experiência; Dialética; Emancipação

ABSTRACT:

In the 18th century, Kant evaluated that his historical period was not a time of enlightenment, but rather minority, because of man’s inability to use his own understanding. Adorno updated this problem, interpreting the minority in our presente in terms of loss of experience. Men are no longer apt to experience, because the technical and economic apparatus prevents the clarification and awareness of reality. From this diagnosis, The aim of this article is to investigate Adorno’s educational thought in its possibilities of emancipation. In our point of view, the role of education, in the thoughts of the Frankfurtian, is to recover the critical autonomy of individuals, through dialectical thinking, to rebuild the damaged experience.

Keywords: Adorno; Education; Experience; Dialectic; Emancipation

Introdução

Em seus estudos sobre a educação, Theodor Adorno avaliou que a formação educacional, em nossa época, reproduz os valores, o imaginário e as condições sociais dominantes do sistema cultural. A escola, no mundo capitalista, tem como única finalidade adaptar os indivíduos às formas de domínio social existentes, desenvolvendo um conjunto de papéis sociais e de valores, cujo objetivo é a constituição de sujeitos adaptados à ordem social, econômica e política. Dessa maneira, a escola possui uma função importante para a manutenção do poder das classes dominantes, visto que, ao fazer parte da superestrutura ideológica, ela propaga as formas de pensamento e comportamento socialmente estabelecidas.

Segundo Adorno (1995), há dois problemas que surgem, quando refletimos sobre a possibilidade de emancipação pela educação. O primeiro é que a organização do mundo no qual vivemos se converteu em sua própria ideologia. A ideologia se materializou na própria realidade social, exercendo uma pressão tão imensa sobre as pessoas, que superou o poder de conscientização da própria educação. O segundo é que as pessoas estão muito bem-adaptadas aos confortos narcotizantes da sociedade do consumo. De certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, esclarecimento, mas a realidade sempre envolve continuamente um movimento de adaptação. Desse ponto de vista, a educação seria impotente e ideológica, se ignorasse o objetivo de adaptação, e seria igualmente questionável, se produzisse apenas pessoas bem-ajustadas.

No mundo capitalista, o aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao sistema social como um todo. Os consumidores dos produtos e das formas de bem-estar social tornaram-se prisioneiros do capital. Assim, a consciência foi tomada pelos produtos e confortos narcotizantes da sociedade de consumo. O resultado disso foi a perda da aptidão à experiência. Os indivíduos perderam a capacidade de tomar consciência da realidade, de modo pleno e significativo. A menoridade se tornou a condição existencial do homem contemporâneo.

A partir do diagnóstico acima, o objetivo do presente artigo é investigar as reflexões de Adorno sobre a educação, em suas possibilidades de emancipação. A hipótese que norteia este trabalho é a de que o papel da educação é restaurar a aptidão dos indivíduos à experiência, por meio do pensamento dialético. Contudo, a educação deve mudar a sua atual situação como instância da dominação de classe, servindo apenas para preparar os indivíduos para o mercado de trabalho. A educação deve recuperar sua verdadeira função, a qual é formar o homem para a assimilação da cultura, possibilitando que ele seja capaz de discernir, avaliar e agir com autoconsciência, para modificar sua própria vida e da existência social como um todo.

1 A experiência danificada

A preocupação de Adorno com o processo formativo na sociedade capitalista percorre toda a sua obra. Ao analisar o processo formativo no mundo contemporâneo, ele percebeu que as pessoas são formadas pela sociedade, através de várias instâncias mediadoras, de tal maneira que tudo absorvem e aceitam, em termos dessa configuração alienada. Desse modo, “[...] a formação dos sujeitos se confunde cada vez mais com um adestramento, com uma adaptação aos mecanismos que regulam a produção e que se disseminam para todo o âmbito da vida.” (MAIA, 2009, p. 47). No ensaio “Teoria da Semicultura”, Adorno (2005) chegou à conclusão de que a formação cultural no mundo moderno se degenerou, convertendo-se em semiformação, entendida por ele como uma espécie de pseudocultura, cuja característica é ser unidimensional e limitada. A semiformação é uma formação definida a priori, a qual se tornou a forma dominante da consciência, transformando-se em semiformação socializada, sob a determinação da indústria cultural (MAAR, 2003).

A cultura de massa, planejada e desenvolvida pela indústria cultural, que produz a semicultura, renegou os valores transcendentes da literatura, da arte, da música, que reivindicavam liberdade, igualdade, felicidade e uma vida melhor para os indivíduos. Ao renegar esses valores, ela produziu novos modelos ideais de vida, como a beleza, o corpo, a família, as qualidades da alma e a riqueza: “Eis aqui o terrível mundo dos modelos ideais de uma vida saudável, dando aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade.” (ADORNO, 1995, p. 84). Esses ideais renovadores foram veiculados em filmes, romances, novelas, músicas e propagandas. Em lugar dos valores transcendentes de emancipação para todos, a indústria cultural respondeu com ideais de prazer, consumo e satisfação individual.

Para disseminar os valores do mundo industrial capitalista, toda existência foi forçada a passar pelo filtro da indústria cultural. Quanto maior a perfeição com que a indústria cultural duplica a realidade, mais fácil ela cria a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). A imaginação, a autonomia e a espontaneidade do consumidor cultural são paralisadas pela própria constituição dos produtos culturais homogeneizados. Em consequência disso, a semiformação tornou-se a forma da consciência, nos indivíduos.

Em uma realidade fundamentada na reificação, onde todas as coisas se nivelam pela forma da mercadoria, as pessoas perdem sua autonomia, aceitando com maior ou menor resistência aquilo que a existência lhes impõe. Com isso, os homens não são mais aptos à experiência, pois, entre eles e a realidade, se interpõem os controles técnicos, os quais impedem uma verdadeira consciência da realidade. Para Adorno (1995, p. 150), “[...] a constituição da aptidão à experiência consistiria essencialmente na conscientização.”

Contudo, nas sociedades modernas, o aparato técnico adquiriu um tal poder que os indivíduos foram anulados, enquanto subjetividade autônoma. A formação da consciência é constituída no contexto de uma sociedade administrada, que enclausura os indivíduos, disciplinando-os aos padrões de pensamento e comportamento socialmente estabelecidos. A sociedade administrada se define pela união entre o capital e as instituições democráticas, buscando uma maior racionalidade técnica e administrativa, a fim de se obter uma maior organização, controle e planejamento dos indivíduos. Como Adorno (1995, p. 43) bem avaliou, se as pessoas querem viver em sociedade, “[...] nada lhe resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia.”

Adorno, em suas obras, teve uma grande influência de seu amigo e parceiro Walter Benjamin, que refletiu sobre a perda da experiência no mundo moderno. Para Benjamin (1994), com o desenvolvimento da técnica, surgiu uma nova forma de miséria espiritual. A experiência formativa, a qual possibilitou a emancipação da classe burguesa, deu lugar a uma experiência empobrecida de valores e ideias que se difundiram entre as pessoas, como a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo. Seguindo as análises de Benjamim sobre a perda da experiência, Adorno (1985, p. 36) concluiu que, “[...] quanto mais o processo da autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica.” Os indivíduos, ao reduzirem sua existência ao consumo e aos entretenimentos idiotizados da indústria cultural, deixaram que sua interioridade fosse modelada pela produção de mercadoria. Dessa maneira, a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de tal modo que tudo absorvem e aceitam, nos termos dessa configuração alienada (ADORNO, 1995).

No mundo contemporâneo, a organização social continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade capitalista realmente conforme suas próprias paixões e desejos. Na medida em que o mundo se nivelou pela forma da mercadoria, o ego ajustado à realidade aprendeu a ordem e a subordinação, por meio do aparato técnico e econômico, que a tudo engloba. Nesse sentido, “[...] os fenômenos da alienação baseiam-se na estrutura social.” (ADORNO, 1995, p. 148). A adaptação, o conformismo, a ausência de reflexão, os comportamentos convencionais são características dessa alienação.

Tal como Kant compreendeu, em sua época, a menoridade como a condição de tutela, causada pela preguiça e covardia do homem em se servir de seu próprio entendimento, Adorno interpretou a menoridade, em nossa época, em termos de perda da experiência. Para ele (1995), os homens não são mais aptos à experiência, pois eles interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimentado aquelas camadas estereotipadas de modelos, formas de pensar e agir socialmente determinadas. Adorno pensa, sobretudo, no papel desempenhado pela técnica na formação ou deformação da consciência e do inconsciente. O problema mais grave estaria ligado à própria constituição da consciência, que é formada no contexto de uma sociedade reificada, o qual desvincula o pensamento de seus conteúdos formativos (PETRY, 2015).

No mundo administrado, a indústria cultural tem um papel fundamental na perda da experiência, porque é ela que dissemina os produtos padronizados da semicultura. Ela impede o esclarecimento e a conscientização sobre a realidade, uma vez que impossibilita a reflexão crítica, ao disseminar os produtos culturais pasteurizados. Com isso, torna a consciência incapaz de se dirigir apropriadamente à realidade. Poderíamos afirmar, portanto, que a semiformação se caracteriza pelo modo distorcido pela qual os indivíduos experimentam a cultura, visto que a tomam de forma imediata, sem que seu conteúdo possa ser apropriado pelo indivíduo. A semiformação se revela, assim, como uma forma de bloqueio para a realização de uma experiência, na medida em que impede que o sujeito mantenha uma relação viva com a cultura. Ela faz com que ele estabeleça uma ligação parcial com os produtos a que tem acesso, o que acaba por contribuir com a reificação da consciência (PETRY, 2015).

Em uma sociedade totalmente reificada, fundamentada no consumo e nos entretenimentos padronizados, a semiformação impede a experiência, justamente porque as pessoas odeiam o que é diferente, o que não é padrão, o que não faz parte do que está estabelecido. Em um debate com o educador alemão Helmut Becker, Adorno nos oferece um exemplo contundente da perda da experiência. Ele fala sobre um número incontável de indivíduos, sobretudo na fase da adolescência, que possuem grande aversão à educação: “Elas querem se desvencilhar da consciência e do peso de experiências primárias, porque isso só dificulta sua orientação.” (ADORNO, 1995, p. 149). Na adolescência, já se desenvolve o tipo de indivíduo que questiona: por que estudar, se posso ouvir música ou assistir à televisão? Desse modo, as pessoas odeiam o que é diferenciado, o que não é moldado, porque são excluídos do mesmo e, também, porque, se o aceitassem, isso dificultaria a vida cotidiana (ADORNO, 1995).

Em outro ensaio, “A filosofia e os professores”, Adorno detectou a perda da experiência na falta de autonomia dos indivíduos. Ao avaliar a contratação de professores no Estado de Hessen, na Alemanha, ele estimulou muitos candidatos a colocar suas próprias opiniões, em seus trabalhos. Contudo, a maioria acabava tendo dúvidas sobre sua própria autonomia. Para tudo deveria haver hábitos correspondentes, normas e caminhos já consolidados. Em sua opinião, essa relação entre a ausência de reflexão e padrões normativos era sinal de uma conformação ao que é estabelecido, ao que é vigente, mostrando uma maneira de pensar que tem afinidades com o autoritarismo. Era por isso, segundo ele, que o nazismo ainda sobrevivia, não porque as pessoas acreditavam em suas doutrinas, mas porque eram determinadas por conformações formais de pensamento, como o convencionalismo, o realismo exagerado e a disposição de se adaptar ao vigente: “Na incapacidade do pensamento em se impor, já se encontra à espreita o potencial de enquadramento e subordinação a uma autoridade qualquer, do mesmo modo como hoje, concreta e voluntariamente, a gente se curva ao existente.” (ADORNO, 1995, p. 71).

A perda da experiência também pode ser observada no próprio âmbito da reflexão filosófica. Adorno (1995) percebeu que a ocupação com a filosofia, a qual deveria possibilitar uma maior independência de pensamento, conduzindo os indivíduos à autonomia, tornou-se o oposto disso. Na medida em que a filosofia se submeteu às regras do conhecimento científico, ela abandonou sua capacidade de reflexão. Esse fato é o resultado das próprias normas científicas. A ciência, que nunca aceitou nada sem verificação e comprovação, significando liberdade e emancipação em relação a todos os dogmas, crenças e ideologias, atualmente se tornou uma nova forma de heteronomia. É o que Adorno (1995, p. 70) mostra, nesta passagem:

As pessoas acreditam estar salvas quando se orientam conforme regras científicas, obedecem a um ritual científico, se cercam de ciência. A aprovação científica converte-se em substituto da reflexão intelectual do fatual, de que a ciência deveria se constituir. A couraça oculta a ferida. A consciência coisificada coloca como procedimento entre si própria e a experiência viva.

Adorno também avaliou que a falta de aptidão à experiência está ligada à perda da consciência histórica. O que é característico da sociedade capitalista é a deterioração da memória, já que a sociedade burguesa está subordinada, de um modo universal, à lei da troca. As relações de intercâmbio material entre os homens são, por sua própria natureza, atemporais, assim como a racionalidade técnica, as mercadorias e o trabalho. A produção e a reprodução do capital liquidam o tempo e toda experiência autêntica. O resultado disso é que, na vida cotidiana, as pessoas ficam eternamente presas ao trabalho, aos divertimentos e ao consumo. O mundo se reproduz à imagem de si mesmo, como um eterno presente. A perda da memória torna-se uma lei objetiva do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Adorno (1985, p. 190) ressalta: “A reificação é um esquecimento.”

A barbárie de Auschwitz é a prova mais contundente da perda da experiência. Os indivíduos com uma consciência reificada são incapazes de fazer experiências intelectuais. Eles não são capazes de refletir de modo crítico e autônomo sobre a realidade. Nesse sentido, Auschwitz faz parte de um processo social objetivo, de uma regressão associada ao progresso, um processo de coisificação que impede a experiência formativa, substituindo-a por uma reflexão afirmativa, autoconservadora, da situação vigente. Auschwitz não representa apenas o genocídio, num campo de extermínio, mas simboliza a tragédia da formação, na sociedade capitalista (MAAR, 1995).

2 A construção da experiência danificada

Após as leituras das obras de Adorno, será difícil alguém negar a importância das reflexões de Kant para o pensamento do frankfurtiano, principalmente aquelas que se referem à ideia de uma educação emancipada. No mundo contemporâneo, a educação perdeu sua função primordial, que era educar para o esclarecimento, para a autonomia intelectual e para a participação política. O indivíduo perdeu a capacidade de reflexão e julgamento da realidade, perdeu a capacidade de avaliar e interpretar sua existência para viver de forma autônoma. É devido à crise da formação cultural que Adorno retorna a Kant, em busca de uma educação emancipada, a qual contemple o primado pedagógico da Aufklärung como maioridade, de sorte a superar a condição de menoridade do homem, que o mantém em um permanente estado de violência e regressão social.

O conceito de emancipação, em Adorno, se identifica com a ideia de esclarecimento, em Kant. A emancipação exige o esclarecimento para libertar o indivíduo da condição de tutela. Para poder falar por si mesmo e não ser tutelado, o sujeito precisa ser esclarecido. O conceito de esclarecimento postula que qualquer um pode fazer uso da palavra, por meio de sua vontade, que ela é democrática. Nesse sentido, o conceito se refere à possibilidade de se fazer uso público da razão, em uma democracia. Mas, para isso, é necessária uma boa formação, para que o indivíduo seja capaz de pensar por si mesmo. É por essa razão que Adorno se detém na formação educacional, por motivação análoga à que instigou Kant a se ocupar do esclarecimento da ilustração. Assim como a ilustração se tornou problema, na época das Luzes, a formação converteu-se em um problema, nesta segunda ilustração, a qual teve origem na sociedade industrial, quando as ciências se converteram em forças produtivas sociais. Desse modo, a crise de formação é a expressão mais desenvolvida da crise social da sociedade moderna (MAAR, 1995).

No ensaio “O que é esclarecimento” (1784), Kant se insere no debate da Aufklärung, que surge em sua época: a questão de saber se a Alemanha e a Europa viviam em uma época esclarecida, lançando os fundamentos para o aperfeiçoamento e a emancipação da humanidade. Convidado pela revista Berlinischen Monatsschrit, ele posicionou-se sobre a questão, procurando argumentar que seu período histórico não vivia uma época de esclarecimento. Para isso, contrapôs duas condições culturais opostas e antagônicas da existência humana, a condição de menoridade e de maioridade, ou seja, contrapôs a condição de heteronomia à condição de autonomia. Ao defender o ponto de vista do erudito, ele concebeu o esclarecimento e o uso público da razão como as condições de superação do estado de menoridade (DALBOSCO, 2011).

Kant (2008) começa seu ensaio definindo o esclarecimento como a saída do homem de sua menoridade de que ele próprio é culpado. O pensador alemão entende a menoridade como a incapacidade do ser humano de se servir de seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem. Essa menoridade não surge por causa de uma carência do entendimento, mas por falta de decisão e coragem. A palavra latina que expressa a saída da menoridade é Separe Aude (Ouse saber), isto é, tenha a coragem de pensar por si mesmo. Essa é a palavra-chave que define o esclarecimento.

Em sua época, Kant (2008) já havia observado que uma das coisas mais difíceis para o homem era superar sua menoridade. O indivíduo estaria tão acostumado a depender dos outros que se habituou a essa condição e ganhou amor por ela, perdendo totalmente a capacidade de se servir do seu próprio entendimento. Naquela época, o pensador iluminista afirmava que essa menoridade era causada pelo advento dos instrumentos mecânicos, pelos preceitos e fórmulas e pelo mau uso dos dons naturais no ser humano. Hoje, podemos sustentar que a indústria cultural, os novos sistemas de informação e as novas tecnologias são os principais fatores que mantêm os indivíduos em um estado de menoridade. Por meio de toda essa aparelhagem, eles são impedidos de pensar e de agir de forma autônoma, além de esses instrumentos perpetuarem os modos de pensar vigentes: os preconceitos, as crenças e as ilusões que servem de rédeas à grande maioria destituída de autonomia e de reflexão crítica. Desse ponto de vista, a menoridade é uma das principais características da fragilidade humana, e a coragem de pensar por si mesmo é a principal maneira de enfrentá-la (DALBOSCO, 2011).

Como bem pontuou Dalbosco (2011), na concepção kantiana, o indivíduo como um ser provido de razão e liberdade possui todas as condições para o caminho da maioridade, o que nada mais é do que o caminho do Sapere Aude. Contudo, esse caminho não ocorre isoladamente, todavia, pela interação com outros indivíduos e com todo o conhecimento acumulado. A saída do homem de sua menoridade só pode se dar em companhia de outros seres humanos também em condições frágeis. Logo, Kant postula a necessidade da formação educacional. É através da educação que os sujeitos podem ser esclarecidos e ser preparados para a emancipação: “O próprio progresso do esclarecimento é o resultado de um primado pedagógico inerente a ideia de maioridade, uma vez que o pensar por conta própria não ocorre por mera obra do acaso, mas é consequência de um processo formativo educacional.” (DALBOSCO, 2011, p. 89).

O processo educativo deve possibilitar não somente a assimilação do saber acumulado pela humanidade, mas deve desenvolver a autonomia para o uso público da razão. Kant (2008) entende, sob o nome de uso público da razão, a capacidade de que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Por meio do esclarecimento, o indivíduo adquire o poder da conscientização, do discernimento e da argumentação. O pensador alemão exemplifica casos em que o cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento de impostos que sobre ele recaem ou das ordens do governo que é obrigado a obedecer, mas que, enquanto sábio, tem completa liberdade e até mesmo o dever de dar conhecimento ao público de todas as suas ideias, que são cuidadosamente examinadas e refletidas, sobre o que há de errado ou injusto nas leis do Estado.

O conceito kantiano de esclarecimento é importante para Adorno, justamente porque a aptidão à experiência é definida como conscientização, como esclarecimento sobre a realidade. A conscientização ocorre por meio de uma reflexão direta sobre o objeto, sem a mediação de modelos ou estereótipos já cristalizados, na consciência, pela semiformação ou pelos vários mecanismos da dominação social. Desse modo, para o pensador frankfurtiano (1995), a aptidão à experiência se vincula ao próprio conceito de consciência, mas não como a capacidade formal de pensar ou ao desenvolvimento lógico formal. O que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo, a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. É nesse sentido que “[...] a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação.” (ADORNO, 1995, p. 151).

Petry (2015) explica-nos que a educação para a autonomia, tal como Adorno a defende, exige do sujeito a realização de experiências, as quais podem ser associadas a uma maneira particular de pensar. Dessa maneira, o pensamento não pode ser concebido em termos abstratos, separado da realidade. Há a presença, no pensamento, de uma experiência no sentido empírico, aquilo que o sujeito experimenta em relação ao mundo a sua volta. Em seu texto “Educação e Emancipação, Adorno nos dá um exemplo de como o desenvolvimento da aptidão à experiência deveria ser realizado na escola. Em uma passagem, ele mostra como os estudantes deveriam se tornar capazes de compreender os mecanismos de dominação da indústria cultural, levando-os a refletir sobre o papel que ela exerce no âmbito da cultura:

Por exemplo, imaginaria que nos níveis mais adiantados do colégio, mas provavelmente também nas escolas em geral, houvesse visitas conjuntas a filmes comerciais, mostrando-se simplesmente aos alunos as falsidades ai presentes; e que se proceda de maneira semelhante para imuniza-los contra determinados programas matinais ainda existentes nas rádios, em que nos domingos de manhã são tocadas músicas alegres como se vivêssemos num mundo feliz embora ele seja um verdadeiro horror; ou então que se leia junto com os alunos uma revista ilustrada, mostrando-lhes como são iludidas, aproveitando-se de suas próprias necessidades impulsivas; ou então que um professor de música, não oriundo da música jovem, proceda a análises dos sucessos musicais, mostrando-lhes por que um hit da parada de sucessos é tão incomparavelmente pior do que um quarteto de Mozart ou de Beethoven ou uma peça verdadeiramente autêntica da nova música. Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente. (ADORNO, 1995, p. 183).

O que Adorno nos mostra, aqui, é um exemplo do que seja uma experiência formativa. O contato direto e reflexivo sobre os produtos padronizados da indústria cultural deve possibilitar um maior esclarecimento e conscientização da semiformação como fundamento da dominação social. Assim, a percepção direta dos mecanismos que produzem a alienação social deve ensejar uma crítica imanente da sociedade.

Segundo Petry (2015), para que o sujeito realize uma experiência, seria necessário que os conteúdos fossem incorporados em seu modo de pensar, o que exige, por sua vez, que tais conteúdos sejam apreendidos como uma totalidade. Para isso, é necessário um contato com a tradição na qual os bens culturais emergem. Para exemplificar, ela remete à literatura, argumentando que seria ingênuo considerar que qualquer pessoa, em um primeiro contato com uma determinada obra, pudesse apreender seu sentido:

A literatura é um bom exemplo de como o conceito de formação não se satisfaz com um mero esforço e apreensão de um determinado objeto. A leitura imediata e superficial de uma obra, ainda que seja uma forma de contato, pode ser irrelevante em termos de formação para o indivíduo. Entretanto, se as obras pudessem ser compreendidas como expressão de um tempo, de um cenário político e cultural, então, ao leitor que mergulha em um texto à procura de indícios de uma realidade que ali se mostra como um enigma a ser descoberto, estará aberta a possibilidade de que seja afetado mais profundamente por essa experiência, reconstruindo ou mesmo compondo novas interpretações sobre a sociedade e sobre si mesmo. (PETRY, 2015, p. 462).

Como podemos notar neste trecho, Petry (2015) ressalta que a formação cultural exige mais do que um simples contato com textos literários, com obras filosóficas, com arte ou com música. Para que se alcance o valor de uma obra cultural, é necessário haver uma preparação espiritual, no sentido de que o indivíduo deve estar apto a compreendê-la em sua totalidade e não de forma fragmentária. É preciso pensar a obra numa relação dialética com a totalidade histórica e social. Ou seja, é imperioso se relacionar com a cultura de um modo mediado, de perceber como uma obra se relaciona com seu tempo, com a história e com a sociedade em que ela emerge. Dessa forma, o contato com a cultura deve possibilitar uma compreensão mais profunda do que o indivíduo tem de si mesmo, pois envolverá conceitos com os quais lhe será possível estabelecer conexões entre si e a realidade que os cerca (PETRY, 2015).

Como aponta Adorno (1995), não existem fórmulas ou hábitos adequados para a formação cultural; ela só pode ser adquirida mediante esforço e interesse: não basta frequentar cursos, ir para escola ou adquirir uma cultura geral. É necessário adquirir uma verdadeira experiência reflexiva sobre o objeto, isto é, a formação cultural “[...] exige à disposição aberta, à capacidade de se abrir a elementos do espírito, apropriando-os de modo produtivo na consciência, em vez de se ocupar com os mesmos unicamente para aprender.” (ADORNO, 1995, p. 64). Essa abertura ao objeto não se dá de forma espontânea, mas como disposição para amar, conforme o próprio Adorno assegura: “[...] eu diria que para haver formação cultural se requer amor; e o defeito certamente se refere à capacidade de amar.” (ADORNO, 1995, p. 64).

Adorno não dá nenhuma indicação de como a capacidade de amar deveria ser desenvolvida, em sala de aula; ele próprio admite que não há instruções sobre isso e, se há, são bastante precárias. Contudo, ele pensa que essa questão deveria ser tratada desde a primeira infância. Já na pré-escola, os educadores deveriam sensibilizar as crianças para o afeto, para a atenção e para a compreensão do outro. Ele afirma ainda que pessoas com dificuldade de amar não deveriam se dedicar ao ensino. Aquele que tem essa dificuldade não só perpetua a frieza e os sofrimentos inerentes a essa incapacidade, mas também perpetua essa deficiência nos alunos, produzindo ad infinitum esse estado intelectual, o qual, de certo modo, foi corresponsável pela barbárie nazista (ADORNO, 1995).

Em uma passagem de “Educação - para quê?”, Adorno indica, de maneira contundente, sua concepção de educação. Ele deixa bem claro que o grande objetivo da educação não é apenas o de transmitir conhecimentos ou modelar as pessoas, a partir de um ideal, mas sua verdadeira finalidade deve ser a conscientização. É, portanto, mediante o processo pedagógico que a conscientização pode se tornar possível:

[...] gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir de seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimento, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isso seria inclusive de maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado. (ADORNO, 1995, p. 141-142).

De acordo com Adorno, a educação deve desenvolver o esclarecimento e a reflexão crítica sobre a realidade objetiva. É a partir da experiência concreta do indivíduo, na sua relação com o mundo, que ele pode se conscientizar das forças sociais que o oprimem. Em sua época, Adorno chegou a dizer que era moda na Alemanha falar mal da educação política, mas os dados da Sociologia mostravam que, “[...] onde a educação política é levada a sério e não como simples obrigação inoportuna, ela provoca um bem maior do que normalmente se supõe.” (ADORNO, 1995, p. 45).

Como Maar (1995) bem avaliou, a experiência (Erfahrung) precisa ser apreendida fora do espectro do experimento das ciências naturais; há que se remeter a Hegel e sua “ciência da experiência da consciência”. A experiência é um processo autorreflexivo, em que a relação com o objeto forma a mediação pela qual se forma o sujeito em sua “objetividade”. Nesse sentido, a experiência seria dialética, basicamente um processo de mediação. Por um lado, essa experiência deveria ser entendida em seu momento materialista como disponibilidade ao contato com o objeto, como abertura ao empirismo. Nessa perspectiva, o pensamento precisa recuperar a experiência do concreto sensível (MAAR, 1995).

Na concepção educacional de Adorno, a emancipação “[...] encontra-se relacionada a uma dialética. Esta precisa ser inserida no pensamento e na prática educacional.” (ADORNO, 1995, p. 143). Desse modo, a transformação da realidade deve ser pensada como problema central na educação. O processo pedagógico deve possibilitar aos indivíduos a compreensão da realidade, em seu devir. O que é essencial é a reflexão sobre a relação dialética entre sujeito e objeto, no processo histórico. Não se trata de pensar os fenômenos de forma unilateral pela causalidade, como faz o positivismo, todavia, de refletir sobre a ação recíproca entre os fenômenos e a totalidade que os condiciona.

No processo pedagógico, é relevante que os indivíduos aprendam a observar as condições materiais de existência como um processo histórico espontâneo, governadas por leis independentes da vontade humana, mas que inexoravelmente determinam o comportamento e a consciência dos seres humanos. O importante é compreender nos fenômenos a lei de sua transformação, de seu desenvolvimento, ou seja, as mudanças de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra. O pensamento só pode conhecer a realidade em sua plenitude, apreendendo o objeto idealmente em seu movimento real. Para Marx, “[...] o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado.” (MARX, 2016, p. 28). Dessa maneira, é necessário que a reflexão se apodere da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima entre elas. Só a partir disso é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real (MARX, 2016).

Na realidade social, não existe nada isolado; os fenômenos sociais não podem ser pensados como coisas, independentes de suas determinações. Em Para a crítica da economia política, Marx pensou os fenômenos sociais pela categoria da mediação e de totalidade concreta. Em suas análises, ele procurou mostrar que não devemos compreender a realidade, começando por categorias gerais, mas devemos partir do mais simples para reconstruir suas conexões, de sorte a assim chegar ao todo vivo e concreto: “[...] o curso de pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo, corresponde ao processo histórico efetivo.” (MARX, 1982, p. 15).

O pensamento dialético tem como traço fundamental o trabalho com categorias concretas e não com conceitos. Nesse sentido, todo fenômeno social é parte de uma totalidade mais complexa. Como Marx (1982) exemplificou, a mais simples categoria econômica, o valor de troca, nunca poderia ser pensado sem pressupor uma população produzindo em determinadas condições e, também, certos tipos de famílias, de comunidades ou Estado. O valor de troca nunca poderia existir de outra maneira, senão como relação unilateral, abstrata, de um todo vivo e concreto já dado: “[...] o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do diverso.” (MARX, 1982, p. 14). É nessa perspectiva descrita por Marx que se torna necessária a reflexão sobre as condições de produção de toda sociedade e de seu impacto nas formas de existência humana.

Ao contrário de Hegel, para quem o concreto pensado é autocriação do conceito, que vai além da intuição e da representação, Marx insiste que o ponto de partida do processo cognoscitivo está no concreto real (GORENDER, 1982). Para ele, as categorias exprimem “[...] formas e modos de ser, determinações de existência.” (MARX, 1982, p. 18). As categorias não são estruturas somente lógicas que a razão constrói, independentemente, nem tampouco hipóteses intelectivas, mas se configuram como estruturas que a razão extrai do real, reproduzindo mentalmente o que realmente existe (PONTES, 1999). Nesse sentido, a totalidade concreta é o fundamento de toda realidade.

Para esclarecer melhor a relação entre o método dialético e o conhecimento da realidade concreta, vamos nos reportar aqui ao texto de Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico. Nessa obra, ele contrapõe dois modos de compreender a realidade: o modo estático ou metafísico de pensar e o modo dinâmico ou dialético de pensar.

No método metafísico de pensar, a natureza é analisada em suas diversas partes. Os diversos processos são classificados, os corpos orgânicos são pesquisados, a partir de suas estruturas internas. Esse modo de proceder fundamenta-se no método científico da observação. Contudo, esse método é limitado, porque produz o hábito de observar “[...] as coisas e os processos da natureza isoladamente, subtraído a concatenação do grande todo; portanto não na sua dinâmica, mas estaticamente, não como substancialmente variáveis, mas como consistências físicas, não na sua vida, mas na sua morte.” (ENGELS, 1984, p. 46). Conforme Engels, esse método de investigação metafísica contaminou o modo de refletir da filosofia, nos últimos séculos. Em nossa época, a filosofia concebe as coisas e as suas representações de maneira isolada, fixa, rígida, como algo acabado e perene. O resultado disso é que esse método é unilateral, limitado, abstrato e se perde em insolúveis contradições, uma vez que é incapaz de enxergar as concatenações entre os fenômenos e o todo (ENGELS, 1984).

Ao contrário do modo metafísico de pensar, a dialética materialista focaliza as coisas e as suas imagens conceituais substancialmente, nas suas conexões, na sua concatenação, na sua dinâmica, na sua relação entre o particular e o todo concreto:

Somente seguindo o caminho da dialética, não perdendo jamais de vista as inumeráveis ações e reações gerais do devir e do perecer, das mudanças de avanço e retrocesso, chegamos a uma concepção exata do universo, do seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade, assim como da imagem projetada por este desenvolvimento nas cabeças dos homens. (ENGELS, 1984, p. 49).

Apesar de ser polêmica a ideia de uma dialética da natureza, defendida por Engels, Marx, em O Capital, coloca a centralidade da natureza para a transformação da história humana. O homem não pode ser separado da natureza, pois é engendrado por ela. Como um ser natural, ele surge no mundo a partir das transformações da própria natureza. Nesse sentido, devemos admitir uma dialética da natureza, pois ela, ao engendrar o homem, possibilita o engendramento da própria cultura. Afirma Marx (2016, p. 211):

Antes de tudo, o trabalho é um processo em que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impressiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeças e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.

Segundo Konder (2008), a grande preocupação de Engels, nesse texto, foi defender o caráter materialista da dialética, tal como Marx e ele a conceberam. Era preciso evitar que a dialética da história humana fosse analisada como se não tivesse absolutamente nada a ver com a natureza, como se o homem não tivesse uma dimensão irredutivelmente natural e não tivesse começado sua trajetória na natureza. Uma certa dialética na natureza era, para Marx e para Engels, uma condição prévia para que pudesse existir a dialética humana. Esse fato é de extrema importância para a educação. As ciências oferecem um extraordinário acervo de dados e conhecimentos, “[...] demonstrando com isso que a natureza se move, em última instância, pelos caminhos dialéticos e não pelas veredas metafísicas.” (ENGELS, 1984, p. 48).

No pensamento pedagógico de Adorno, a educação deve recuperar essa dimensão formativa, em que cabe aos indivíduos abrir-se à experiência dialética da realidade, compreendendo os fenômenos em suas conexões, na sua dinâmica, no seu processo de nascimento e caducidade. O grande mérito da filosofia alemã foi conceber todo o mundo da natureza, da história e do espírito como um processo, ou seja, em constante movimento, mudança, transformação e desenvolvimento, tentando, além disso, ressaltar a íntima conexão que preside a esse processo de movimento e desenvolvimento (ENGELS, 1984). É no esforço de compreender o movimento dos fenômenos, em suas conexões íntimas, elaborando sínteses, que os indivíduos poderão compreender a realidade. De acordo com Konder (2008, p. 36), “[...] a síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa - que a visão de conjunto proporciona - que é chamada de totalidade.”

Na opinião de Adorno, “[...] só haveria humanidade e não seu simulacro onde se desfizesse o princípio da totalidade, que impõe limites ainda que somente se anulasse o seu comando de identificar-se com o todo.” (ADORNO, 1992, p. 220). Contudo, a compreensão do todo se torna problemática, na sociedade capitalista, porque os indivíduos são submetidos inexoravelmente à divisão social do trabalho, que os enclausura em uma vida de labuta e opressão. O processo econômico repressivo, o mercado concorrencial, o sacrifício cotidiano, o medo de ficar à margem e a divisão técnica do trabalho impedem uma orientação autônoma. O próprio Adorno enfatiza: “Os indivíduos, investidos de sua função cognitiva pela divisão das funções próprias da sociedade, baseada na divisão do trabalho, limitam-se a tal ponto às atividades particulares e tecno-práticas, que encontram obstruídos o caminho para a compreensão do todo.” (ADORNO, 1978, p. 151).

No pensamento educacional de Adorno, é só por meio da experiência formativa que os indivíduos podem compreender a totalidade reificada que os governa. Eles devem se desidentificar com essa totalidade. Esse é o primeiro passo para a emancipação. Porém, a educação deve mudar a sua atual situação como instância de dominação de classe. Ela não pode ser pensada a partir de reformas isoladas, mas precisa ser pensada como um fim em si mesmo. O processo formativo tem que atingir todos os âmbitos da cultura e da existência social. A emancipação só pode ser efetiva, ser for “[...] elaborada em todos, mas realmente em todos os planos de nossa vida.” (ADORNO, 1995, p. 182-183).

Como avalia Adorno, se a humanidade “[...] se convertesse numa totalidade desprovida de qualquer princípio limitador, estão no mesmo momento se livraria da coerção que submete todos os seus membros a tal princípio e não mais seria totalidade: não mais seria uma unidade forçada.” (ADORNO, 1992, p. 219). A experiência formativa deve possibilitar a desidentificação com a formação cultural dominante A emancipação exige a conscientização sobre as condições objetivas e subjetivas da dominação. O conhecimento exato da sociedade deve se tornar, para o indivíduo, a condição imediata de sua emancipação: “A constituição da aptidão à experiência consistiria essencialmente na conscientização e, desta forma, na dissolução desses mecanismos de repressão e dessas formações reativas que deformam nas próprias pessoas sua aptidão à experiência.” (ADORNO, 1995, p. 150).

O indivíduo só pode se constituir como subjetividade autônoma, quando ele for capaz de compreender dialeticamente sua própria experiência social como adaptação, avaliando seu destino e posição social na grande ordem do todo. É necessário que ele compreenda as mediações e as forças que se processam entre sua vida e a sociedade, entre sua interioridade e a realidade, entre sua trajetória individual e a história universal. Ele só pode entender sua existência e os problemas que enfrenta, na realidade, compreendendo as forças históricas e as relações de poder que o subjugam.

Considerações Finais

No mundo capitalista, as pessoas são formadas por meio de várias instâncias mediadoras, de tal maneira que tudo internalizam e aceitam, em termos dessa existência reificada. A falta de uma formação cultural plena produz indivíduos impotentes, paralisados e incapazes de reagir, os quais facilmente são cooptados por instâncias heterônomas. A realidade econômica, política e social determina o indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria ser o núcleo de sua autonomia. Desse modo, a consciência renuncia à sua autodeterminação. A autonomia do homem, a sua capacidade de reflexão, a sua imaginação e o seu poder de oposição são dissolvidos pelo avanço dos recursos técnicos de informação.

Apesar de a educação reproduzir as condições sociais e políticas que mantêm a alienação e a regressão social, de acordo com Adorno, ela é o único veículo capaz de desbarbarizar o mundo em que vivemos. A educação representa, para o pensador frankfurtiano, a luta contra a reificação e a semiformação que deformam o espírito, adulteram a vida sensorial e obscurecem a realidade. Nesse sentido, o processo pedagógico deve se voltar aos verdadeiros problemas sociais encobertos pela ideologia, objetivando o esclarecimento e a conscientização da realidade concreta. É nesse processo, portanto, que se deve restaurar, no indivíduo, a aptidão à experiência, possibilitando a desidentificação com a formação cultural dominante.

Referências

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  • ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Estudos da comunidade. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 151-171.
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  • BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119.
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  • PONTES, R. A categoria de mediação em face do processo de intervenção do Serviço Social. Cadernos Técnicos, n. 23, p. 60-68, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2021
  • Aceito
    05 Maio 2022
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